M A R G IN A L ID A D E
P E D A G Ó G IC A - U M O L H A R S O B R E A P R IS Ã O
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
(M A R G IN A L P E D A G O G Y - A L O O K A T P R IS /O N S )RESUMO
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A p r isã o é o lo c u s e sp e c ífic o d e r e a liza ç ã o
d a e xc lu sã o so c ia l. Se u c o tid ia n o se a ju sta a u m a
o r g a n iza ç ã o m a is e la b o r a d a e m p r o c e d im e n to s su
-tis q u e d e c la r a d o s: sig n o s e r e p r o d u ç õ e s sã o p la
s-m a d o s n a s d im e n sõ e s te m p o r a l e e sp a c ia l, n o s
m e c a n ism o s c a str a d o r e s e c o n tr o la d o r e s, n o s p r o
-c e d im e n to s d e a d e str a m e n to in d ivid u a l e c o le tivo
p r e se n te s vin te e q u a tr o h o r a s, p r e te n d e m d e
s-p o ssu ir o p r e so n a s e sfe r a s d o s sa b e r e s, r a zõ e s,
d ir e ito s, c id a d a n ia e c la sse . A r e sistê n c ia éfr e q u e n
-te m e n -te e xe r c ita d a e m a ssu m ir a fir m a tiva m e n te a
c o n d iç ã o m a r g in a l p e la im p o siç ã o d a p r ó p r ia p e r
-so n a lid a d e , n ã o r a r o a n te a vio lê n c ia . O u tr o vié s é
a in tr o sp e c ç ã o , a n te a a u to a n u la ç ã o e n q u a n to su
-je ito p a r tic ip a n te . N e sta r e la ç ã o a u to r itá r ia e se u s
d e sd o b r a m e n to s c o n tr a -in stitu c io n a is c r e d ita m o s
e sta r a s r a ize s d o e sta d o c a ó tic o d o s Siste m a s P e
-n ite -n c iá r io s. P r e c isa m o s a p r e n d e r a p e r c e b e r e
o u vir o p r e so e n q u a n to su je ito so c ia l c a p a z d e r e
-fle tir in te le c tu a lm e n te a su a r e a lid a d e , c r ia r e sp a
-ç o s d e a tu a -ç ã o p r o a tivo s, c o n str u ir so c ie ta r ia m e n te
o p r ó p r io c o tid ia n o e a p to a e la b o r a r c o n c e ito s
e xte n sivo s, in c lu sive ,
CBA
à c o n str u ç ã o d o se u p r ó p r io p r o je to p e d a g ó g ic o .ABSTRACT
Th e p r isio n is sp e c ific lo c a liza tio n o f so c ia l
xc /u sio n . Its d a ily life is m o r e a d p te d to a n
o r g a n iza tio n e la b o r a te d in su tle p la n s m o r e th a n
d e c la r e d o n e s: sim b o ls a n d r e p r o d u c tio n s p r e se n te d
tim e a n d sp a c ia l d im e n sio n s, in th e c a str a te d m e
-a n ism o s -a n d c o n tr o le r s in th e p r o c e e d in g s fo r in d
i-id u a l a n d c o le c tive tr a in in g p r e se n t tw e n ty fo u r h o u r s
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
ANTÔNIO RODRIGUES DE SOUSA I
e a c h d a y , tr yin g to d isfr o sse ss th e p r isio n e r in th e
sr h o r e s o f kn o w le d g e , r e a so n , r ig h ts, c itize n sh if a n d
c la ss. Re siste n c i is ve r y o fte n e xe r c ise d b y a ssu m in g
a m a r g in a l c o n d id io n th r o u g h im p o sin g o n e s o w n
p e r so n a lity.fr e q u e n tly th r o u g h vio le n c e . An o th e r w a y
is th r o u g h in tr o sp e c tio n th r o u g h se lf a n u la tio n a s a n
a c tive p a r tic ip a n t. In th is a u tir ita r ia n r e la tio n s sh ip
a n d its d e ve lo p m e n ts a g a isn t th e in stitu tio n , w e b e lie ve
a r e to b e fo u n d th o r o o ts o f th e c h a o tic sta te o n th e
p e n ite n ta r y syste m s. We n e e d to le a m to u n d e r sta n d
a n d liste n to th e p r isio n e r a s a so c ia l su b je c t c a p a p le
o fr e fle tin g in te le c tu a lly o n h is r e a lity, to c r e a te sp a c e
fo r p r o a c tive a c tio n , to b u ild so c ia lly o n e s d a ily
e xiste n c e a n d to b e c a p a b le o f e la b o r a tin g e xte n sive
c o n c e p ts, in c lu d in g , th e c o n str u c tio n o f h is o w n
p e d a g o g ic a l p r o je c t.
PRISÕES E SOCIEDADE
Um mundo emparedado. Essa imagem comum
que as prisões nos oferecem é reproduzida, no
cotidi-ano carcerário, nas inúmeras barreiras internas, nos
procedimentos monocórdios e nos mecanismos
totalizantes impostos pela Instituição. Um microcosmo
apartado da sociedade, cercado por uma aura de
mis-tério e de incompreensões, pelo medo e pelos
precon-ceitos que o regelam ao e stig m a e ao abandono.
Contudo, o aspecto sombrio e de desolação que
suge-re a simples observação externa das muralhas de um
presídio é contradito pela pulsação febril que tensiona
a coletividade encarcerada, movida, certamente, pelo
mais fundamental impulso que mobiliza o homem: o
desejo de liberdade.
A primeira questão que se nos afigura é quanto
a significação social das prisões: o que são as prisões,
que função cumprem na sociedade? A associação mais
Mestrando em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará - Brasil.
imediata a que todos somos remetidos, agentes
ínstítucionais- e presidiários, é a sua função aparente,
a sua feição mais exposta - a seguridade social.
Iden-tificamos, de imediato, a dimensão da segurança
ins-truída em uma articulação discursiva, tanto no plano
da legislação pertinente, quanto no da oral idade dos
diversos atores, positivistas e pragmáticos:
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E u en ten d o m esm o p elo q u e o s livr o s já d
i-zem : é a r esso cia liza çã o d o p r eso
CBA
àso cied a -d e. Afu n çã o d a s p r isõ es é essa (Cel. EdmilsonGomes da Silva, diretor adjunto do IPPS).
A p r isã o n a so cied a d e, n u m a p a r te, é cer to .
Ach o q u e seja cer to p o r q u e, se n ã o fo sse a
p r isã o , eu a ch o q u e a s co isa s ... n ã o tin h a m
co m o se a jeita r . U n s sa em d a p r isã o r eg en
e-r a d o s m a s m u ito s d eles n ã o sa i (Bento Alves
Fernandes, presidiário).
A p r isã o ser ia , co m o já d iz, p r a a fa sta r a p
es-so a d a es-so cied a d e p a r a q u e ela p a g u e o q u e
fez, a té q u e ele esteja p r o n to a vo lta r a o â m
-b ito d a fa m ília . Afu n çã o d e to d o s o s p r esíd
i-o s ser ia r eed u ca r i-o p r esi-o (Jaime Cesar Souza
Almeida, agente penitenciário). '
E la co m b a te o cr im e, n é? seg u r a n ça p r a so
ci-ed a d e, a p r isã o fa z isso e m u ita s o u tr a s co isa s
ta m b ém . C o m o p o r exem p lo , se n ã o existisse
p r isã o n ã o existia p o lícia ta m b ém C o m o a p o
-lícia ia g a n h a r o d in h eir o ?
Os
a g en tes co m o éq u e so b r eviver ia m ? Se n ã o existisse p r isã o , n ã o
existia tu d o isso
(Estênio
Menezes, preso).A p r isã o , ela fu n cio n a p r a p u n ir o , in d ivíd u o
n é? Afa sta r d o co n vívio so cia l o in fr a to r e,
a o m esm o tem p o , r ecu p er a r esse elem en to ,
ca p a citâ -lo p r a co n viver n o va m en te n o seio
d a so cied a d e (Fco. Lino Mendes Coelho,
di-retor de Segurança e Disciplina.).
A primeira configuração emergente da fala dos
atores associa a função da seguridade à reintegração
social do infrator. Há uma unanimidade dessa
com-preensão: o encarceramento não é mencionado como
recurso imediato suficiente ao cumprimento do
obje-tivo da segurança. No entanto, quando questionados
se a prisão cumpre a tarefa da ressocialização, há uma
unanimidade mais contundente:
Nã o , p elo q u e eu co n h eço , n ã o só n o C ea r á ,
n en h u m a p r isã o fu n cio n a co m o d evia fu n cio
-n a r (Francisco Lino Coelho Mendes -
dire-tor de Segurança e Disciplina do IPPS).
Nã o fu n cio n a . A ver d a d e é q u e n ã o fu n cio n a .
No p a p el, n a lei, escr ito , a li co n sta m a s, la
-m en ta vel-m en te, n a p r á tica , n ã o é cu m p r id o
(Fco. Geovaldo Barroso, preso).
