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A CONTEMPLAÇÃO DO TERRÍVEL COMO ESTÍMULO PARA O DESPERTAR DA ALEGRIA

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Academic year: 2021

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A CONTEMPLAÇÃO DO TERRÍVEL COMO ESTÍMULO

PARA O DESPERTAR DA ALEGRIA

Renato Nunes Bittencourt Doutorando do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq

Resumo: Neste artigo veremos de que maneira Nietzsche compreende a experiência do trágico como uma vivência marcada pela irrupção do estado de júbilo no âmago do indivíduo, seja na cena trágica, seja na própria vida. Mediante a exposição da perspectiva dionisíaca delineada por Nietzsche, veremos que, no âmbito da cultura trágica dos gregos, tanto a dor como a finitude da existência não eram de modo algum consideradas objeções ao viver, mas circunstâncias intrínsecas da mesma, situação inexorável que estimulava o grego antigo a compreender a existência de maneira afirmativa, legitimando todas as suas experiências, sem nelas inserir quaisquer traços morais em suas avaliações.

Palavras-chave: Dionisíaco. Nietzsche. Pessimismo. Trágico.

Introdução

Em nossa sociedade tecnicista, toda atividade que venha a exigir esforços extraordinários para a sua realização é, de um modo geral, imputada como algo maçante, digno de desprezo, um grande avilte para nossas aspirações superiores. A motorização do mundo em que vivemos nos conduz ao estabelecimento de uma moral pseudo-hedonista, que preconiza o dispêndio da menor quantidade de energia vital, pelo máximo de prazer a ser obtido. Nessas circunstâncias, o projeto civilizacional da modernidade se constituiu pelos contínuos esforços em livrar a condição humana das suas adversidades naturais e torná-la mais plena e feliz, pois que emancipada da dor. Todavia, apesar do belo ideal existencial inerente a tal proposta, esta redundaria em fracasso, pois a exclusão radical da experiência da dor e do trágico da vida humana motivaria o seu próprio aniquilamento.

Podemos dizer que a busca por um estado de pureza, de perfeição e de ausência de dor decorre da inserção de valores morais e transcendentes no âmbito da vida prática, a qual é considerada como merecedora de aperfeiçoamento em todos os modos de expressão, para que possa sair do estado de decadência ontológica em que se encontra.

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Entretanto, não era através de tais valorações idealistas que os gregos da era trágica problematizam e compreendiam a existência; pelo contrário, a experiência afirmativa da cultura grega pré-platônica estabelece uma visão de mundo plenamente capaz de legitimar axiologicamente as vivências mais dolorosas, mesmo as que estavam intrinsecamente associadas ao perecimento humano, pois havia nessa saudável cultura a compreensão da manifestação da vida em modos de expressão que superavam o da mera individualidade.

Nietzsche, ao estudar o âmago da cultura grega pré-platônica, estabelecerá dois estamentos simbólicos que servem de parâmetros valorativos acerca do modo de ação humana e suas conseqüentes criações no âmbito da vida social: o “apolíneo”, vinculado a uma necessidade humana de sobriedade, equilíbrio de conduta, respeito pela ordem pública) e o “dionisíaco”, que estabelece a desmedida das ações, a supressão da individualidade pelo êxtase, a embriaguez como libertação existencial. (NIETZSCHE, 1996, § 1-3). A esfera apolínea nasce por um desejo humano de estabelecer um senso de ordem no mundo fugaz em que vivemos, mascarando a realidade de dor através da contemplação da beleza e da conduta harmônica que apazigua o animo.1 Contudo, no apolinismo não havia a elaboração de um discurso metafísico, supressor da corporeidade e da imanência. Dessa maneira, ainda que o apolíneo não conseguisse abarcar em seu projeto cultural a pluralidade de forças do mundo, ao menos em sua disposição valorativa havia a legitimação da vida concreta, seja pela divinização da beleza plástica ou pela glorificação dos grandes feitos humanos, perpetuados na memória dos pósteros graças aos dotes dos poetas e historiadores.

A pulsão dionisíaca, por sua vez, promove uma contraposição aos valores heróicos da cultura apolínea, evidenciando, acima de tudo, a exaustão do modelo ético pautado na rigorosa valorização da individualidade. O dionisíaco compreende que há uma vida cuja pujança criadora ultrapassa absurdamente a condição limitada da existência individualizada, são utilizados todos os recursos possíveis para promover a emancipação humana da sua vida rigidamente delimitada pelo mundo olímpico e seu ideário de justiça. Entretanto, há que se ressaltar que, apesar das diferenças axiológicas,

1 “Apolo é o nome grego para a faculdade de sonhar; é o princípio de luz que faz surgir o mundo a partir do caos originário; é o princípio ordenador que, tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a uma regra” (DIAS, 1994, p. 26).

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tanto o apolíneo como o dionisíaco valorizam, cada um ao seu modo, a experiência do terrível: seja na contemplação da morte gloriosa do herói, seja na realização de rituais cruentos que não raro motivavam o aniquilamento individual. Dessa maneira, a posterior interação do apolíneo com o dionisíaco manterá essa afirmação do caráter terrível da existência, fundindo a dissolução da figura do herói com a violência desenfreada das forças da natureza.2 O grande mote que apresentamos no decorrer deste escrito é: como a contemplação estética de tal acontecimento motivava no grego o sentimento de afirmação da existência e uma intensa alegria de viver?

