UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
LIENE NUNES SADDI
DESINVENÇÕES COLETIVAS: VIDEOCLIPES MUSICAIS EM CURADORIAS, CONCAVIDADES E POTÊNCIAS.
CAMPINAS 2016
LIENE NUNES SADDI DESINVENÇÕES COLETIVAS:
videoclipes musicais em curadorias, concavidades e potências.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais.
ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA
ALUNA LIENE NUNES SADDI, E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA.
CAMPINAS 2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2013/02497-0
Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180
Saddi, Liene Nunes,
Sa15d SadDesinvenções coletivas : videoclipes musicais em curadorias,
concavidades e potências / Liene Nunes Saddi. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.
SadOrientador: José Eduardo Ribeiro de Paiva.
SadTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.
Sad1. Videoclipe. 2. Cultura visual. 3. Corporeidade. I. Paiva, José Eduardo Ribeiro de,1959-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Collective inventions : music videos in curatorships, concavities and potentialities
Palavras-chave em inglês: Music video
Visual culture Corporealitie
Área de concentração: Artes Visuais Titulação: Doutora em Artes Visuais Banca examinadora:
José Eduardo Ribeiro de Paiva [Orientador] Mauricius Martins Farina
Edson do Prado Pfutzenreuter Almir Antonio Rosa
João Carlos Massarolo Data de defesa: 10-05-2016
Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais
iceberg
Uma poesia ártica, claro, é isso que desejo.
Uma prática pálida, três versos de gelo.
Uma frase-superfície onde vida-frase alguma
não seja mais possível. Frase, não. Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo, um piscar do espírito, a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?). Sim, inverno, estamos vivos.
(Paulo Leminski)
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa – FAPESP, pelo apoio financeiro através da Bolsa de Doutorado concedida para a realização deste trabalho.
Ao professor Eduardo Paiva, pelo cuidado na orientação deste trabalho e por ser constante inspiração, como exemplo de que a integração entre Universidade e sociedade parte das ideias, mas só se concretiza de maneira coerente através da condução ética no exercício das ações.
Aos docentes envolvidos na criação do curso de Graduação em Midialogia na Unicamp em 2004, pela aposta no potencial interdisciplinar deste campo.
Ao professor Mauricius Farina, pelas extensas contribuições em disciplinas e na banca de qualificação deste trabalho.
Ao professor Artur Matuck, pela motivação para a realização de uma tradução poética a partir desta discussão.
À Juliana Braga, do Sesc SP, pelo auxílio no primeiro contato com Barbara London, que se tornou contribuição inestimável para esta pesquisa.
À professora Marta Strambi, pela sensibilidade e confiança.
À professora Iara Lis Schiavinatto, pelas perspectivas sobre a alteridade.
À Cristina Rodrigues Franciscato, figura inspiradora em sua paixão pelos mitos. Ao Fernando de Assis Rodrigues e ao Fernando Maia, pela programação da instalação que é desdobramento desta pesquisa.
Aos meus alunos e aos colegas nas Faculdades Integradas de Bauru, pelas trocas de repertórios que, com certeza, reverberam por aqui.
Aos colegas e amigos da Midialogia, pelas trocas que ainda se fazem presentes. Aos meus pais, Edinéia e Paulo, por todo o apoio incondicional desde sempre. À Vivian e ao Alexandre, pelo amor e acolhimento em Campinas.
À Verena e ao Antonio, pela amizade inestimável, e por me ensinarem tanto.
A todos os amigos e familiares, pelos encontros, trocas, conversas e vínculos de afeto. Pela compreensão das distâncias e dos silêncios.
Ao Fernando Perri, pela respiração.
À Merene e à Lívia, pelos encontros com o corpo. À Regina, pelas descobertas no caminho.
Ao André, meu companheiro, por tudo, mais uma vez.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal discutir itinerários de circulação e apropriação de videoclipes musicais na contemporaneidade, em especial as práticas curatoriais que se detiveram desde os anos 1980 sobre estes objetos da cultura visual, além de suas trocas com procedimentos da videoarte e da arte contemporânea. Para isto, foram revisadas as categorizações até então direcionadas aos videoclipes, e analisados catálogos de mostras e exposições que tiveram nestes objetos seu foco. Em seguida, um exercício de curadoria pessoal se coloca como possibilidade para mergulhar nas poéticas e processos expressivos de um conjunto de vídeos elencados para análise.
Palavras-chave: videoclipes;; curadoria;; cultura visual;; corporeidades;; Estudos Visuais.