Na s p r isõ es b r a sileir a s n ã o existe isso . Nã o
existe co r r eçã o n en h u m a .
O
p r eso sa i m u itop io r d o q u e ele en tr o u (Geovane Cesarino
Correia, preso).
J a m a is a p r isã o , n em n o C ea r á n em em to d o
Br a sil, ela cu m p r e a fu n çã o so cia l. P r im eir o
p o r q u e o p r eso n ã o é tr a ta d o co m o p esso a . E le
é tr a ta d o mais co m o ... u m exclu íd o e, m esm o
exclu íd o , exclu íd o d e ú ltim a ca teg o r ia . Éjo
-g a d o p r eso e n in -g u ém q u er sa b er d a q u ele p r
e-so(RaimundoEdmundoMulato, funcionário).
Não,
se pode questionr a correção de taisafirma-tivas. Outra questão, portanto, se impõe: se as prisões,
notoriamente, não cumprem a sua tarefa fundamental,
por que se mantêm, secularmente, com os contornos
do mesmo perfil sem uma proposição de profunda
reestruturação? Há um discurso que atesta a falência
dos Sistemas Penitenciários e há uma concordância
ge-neralizada que ele não cumpre a sua função social. Os
atores têm visões desencontradas, vagas, percepções
parciais, mas orientadas na perspectiva do poder:
E n ten d o q u e seja d evid o a o p r ó p r io sistem a
eco n ô m ico (CeI. Gomes, vice diretor).
P o r q u e se m a n tém ? Nã o é n ecessá r io ter p r
es-sa , n esse sen tid o n ã o h á p r eses-sa . Q u a n to mais
len ta a co isa ca m in h a r m a is, eu cr eio , o Br a sil
ter á h o m en s q u e n ã o têm o cu p a çã o , h o m en s
q u e n ã o têm u m a visã o d e ed u ca çã o , a q u ilo
q u e eles n ã o tiver a m p o r esta r o cu p a d o s n a
cr im in a lid a d e ...(Geovaldo, presidiário).
2Nomeamos como a g e n te s in stitu c io n a is o segmento relativo ao corpo funcional e administrativo da Instituição. Pora to r e s in stitu c io n a is designamos todos os sujeitos com atuação no universo carcerário: presos e agentes institucionais bem como eventuais atores sociais com atuação transversal nas prisões - voluntários, grupos religiosos, ONGs, etc. Os presidiários, que consideramos o segmentos mais importante da instituição, pois é em função deles que ela existe e que os a g e n te s in stitu c io n a is orientam todo o seu trabalho, serão designados diretamente pelos termos que lhe são próprios.SRQPONMLKJIHGFEDCBA
A s
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p r isõ es, a ch o q u e existem p r a co r r ig ir , m a sse n ã o tá co r r ig in d o ? Nã o sei r esp o n d er a essa
p er g u n ta . Se a p r isã o é p r a r esso cia liza r o
p r eso , p r a co r r ig ir , p r a a d a p ta r ele
CBA
à so cie-d a cie-d e e n ã o tá a cie-d a p ta n cie-d o ... P r a m im , eu a ch oq u e p o d e ser ... p r a o g o ver n o d a r sa tisfa çã o à
so cied a d e, a lg u m a co isa a ssim
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(Geovane,presidiário).
Sobre o instituto cárcerário como forma de
vi-gilância social Foucault nos ensina:
Ap r isã o esteve, d esd e a su a o r ig em ,
lig a d a a u m p r o jeto d e tr a n sfo r m a çã o d o s
in d ivíd u o s. Os texto s, o s p r o g r a m a s, a s d
e-cla r a çõ es d e in ten çã o estã o a í p a r a m o str a r .
D esd e o co m eço a p r isã o d evia ser u m in
s-tr u m en to tã o a p er feiço a d o q u a n to a esco la ,
a ca ser n a o u o h o sp ita l e a g ir co m p r ecisã o
so b r e o s in d ivíd u o s (. .. ) F o i en tã o q u e h o u
-ve, co m o sem p r e n o s m eca n ism o s d e p o d er ,
u m a u tiliza çã o estr a tég ica d a q u ilo q u e er a
u m in co n ven ien te. A p r isã o fa b r ica d elin
-q ü en tes m a s o s d elin -q u en tes sã o ú teis ta n to
n o d o m in io eco n ô m ico co m o n o p o lítico . (. .. )
Nã o se p r o cu r a va r eed u ca r o s d elin q u en tes,
to r n á -lo s vir tu o so s, m a s a g r u p á -lo s em u m
m eio b em d efin id o , r o tu la d o , q u e p u d esse ser
u m a a r m a co m fin s id eo ló g ico s. O p r o b
le-m a , en tã o , n ã o er a en sin a r -lh es a lg u m a co
i-sa m a s, a o co n tr á r io , n ã o en sin a r -lh es n a d a
p a r a se esta r b em seg u r o d e q u e n a d a p o d
e-r ã o fa zer sa in d o d a p r isã o . (1995:
131,132,134)3. E acrescenta: "A d elin q ü ên
-cia er a p o r d em a is ú til, p a r a q u e se p u d esse
p en sa r em a lg o tã o to lo e p er ig o so co m o u m a
so cied a d e sem d elin q ü ên cia . Sem d elin q ü ên
-cia n ã o h á p o lí-cia . O q u e to r n a a p r esen ça
p o licia l, o co n tr o le p o licia l to ler á vel p ela p o
-p u la çã o se n ã o o m ed o d o d elin q u en te? (. .. )
Aceita m o s en tr e n ó s essa g en te d e u n ifo r m e,
a r m a d a . en q u a n to n ó s n ã o tem o s o d ir eito
d e o esta r ; q u e n o s p ed e d o cu m en to s e q u e
vem r o n d a r a n o ssa p o r ta . C o m o isso ser ia
a ceitá vel se n ã o h o u vessem o s d elin q u en tes?
(1995:137).
É portanto, primariamente, no horizonte da
ompreensão dos mecanismos de uma sociedade de
: obre a Prisãoin Microfisica do Poder. - Sobre a Justiça Popular in Microfisica do Poder.
classes de ideologia burguesa que percebemos os
interesses em perpetuar a marginalidade. Esta é uma
transversalidade verticalizada sobre o Instituto
Carcerário. A mesma ideologia patrocina, ainda, a
abundância de páginas de jornais, programas de
televisão e espaços garantidos em todos os veículos
de comunicação de massas, onde se alardeia quão
numerosos e perigosos são os delinquentes. Há um
enorme investimento econômico nos instrumentos de
divulgação, nos veículos que tornam a marginalidade
e a delinquência um espetáculo permanente.
Enquan-to isso, as posturas políticas definitivas no sentido
de se combater as formas produtoras e reprodutoras
da exclusão social, da marginalização e da
crimina-lidade são, indefinidamente, proteladas,
escamo-teadas e negadas.
Para não perdermos de vista essa perspecti va
citamos ainda as principais funções que cumpririam
as prisões segundo o pensamento Foucaultiano:
• Introduzir contradições no seio da
popula-ção, orientadas por uma contradição
prin-cipal: " O p o r o s p leb eu s p r o le ta r iza d o s a o s
p leb eu s n ã o p r o le ta r iza d o s" (1995:50)4.
Ou seja, construir relações de intolerância
como forma de opor e dividir segmentos
sociais afins.
• Permitir a repressão contundente aos
indiví-duos que mais incomodam o sistema vigente:
" o s q u e esta va m m a is p r o n to s a p a ssa r àa çã o
im ed ia ta " (idem). A repressão só se justifica
e se legitima pela sedimentação de um
senti-mento de incompreensão e de intolerância
capaz de antagonizar semelhantes sociais,
criar dissenções profundas entre pares da
mes-ma origem, corroer suas afinidades, obstruir
seus interesses comuns, minar a sua
resistên-cia e a sua luta.
• Impor, pela via da legislação penal, do
encarceramento e, paralelamente, da imprensa
e de toda uma "literatura" especializada, uma
moral ideológica que servirá de barreira
en-tre a grande massa popular e aqueles que
ou-sarem transgredir contra as normas instituídas.
Ou seja: " fa zer co m q u e a p leb e n ã o p r o
le-ta r iza d a a p a r ecesse a o s o lh o s d o p r o leta r ia
-d o co m o m a r g in a l. p er ig o sa , im o r a l, a escó r ia
d o p o vo . a m ea ça d o r a p a r a a so cied a d e in
-teir a . " (idem).