O terrível e a alegria trágica

A Tragédia Ática, expressão derivada originalmente do culto a Dionísio, estava intimamente associada ao espírito mítico dos antigos gregos. Por conseguinte, a encenação trágica brota de um acontecimento religioso, cultual, situação que podia ser evidenciado inclusive pela posição do altar de Dionísio, que ocupava o centro da representação trágica, de modo que o deus recebia, mediante os cânticos dos atores em cena, a sua jubilosa glorificação. Nessas circunstâncias, o “espetáculo” que se apresenta na fase do surgimento da tragédia grega, tanto aos oficiantes quanto aos participantes, tinha realidade “visional”, mas não material, isto é, conduzia aqueles que se encontram reunidos em torno da cena uma compreensão existencial que estabelecia a revelação da unicidade cósmica perpassando, a despeito das aparências e convenções instituídas.3

Após nos determos brevemente aos aspectos inerentes ao surgimento do drama trágico, cabe que investiguemos o seu propósito axiológico: a cena trágica representada ao público grego demonstrava para este os padecimentos de Dionísio, mediante as suas expressões singularizadas nas figuras dos grandes heróis trágicos. O discurso de Nietzsche é categórico: “É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais

2 “Apolo, o deus da bela forma e da individuação, permite a Dioniso se manifestar. Dioniso, o deus da embriaguez e do dilaceramento, possibilita a Apolo que se expresse. Um assegura ponderação e domínio de si; o outro envolve pelo excesso e vertigem” (MARTON, 2001, “A dança desenfreada da vida”, p. 52).

3 Para mais detalhes sobre essa questão, cf. Charles ANDLER, Nietzsche: sa vie et sa pensée, Tomo 2, p. 38. Daisi MALHADAS, em Tragédia Grega: o mito em cena, p. 43, desenvolve também uma reflexão esclarecedora sobre a cena trágica: “A dimensão visual do discurso teatral (expressão corporal, aparência do ator, cenário, acessórios) torna imprescindível que, também ao ler uma peça, a coloquemos diante dos olhos, quando se quer apreender o seu espetáculo.

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vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio” (NIETZSCHE, 1996, § 10).4

Tal como destaca Jacó Guinsburg na sua interpretação do trágico nietzschiano, Dionísio não está no palco, mas no espaço real de sua metamorfose.5 Tais encenações não compactuavam em hipótese alguma com ideais moralizantes, na qual se propagaria a idéia de que o sofrimento decorre de uma necessidade de punição divina mediante um erro cometido contra a ordem cósmica; pelo contrário, na perspectiva trágica dos antigos gregos, a dor era o símbolo que explicitava o valor imanente da vida, mesmo diante das mais atrozes adversidades vivenciadas pela individualidade no seu processo constitutivo, nas suas experiências cotidianas. A tragédia grega era uma espécie de tônico existencial que reforçava o ânimo do espectador para a ação, para a criatividade contínua, para um novo recomeço da existência, mediante a alegria despertada diante da compreensão da eternidade da vida.6 Por conseguinte, o objetivo principal ético e estético da Tragédia Ática consistia em, mediante o arrebatamento do espectador diante da exibição dos terríveis sofrimentos do herói, motivar naquele o desabrochar de estados de grande exaltação jubilosa, conforme a elucidativa explanação de Deleuze acerca da vivência trágica:

E, em primeiro lugar, Dionísio está presente com insistência como o Deus afirmativo e afirmador. Não se contenta com “resolver” a dor num prazer superior e supra-pessoal, afirma a dor e constitui o prazer de alguém. É por isso que o próprio Dionísio se metamorfoseia em afirmações múltiplas, tanto mais que não se resolve no seu ser original ou não reabsorve o

4 Talvez seja de utilidade destacar que essa perspectiva nietzschiana é descartada por Karl Kerenyi em seu Dioniso, p. 278-279, pois o helenista considerava que o primórdio da encenação trágica consistia na verdade em representar a destruição dos adversários de Dionísio, como Penteu, por exemplo, aquele que se esforçou para impedir a entrada dos cultos báquicos na cidade de Tebas. Kerenyi julga se fiar na documentação textual para considerar a visão nietzschiana historicamente distorcida. Todavia, mesmo que Nietzsche porventura esteja filologicamente equivocado, o fato de considerar que o cerne da encenação trágica consiste em apresentar dramaticamente o sofrimento de Dionísio não retira a força da sua argumentação, sobretudo se nos detivermos na evidência de que o primórdio da tragédia grega representava um culto divino dedicado ao espírito dionisíaco; mais ainda, se pensarmos na idéia de que a vida individualizada decorre da fragmentação cósmica de Dionísio, mesmo os seus ditos adversários são centelhas de sua potência divina, de maneira que, ao padecerem das dores cruciais, na verdade é o próprio Dionísio que sofre.

5 Cf. GUINSBURG, 2001, “Nietzsche no teatro”, p. 58.

6 BACHOFEN, no Matriarcado, p. 155-156, faz um comentário do qual o pensamento nietzschiano certamente se nutriu: “Somente na eterna geração e na morte igualmente eterna reside a imortalidade, que não pode ser concedida ao indivíduo, mas só à estirpe enquanto tal.”

