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Incertos, flexíveis, mas, sobretudo, líquidos!

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Academic year: 2021

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Incertos, flexíveis, mas, sobretudo, líquidos!

De Romano Trabucchi

Sim, nos tornamos um pouco todos assim: na vida cotidiana, no trabalho, nas relações afetivas. Quem afirma é Bauman, um dos mais notórios intérpretes da pós- modernidade.

Zygmunt Bauman é um sociólogo de origem polonesa e um dos mais conhecidos e influentes pensadores viventes. É um dos intérpretes mais originais e ouvidos do nosso tempo. Professor emérito de sociologia das Universidades de Leeds (Inglaterra) e de Varsóvia (Polônia), é autor muito prolífico.

Entre seus livros mais lidos estão A Sociedade da Incerteza e a Entrevista Sobre a Identidade. Da sua produção se obtém uma analise penetrante, muito documentada e crítica dos diversos aspectos da sociedade tardo moderna, da qual a globalização constitui o elemento central.

Para Bauman, a nossa vida social é caracterizada, diferentemente de como era no passado, por uma profunda instabilidade dos acontecimentos, por mudanças repentinas e imprevisíveis, por uma incerteza existencial dos indivíduos, por uma fragmentação de suas identidades. Todos esses elementos fazem que não seja mais possível utilizar as mesmas categorias que foram empregadas para explicar a sociedade industrial que ele exatamente define, em contraposição àquela atual, sólida.

Na base dessas características, existem alguns grandes fenômenos novos: a crise dos sistemas políticos nacionais, a desregulamentação dos mercados financeiros, o desenvolvimento do mercado global, o aumento da pobreza e da desigualdade a nível planetário, os efeitos da aplicação sistemática das tecnologias informático- comunicacionais e daí por diante.

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A sociedade de hoje enfrenta uma crise que se pode acreditar permanente. Os fluxos incessantes de mercados, capitais, imagens, ideias e migrantes põem continuamente em crise a organização social.

O termo usado por Bauman para descrever o conjunto dessas situações é justamente líquido: precário, incerto, flexível, turbulento, instável, efêmero, volátil, transitório e outros sinônimos. Mas o adjetivo líquido é particularmente significativo. Os líquidos, de fato, diferentemente dos corpos sólidos, não mantêm uma forma própria. Eles são sempre inclinados a mudanças e movimentos com extrema facilidade.

Ao contrário dos corpos sólidos, que mantêm forma própria e dimensão definida (e, portanto, estabilidade no espaço e no tempo), os líquidos movem-se com extrema facilidade. É como se os sólidos, com a sua imutabilidade, anulassem o tempo, enquanto, para os líquidos, este é um elemento que condiciona a sua estrutura e o seu conhecimento. É no tempo que se registram as diversas posições do líquido.

É por isso que o tempo se torna a categoria fundamental da sociedade líquida, enquanto sociedade de mudanças contínuas. Uma sociedade, portanto, pode ser definida líquida se as situações nas quais agem os homens se modificam continuamente e, muitas vezes, antes que os seus modos de agir possam consolidar-se (raiz de sólido) em hábitos e procedimentos: processos, estratégias de vida e de trabalho e comportamentos envelhecem rapidamente e tornam-se obsoletos, antes que os próprios atores tenham a possibilidade de aprender completamente todas as suas implicações.

São pelo menos três os livros recentes de Zygmunt Bauman que trazem no título o adjetivo líquido: Modernidade Líquida, Amor Líquido e Vida Líquida. Uma espécie de “trilogia” (não programática e sequencial) que recolhe análises e considerações sobre vários aspectos da vida na sociedade líquido-moderna: o poder, o consumismo, os medos, a segurança, os relacionamentos humanos, a cidade, a cultura, a xenofobia e outros. Bauman baseia-se na literatura, nas notícias, nos acontecimentos mundiais, nos filmes e na imprensa.

Cada um dos aspectos vistos oferece uma análise sobre a nossa atual condição e, sobretudo, sobre as ameaças e oportunidades que tal condição comporta na perspectiva de tornar o mundo um pouco mais hospitaleiro para o homem.