R E C L U S Ã O E P E R P E T U A Ç Ã O D A
M A R G IN A L ID A D E
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
q u e stã o p e n ite n c iá r ia acumula, nasocieda-de mosocieda-derna, um q u a n tu m de problemas que, a
princí-pio, parecem de natureza insolúvel. Dentre os
principais tópicos constatamos os impasses da
su p e r lo ta ç ã o , da vio lê n c ia interna, do su c a te a m e n to
físico das prisões, da d e g r a d a ç ã o humana, do a b a n
-d o n o social, da p e r p e tu a ç ã o da exclusão e do
a p r o fu n d a m e n to d a m a r g in a lid a d e , redundando na
propalada falência do modelo instituído. As
manifes-tações de encaminhamento à questão penal esboçadas
nos meios oficiais e especializados debatem o mérito
jurídico, administrativo e político. Alcançam, a nosso
ver, apenas a superfície do problema - os aspectos
formais e quantitativos - deixando intocado o
essen-cial da questão: o cumprimento da função social da
Instituição na " r e c u p e r a ç ã o d o p r e so " e a e xe c u ç ã o
d a p e n a dentro dos padrões humanitários, éticos e
morais mínimos que patenteassem a fu n ç ã o tu te la r do
Estado à pessoa do preso.
A superlotação ' é apontada como problema
exponencial e tem gerado inúmeros debates e
distúr-bios nas prisões brasileiras. A adoção dep e n a s a lte r
-n a tiva s que consistem em substituir penas de prisão
por multas, recolhimento domiciliar, interdição de
di-reitos, limitaçãode fim de semana e prestação de
ser-viços à comunidade para delitos leves, com penas
inferiores a quatro anos, tem merecido grande
desta-que no concurso dos encaminhamentos. É uma saída
interessante e necessária mas apenas paliativa. O In
s-titu to La tin o Am e r ic a n o d a s N a ç õ e s U n id a s p a r a a
P r e ve n ç ã o d o D e lito e Tr a ta m e n to d o D e lin q u e n te
(ILAN U D ) estima que haveria uma redução de 20%
dos presos recolhidos em todo o país". Ora 80%
per-maneceriam encarcerados! Portanto, o impasse da
superlotação permaneceria.
Quanto àvio lê n c ia intestina que grassa os
cár-ceres nacionais não pode, em absoluto, ser analisada
como um problema isolado das prisões, nem se pode responsabilizar a 'n a tu r e za d e sa ju sta d a ' dos
presidiá-rios. Analistas constatam uma vio lê n c ia in stitu c io
-n a liza d a na raiz profunda da questão. O padre
Francisco Reardon 7 identifica o que chama de " m a
l-d a l-d e e str u tu r a l-d a d o Siste m a " e constata: "O E sta d o
c a u sa , d ir e ta o u in d ir e ta m e n te , to d a s a s r e b e liõ e s d o
p a ís e , p io r , n ã o a p r e n d e n a d a c o m e la s. "
João Benedito de Azevedo Marques- adverte:
CBA
"É im p o r ta n te n ã o p e r d e r a r a zã o e p e n sa r q u e a
vi-o lê n c ia d o c r im e d e ve se r r e sp o n d id a c o m a vio lê n
-c ia d o E sta d o . "
Entendemos que tanto a m a ld a d e e str u tu r a d a
d o Siste m a quanto a vio lê n c ia d o E sta d o referidas se
concretizam na sociedade através das Instituições. Na
Instituição carcerária estas duas categorias acontecem
de forma quase indistintas, diferenciando-se apenas
em algumas ações específicas. Há uma mentalidade
perversa que não é, necessariamente, intencional nem
imediata mas incorporada a uma cultura
institucio-nalizada que se sobrepõe às ações primárias dos
ato-res que impregnados pelos conceitos, preconceitos,
vícios, deturpações funcionais, pela burocracia, pelas
ingerências conjunturais e circunstanciais, sequer se
apercebem com precisão da extensão e dos significa-dos das suas próprias ações. Este contexto preside uma
lógica que se reproduz de forma basilar em,
pratica-mente, todos os procedimentos institucionais,
sedimentados sobre um processo despersonalizador
do sujeito encarcerado. O universo carcerário se
ajus-ta, portanto, a uma organização mais plenamente
ela-borada em planos sutis que nos procedimentos
repressivos. primários evidentes. Há, em todos os ní-veis, significados subliminares, signos, representações
e reproduções que seguem, ora, a transversalidades
de ordem rnacro-estrutural, ora a articulações
micro-políticas e de âmbito intrínseco. Os procedimentos,
em todas estas perspectivas, intercalam composições
de forças simbólicas sobre a base material.
Há no universo carcerário uma inversão
siste-mática à plural idade da vida, imposta por um
proces-so homogenizador, conflitante com as naturais
inquietude e inventividade do preso frustradas,
pri-mariamente, nas dimensões espacial e temporal. Ao
conjunto se sobrepõe um ambiente opaco, mono sexual
e decadente; os mecanismos inibidores, castradores e
controladores presentes vinte e quatro horas; a
ampu-tação de funções sociais e a ausência de horizontes; a
bitolação corporal, a hierarquia, as normas
discipli-nares e as sanções normalizadoras, os procedimentos
de adestramento individual e coletivo impingidos ao
preso em que o corpo não é mais objeto primário da
5O Instituto Penal Paulo Sarasate foi construído para abrigar 400 presos (1970), hoje segrega, em média, 900 homens concentrando cerca deSRQPONMLKJIHGFEDCBAI) ,da população carcerária cearense, somente naquela unidade penal.
6Jornal FOLHA DE SÃO PAULO de 24 de novembro de 1997
7Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária da CNBB; Jornal O POVO de 26 de maio de 1997.
8Secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, ex-presidente da FEBEM (1975-78) e ex-presidente do Conselho Nacio-nal de Política Criminal e Penitenciária (Gov. Sarney), no Jornal FOLHA De SÃO PAULO de 11 de outubro de 1996.
repressão.
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" E xclu íd o d e ú ltim a ca teg o r ia " e inseridoneste contexto, sem alternativas, sem perspectivas e
usurpado em seus canais naturais de expressão o
pre-sidiário é, frequentemente, levado a preservar a própria identidade pela atitude de assumir, afirmativamente,
a condição marginal. O contexto institucional produz
e reproduz condicionamentos que conduzem à
resis-tência, frequentemente, pelo aguçamento da
agressivi-dade e auto-defesa das políticas totalitárias ante a
imposição da própria personalidade, não raro, pela
violência. O contraponto a esse módulo
compor-tamental, e que constatamos ser bem mais
generaliza-do, é a introspecção: o indivíduo se protege pelo
anonimato, pelo silêncio e pela autoanulação
enquan-to sujeienquan-to participante:
D en tr o d a ca d eia n in g u ém vê n a d a . Aq u i eu
n ã o vejo n a d a , eu só vejo à m in h a p esso a e o s
m eu s p en sa m en to s. Aco n tece m u ita co isa a q u i
d en tr o q u e eu n ã o vejo .(. .. ) E u p en so em to
d o s p o r q u e se a g en te fo r p en sa r só n a g en
-te ... m a s, p r in cip a lm en -te, a g en te tem d e
p en sa r só n a g en te m esm o . Aq u i d en tr o a g en te
tem q u e p en sa r só n a g en te m esm o . O s o u tr o s
é q u e tem d e ter o m esm o cu id a d o q u ea..g en te
tá ten d o p o r q u e a g en te só tem u m a vid a
(Ben-to, preso).
Instituição Total (Goffman, 1992),
?
cárcere é,na geografia social, o lo cu s específico de realização
da exclusão - o último estágio desse processo. A
re-clusão, no entanto, não é a única amputação
consu-mada pela prisão, embora seja a mais explícita e de
efeito mais contundente, pois priva do direito
essen-cial à liberdade. Sua ritualística porém, implica em
procedimentos destituidores que se efetivam em
vari-ados níveis, dentre os quais detectamos uma
intencionalidade de despojar o encarcerado de
valo-res, de saberes e de razões, enfim, descaracterizá-Io enquanto sujeito:
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
"A p esso a q u e tâ p r esa , n a q u ele m o m en to , ele só tá ten d o m esm o a vid a " (Bento, preso)As espoliações culturais, psicológicas e
. telectivas têm como eco a inviabilização do
indiví-duo enquanto sujeito social:
O cá r cer e d estitu i o en ca r cer a d o co m o su jeito
d e d ir eito s - os direitos básicos inerentes às práticas
civis e políticas são, automaticamente, alienados da
soa do preso. Seu universo dos direitos passa a
gi-rar, praticamente, em função dos ritos processuais e
sua condição de presidiário: direito de defesa,
di-reito de apelar da sentença, didi-reito de recurso a
ins-tâncias superiores, direito a um tratamento humano e
justo, direito de manifestação, direito à integridade
física, etc. Direitos primários que, em uma sociedade
de classes, sabemos serem frequentemente
desrespei-tados. No cárcere são, mais comumente, ignorados
quando não vilipendiados.
O cá r cer e d estitu i o en ca r cer a d o co m o su jeito
d e cid a d a n ia - igualmente, o exercício da cidadania
fica cerceado em seus procedimentos elementares.