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múltiplo num fundo primitivo (...). É o deus que afirma a vida, para quem a vida tem de ser afirmada, mas não justificada nem resgatada. (DELEUZE, 2001, p.22)

Após esses comentários poderíamos então levantar a indagação: como a demonstração da dor poderia proporcionar a alguém um sentimento arrebatador de gozo estético, capaz de alçar o indivíduo a um estado extático que o libertava de qualquer sentimento de apavoramento diante das circunstâncias fatais da vida? A solução para esse questionamento se dá através da existência do “consolo metafísico”, conceito elaborado por Nietzsche como meio de explicar o maravilhoso fenômeno existencial que ocorria quando o espectador trágico, ao visualizar o padecimento do herói, percebia que a vida, apesar das suas contínuas transformações, permanecia incólume em seu processo criativo (NIETZSCHE, 1996, § 7). Afinal, era o homem, enquanto expressão singularizada pela individuação que se extinguia através do evento da morte, mas a existência da vida, e mesmo da condição humana como um todo, permaneceriam indestrutíveis, pois o centro engendrador do conjunto das formas de vida se encontra fora das limitações do tempo e do espaço. No âmbito da experiência trágica, a morte do indivíduo não é um acontecimento digno de tristeza, muito menos uma passagem condicional para uma nova experiência em um além-mundo; a morte é um mecanismo necessário para a perpetuação da existência de todas as coisas, utilizado pela natureza matriz, para que a própria vida seja mantida. A vida somente mantém o seu valor através da compreensão imediata da existência da morte, e vice-versa. A intuição trágica estabelecida pela vivência dionisíaca demonstra que para além da vida organicamente limitada (Bios) do indivíduo existe a vida infinita (Zoé) que nunca se extingue.7 O dionisíaco aspira pela vida intensiva, continuamente em processo de recriação das suas qualidades, que não depende, necessariamente, de uma configuração orgânica, corporal e individual para se expressar adequadamente.

De um modo geral, era de origem épica o tema tratado pela cena trágica, revelando a sua filiação ao modelo apolíneo, mas esse elemento individual se transforma numa relação de comunhão sagrada entre as pessoas imersas na vivência

7 Ressaltemos que tal perspectiva é continuamente defendida por KERENYI no seu Dioniso: arquetípica da vida indestrutível, o culto dionisíaco como uma manifestação arquetípica de uma vida indestrutível. Werner Jaeger também dedica importantes reflexões sobre o Zoé e o Bios na sua Paidéia, p. 967, considerando o primeiro conceito como o fenômeno natural da vida, enquanto o segundo é a vida considerada como unidade de vida individual, a que a morte põe termo, e também como subsistência.

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trágica, de maneira que a potência épica se transfigurava esteticamente na experiência mística da revelação da dor cósmica dionisíaca. Os heróis de Ésquilo e Sófocles representados em cena nada mais eram do que avatares apolíneos da potência irrepresentável de Dionísio (NIETZSCHE, 1996, § 10).8 O coro trágico de maneira alguma levava a um distanciamento do espectador em relação ao mundo divino manifestado no decorrer da celebração trágica, sendo na verdade um meio de se gerar a fusão entre todos os que estavam envolvidos nesse acontecimento. A tragédia grega, segundo análise de Giorgio Colli, não era unicamente um ver, pois o espetáculo era a essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objetos que acreditávamos ser reais (COLLI, 2000, p. 18). Participar dessa experiência cultural fazia com que o indivíduo grego se desprendesse de si mesmo por um momento, da sua inerente condição social, enfaticamente limitadora, para se tornar plenamente uno com o outro, ao menos no decorrer da encenação trágica.9

A experiência sagrada da Tragédia Ática pode ser compreendida em sua forma mais nítida quando levamos em consideração a unificação entre o público “espectador” e o coro trágico, circunstância que gera uma ruptura com os papéis sociais estaticamente pré-determinados pela legislação apolínea. Nietzsche enuncia até mesmo a idéia de que o drama grego era encenado sem espectadores, pois todos participavam dele (NIETZSCHE, 2006b, § 1, p. 48). Essa circunstância justifica a tese de que a Tragédia Ática não se caracterizava apenas como um acontecimento social de cunho estético, mas também uma vivência religiosa que fortalecia a unidade do espírito grego diante das contínuas ameaças de dissolução. O consolo metafísico exercia um poder unificador entre a coletividade grega, pois que esta se compreendia como uma expressão coesa, abundante de força criadora capaz de proporcionar a perpetuação da cultura grega. Vendo-se como membro de uma grande unidade que supera a sua condição individual, aquele que imergia na consciência trágica se identificava dionisiacamente não apenas com o herói representado na cena, mas também com as pessoas ao seu redor, de modo que o indivíduo, encantado pela musicalidade sagrada do drama trágico, compreendia a alteridade mística proporcionada para toda pessoa que se encontrasse no seio da multidão. A experiência dionisíaca é a possibilidade de se escapar da divisão ontológica,

8 Para compreensão da valorização concedida por Nietzsche a Ésquilo e Sófocles como grandes expoentes da visão trágica de mundo, ver Prometeu Agrilhoado e a “Trilogia Tebana”

9 Para mais detalhes dessa questão, ver TRABULSI, Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica, p. 145.

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da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade, segundo a explanação de Roberto Machado sobre questão levantada originalmente por Nietzsche.10 A alegria “metafísica” pelo trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente à linguagem da imagem; o herói, aparência suprema da vontade, é negado, para prazer nosso, porque é só aparência, e a vida eterna da vontade não é afetada por sua aniquilação (NIETZSCHE, 1996, § 16).