ABSTRACT
The objective of this thesis is to discuss music video itineraries in contemporaneity, its circulation and appropriation in curatorial practices, as well as its exchanges with videoart and contemporary art works. Thereunto, we present conceptual reviews in music video categorizations and also an analysis on exhibition cathalogs that have focused on this kind of objects. Then, a personal curatorial exercise allows the researcher to dive in poetic and expressive processes in order to assay a set of listed works.
Keywords: music videos;; curatorial studies;; visual culture;; corporealities;; Visual Studies.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 11
Arqueologias pessoais ... 11
Videoclipe, arquivo e o circuito músicos-artistas-museus ... 16
Retorno dos espectros: algumas hipóteses ... 20
Benjamin e a experiência moderna: choque e anestesia ... 23
Objetivos e Capítulos ... 26
1 O VIDEOCLIPE, ENQUANTO POTÊNCIA, É JOGO? ... 29
1.1 Ontologias na arte e no método científico ... 30
1.2 O clipe entre mitos ... 38
1.3 Arte, corpo, tecnologia: o videoclipe como estado ... 53
1.4 O lúdico como potência ... 57
1.5 Observações sobre o corpus ... 61
2 CICLOS DE APROPRIAÇÃO E A FIGURA DO CURADOR ... 63
2.1 Colando ideologias ... 63
2.2 O museu e o curador entre eclipses, ascensões, gritos e silêncios ... 68
3 O VIDEOCLIPE, ENQUANTO CIRCUITO, É PRESENÇA? ... 77
3.1 A curadoria do MoMA entre a indústria e as ‘margens’ do videoclipe ... 77
3.2 A curadoria do LBMA e a problematização da cultura visual ... 89
3.3 O clipe ressuscitado no dinamograma digital: as mostras dos anos 2000 ... 99
3.4 A dobra do star system: as retrospectivas e as instalações ... 108
3.5 Emaranhados entre o ‘eu’ e o ‘outro’ ... 115
4 O VÍDEO E A CARNE: ALGUMAS APROXIMAÇÕES ... 119
4.1 Da morte, liberação e resíduo ... 120
4.2 Anestética e os eventos encarnados ... 132
5 O VIDEOCLIPE, ENQUANTO NINFA, NOS GRITA? ... 149
5.1 Varðeldur [fogueiras]: bruxas, sereias e a convexidade contorcida ... 151
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 175
BIBLIOGRAFIA ... 180
ANEXOS ... 187
APÊNDICE: INSTALAÇÃO “QUANTA” ... 235
INTRODUÇÃO
“Para bien y para mal, el escritor verdadero escribe sobre la realidad que ha sufrido y mamado, es decir, sobre la patria;; aunque a veces parezca hacerlo sobre historias lejanas en el tiempo y en el espacio. Creo que Baudelaire dijo que la patria es la infancia. Y me parece difícil escribir algo profundo que no esté unido de una manera abierta o enmarañada a la infancia. […] El escritor de nuestro tiempo deve ahondar en la realidad. Y si viaja deve ser para ahondar, paradojalmente, en el lugar y en los seres de su próprio rincón” (Ernesto Sabato).
Arqueologias pessoais
Em entrevista a Juliette Cerf em 2014, a respeito da arqueologia na filosofia e no campo do pensamento, Giorgio Agamben comenta, influenciado por Foucault, que a noção de origem não pode ser datada ou especificada em cronologias: “é uma força que continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com que o Big Bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e continua em expansão até hoje”.
Assim, como todo o pensamento, intuição e conhecimento, também são as pesquisas. Como esta que se apresenta, uma força em constante expansão se materializa a partir de determinados encontros e pontos de interesse, e que desde já se coloca como uma opção entre tantas das possibilidades de concretude.
Em meados dos anos 1990, a televisão a cabo chegava ao interior de São Paulo. Com ela, as vinhetas, videoclipes, grafismos, fragmentos, o tempo da MTV – a Music Television. Também com ela, um incisivo infiltramento em parte do tempo livre constituinte da pré-adolescência e adolescência de muitos em minha geração – uso do tempo livre que se refletiu posteriormente nas orientações profissionais e acadêmicas de muitos com quem convivi e que vim a conhecer. Era, inegavelmente, um tempo livre carregado de uma penetração cultural especialmente norte-americana e europeia, mas em que se colocavam também, no fluxo diário, uma série de propostas de experimentações poéticas 'infiltradas', com eventuais incursões da produção nacional: mesmo que as propostas de grade da emissora mudassem de
acordo com o horário ou público previsto, em um conjunto de lembranças, é possível compor um mosaico pessoal em que se cruzam visualidades/sonoridades de Chico Science & Nação Zumbi, Madonna, Otto, Björk, Racionais MC's, The Corrs, David Bowie, Alanis Morissette, Michael Jackson, Radiohead, Lauryn Hill, Daft Punk, André Abujamra, Marisa Monte, R.E.M., Faith no More, Arnaldo Antunes, Sinead O'Connor, entre inúmeros outros.