Esta destituição é, repetidamente, explicitada pelos
meios de comunicação de massas (principalmente
rá-dios) onde é comum se veicular que "marginal não é
cidadão", e reiterada em um consenso mais ou menos
generalizado. A destituição da cidadania, porém, é
contundente na negação ao mais importante objeto da
democracia em um Estado de Direito - o voto.
O cá r cer e d estitu i o en ca r cer a d o co m o su jeito
d a cla sse la b o r a l- a cisão entre delinquência e
traba-lho é notória. Está associada a valores éticos e
cultu-rais que não admitem ao delinquente a condição de
trabalhador. Esta concepção é também largamente
veiculada na mídia. Mesmo tendo cumprido
integral-mente, com comportamento exemplar, a sua pena a
sociedade nega, sistematicamente, um lugar no
mer-cado de trabalho ao ex presidiário. A Lei de
Execu-ções Penais exclui o trabalho carcerário do regime da
legislação trabalhista. A destituição de classe ao
pre-so é, portanto, consagrada em toda uma prática pre-social
exclusionista e estigmatizante.
Isto posto, fica suficientemente caracterizada a
situação extrema em que se concretiza a exclusão do encarcerado. Trata-se de um processo eliminatório do
sujeito social:
Q u a n d o ele sa i d a ca d eia n ã o tem co n d içõ es
d e vid a lá fo r a . J á n ã o d eixo u n a d a , p a sso u
q u a tr o , cin co a n o s p r eso e a í, q u a n d o vo lta ?
C h eg o u d o p r esíd io co m o se tivesse vin d o d e
o u tr o p a is, sem n a d a , m u ita s vezes n ã o r eco
-n h ece m a is -n em a r u a o -n d e m o r a va . M u ita s
vezes a ca sa d ele fo i ca r r eg a d a p ela s en ch en
-tes ... é isso m esm o , o s ca r a s q u e m o r a m n a
p er ifer ia , a ca sa p o d e ter sid o d er r u b a d a p ela
en ch en te o u a p r efeitu r a a b r iu u m a r u a n o
lo ca l d a ca sa d ele. E le n ã o tem m a is n em n o
-çã o . E o em p r eg o , ca d ê o em p r eg o d ele? E le
va i d ep en d er d a a ju d a d e u m a m ig o , à s vezes,
d e o u tr o co m p a n h eir o q u e já está n a m esm a
situ a çã o d ele o u já esta va a g in d o n o ca m p o
d a cr im in a lid a d e. E le va i d ep en d er d isso . Isso
a co n tece. E le n ã o q u er vo lta r a d elin q u ir ; p a
s-sa u m d ia , p a ss-sa d o is, p a ssa u m m ês, d o is
m eses e va i a u m en ta n d o a s ca r ên cia s: a
m en ta çã o , r o u p a ... e u m d ia ele ch eg a a u m
p o n to q u e n a p r im eir a o p o r tu n id a d e, se a
l-g u ém ch el-g a e co n vid a p r a fo r m a r u m a d u
-p la d e a ssa lto , ele n ã o tem o u tr a o -p çã o . Q u a l
a o p çã o q u e ele tem ? Nã o tem m a is n en h u
m a o p çã o . U m a vez, u m p r eso esta va fa la n
-d o , -d izen -d o o seg u in te: " O lh e, vo cê n ã o sa b e
o q u e é a m a n h ecer o d ia e ver cin co filh o s
ch o r a n d o co m fo m e. Aí vo cê o lh a p r a u m
la d o , o lh a p r a o o u tr o , n ã o tem n a d a . Nã o
tem u m p ã o , n ã o tem ca fé, n ã o tem sim p
les-m en te n a d a , já vem co m a fo m e d o o u tr o
d ia ." J á n ã o tin h a a lm o ça d o , n ã o tin h a ja n
-ta d o , a í u m a m ig o m a n d o u n ã o sei o q u e p r a
ele ... Aí ele sa i n a r u a , ch eg a lá n u m a s a ltu
-r a s vê u m f-r ig o -r ífico ch eio d e ca r n es b o a s,
vê u m su p er m er ca d o ch eio d e tu d o q u a n to é
b o m e ele sa b e q u e o s filh o s d ele estã o lá
m o r r en d o d e fo m e. E les d izem a ssim :
CBA
"Éd u r o " . E ele va i, p a ssa p o r u m , p a ssa p o r
d o is, a í a p a r ece o u tr o q u e d iz: " Va m o s fa
-zer isso ... " e ele fa z. Isso a co n tece, eles fa
-la m . Vivem fa -la n d o essa s co isa s.
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
On eg ó cioé o seg u in te, a n o ssa p o b r eza é d ifer en te d a
p o b r eza d o s p a íses r ico s. A n o ssa m a r g in a
li-d a li-d e eu a cr eli-d ito q u e 9 0 % seja p o r fa lta d e
o p o r tu n id a d e d e vid a . E les d izem : " E u n ã o
ten h o em p r eg o , eu vo u n u m a fir m a n ã o m e
a r r a n ja m em p r eg o ." O u tr o d iz a ssim : " Se
eu fo r n u m a fir m a , tem u m a va g a . Vô cê sa b e
fa zer isso ? Tr a g a u m a ca r ta d e a p r esen ta
-çã o ... " Aí só se o d ir eto r d o p r esíd io m a n d a r
u m a ca r ta p o r q u e a p esso a m a is im p o r ta n te
q u e ele co n h eceu n a vid a d ele fo i o d ir eto r
d o p r esíd io (Mulato, funcionário).
CBA
T U T E L A E A B A N D O N O
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
o
su ca tea m en to físico d a s p r isõ es, ad eg r a d a -çã o h u m a n a e oa b a n d o n o so cia l flagrantes nocotidi-ano carcerário, são consequências da indiferença
oficial, da falta de políticas públicas e governamentais
para o setor, de uma cultura repressiva
historicamen-te institucionalizada, do preconceito estigmatizante e
de um sentimento de retaliação que a sociedade
pare-ce alimentar contra os seus reclusos. O resultado é
um processo de agudização do problema. Este
pano-rama pode ser melhor compreendido diante de uma
informação do Censo Penitenciário Nacional de 1995
(o último divulgado): 95% dos presos são da classe
pobre e 85% não passaram da quarta série primária. É
patente a condição do Instituto Penitenciário
brasilei-ro como uma instituição de classe.
O Estado menospreza a oportunidade, única, de ter
sob a sua tutela todos aqueles indivíduos que, em tese, se
desajustaram mais profundamente com a sociedade, sem
propor um trabalho de humanização adequado.
Q u a l é a o cu p a çã o q u e tem ? Na d a .
E n tã o a o cu p a çã o d o p r eso é p en sa r n a esp o
-sa , m u lh er , d r o g a , fu g ir , b r ig a r , cr ia r p r o b
le-m a , escu lh a le-m b a r , d izer q u e o d ir eto r está
en g o m a n d o , d izer q u e o s a d vo g a d o s d e o
fi-cio n ã o tr a b a lh a m . (Geovane, pr.eso).
... d ifícil n o d ia a d ia d a p r isã o é ver
ta n ta s p esso a s so fr en d o . Va zia s. P esso a s q u e
a g en te o lh a a ssim , sen te o g r a u d e p o b r eza ,
sen te, m eu D eu s, q u e q u a n d o sa ír em d a q u i
n ã o têm u m p a lm o àfr en te d o n a r iz p r a fa zer
n a d a , n ã o têm n em teto . Nã o tem u m g r a u d e
in str u çã o p a r a p o d er ter n essa so cied a d e p a r
ticip a çã o em n a d a . Ain d a m a is sa in d o à m a r
-g em d a so cied a d e. P esso a s q u e n ã o têm n o
fu tu r o p er sp ectiva d e m elh o r ia , a n ã o ser a
ten d ên cia d e o lh a r p r a eles m esm o s e ver o
q u a n to m iser á veis eles sã o . E r ein cid ir em n o
cr im e n o va m en te ..(Geovaldo, preso)
... a m a io r p a r te d o p r eso a q u i d en tr o
p er d e a su a fa m ília ced o . A m a io r r evo lta çã o
d o p r eso é essa . P o r q u e ele já n ã o tin h a n a d a
lá fo r a , a í ele d eixa a fa m ília só . A m u lh er
vem u m a , d u a s vezes a í n ã o p o d e m a is vir
p o r q u e n ã o tem co m q u e vir m esm o , tá en ten -d en -d o ? E la va i p r o cu r a r d a r d e co m er a o s
filh o s lá fo r a . Aí o p r eso fica r evo lta d o a q u i
d en tr o p en sa n d o m il e u m a co isa s. E la n ã o
tem cu lp a p o r q u e se vo cê n ã o d eixo u n a d a lá
fo r a co m o va i q u er er q u e ela tr a g a ? M a s ele
n ã o p en sa a ssim , ele q u er q u e ela ven h a d e
q u a lq u er m a n eir a . Se existe in fer n o d e b o ta r
cr istã o vivo d en tr o , esse a q u i é u m . (. . .) n ã o
er a p r a ter a ssisten te so cia l? Nã o er a p r a ter
d u a s m a s vin te p o r q u e a q u i tem m il h o m en s.