Ora, se o homem grego finalmente se via intrinsecamente associado àqueles que o rodeavam, ele se despojava então dos afetos depressivos que lhe faziam temer outrora a sua própria dissolução individual. Dessa maneira, é o espírito dionisíaco que proporciona essa superação existencial da dimensão extensiva da matéria, pois sua potência está além de todas as formas delimitadas, superando todas as definições e revestindo ainda todos os aspectos existentes sem se deixar encerrar por nenhum.11 A consciência trágica percebe o mundo como uma experiência epifânica situada numa perspectiva valorativa mais ampla do que a da mera individuação. Segundo Nietzsche,

O consolo metafísico – com o que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da historia dos povos, permanecem sempre os mesmos (NIETZSCHE. 1996, § 7).

Sob uma perspectiva ontológica, essa concepção destacada por Nietzsche significa que as inexprimíveis expressões da vida não se encerravam apenas na mera condição individual do ser humano, pois a natureza, identificada com a matriz dionisíaca do Uno Primordial, acolhe as múltiplas expressões de vida, transformando-as eternamente em novas configurações.12 Essas idéias apresentadas retiram da noção de

“consolo metafísico” qualquer conotação transcendente ao mundo em que vivemos, pois o júbilo prometido àquele que vivencia a cena trágica ocorre no âmbito da própria imanência, sem que seja necessária a inserção do indivíduo numa realidade puramente

10 Cf. MACHADO, 1997, p. 89.

11 Cf. VERNANT, 2006, p. 77.

12 “O consolo metafísico não é outra coisa que um embriagante sentimento de unidade, de se unir com a vontade primordial, a qual é prazer e dor, pois além do tormento da mudança incessante está a alegria da superabundância das forças criativas” (Cf. DÍAZ, 1993, p. 81)

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espiritual, desvinculada da terra, seio materno de toda vida. Essa experiência mística é um “consolo” por excluir da afetividade do homem grego os sentimentos pessimistas e tristes diante da compreensão imediata da efemeridade da vida humana, revelando então que esta continua se recriando perpetuamente na natureza através das eras.13

Há que se destacar que o termo “metafísico” talvez pudesse ser objetado como uma possível filiação nietzschiana a uma concepção idealista da existência, mas se compreendermos esse “metafísico” como decorrente de uma intuição de que a vida se encontra unificada como um todo, apesar da separação natural entre os seres, esse estigma se dilui; mais ainda, o “consolo metafísico” não era vivenciado pelo homem vulgar, imerso nas obrigações cotidianas, mas apenas por aquele que deixava penetrar em si a magia da vida emanada no decorrer da experiência trágica. Tratava-se então de uma revelação sagrada, de cunho propriamente imanente, pois dependia da presença efetiva da pessoa no local dedicado à cena trágica.

O “consolo metafísico”, ao fazer o homem compreender que o conceito de

“vida” não abarca a totalidade efetiva da própria vida, demonstra ao parcial olhar individual que ela permanece, porém, manifestada em muitas outras possibilidades expressivas que extrapolam a subjetividade singular. Esse conceito problematizado por Nietzsche de forma alguma pode ser interpretado na qualidade de um afeto que instiga no homem o desenvolvimento da resignação diante da terrível caráter efêmero do mundo, como pretendia Schopenhauer.14 Essa perspectiva resultaria numa severa

13 Apesar da existência de um poder tonificante na experiência do “Consolo Metafísico”, não se pode deixar de citar que Nietzsche, no § 7 da “Tentativa de Autocrítica” para O Nascimento da Tragédia, demonstra a sua aversão a tal conceito, considerando-o como um equívoco axiológico, em decorrência da influência de Schopenhauer na elaboração de seu pensamento. De fato, o termo cunhado por Nietzsche, em decorrência do efeito trágico proporcionado por sua experiência no indivíduo é um tanto inadequado para representar a amplitude de tal vivência; mas, independentemente da carga semântica demasiado romântica contida no conceito de “consolo metafísico”, o que importa, na verdade, é o sentido maior dessa experiência, completamente alheia a um devaneio romântico ou idealista.

14 Cf. SCHOPENHAUER, 2005, III, § 51. Devemos destacar que Schopenhauer, na sua hierarquização metafísica das belas-artes, ao eleger a Tragédia como a arte mais elevada dentre daquelas que representam imediatamente as Idéias, considerava que a tragédia moderna, influenciada pela visão de mundo cristã, seria superior à tragédia grega, pois esta demonstraria o embate do herói contra as leis divinas, a ordem estabelecida e o seu anseio de superar os seus limites mediante feitos extraordinários, enquanto aquela pretenderia exercer uma função apaziguadora do ânimo humano, mediante a demonstração de que o mundo, sendo intrinsecamente malévolo, não é o palco dos justos, dos honestos, mas dos pérfidos, e são esses que triunfam empiricamente. Todavia, cabe ao homem de boa vontade a resignação e a renúncia ao agir, pois somente assim ele pode obter a paz de espírito que tanto anseia, mediante a supressão do seu querer. Mais ainda, não deixa de se manifestar em tal perspectiva a confiança numa justiça eterna, que punirá noutro mundo os abusos da tirania, pois do momento em que é uma concepção baseada na moral