Um canal de coexistências virtuais de fluxos, incrustações e simultaneidades de elementos no espaço retangular do ecrã, talvez antecipando o que viriam a ser a inconstância e liquidez dos layers e camadas em tempos de narrativas enredadas1. Curiosamente, no exercício de organizar a própria narrativa a partir da memória – se é que isto é de fato possível -, além das edições dos videoclipes, em suas cores estridentes, batidas musicais e seus cortes inconstantes, tenho como um dos registros mais intensos, aos dez anos de idade, a ansiedade em aguardar o momento do intervalo a cada doze minutos de blocos programáticos, quando eram exibidas as vinhetas de trinta segundos integrantes da série “Garoto Enxaqueca” (Migraine Boy, criado pelo cartunista norte-americano Greg Fiering). Uma animação de traço simples em fundo branco, composta por um único plano, sem cortes, em que este garoto irradia raios de sua cabeça, simbolizando sua essência ranzinza, e em que sua interação com a vizinhança ocorre laconicamente, em pensamentos ácidos, cínicos ou desconstrutivos sobre a representação e a realidade. Os diálogos são parte desta atmosfera:
“- Olhe, eu sou um ninja, Garoto Enxaqueca! Eu tenho meu próprio nunchaku [arma] e a minha estrela de aço.
- Você não é um ninja! Você é só um garoto vestido de ninja. - (Silêncio).
- (Silêncio).
(Vizinho tira o capuz e fica só de macacão preto). - Olhe, agora eu sou um poeta, Garoto Enxaqueca!”
1 Refletidas também na potencialização da percepção sobre as próprias múltiplas camadas da
existência, exploradas em filmes como “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Michel Gondry, 2004), “Inception” (Christopher Nolan, 2010) e “Her” (Spike Jonze, 2014), diretores que tiveram passagens ativas na produção de videoclipes desde os anos 80 e, posteriormente, incursões em conteúdos digitais.
O Garoto Enxaqueca (1996), muitas décadas depois de René Magritte (1928-29), em sua revolta pessoal com a traição da representação.
“Garoto Enxaqueca” foi exibido durante um ano na emissora, em 1996, em intervalos espalhados por toda a grade de programação, e é um dos registros mais fortes que saltam ao consciente vez ou outra, no exercício pessoal de retomar o contato com os fragmentos audiovisuais da infância. Curiosamente, esta é uma das poucas peças – em meio à programação que até então era majoritariamente de caráter musical – em que o tempo do silêncio é o mais enfatizado, com pausas e um ritmo de diálogo que denuncia o estranhamento entre os interlocutores. Sua pontual e repetida inserção ao longo do dia, assim como seu posterior desaparecimento da emissora – e um novo contato apenas décadas depois, após a disponibilização da versão digitalizada deste arquivo no site YouTube -, falam de operações como a do rastro deixado na memória pelas imagens técnicas que se repetem por um tempo, que se ausentam e que reaparecem em diferentes temporalidades. E falam de um marco temporal específico, em que uma orientação de programação alternava pontualmente, mas ritmadamente, insólitas vinhetas de intervalo a insólitas peças audiovisuais.