Isso n in g u ém vê. (Ivan Barbosa, preso)
P r eso é tr a ta d o co m o b ich o
(funcioná-rio, constatação mais ou menos generalizada).
A Instituição não só subsidia o
recrudescimen-to das práticas degenerativas anteriores mas acrescenta
outras, próprias do âmbito carcerário, tanto no plano
do indivíduo quanto da coletividade encarcerada. Um
fator . do pelo cotidiano carcerário
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
...- r ~ ' 7 e e processo de forma tensa,
esulta que o Sistema Penitenci-'" 'olve à sociedade indivíduos mais
desajus 0-. ais desumanizados do que antes,
brutalizado mesmo estabelecendo um ciclo
progres-sivo de marginalização e de riscos reais para a
seguridade social. Real pois, mais cedo ou mais tarde,
o indi íduo retoma ao convívio social. 9
A p esso a p r esa se sen te u m a p esso a
q u a se m o r ta , q u e é a ssim d o jeito q u e eles
p en sa lá fo r a . Nã o , m a s to d o s n ó s sa i. To d o s
va i ter o d ia d e sa ir . É só ter p a ciên cia , m a n
-ter a ca lm a , q u e a g en te u m d ia va i g a n h a r a
lib er d a d e (p r eso n ã o id en tifica d o ).
A ação institucional patrocina uma cultura que
tem conduzido, basicamente, à reafirrnação da
condi-ção marginal e ao seu aprofundamento. Adultera
as-sim, a função tutelar do Estado à pessoa do preso. Se
não, vejamos o que nos diz o Aurélio - Tu tela r : cu
i-d a r d e, a m p a r a r , p r o teg er , d efen d er . O cárcere, não
somente descumpre a estes pressupostos mas ainda
executa uma tarefa inversa à postulação doutrinária e
jurídica colocadas, traindo o que seria a sua função
social primária.
A sociedade, por seu lado, se refugia no
enten-dimento rasteiro de que o Sistema Penitenciário e seus
reclusos são um problema do Governo. Assume uma
postura de indiferença e cumplicidade ante as
miséri-as do cárcere chegando, não raro mesmo, a aplaudir à
mais brutal repressão como conseqüência "natural.t"?
Omite-se diante da "comodidade" de dispor de um
"aterro sanitário", onde se despejam seus refugos.
A so cied a d e tem o p r eso co m o lixo so
-cia l, en tã o p eg a e jo g a lá d en tr o d a q u ele d
e-p ó sito . Q u e h o je o s e-p r esíd io s sã o d ep ó sito s.
E n tã o eles sã o jo g a d o s lá co m essa fu n çã o :
sep a r a r u m lixo so cia l d e u m a so cied a d e q u e
se d iz lim p a e h o n esta . A so cied a d e a ch a q u e
esse p o vo n ã o tem co n d içã o d e viver d en tr o
d a so cied a d e, en tã o jo g a lá n esse d ep ó sito q u e
sã o a s p en iten ciá r ia s. (, .. ) A so cied a d e r ea
l-m en te n ã o sa b e o q u e é u l-m p r esíd io . O u ve-se
fa la r d o q u e a m id ia fa la , d o q u e a m id ia jo g a
p a r a o p o vo . M a s o p r esíd io tem , em si, p
esso a s. M u ita s vezes tem p esesso a s lá q u e sã o fa
-cilm en te r ea d a p ta d a s
CBA
à so cied a d e. P esso a s in telig en tes e a m a io r ia sã o jo ven s (Mulato,funcionário).
...tá en ca ixa d o , já tá im p r eg n a d o n a so cied a
-d e. É co m o a q u ela p esso a q u e tr a b a lh a co m
éter d en tr o d o h o sp ita l, tr a b a lh a co m a q u ele
p r o d u to d e ch eir o a lta m en te fo r te, en tã o já
está im p r eg n a d o n a p ele d a p esso a a q u ilo . No
su b co n scien te, en tã o , a q u ilo a li só tem q u e
ser d a q u ele jeito (Geovane, presidiário).
A alienação da sociedade em relação aos seus
encarcerados produz, na realidade, uma mentalidade
também marginal. Perpetua um ciclo vicioso,
(re)alimenta uma ciranda de desequilíbrios que,
afi-nal, têm nas relações sociais a sua gênese patogênica.
O instituto penitenciário é apenas uma das pontas desse
processo. O problema do abandono e sucateamento
dos presídios brasileiros, portanto, tem raízes
profun-das em posturas ideológicas e políticas fincadas no
solo social, o que respalda a pálida ação
governamen-tal nesse terreno. As razões não são quantitativas.
Portanto, é condição primária a existência de
uma vontade política inquestionável. Mas as idéias
precisam anteceder aos fatos. Os condicionamentos
sociais e a realidade posta já são por demais
eviden-tes, nos fornecem os indicadores e os elementos bási-cos de alerta para a gravidade e urgência em relação à
questão penitenciária brasileira.
Entendemos que as práticas que permeiam a
relação preso/sociedade devem e urgem serem
abor-dadas e redimensionadas. Entendemos também que a
necessária dimensão educativa das prisões passa,
an-tes e inquestionavelmente, pelo viés institucional. A
Instituição precisa educar-se para se capacitar
enquan-to educadora do preso. Defendemos, portanto, a
for-mulação do que denominamos deAçã o P ed a g ó g ica ,
entendendo-a como abrangente aos dois hemisférios
da Instituição: o pólo da corporação
político-adminis-trativa do Sistema Penitenciário, antes, e ao pólo da
coletividade encarcerada como consequência. A
pe-dagogia dessa ação começa pelo gabinete do
Secreta-9Mesmo um indivíduo que some 100 anos em várias penas, o teto máximo contabilizado é de 30 anos. De 30 anos ele deverá cumprir 1/6 (5 anos) em Re g im e F e c h a d o : intramuros, se for réu primário, ou metade, se for reincidente. Tendo bom comportamento, a partir daí, ele pode requerer a progressão da sua pena para oRe g im e Se m i-a b e r to , em que já pode trabalhar fora do presídio, devendo recolher-se somente para dormir. Portanto já retomou ao convívio social.
10Lembramos um caso apenas como referência: o m a ssa c r e d e C a r a n d ir u , onde 111 tutelados daquela penitenciária foram assassi-nados durante uma invasão policial. No pleito seguinte o eleitorado paulista elegeu o oficial que comandou a invasão a deputado federal, oferecendo-lhe a imunidade parlamentar.SRQPONMLKJIHGFEDCBA
rio da Justiça e se inaugura com a compreensão de
que todo e qualquer administrador ou servidor da Pasta
da Justiça só existe em função da existência do preso
-da tarefa -da atenção ao preso. Essa é a razão primeira e última que justifica a nossa existência, não só
funci-onal, mas enquanto trabalhadores deste segmento
so-cial. Esta condição nos coloca diante de questões
filosóficas, éticas e morais inadiáveis.
o
CBA
D IS C U R S O D AonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
~ llE C U P E R AÇ ÃODO
PRESO"
E A D IM E N S Ã O E D U C A T IV AUma questão flagrante no eixo da questão
carcerária é o dualismo que se construiu entre a
orde-nação do d iscu r so e a ordenação do r ea l no universo prisional. O pressuposto dar ecu p er a çã o d o p r eso que,
doutrinariamente, seria função social da Instituição
Penal e domina o plano discursivo é contundentemente
desmontado pela ordenação dasp r á tica s in stitu íd a s e
pelos procedimentos mais elementares verificados no
cotidiano das prisões.
Por p r á tica s in stitu íd a s, na perspectiva da
ex-clusão carcerária, entendemos o conjunto das ações
depreciativas e aviltantes, o descaso institucional, mais
ou menos generalizado, na atenção ao presidiário, a
negação de funções e de participação ao preso, os
mecanismos alienantes, a ociosidade, a rotina
esma-gadora, em suma, as formas de violência simbólica
(Bourdieu) que impingem ao preso a espoliação de
referências sociais, de perspectivas de futuro, de
es-peranças substanciais.
'" o h o m em está tr a n ca d o n u m a cela , en tr e
q u a tr o p a r ed es, sem ter o q u e fa zer . O lh a n d o
p a r a o teto , o lh a n d o p r a s g a r r a fa s d 'á g u a ,
o lh a n d o p r o ta n q u e seco , o lh a n d o p r a u m a
ca m a q u e ele já tá ca n sa d o d e b o ta r o
esp in h a ço n ela e q u e já tá tã o fin a , en co sta n
-d o n a p e-d r a ...(Geovaldo, preso).