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passividade diante do mundo, mas sim a possibilidade de instauração de um sentimento muito mais ativo e poderoso, que fizesse o ser humano, ao despertar na sua vida a sabedoria trágica, apreender a realidade do mundo sem se deixar limitar pelo medo diante da transformação ou pela injúria contra a natureza pelo fato de ter nascido, como preconizaria uma interpretação da existência norteada por princípios metafísicos.15 A perpetuação da existência evidenciada pelo coro trágico é uma refutação de qualquer traço moralizante na vivência do espírito da tragédia grega, circunstância que leva a Nietzsche a afirmar que

É nesse coro que se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida (NIETZSCHE, 1996, § 7).

A potência dionisíaca representa simultaneamente o grande corpo da vida e as condições nutrícias pelas quais as expressões singularizadas podem se manifestar na natureza, pois Dionísio, na sua disposição trágica de retornar ao primado telúrico da existência, doa a sua vitalidade intrínseca para todos. Nietzsche afirma que

Com isso se indica que tal despedaçamento, o verdadeiro sofrimento dionisíaco, é como uma transformação em ar, água, terra e fogo, que devemos considerar, portanto, o estado da individuação, enquanto fonte e causa primordial de todo sofrer, como algo em si rejeitável. Do sorriso desse Dionísio surgiram os deuses olímpicos; de suas lágrimas, os homens. Nessa existência de deus despedaçado tem Dionísio a dupla natureza de um cruel demônio embrutecido e de um brando e meigo soberano Dionísio, produto do divino casamento entre o céu e a terra, é ao mesmo tempo governador clemente e homem feroz, trazendo consigo a promessa do próprio renascimento, que reunirá o mundo e acabará com a dolorosa existência limitada pela individuação (NIETZSCHE, 1996, § 10).

cristã, um dos elementos que sustentam essa firme resignação é justamente a esperança na ação equânime de uma instância divina a punir a maldade humana. Podemos encontrar um exemplo dessa perspectiva na cena final da tragédia Emília Galotti de G. E. Lessing, em que o pai da personagem título profere ao infame príncipe Gonzaga o discurso de que a justiça que não se realiza na Terra se realizará perante o julgamento divino, pois o soberano, na sua lascívia, empregou todos os recursos para saciar as suas inclinações sexuais diante da casta Emília Galotti, arruinando a sua esperança de obter um casamento feliz com o Conde Appiani pelo fato deste ter sido assassinado numa emboscada pelos sicários do soberano.

15 Peter SZONDI, no seu Ensaio sobre o Trágico, p. 69, nos fornece uma elucidação de grande importância sobre o ultrapassamento de Nietzsche em relação ao sistema de Schopenhauer na questão do efeito da cena trágica para a vida: “Em Schopenhauer, a vontade suprime a si mesma, por meio do processo trágico em que suas manifestações se dilaceram, tendo como efeito no espectador o abandono de si, a resignação graças ao conhecimento. Para Nietzsche, por sua vez, o dionisíaco irrompe de seu despedaçamento na individuação justamente como um poder indestrutível, que constitui então a

“consolação metafísica” oferecida pela tragédia”.

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O desmembramento sagrado de Dioniso é o processo cósmico que permitirá a constituição da raça humana, e a grande dádiva desse acontecimento é que a carne divina de Dioniso, matéria-prima de nossa condição humana, faz com que portemos conosco a centelha divina da criação e da beleza.16 A celebração dionisíaca, seja no seu ritual omofágico noturno, seja nos seus preceitos iniciáticos dos mistérios ou ainda na sua expressão musical, pretendia resgatar essa característica primordial de que a vida humana decorre de uma longínqua origem divina, olvidada ao longo das eras pelo contínuo desenvolvimento da consciência da individuação; mais ainda, morte e vida são instâncias indissociáveis: “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade”, é o que afirma Nietzsche acerca desse mistério assimilador presente na potência dionisíaca da natureza (2005a, “O Estado Grego”, p. 44-45).

A natureza vence a civilização, a tradição cultural, a diligente obra humana, revelando nitidamente a fragilidade dos limites normativos impostos pela ordenação social estabelecida ao indivíduo, trazendo novamente para si aquele que dela tanto se esforçou para se diferenciar axiologicamente, o próprio ser humano. A vitalidade dionisíaca, abolindo a formalidade artificial dos costumes normativos, traz à luz o mundo em sua forma primeva, como primitivo furor e gozo sem limites.17 Nietzsche considera que a tragédia grega enunciava uma espécie de “doutrina misteriosófica”, segundo a qual haveria uma unidade subjacente a tudo aquilo que existe de forma individualizada e separada entre si no mundo, a grande matriz natural dionisíaca (NIETZSCHE, 1996, § 10). A divisão do ser humano na sua condição individual seria, sob determinado aspecto, o motivo pelo “mal da existência”, que pode ser resolvido mediante o restabelecimento da unidade primeva (NIETZSCHE, 1996, § 10). Entretanto, por tal “mal da existência” não se deve compreender uma mácula metafísica, sendo plenamente incompatíveis ao pensamento trágico quaisquer valorações