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É evidente que a condição líquido-moderna tem pesadas repercussões sobre a experiência do homem, sobre o seu aprendizado, sobre a própria percepção da continuidade da vida: a relação entre presente, passado e futuro é cada vez mais problemática. Em cada setor, criar hipóteses sobre o futuro com base em experiências passadas é sempre mais perigoso. É preciso aprender a caminhar sobre a areia movediça.

“O slogan dos nossos tempos é a flexibilidade: qualquer forma deve ser maleável;

qualquer situação, temporal; qualquer configuração, passível de reconfiguração”.

Entre os tantos argumentos enfrentados por Bauman, consideramos três que dão uma ideia da vastidão das suas análises e, ao mesmo tempo, da sua capacidade de atenção aos valores e da sua “paixão” pelo Homem.

Formação contínua ao mercado e à cidadania

Somos todos conscientes de que, na sociedade líquido-moderna, formação e aprendizagem devem ser permanentes e durar por toda a vida. Hoje, a formação permanente e a educação (a antiga paideia dos gregos) só podem ser concebidas de forma permanente porque “a constituição da personalidade é impensável de qualquer outro modo que não seja o de uma reformação constante e perenemente incompleta”.

Na sociedade do conhecimento, o crescimento impetuoso dos novos saberes e a velocidade com as quais as habilidades adquiridas perdem o valor correm o risco de colocar as pessoas à margem do mercado de trabalho. Mas há um aspecto importante que Bauman sublinha e que não tem a ver com a formação contínua e permanente às mudanças do mercado e da economia, mas que pode servir para transformar o mundo que muda rapidamente naquele lugar mais hospitaleiro para a humanidade por ele desejado. É necessário evitar que a economia e as empresas multinacionais, que são os centros condicionantes, monopolizem a existência dos cidadãos e sejam o seu exclusivo horizonte de vida.

Para isso, o sociólogo nos lembra que há também uma formação contínua que tem a ver com o espaço publico e com os valores civis: há, em outras palavras, uma formação à cidadania.

As considerações de Henry A. Giroux e Susan Searls Giroux (autores por ele citados) são de grande atualidade para nós: “Para muitas pessoas, hoje, a

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cidadania se reduziu ao ato de comprar e vender mercadorias (entre as quais os candidatos), em vez de procurar ampliar o leque de sua liberdade e de seus direitos para expandir o funcionamento de uma democracia substancial”.

Quando as pessoas se distanciam da política e vence a apatia, a democracia está em risco. Porque a ignorância, a incerteza e o medo dos cidadãos (e nunca como hoje o capital do medo pode ser tão empregado para qualquer tipo de lucro, seja econômico, seja político!) favorecem os aspectos mais arbitrários de quem detém o poder. O problema é dar-se conta de que a liberdade e os direitos dos cidadãos não são aquisições para sempre. E que eles devem ser atualizados, repensados, adequados aos tempos, interpretados nos novos contextos sociais: e para isso são necessárias pessoas comprometidas, competentes e abertas aos problemas da sociedade. Em outras palavras, é importante perceber que, diante das contínuas mudanças do mundo atual, tão carregado de problemas complexos e dramáticos, permanecemos atrás também nos planos civil e político.

A questão é que esse tipo de “obsolescência”, que ao indivíduo parece menos relevante por ser menos ligado aos seus interesses vitais imediatos, pode ter consequências pesadas sobre toda a sociedade e sobre sua capacidade de projetar e de controlar o futuro.

Bastaria considerar os resultados das pesquisas citadas pelos Giroux a respeito da falta de informação dos cidadãos americanos sobre o Iraque e a política americana em relação a esse maltratado país. A formação contínua dos cidadãos enquanto tal serve, portanto, a desenvolver aquela hospitalidade que é sinônimo de humanidade.