A g en te é m u ito h u m ilh a d o , m u ito h u m ilh a
-d o , m u ito h u m ilh a -d o ... (... ) M u ito s -d eles n ã o
sa i r eg en er a d o . M a s p o r q u e n ã o sa i? P o r
-q u e ele é m a l a ten d id o , ele é m a l a ten d id o a -q u i
d en tr o . E les a leg a lo g o :
CBA
'v o c ê s sã o p r eso '. Nó s so m o s p r eso s m a s n ó s n ã o m o r r em o s, n ó sesta m o s vivo s. E esta m o s a tr á s d e se r ecu p
e-r a e-r p e-r a vo lta e-r à so cied a d e (Bento, preso).
" A p r isã o en sin a o ca r a a ser b a n d id o , m u ito
m a is. Se vo cê en tr o u co m u m g r a u sa i co m
d ez. Vo cê a p r en d e a m a ta r , a p r en d e a a ssa
l-ta r , a p r en d e a ser m in u cio so , a p r en d e a ser
fr io , a p r en d e tu d o . F a z o m estr a d o . Tu d o !
Tu d o d e r u im emsi,em si, vo cê a p r en d e. Vo cê
d esen vo lve se vo cê tiver a q u ela p a r te n a ca
-b eça p r o n ta p r a d esen vo lver . Aq u i vo cê fa z o
m estr a d o . P o r q u e u m te co n ta u m la tr o cín io
d iz co m o ele fez fr ia m en te, o u tr o ch eg a m o
s-tr a co m o m a to u a m ã e, o u s-tr o ch eg a m o ss-tr a
co m o a ssa lto u u m b a n co , o u tr o ch eg a m o str a
co m o fez u m ca r r o fo r te, o u tr o ch eg a m o str a
co m o fez u m a p a r a d a q u e ven d eu n ã o sei
q u a n to s m ilh õ es d e d r o g a p r a o u tr o E sta d o ,
o u tr o ch eg a te m o str a co m o fez u m
155,
o u tr och eg a te co n ta co m o fez u m estu p r o , o u tr o
ch eg a co n ta u m a m o r te fr ia e ca lcu lista . Sa i
o u n ã o sa i m estr a d o ? M estr a d o n o cr im e. Ali
vo cê tem d o u to r a d o e m estr a d o . To d o s o s cr
i-m es d a vid a , to d o s o s a r tig o s d o có d ig o p
e-n a l. Ali tem tu d o m istu r a d o ! (Geovane, preso).
O
p r eso n ã o tem o p o r tu n id a d e d e n a d a . E n -tã o d eixa d o jeito q u e tá . D o jeito q u e elesfa zem tá va len d o , n é? (Estênio, preso).
o
processo de alienação e embrutecimento aque é sub~etido o indivíduo encarcerado acontece em
variadas perspectivas e tende a levá-lo a destituições
profundas: direitos, razões, saberes, cidadania,
clas-se. Aos procedimentos institucionais realizados nesta
perspectiva é o que conceituaremos como r ecu r so s
secu n d á r io s d e r ep r essã o , entendendo que o r ecu r so
p r im á r io da repressão se concretiza no próprio ato do
encarceramento.
Se a prisão é r ecu r so p r im á r io da repressão
-quando retira a liberdade - não precisa ser também
r ecu r so secu n d á r io de repressão - quando intenta
des-pojar o encarcerado de dignidade. Significa que o
re-curso repressivo primário, de defesa social já se realiza
quando impede a liberdade do infrator. As práticas
repressivas que são contumazes em in stâ n cia secu n
-d á r ia , na cotidianidade do cárcere, reprodutoras da
repressão, castradoras, despersonalizadoras e
degenerativas, que afetam o presidiário com uma
intencionalidade meramente punitiva e de vingança,
são inerentes à cultura repressiva institucionalizada,
ao descumprimento da função tutelar do Estado à
pes-soa do preso e à desvirtuação da tarefa social da
Insti-tuição Penal, no interesse da (re)educação dos
presidiários. Os mecanismos repressivos secundários
nada têm a ver com a defesa social necessária. São,
pelo contrário, opostos ao princípio da seguridade
m o d u s o p e r a n d is
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
de um~sri:::::;res~~:JO'~ ..i.
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
das contra o preso e que,CBA
C :;:= ::::2 ::~G e s ;)O s s u l -1 0de razões, de sabe-'", idadania, de classe, de
- - Táticas que podem
trans-U o .!,...s: : .~ 1=.:h5.:'s_ em feras, em indivíduos r e
-De supostamente predispostos
• ão - ou até mesmo
potencial-eitos revoltados, inconformados,
zzargarados - potencialmente violentos.
Prc~;Z:]lOS nos questionar a que propósitos
ser-vem a perpetuação das práticas carcerárias nesta
prespecti a e qual o saldo social delas. O que a
socie-dade, que custeia as prisões, ganha com manutenção
do atual estado de coisas? públi
leque
reite
res.
mente
descre
-A so cied a d e fica n a ilu sã o q u e tá p r o teg id a .
P en sa q u e b a sta en ja u la r u m b ich o e p o d e se
esq u ecer d ele (p r esid iá r io , n ã o id en tifica d o ).
O nosso primeiro gesto de questionamento do
universo carcerário é de negação do conceito de " r
e-cu p er a çã o d o p r eso " . Antes de qualquer coisa,
por-que ela não corresponde ao real, ela não acontece:
o
tip o d e a ten d im en to q u e ele r eceb e lá d en -tr o n ã o éd ig n o d e u m a p esso a h u m a n a . E oco n vívio lá d en tr o m esm o . Nã o tem co m o , a s
p r isõ es estã o m u ito lo n g e d e cu m p r ir o seu
p a p el so cia l (Mulato, funcionário).
Há, porém, todo um discurso institucional que
se sustenta sobre idéia dar ecu p er a çã o . Foucault
cons-tata em que perspectiva isso acontece:
Su p o n h o q u e em to d a so cied a d e a p r o d u çã o
d o d iscu r so éa o m esm o tem p o co n tr o la d a ,
selecio n a d a , o r g a n iza d a e r ed istr ib u id a p o r cer
-to n ú m er o d e p r o ced im en to s q u e têm p o r
fu n çã o co n ju r a r seu s p o d er es e p er ig o s, d o
-m in a r seu a co n teci-m en to a lea tó r io , esq u iva r
a p esa d a e tem ível m a ter ia lid a d e. (... ) A ver
-d a -d e se -d eslo co u d o a to r itu a liza d o , efica z e
ju sto , d e en u n cia çã o , p a r a o p r ó p r io en u n
ci-a d o : p ci-a r ci-a o seu sen tid o , su ci-a fo r m ci-a , seu o b
je-to , su a r ela çã o , a su a r efer ên cia (1996:9,15).
Em uma perspectiva intelectual nem o
concei-to e nem mesmo o termo em si, aplicados a indivíduos
com autodeterminação encontram eco significativo.
Primeiro, porque r ecu p er a r não tem sustentação
teó-rica nem filosófica, em se tratando do viés
compor-tamental de sujeitos com expressão de livre arbítrio. Diante desta compreensão, façamos um exercício
sim-ples: conjugar o verbo recuperar no imperativo, ou
mesmo no indicativo. É inverossímil. Não é admissível
a idéia de se consertar um indivíduo como a um carro
avariado. E muito menos que o cárcere seja a oficina
que pudesse cumprir tal finalidade. Segundo, porque
não é plausível que a ninguém seja dada a função ou a
autoridade de r ecu p er a r in d ivíd u o s na perspectiva
moral. A tarefa em questão seria, seguramente,
edu-cacional. Mesmo assim, entendemos que, em
princí-pio, a educação é resultante de um ato de vontade, um
investimento subjetivo, pessoal e intransferível-
edu-car não pode ser uma proposição impositiva.
Reco-nhecemos, porém, que a experiência autoritária da
reclusão é, por si só, um exercício com importantes
desdobramentos pedagógicos pois os indivíduos
con-sumam aprendizados, realizam aquisições - em
qual-quer que seja a perspectiva. Terceiro, porque não
conseguimos perceber a reclusão como educativa, no
sentido específico do conceito. Sendo o cárcere o
pró-prio lo cu s de realização da exclu sã o , o espaço onde a
sociedade, certamente, reproduz mais profundamente
a função da exclusão social, contrapõe-se ao
funda-mento da educação que é ain clu sã o . Aqui desejamos
deixar um questionamento: em que interessa e que
con-tribuição as prisões, realmente dão, para a sociedade?
- Retomando à ordem discursiva, verificamos que
os chavões da r ecu p er a çã o , da r eed u ca çã o e da
r e sso c ia liza ç ã o são legitimados em pressupostos
explicitados pela própria Lei, pelo discurso
teórico-jurídico, e em um desejo social mais ou menos
(in)compreendido. Na perspectiva tutelar, cu id a r ,
a m p a r a r , d efen d er são postulações que se contrapõem
ao mérito reprodutor da marginalidade e degradantes
da condição humana que o cárcere cumpre.