16 Como contribuição para essa questão, é importante destacar que, segundo a mitologia grega, o primeiro Dioniso, após ser despedaçado e deglutido pelos Titãs, é justiçado por Zeus, que pulveriza esses seres que cometeram essa ação terrível. A partir das cinzas dos Titãs, que de alguma maneira continham fragmentos do corpo devorado de Dionísio, Zeus constitui a raça humana, cuja matéria-prima, portanto, agrega na sua constituição o elemento divino e o elemento terreno. Conforme a argumentação de Junito de Souza Brandão em Mitologia Grega, V. II, p. 118, isso explicaria no ser humano a existência das disposições maléficas e benéficas: a nossa parte titânica é a matriz do “mal”, mas, como os Titãs haviam devorado Dionísio, este se deve ao que existe de “bom” em cada um de nós. Essa perspectiva pode ser comparada com a idéia defendida por Michel Maffesoli em A sombra de Dioniso, p. 78, na qual o autor afirma que Dioniso desmembrado e devorado pelos titãs serve de adubo ao crescimento dos homens.

17 Cf. OTTO, 2006, p. 122-123.

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normativas e pretensões de aprimoramento moral das condições da vida. O cerne da questão consiste na idéia de que a vida individualizada não encontra o mesmo grau de potência afirmativa que a vida imersa na totalidade cósmica da natureza, que acolhe cada existência em seu seio.

As inexoráveis transformações da natureza não expressam qualquer culpabilidade moral, pois a expressão da vida se encontra para além de qualquer esfera de valor coercitivo ou normativo que impõe um critério extrínseco de conduta ao ser humano. No âmbito filosófico, o cerne da consciência trágica dos gregos se encontra em Heráclito, ao considerar o Tempo como uma brincadeira de criança.18 As transformações contínuas da natureza decorrem sem que haja qualquer necessidade de expiação de uma pretensa culpa original por uma postulada afronta cometida contra a ordem primordial do cosmos. Há que se destacar que, nessas condições, a perspectiva trágica da vida defendida por Nietzsche mediante a influência recebida do pensamento de Heráclito demonstra uma intensa contraposição ao pensamento de Anaximandro, segundo o qual todas as formas singularizadas de vida, em decorrência da prática de uma falta originária cometida no próprio ato da individuação, encontram a punição cósmica através da própria ordem do tempo, que se encarrega de exercer essa ação reparatória sobre os seres vivos através da morte. Eis a sentença lapidar de Anaximandro: “De onde as coisas tiram a sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade; pois elas têm de expiar e ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a ordem do tempo” (Fragmento DK 1). O discurso de Anaximandro denota um acentuado pessimismo diante da fragilidade da condição humana, pessimismo esse que é potencializado pela presença de um argumento moral contra a própria existência humana, intrinsecamente culpável diante da ordem cósmica. O devir é a emancipação criminosa em relação ao ser eterno, como uma iniqüidade que deve ser expiada com a ruína da individuação. Tudo o que uma vez entrou no devir torna a perecer, quer pensemos na vida humana, quer na água, ou no calor e no frio; onde quer que se constatem propriedades definidas, pode profetizar-se, segundo uma imensa prova experimental, o desaparecimento dessas propriedades (NIETZSCHE, 2002, § 4). A individualização no devir é uma manifestação da hybris. A eternidade e a imortalidade do ser primordial radicam na sua indeterminação e todo o ser finito é o início de uma

18 “O Tempo é uma criança, brincando, jogando; de criança o reinado” (ANAXIMANDRO; HERÁCLITO, 1997, Fragmento DK 52).

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decadência, pois o que tem qualidades definidas está sujeito a evoluir e a morrer. Conseqüentemente, o devir é necessariamente punido e a existência da multiplicidade expia-se pelo sofrimento e pela morte da individuação. Se há uma unidade eterna, como é que a multiplicidade é possível? A resposta para essa indagação se encontra no caráter contraditório dessa multiplicidade, que a si mesma se devora e se nega (NIETZSCHE, 2002, § 4).

Essa disposição um tanto tenebrosa da existência é transformada pela perspectiva de Heráclito, que compreende a experiência vital de mudança contínua das coisas no decorrer do tempo como um processo extra-moral, tal como a brincadeira de uma criança, inocente, desprovida de malícia. A vida como um grande jogo é uma espécie de aceitação de um mundo tal como ele é, quer dizer, um mundo marcado pelo efêmero.19 Mesmo Homero, apesar de sua contínua afirmação da beleza e da dignidade gloriosa dos seus heróis, dissera que as gerações humanas desaparecem como as folhas das árvores.20 O espírito trágico, todavia, não se lamuria diante desse acontecimento inexorável, proporcionando, pelo contrário, uma integração radical da individualidade no turbilhão cósmico da vida e dos seus múltiplos processos assimiladores. Conforme Nietzsche,

O dizer sim à vida, mesmo em seus problemas mais estranhos e difíceis; a vontade de viver, no regozijo sobre sua própria inexaurabilidade, e mesmo no próprio sacrifício de seus tipos mais altos – isso é o que chamei dionisíaco, isso é o que compreendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não com o fim de nos livrarmos do terror e da piedade, não com o fim de nos purgarmos de uma noção perigosa através de sua liberação veemente... mas com o fim de sermos nós mesmos a eterna alegria de vir-a-ser, além do terror e da piedade – essa alegria que inclui até a alegria de destruir (NIETZSCHE, 2001, “O nascimento da Tragédia”, § 3).