O videoclipe musical, enquanto conteúdo-base componente da emissora MTV, desde sua inauguração nos Estados Unidos em 1981 e no Brasil em 19902, despertou
2 A MTV - Music Television, subsidiária da Viacom Inc., foi inaugurada nos Estados Unidos com sua
primeira transmissão em 1981, sendo o primeiro canal televisivo dedicado à apresentação predominante do formato videoclipe. Na década anterior, registros em emissoras que apresentavam programas avulsos com clipes musicais são localizados em países como a Nova Zelândia (PopClips) e a Inglaterra (Top of the Pops). No Brasil, o músico Billy Bond dirigia o programa BB Video Clip na TV Record no início dos anos 80, tendo depois, com sua produtora BB Vídeo, dirigido um grande número de videoclipes para bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Biquini Cavadão, entre
profícuo interesse de diferentes campos acadêmicos e instituições, e por muitos passou a ser entendido como o grande propulsor das experimentações no audiovisual industrial contemporâneo3, assim como a representação 'pós-moderna'4 acessível à [parte da] juventude, mesmo com a crítica ciente de que a reprodução de determinados estereótipos e contextos geopolíticos esteve desde então ligada às produções que circulavam na emissora mais repetidamente. Em grande parte dos videoclipes circulantes, financiados por gravadoras e distribuidoras da indústria fonográfica, autores identificaram representações do “fluxo capitalista” e da cultura econômica do dumping (WEIBEL, 1986), além da perpetuação de “oposições binárias” dominantes, especialmente na representação de gêneros (KAPLAN, 1993). Diante de um complexo e exponencialmente crescente universo de objetos produzidos ano a ano, parte dos olhares acadêmicos no campo das poéticas buscou identificar elementos transgressivos de videoclipes pontuais em meio à totalidade de objetos circulantes, tendo como contraponto outras abordagens em Comunicação e Semiótica que trouxeram ao seu escopo de análise também as obras pertencentes às grandes escalas de investimentos, buscando categorizações conceituais que o assumissem enquanto ‘gênero’ conjuntural – neste sentido, Soares (2004) propôs uma categorização do videoclipe junto aos conceitos de hibridismo, trans-temporalidade e neobarroco, este último em diálogo com Calabrese (1994) no desejo de encontrar o 'ar' de seu tempo.
Além das aproximações ou afastamentos entre autores na identificação de como compor um corpus de videoclipes para análise estrutural / poética / mercadológica / social (e se esse corpus deveria ser analisado em peças isoladas ou em meio ao fluxo da televisão), correram também nas últimas décadas discussões do que se constituiria ou não como uma gênese do videoclipe5, empenho que teceu
outros;; na TV Cultura, Kid Vinil apresentava o programa Som Pop, que também anteveio a inauguração da filiada MTV Brasil. Uma extensa investigação sobre a autoria no videoclipe brasileiro e sobre a programação das emissoras que exibiam videoclipes em rede nacional se encontra na Tese de Doutorado de Guilherme Bryan, intitulada “A autoria no videoclipe brasileiro: estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e Mauricio Eça” (ECA/USP, 2011).
3 Em “Unruly Media: YouTube, Music Video and the New Digital Cinema” (2013), Carol Vernallis dedica
alguns capítulos para a discussão das influências dos diretores da 'geração MTV' na visualidade do cinema contemporâneo.
4 Discussões generalizadas ou críticas sobre o videoclipe atrelado ao termo 'pós-moderno' são
encontradas em Weibel (1986), Kaplan (1993,), Machado (2000), Soares (2004) e outros.
5 Inclusive no Brasil, a exemplo da discussão de uma possível arqueologia do videoclipe a partir dos
trabalhos do diretor Roberto Farias, que dirigiu e editou os longa-metragens da trilogia de Roberto Carlos (“Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, 1968;; “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa”, 1968;; “Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora”, 1971) utilizando as propostas de direção e
alguns nortes, mas não conclusões, dado o caráter sui generis com que este objeto se apresenta e circula em frentes múltiplas, e dado o próprio entendimento de que as 'gêneses' só podem ser atreladas a historicidades e mentalidades específicas como fluxos de relações. Mas de maneira geral, no que se levantou como pontos de encontro entre o videoclipe e possíveis influências ou fluxos de trocas, é possível elencar: os experimentos em Música Visual (Visual Music) realizados ao longo do século XX por artistas como Oskar Fischinger, Mary Ellen Bute, Hans Richter, John e James Whitney;; as vanguardas interdisciplinares europeias da primeira metade do século XX6;; as máquinas Panoram Soundies e Scopitones em espaços de consumo dos Estados Unidos, Inglaterra e França, assim como a relação destas videojukeboxes com o lançamento de artistas pela indústria fonográfica;; as quebras de raccords da Nouvelle Vague;; as sintaxes dos longa-metragens musicais hollywoodianos e do comentado longa “A Hard Day's Night” (Richard Lester, 1964);; o movimento da performance art e sua integração com tempo, espaço e corporeidades nas artes visuais, em especial nas experimentações que se deram através do uso do vídeo.