Constata-mos então, uma contradição contundente: nas
dimen-sões intelectual, doutrinária e da jurisprudência os
presídios seriam instituições educacionais. Esta é a
única função que lhes dá substância moral e empresta
plena legitimidade à sua existência embora,
antagoni-camente, a tarefa educacional seja recusada pelos
movimentos da lógica repressiva institucionalizada no
fluxo de determinados planos de arguições metafísicas.
No âmbito da realidade formal, então a tese educativa
é totalmente desarticulada - embora não pudesse ser
invalidada. Simplesmente negá-Ia seria rasgar a
más-cara, despir o rei e expor frontalmente a deformidade
do corpo institucional. Seria um ato confessional da
função ideológica, de controle social e político que as
prisões, de fato, cumprem. A esta altura colocamos
outra questão: reproduzir, indefinidamente, o sta tu s
q u o
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
estabelecido seria o fim único e inevitável dasprisões? Neste caso teríamos que dar a mão à
palma-tória a Bourdieu aceitando a essência meramente
reprodutivista das instituições e, com essa atitude,
contribuindo para, em tese, perpetuá-Ias.
A nossa perspectiva mais primária (talvez
in-gênua?) foi a apropriação dos dispositivos jurídicos
postos e o aprisionamento do discurso da r ecu p er a
-çã o e da r e sso c ia liza ç ã o para pedir, como resgate, a
sua efetivação. Foucault nos dá, novamente, a pista:
É ju sta m en te a r eg r a q u e p er m ite q u e seja feita
vio lên cia à vio lên cia e q u e u m a o u tr a d o m
i-n a çã o p o ssa d o b r a r a q u eles q u e d o m in a m .
E m si m esm a s a s r eg r a s sã o va zia s, vio len
-ta s, n ã o fin a liza d a s; ela s sã o feita s p a r a ser
-vir a isto o u a q u ilo ; ela s p o d em ser b u r la d a s
a o sa b o r d a vo n ta d e d e u n s o u d e o u tr o s.
O
g r a n d e jo g o d a h istó r ia ser á d e q u em se a p o
d er a r d a s r eg r a s, d e q u em to m a r o lu g a r d a
-q u eles -q u e a s u tiliza m , d e -q u em se d isfa r ça r
p a r a p er ver tê-Ia s, u tilizá -Ia s a o in ver so e
vo ltá -Ia s co n tr a a q u eles q u e a tin h a m im p o
sto ; d e q u em , se in tr o d u zin d o n o a p a r elh o co m
-p lexo o fizer fu n cio n a r d e ta l m o d o q u e o s
d o m in a d o r es en co n tr a r -se-ã o d o m in a d o s p
e-la s su a s p r ó p r ia s r eg r a s
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
(1 9 9 5 : 2 5 ,2 6 )1 1Em outra instância pensamos que o percurso
histórico da humanidade, os avanços científico e
tecnológico, as conquistas sociais, a constante
reorientação das leis e o exercício de
aperfeiçoamen-to da democracia nos deixam espaço para avanços no
redimensionamento da função social das prisões.
Co-locar a Instituição diante da armadilha do próprio
dis-curso: a evidência de que somente cumprirá a fu n çã o
so cia l, ante da qual pretende se legitimar, quando for
capaz de cumprir a sua ta r efa ed u ca cio n a l.
Quando cogitamos de uma in ter ven çã o p ed a
-g ó -g ica pensamos em uma proposição formalmente
articulada, pois entendemos que os presídios, sendo o
que são e como são, já realizam uma experiência
pe-dagógica de dimensões insuspeitadas ao olhar comum.
Concretizam uma p ed a g o g ia m a r g in a l, enquanto
marginalizadora Há que se reconhecer, no mundo do
cárcere, a concretização de todo um rico aprendizado
humano que acontece mesmo por força das
circuns-tâncias (im)postas, correndo mais comumente na
con-tramão da história reconhecida, forjada por uma
con-tra-cultura torta e por uma categoria de resistência,
cujo universo e significados precisamos
compreen-der em profundidade. Portanto, sem perder a
perspec-tiva de pensar e constituir uma proposta pedagógica,
nos propomos tentar um mergulho na experiência já
construída. Nosso primeiro movimento vai, pois, na
direção do desvelamento das pedagogias e dos
apren-dizados que a prisão concretiza enquanto alicerça o
seu fazer na m a r g in a lid a d e p ed a g ó g ica . Esta
com-preensão nos dará, naturalmente, substrato para uma
inserção de caráter propositivo mais consistente.
CBA
o
P R E S O É U M S U J E IT O A T IV O EIN T E L E C T U A L M E N T E C A P A Z
Entendemos que o necessário
redimensiona-mento da função pedagógica do instituto carcerário
deve ser buscado no bojo da própria realidade das
pri-sões, nos movimentos de autoregulação e nos
apren-dizados já realizados no cotidiano da comunidade
carcerária e explicitados a partir do pensamento e da
fala dosa to r es in stitu cio n a is'ê envolvidos no processo
de execução da pena - presos, funcionários,
dirigen-tes e, eventualmente, outros agentes sociais com
atu-ação concreta no âmbito penitenciário (igrejas,
pastorais, voluntários, ONGs, etc.). Anterior a
qual-quer aventura de caráter propositivo ou
interven-cionista, porém, entendemos ser fundamental
sistematizar as nossas aquisições sobre a lógica do
funcionamento das prisões, sobre as experiências
sig-nificativas dos seus atores e a produção de
aprendiza-dos concretizaaprendiza-dos no universo carcerário.
A abordagem teórica que elegemos, aAn á lise
In stitu c io n a l'í pressupõe o deslindamento da exp er
i-ên cia p ed a g ó g ica já construída ante o que está in
sti-tu íd o , sedimentado na cultura institucional e a
in stitu c io n a lid a d e , enquanto possibilidade de
mudan-ças, colocada em movimento pela ação e pela
deter-minação dos sujeitos. Esta abordagem nos subsidiará
dos referenciais básicos necessários para uma
propo-sição com feições peculiares às especificidades do
universo carcerário.
O desejo mais elementar que nos move, no
al-cance metodológico, é ouvir o preso enquanto sujeito
capaz de refletir intelectualmente a sua realidade,
ela-borar conceitos e criar espaços de atuação proativa
1 1Nietzsche, a Genealogia e a História in Microfisica do Poder
1 2Por a to r e s in stitu c io n a is entendemos todos os sujeitos com atuação no universo carcerário: presos, funcionários e outros
segmen-tos com trânsito no cárcere. Por a g e n te s in stitu c io n a is nomeamos, especificamente, o segmento funcional da instituição.
1 3René Lourau, Sociólogo francês um dos criadores e principal divulgador da teoria da Análise Institucional no mundo.
qui a para a
ontextualizados a
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
I ~ : : : : ; :c:;:;. ~:I:..,;!:s"CC~e:::.s:!~~nto e das ações de todos
CS.C:=§ C:S::=:3.iJ&Z:5. Para tanto, precisamos abor-~D=-~2S capazes de dar conta de fenômenos
- e que possibilite compreendê-l os
origens, de seus mecanismos e de
cescocramentos. isto é, dos seus ecos
significa-tivo ~ - cantes. A armadura autoritária
institucio-n ' em permitido o desenvolvimento de conteúdos
disciplinares engessados e estanques, distantes do
es-paço e do tempo sociais, que inviabilizam a
compre-ensão dos saberes produzidos no universo carecerário.
Filiamos a nossa proposta à vertente da
pesqui-sa que busca compreender
onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a c a r a c te r iza ç ã o d e a titu-d e s, d e fo r m a s d e r e p r e se n ta ç õ e s e d e m e m ó r ia s
c o le tiva s lo c a is n o se n tid o d e c la r ific a r e c o m p r e e n
-d e r a s m e n ta li-d a -d e s so c ia is (Vidigal, 1996: 13).
Esta opção nos conduz a um aporte contextual
embora o nosso interesse investigativo inicial sobre o
universo carcerário seja centrado, em vários recortes,
no indivíduo, na compreensão dos mecanisIl!0s
cole-ti vos a parcole-tir das representações e das formas corno
os sujeitos (presos e funcionários) constroem suas
re-lações e os conhecimentos sobre o seu mundo. Os
fa-zeres cotidianos dos indivíduos e da coletividade se
explicitam através da fala dos seus integrantes e das
formas onde sua organização se torna visível, racional
e reportável, sendo a reflexibilidade um instrumento
singular da ação. Em um movimento de maior
alcan-ce da totalidade, contudo, pretendemos extrapolar o
âmbito das manifestações individuais e comunitárias
para alcançarmos as fo r m a s in stitu c io n a is e as
tr a n sve r sa lid a d e s da instituição penitenciária com
outras instituições e outros segmentos da sociedade e,
por extensão ou consequência, com a vida dos
indivíduos.