Viver a perspectiva trágica é viver a satisfação de uma alegria primordial no jogo de criar e destruir o mundo individualizado, como faria uma criancinha mexendo displicentemente na areia do mar. A infelicidade não é um castigo, mas alguma coisa por meio da qual o homem é consagrado, é levado a tornar-se um personagem sagrado.21 O lúdico tende a se manifestar arrastando os indivíduos para a emoção pura, e o movimento do jogar-brincar literalmente não visa outra coisa que não a auto-satisfação

19 Cf. MAFFESOLI, 2004, p. 78.

20 Cf. HOMERO, 2002, Canto VI, vs. 146.

21 Cf. DIAS, 2004, “Dioniso na Grécia Apolínea”, p. 221.

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do jogador brincante. 22A sagrada tarefa de Dionísio consiste em nos tornar mais leves, em nos ensinar a dançar, em nos dar o instinto do jogo.23 Pela música e pela dança, o homem encontra a possibilidade de união com os ritmos e pulsações do universo.24

A sabedoria alcançada pela identificação com Dionísio é a do permanente devir das coisas e do jogo, aparentemente sem sentido, do desfazer de todo o existente.25 Nietzsche considera que “o prazer que o mito trágico gera tem sua pátria idêntica à sensação prazerosa da dissonância na música. O dionisíaco, com o seu prazer primordial percebido inclusive na dor, é a matriz comum da música e do mito trágico” (NIETZSCHE, 1996, § 24).26 A visão trágica de mundo nos faz compreender intimamente que o valor da existência se encontra presente em si mesmo, no seu próprio matiz ontológico, descartando-se então a pertinência de qualquer especulação transcendente de mundo, na qual se creria na existência de outra dimensão da realidade, esta sim proclamada como a “autêntica” no sentido pleno da palavra. Essa compreensão da natureza trágica do existir, destituída de conotações moralistas, enfatizava a necessidade da integração mútua entre as diversas formas singularizadas de vida. A

“serventia” axiológica do “consolo metafísico” para a vida cultural dos gregos consistia em demonstrar ao espectador trágico que a existência marcada pela individuação é uma espécie de distorção da compreensão gnosiológica da realidade proporcionada pelo véu de ilusão que cobre todas as coisas, pois que as formas individualizadas existentes no mundo são meros desdobramentos da fonte primordial da natureza, desdobramentos que não possuem existência singularizada em um âmbito originário. Para Nietzsche,

No estado de “estar fora de si”, do êxtase, somente um passo é ainda necessário: que não voltemos a nós mesmos novamente, mas entremos em um outro ser, de modo que nos portemos como encantados. Por isso, o profundo espanto diante do espetáculo do drama toca a última profundeza: vacila o solo, a crença na indissolubilidade e na fixidez do indivíduo (NIETZSCHE, 2005b, p. 55-56).

22 Cf. RETONDAR, 2007, p. 53.

23 Cf. DELEUZE, 2001, p. 30.

24 Cf. ARAÚJO, 1985, p. 120.

25 Cf. VAZ PINTO, 1989, “A Filosofia na Idade Trágica dos gregos: da sabedoria dos filósofos trágicos à inversão do socratismo”, p. 36.

26 Diz Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos, “O que devo aos antigos, § 5: “O fim da tragédia não é desembaraçar-se do medo e da piedade, nem purificar-se de uma paixão perigosa, mediante sua descarga impetuosa – como o entendeu Aristóteles – mas realizar-se em si mesmo, acima do medo e da piedade, é a eterna alegria que leva em si o júbilo do aniquilamento.” A concepção aristotélica da catarse se encontra na Poética, 1449b-27.

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Além das figuras fenomênicas, separadas individualmente pelas categorias do espaço e do tempo, se encontra a grande unidade cósmica da vida, que rompe as cadeias limitadoras da extensividade material e da própria individualidade (NIETZSCHE, 1996,

§ 7). O “consolo metafísico” seria uma espécie de apanágio obtido pelo espectador capaz de perceber intuitivamente a condição extraordinária da existência, cuja fonte vital jamais se esgota, mesmo diante da supressão das suas inúmeras formas, individualmente configurada. Tratava-se, portanto, de uma experiência mística na qual o caráter sagrado da vida se revelava ao íntimo do indivíduo, sem que houvesse qualquer mediação da racionalidade lógica nessa experiência transfiguradora. Nietzsche destaca que

O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral, o é a formação da tragédia a partir do coro. Talvez conquistemos um ponto de partida para a nossa indagação, se eu introduzir a afirmação de que o sátiro, esse ser natural fictício, está para o homem civilizado na mesma relação que a música dionisíaca está para a civilização [...] Da mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza (NIETZSCHE, 1996, § 7).

Esse miraculoso prazer estético decorrente da percepção trágica da existência representa a manifestação insuperável da alegria dionisíaca, a qual, mesmo ciente da iminência da morte para todas as formas viventes, supera o pessimismo prático de Sileno, o sábio sátiro que proclama a ausência de qualquer sentido maior para a existência humana. De acordo com os dizeres de Nietzsche,

Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o daimon calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: ‘- Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer (NIETZSCHE, 1996, § 3).