Este é um tema sobre o qual Bauman insiste nos seus últimos livros: a crise política e os riscos que correm as democracias contemporâneas, que têm a ver com cidadãos impulsionados a isolar-se em seus assuntos particulares e caracterizados por aquele sentido de solidão, de precariedade e de desconfiança existencial que fazem o jogo das elites no poder.

Destes problemas, entre outras coisas, ele fala em A Solidão do Cidadão Global. A democracia precisa da participação dos cidadãos e da sua partilha de ideias e valores, sobretudo em um momento no qual os problemas têm dimensões globais e transcendem a organização territorial da vida social. Justamente porque a ágora (do grego: local de encontro do povo) tornou-se global, a discussão, o confronto e o controle público se tornaram difíceis e os perigos de homologações aumentaram.

Hoje os cidadãos estão informados sobre tudo, mas estão também afastados de

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tudo, permanecem apáticos e estranhos ao que acontece no mundo. A sua participação aos acontecimentos é somente “emotiva”.

Faltam a eles a capacidade de avaliar e o impulso para agir. Bauman assim concluía uma conferência em março de 2014: “Hoje somos todos expectadores globais, testemunhas oculares do mal provocado aos seres humanos em toda parte do mundo. Não só ouvimos falar deles. Vemos o mal no momento em que ele acontece. Na representação cotidiana do drama mundial do sofrimento humano, somos jogados no papel de espectadores... Ser espectador significa expor-se a um gigantesco desafio ético”.

O que implica esse desafio?

O amor líquido

Em Amor Líquido, Bauman examina a atual fragilidade das ligações afetivas. O objeto do livro são as relações humanas (no trabalho, na empresa, com os amigos, na sociedade, com o parceiro).

O mundo líquido-moderno é caracterizado pelo individualismo exasperado, graças ao qual as relações se tornam as mais difusas, agudas, sentidas e desagradáveis encarnações da ambivalência. Nosso autor percebe que as relações são um dos principais motores do atual boom das terapias, porque elas são tão complexas e difíceis de desvendar que é raro que o indivíduo consiga fazer isso sozinho.

Homens e mulheres se sentem abandonados a si mesmos. Sentem-se objetos perdendo e procurando segurança. Como qualquer outro fenômeno da sociedade líquido-moderna, também as relações humanas são provisórias, precárias e instáveis.

Além disso – sublinha Bauman – no que se refere às suas relações, homens e mulheres falam sempre mais frequente de “conexões”, de “estar conectados”: em vez de falar de parceiros, preferem falar de “redes” (network).

O termo “rede” indica um contexto no qual é possível, com muita facilidade, entrar e sair, enquanto a relação exige compromisso recíproco e destaca os riscos, os problemas e as angústias de viver juntos. “Rede” sugere momentos nos quais se está “em contato”, intercalados com períodos de livre e autônoma navegação.

Concluindo, privilegiam-se as conexões, por serem “relações virtuais”, e não as relações reais! Também aqui o provisório caracteriza essas relações.

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De resto – se pergunta Bauman –, como pode um indivíduo, exortado incessantemente a aceitar as novidades infinitas do mercado, estar depois disposto a trabalhar a longo prazo por uma relação? As promessas de compromisso não têm sentido a longo prazo para nenhum tipo de relação, das de trabalho às amorosas.

Como o velho estilo de trabalho, que hoje em dia se despedaçou em uma série de ocupações flexíveis, empregos ocasionais ou projetos a curto prazo, o velho estilo de matrimônio foi substituído por um modelo flexível, de meio período, para estar juntos: uma espécie de “relação de bolso” pronta para o uso, que requer muito pouco investimento e que é facilmente “descartável”.

Bauman conclui que o mercado “projeta a sombra gigantesca do consumismo sobre toda a Lebenswelt” (do alemão: mundo da vida). Nesse cenário fluido (líquido), no qual a “síndrome consumista” colocou o valor da novidade acima do da duração, também o parceiro em certo momento é trocado como o carro velho ou o computador obsoleto.

Também nas relações, a sociedade de consumo torna permanente a insatisfação e legitima a mudança: uma mudança que se torna obsessiva, compulsiva. Como para os consumos normais, a fidelidade se torna motivo de embaraço, e não de orgulho.