A nossa ati vidade primária, já no âmbito da
pes-quisa, foi a o b se r va ç ã o p a r tic ip a n te , corno primeira
inferência de compreensão da ló g ic a in stitu c io n a l e
da gestuação dos atores. A partir deste movimento de
inserção e contextualização no universo carcerário
fornos definindo, passo a passo, os procedimentos
posteriores subsidiados pela elaboração de um D iá r io
d e P e sq u isa . No âmbito das abordagens
essencialmen-te instrumentais elegemos a e n tr e vista corno recurso
b á sic o pelas suas possibilidades interativa e dialogal.
Captar as nuances do pensamento dos sujeitos é
fun-damental para os nossos propósitos de abordagem da
realidade carcerária, sendo a oralidade o instrumento
que consideramos que nos oferece melhores
possibi-lidades na consecução deste objetivo. Ao longo da
nossa trajetória corno ator institucional'" detectamos
na oralidade um instrumento fundamental de
percepção e apreensão do universo do preso.
Credita-mos aos muitos diálogos mantidos com presidiários e
a agentes institucionais, às conversas partilhadas ou
entreouvidas, às falas confessionais, aos não ditos e
às entrelinhas dos discursos intencionais ou desatentos,
talvez a parte mais significativa das nossas aquisições
sobre o universo carcerário. O terceiro instrumento
de referência da pesquisa são os Re la tó r io s d e O c o r
-r ê n c ia registrados diariamente pela Instituição. 1 5
As-sim, nos foi possível cruzar informações fazendo urna
triangulação a partir dos registros oficiais
(Relatóri-os), do pensamento dos atores (entrevistas e outros
relatos orais) e da nossa perspectiva analítica
(obser-vação e Diário de Campo).
Urna questão apresentada como problema na
utilização da oralidade, enquanto instrumento de
pes-quisa, é a sua vocação à subjetividade, a um tom
intjmista e pessoal quase inevitável. No nosso caso,
porém, em que pretendemos penetrar no âmago do
pensamento do preso, do seu universo social e da
ló-gica institucional, entendemos que o conteúdo das
falas, as elaborações mentais, as rememorações dos
indivíduos são indissociáveis da tradição do grupo,
não existem isolada ou autonomamente mas
constro-em-se em função de quadros comuns de referência da
coletividade e de idéias partilhadas. A cultura
institucional e as formas de organização da
comuni-dade dão substrato às performances individualizáveis
e são, invariavelmente, referência para as reflexões
pontuadas na fala, nas atitudes e na própria história
dos sujeitos coletivos.
Em outra instância, a Análise Institucional,
as-sume a subjetividade enquanto pressuposto teórico
-referencial capaz de evidenciar as im p lic a ç õ e s dos
indivíduos - inclusive as do pesquisador - com o terna
em discussão e os n ã o d ito s do discurso corrente. En-fim: quando os sujeitos dizem de si e de suas vidas,
dizem muito também das instituições a que estão
re-lacionados. O texto emergente de suas falas é
1 4Trabalhamos no Sistema Penal Cearense desde 1973, quando ingressamos no Instituto Penal Paulo Sarasate corno Agente
Peniten-ciário, função que exercemos por 12 anos percorrendo outras unidades penais. Passamos também, corno técnico, por setores de gerenciamento e planejamento.
1 5A Guarda Penitenciária produz, diariamente, um D iá r io d e O c o r r ê n c ia s.
u m co n vite
CBA
àr ecu p er a çã o d a in o cên cia d a ex-p er iên cia : a exp er iên cia en ten d id a co mo u maexp ed içã o em q u e se p o d e escu ta r o 'in a u d
i-to ' e em q u e se p o d e ler o n ã o -lid o , isi-to é ,u m co n vite p a r a se r o mp er co m o s sistema s d e
ed u ca çã o q u e d ã o o mu n d o já in ter p r eta d o ,
já co n fig u r a d o d e u ma d eter min a d a ma n eir a ,
já lid o e, p o r ta n to , ileg ível
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(Larossa, 1998:12).A oralidade tem, ainda, conotações
particula-res que reputamos de efeitos psicológicos e
sublimi-nares, especialmente no universo carçerário, onde os
sujeitos não são escutados de verdade, só se fazendo
ouvir, de forma mais significativa, na irreverência da
indisciplina e no grito das rebeliões. A formalização
de uma entrevista, a solicitação de um depoimento,
de um relato, colocam o sujeito no centro do palco:
alguém cujo saber é importante e a quem se pede a
opinião e o conceito. Alguém que conta a sua história
(protagonista), alguém que testemunhou, alguém que
detém uma versão dos fatos que não pôde ser
conta-da, alguém cuja expressão interessa e de quem a
ex-periência é agora solicitada. De outro aspecto,
existindo nas prisões um significativo número de
anal-fabetos, as técnicas orais permitem o livre acesso ,a
este segmento de indivíduos.
Porém mais do que interessados nas falas e nos
fatos, queremos comprender o processo, como os
su-jeitos se inserem e se movimentam dentro dele.
Tere-sa Haguette enfatiza:
Éfu n d a men ta l q u e a s q u estõ es so b r e
d eter min a d o s p r o b lema s so cia is co mo d elin
-q u ên cia , cr ime, d r o g a s, p r o stitu içã o seja m
le-va n ta d o s d o p o n to d e vista d o d elin q u en te
p a r a q u e a ssim co n h eça mo s a s su a s tá tica s,
su p o siçõ es, seu mu n d o e o s co n str a n g imen to s
e a s p r essõ es a q u e estã o su jeito s (1 9 8 7 :8 2 ).
À GUISA DE CONCLUSÃO
A sociedade se transforma,
imperceptivelmen-te para muitos, a cada dia e a cada dia uma nova
pers-pectiva começa a se desenhar no horizonte da
humanidade. Muros - inclusive o de Berlim - caem,
viram escombros da história. É movido por essa
con-vicção que vislumbro a possibilidade, e possibilidade
real, de se investir em uma ação sólida e de profunda
transformação da atual realidade carcerária. Estamos
profundamente convencidos de que a significação
sociológica do cárcere, mesmo dentro de uma
socie-dade de classes, é passiva de evolução e de
supera-ções, é cheia de possibilidades para além, e aquém,
das determinações macro-sociais e econômicas.
Nes-ta perspectiva, reafirmamos uma necessidade
pragmá-tica, uma vontade e uma convicção que nos moveu
desde o início e que caracteriza o primeiro gesto do
nosso projeto de pesquisa.
Não acreditamos em P r o jeto s P ed a g ó g ico s
-entendendo-se por Projeto Pedagógico algo diferente
de Projeto Escolar - direcionados unilateralmente ao
preso. Projetos escolares, indispensáveis, como
alfa-betização, ensino supletivo, escolarização, cursos
profissionalizantes, atividades ocupacionais e outras
propostas do gênero, serão os primeiros e mais
urgentes aspectos da questão. P r o jeto s P ed a g ó g ico s
consubstanciam ações mais amplas, ações
integra-lizadoras que alcancem também os outros setores de
assistência ao preso e atividades correlatas, das
uni-dades penitenciárias,
SRQPONMLKJIHGFEDCBA
1 6ou seja: serviços deatendimen-to à saúde, serviço jurídico, atendimento escolar,
serviço social, atividades religiosas, artísticas,
cultu-rais, esportivas e os serviços em geral. Enfim, todas
as atividades e iniciativas da gestão administrativa e
institucional orientadas por uma Açã o mais abrangente
na perspectiva de uma orientação ressocializante ao
presidiário. A mesma Açã o estenderia esforços nos
territórios do hemisfério encarcerado, não no sentido
da cooptação nem da absorção dos movimentos da
coletividade encarcerada, mas da aproximação, da
escuta, da vaiorização, do diálogo, do
reconhecimen-to. Do estabelecimento dos deveres e direitos mas,
tam-bém, da parceria, da pesquisa, da percepção dos
saberes e dos valores individuais, enfim, da
co-parti-cipação e do reconhecimento do preso enquanto
su-jeito social ativo, intelectualmente capaz e espírito em
evolução.
A cultura da relação institucional com o preso
é a cultura da superioridade. Percebemos o preso como
alguém inferior, indigno, indesejável ou como
coita-do, pobre diabo que precisa da nossa comiseração.
Não admitimos encarar o preso como sujeito ativo na
construção do cotidiano carcerário. O exercício
1 6O Sistema Penal Cearense, compõe-se de 132 unidades carcerárias das quais 8 são o que convencionamos denominar de u n id a d e s e sp e c ia liza d a s: um Presídio Geral (Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira). uma Penitenciária masculina (Instituto Penal Paulo Sarasate), um Presídio Feminino (Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa). um Hospital-Prisão (Otávio Lobo). um Manicômio Judiciário (Instituto Psiquiátrico Gov. Stênio Gomes). uma Casa de Albergados. duas Colônias Penais (Amanari e Santana do Cariri) e 124 Cadeias Públicas. segundo o Censo Penitenciário Estadual de 1995 .