Esse é o quinhão da “infeliz” condição humana que vive na era da Quinta Raça, a tenebrosa Raça de Ferro, em que não cessam a fadiga e as misérias, em que os bens

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estão misturados aos males, nesta idade das desonras, em que os laços de sangue não são mais respeitados, em que impera a justiça da força, em que ninguém é mais fiel a qualquer juramento.27 No entanto, essa visão de mundo não significa impedimento ou tristeza paralisante para o homem trágico, pois ele se posiciona afirmativamente diante de sua própria limitação pessoal, sabendo então utilizar o acaso das forças cósmicas que se manifestam no mundo para realizar na sua vida a relação inebriante com o mundo. A circunstância extraordinária que rompe com essa amargura sapiencial da existência é a compreensão nítida da eternidade de vida, que perpassa tudo aquilo que existe, pois que toda a natureza, para além da perspectiva individual, está intimamente interligada. O duro discurso de Sileno, que a princípio causava um terrível desgosto no homem grego, agora não exerce mais a sua desagradável força moral de estímulo de renúncia ao agir e ao criar, pois a cultura trágica vivencia plenamente a idéia de que o mundo é maravilhoso e divino, mesmo nas suas condições mais desfavoráveis para a manutenção da individualidade pessoal. Se a vida humana é intrinsecamente limitada pelo efeito do tempo cronológico e pelas situações inesperadas que ameaçam a continuidade da existência, que ela seja vivida assim mesmo, com todo o regozijo e reconhecimento ao mundo materno que nos circunda. Desse modo pensa a consciência trágica de mundo.

Regalando-se nessa percepção mística que supera os limites frágeis da individuação, o homem trágico ri da sua própria finitude extensiva, condição que não é mais digna de vitupério, pois há algo nele que é eterno, permanecendo continuamente nos demais viventes. A alegria consiste numa aprovação da existência tida por irremediavelmente trágica: neste caso a alegria é paradoxal, mas de modo algum ela é ilusória. 28 A dor produtiva, o sofrimento transfigurado, a vida gerando mais vida e a vida eterna, eis o que representa o drama musical grego.29

É porque exprime essa potência indestrutível da vida, que se resolve toda na essência pura do prazer, que o coro satírico irrompe na tragédia grega.30 A sabedoria trágica nos leva a compreender que a nossa personalidade se extingue, mas a energia vital que nos constituía não se esgota jamais, permanecendo nas gerações vindouras dos

27 Hesíodo trata dessa questão n’ Os Trabalhos e os Dias, vs. 174-201.

28 Cf. ROSSET, 2000, p. 24-25.

29 Cf. DIAS, 1994, p. 63.

30 Cf. HENRY, 1988, p. 13.

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seres vivos. O “consolo metafísico” consistiria, portanto, numa espécie de grande riso da consciência trágica diante da cessação do medo e da angústia do indivíduo pela ameaça do seu aniquilamento existencial, circunstância que resultaria na sua imersão numa espécie de grande “vazio cósmico”, que demonstraria a falta de um significado moral e teleológico genuíno da vida. Esse riso trágico diante da vitória sobre o pessimismo não expressa sarcasmo, mas sim a mais pura gratidão ao poder configurador da natureza pelo fato de ser concedida a existência ao indivíduo, que em sua condição intrínseca expressa criativamente a vitalidade cósmica que nele se manifesta. Para Deleuze, “Rir é afirmar a vida e, na vida, até o sofrimento. Jogar e afirmar o acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é afirmar o devir e, do devir, o ser.” (DELEUZE, 2001, p. 255).

Nessas condições, podemos considerar o culto apolíneo-dionisíaco, que encontrou a sua expressão valorativa mais poderosa na Tragédia Ática, como um culto divino que preconizava acima de tudo o despertar da força intrínseca contida no âmago de cada um dos seus adeptos, epifania que possibilitava o contínuo reflorescimento da criação cultural dos antigos gregos, pois a matriz da natureza fora alçada ao patamar da grande formadora de novos mundos, na medida em que a individuação sucumbiu ao irresistível poder do tempo. Exemplo extraordinário do poder afirmativo da vida, a interação apolíneo-dionisíaca, manifestada nos diversos modos de expressão da era trágica dos gregos, evidenciou uma possibilidade de compreendermos uma vivência religiosa através de uma perspectiva imanente, destituída de traços apologéticos de sanções a ser aplicadas numa esfera espiritual àqueles que porventura não se enquadrassem nos parâmetros estabelecidos. Dessa maneira, se evitou que o princípio apolíneo, de natureza essencialmente prescritiva, abusasse do controle social acerca das ações individuais, e que os ritos dionisíacos, que em estado bruto eram excessivamente desmedidos, conduzissem o indivíduo ao seu aniquilamento gratuito. Finalmente unificados pela cultura trágica dos gregos, o pólo dionisíaco e o pólo apolíneo passam a exercer uma ação mútua de fiscalização, onde cada um exercia as suas características naturais de ruptura e ordenamento. De forma lapidar, Scarlett Marton define o que vem a ser o dionisíaco e o apolíneo na filosofia de Nietzsche: “Dionisíaco é o princípio que quebra barreiras, rompe limites, dissolve e integra; apolíneo, o que delineia, distingue,

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dá forma” (Cf. MARTON, 2000, p. 71). Incipit tragoedia, eis a palavra especial para a imersão humana na disposição trágica da vida.

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