Digamos a verdade: somos todos consumidores na sociedade de consumo:

estamos todos no mercado e sobre o mercado, somos cliente e mercadoria.

Portanto, “não é de se admirar que o uso/consumo das relações se adapte, e rapidamente, ao modelo do uso/consumo de automóveis, repetindo o ciclo que começa com a aquisição e termina com o descarte do lixo”.

A vida precária dos imigrantes: medo e insegurança

Citamos outro tema da análise de Bauman ao qual ele retorna com frequência em seus livros: a situação dos refugiados e dos imigrantes, que tentam sobreviver além dos limites de seus países de origem em lugares extraterritoriais. “Os refugiados se tornaram a síntese daquela extraterritorialidade na qual afundam as raízes da atual precariedade da condição humana, primeira causa dos medos e ansiedades do homem moderno. Medos e ansiedades que geram um sentimento popular de raiva e medos em relação aos refugiados”.

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Na situação dos refugiados somam-se de forma extrema e, portanto, mais evidente as características da vida líquido-moderna, como a permanência da transitoriedade, a falta de definição de uma função social, o vazio sociopolítico no qual vivem e assim por diante.

Bauman afirma que, em certo sentido, os campos de refugiados são laboratórios nos quais (talvez involuntariamente, mas nem por isso de forma menos eficaz) o novo modelo líquido-moderno permanentemente transitório de vida é colocado à prova e reiterado.

“Talvez venha um tempo em que descobriremos o papel de vanguarda dos refugiados de hoje – no qual exploraremos o sabor da vida nos ‘não lugares’ e a obstinada permanência da transitoriedade que poderia se tornar o hábitat comum dos cidadãos deste nosso planeta globalizado e pleno”.

Mas os migrantes (prófugos, refugiados e outros) são também a metáfora da exclusão e do “refugo” de uma sociedade que se preocupa, muito frequente só com palavras, com a dignidade humana.

O migrante que não encontra uma identidade própria e uma pátria é assimilável a um produto descartável. É notável, a propósito do jovem romeno morto recentemente em Milão preso em uma máquina que recolhia roupas usadas, que naquela morte há algo de simbólico em relação a estas vidas às margens que acabam por apagar-se em um depósito de coisas abandonadas e jogadas fora. É a vida que é jogada fora como lixo, uma vida perdida como mercadoria usada.

Vidas Desperdiçadas é outro título significativo da recente produção de Bauman, dedicado àqueles que ele chama “os refugos da modernização”, que a globalização acentuou e multiplicou: os rejeitados, os refugiados, os migrantes, mas também os desempregados, os trabalhadores informais: o grande e crescente exército de pessoas que são privadas dos seus modos e meios de sobrevivência.

“A modernidade líquida é uma civilização do excesso, da exuberância, do descarte e da eliminação dos refugos”. Aqui está a própria ideia de “ser humano” que é colocada em jogo!

Precisamos repensar com categorias novas os processos da globalização e, sobretudo, reconsiderar como os princípios de democracia e da liberdade podem hoje atuar em um mundo que não tem mais as certezas e as dimensões dos

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estados nacionais territoriais. Esta é, talvez, a mensagem mais importante de Zygmunt Bauman: o sua chamado e convite a todos nós.

(Publicado na revista italiana Dirigente nº 11 - 2006)

* Romano Trabucchi trabalhou como dirigente em empresas italianas. Ensinou na SDA da Universidade Bocconi e na Universidade Bicocca de Milão. É autor de livros sobre o management e ensaios, entre os quais Prometeo e la sopravvivenza dell’uomo (Franco Angeli 1998).

Alguns livros de Zigmund Bauman:

O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Jorge Zahar Editor

Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Jorge Zahar Editor

Modernidade Líquida. Jorge Zahar Editor

Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Jorge Zahar Editor

Vida Líquida. Jorge Zahar Editor

O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Jorge Zahar Editor

Vidas Desperdiçadas. Jorge Zahar Editor

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