Um desafio recorrente nos recortes apresentados: a busca por se tecer relações do objeto em si com seus respectivos dispositivos7 de produção e circulação. No Brasil, o olhar pioneiro de Arlindo Machado (1995;; 2000) analisou modos de produção de videoclipes, seus efeitos visuais, softwares e usos poéticos empregados, e possibilitou que hoje existam condições de observar de que maneiras o videoclipe se apresentava nos anos 80 e 90, e como o olhar acadêmico de então atuava na
montagem similares às dos chamados filmes promocionais dos Beatles dirigidos por Richard Lester (os longas "A Hard Day's Night" de 1964, e "Help", de 1965), e que contêm possíveis elementos narrativos utilizados posteriormente em parte dos videoclipes musicais.
6 Neste sentido, Peter Weibel, artista multimídia, curador e pesquisador austríaco, é provavelmente o
primeiro teórico a se debruçar mais detidamente em uma série de artigos sobre o videoclipe publicados entre 1986 e 1987, procurando identificar o léxico deste objeto, suas relações com a economia e o tempo livre [Freizeit], e catalogar alguns dos artistas do videoclipe de sua época, chamados por ele de videomúsicos [Videomusiker], que seriam os novos tipos de artista da contemporaneidade [Künstlertypus] (1986). Em “Musik-Videos: von Vaudeville zu Videoville” (1986), além das referências da Música Visual [Visuelle Musik], cita como parte das 'raízes' [Wurzeln] do videoclipe musical, os filmes “Um Cão Andaluz” (Luis Buñuel, 1929), “O sangue de um poeta” (Jean Cocteau, 1930-32), “Adebar” (Peter Kubelka, 1957), a colagem “A Movie” (Bruce Connor, 1958), “Scorpio Rising” (Kenneth Anger, 1963) e “Flaming Creatures” (Jack Smith, 1963).
7 O termo dispositivo será empregado neste trabalho se direcionando ao campo do vídeo, conforme
proposto por Phillipe Dubois (2004), não tendo relação com a conceitualização sobre os mecanismos sociais e estruturas institucionais, administrativas e físicas, presente nas obras de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Para Dubois, o vídeo se encontra mais como estado do que como produto, por carregar em sua existência, simultaneamente, suas formas de produção, montagem e exibição.
legitimação ou não de determinados grupos de diretores e produções. Propõe-se aqui que elencar ou não um objeto para o debate reflete de certa forma um posicionamento curatorial, da mesma maneira que o fazem as instituições de arte. E não se trata de constituir uma valoração positiva ou negativa sobre esta prática, mas de refletir sobre quais possíveis marcos deslocam a apreensão de um objeto da Cultura Visual para o campo das artes ou para o campo acadêmico. Quais as 'verdades' estabelecidas em cada relação. E quais critérios de organização, desses diagnosticados por Borges como reflexos da impossibilidade do homem de penetrar o esquema divino do universo, instituem determinados videoclipes enquanto arquivo provisório dos esquemas humanos, enquanto produção arquivada.
Videoclipe, arquivos e o circuito músicos-artistas-museus
É interessante observar que esta multiplicidade de recortes acadêmicos acabou pontualmente caminhando ao lado de uma intenção das instituições de arte, centros e museus em exibir, circular ou mesmo colecionar estas peças audiovisuais em países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Austrália, entre outros. Apesar de olhares mais escassos na América Latina8, no Brasil também há registros de
8 Que em muito se constitui pelas características específicas da indústria fonográfica e da televisão
brasileira, com parte dos videoclipes produzidos ou por diretores da área dramatúrgica, como Cyro del Nero (trabalhos com Cazuza) e Nilton Travesso (“América do Sul”, Ney Matogrosso) na programação da Rede Globo nos anos 70, ou pela maior presença de diretores mais ligados à publicidade e ao cinema comercial em clipes da programação da MTV nos anos 90, como Andrucha Waddington (“Ela Disse Adeus”, Paralamas do Sucesso), Raul Machado (“Maracatu Atômico”, Chico Science e Nação Zumbi), entre outros. No caso da produção de vídeos para a cena do rock underground nos anos 80, espaços físicos como o Carbono 14 em São Paulo possibilitavam estas exibições para nichos específicos. E é claro, não se trata de fixar 'gavetas' ou 'seções' de trabalhos para estes realizadores, uma vez que suas obras possuem grande interdisciplinariedade e pluralidade de propostas comerciais/artísticas, mas de tentar observar que há poucas exceções de quem, mesmo com incursões na publicidade, trabalhou ou trabalha ativamente tanto com videoarte e instalações multimídia no Brasil quanto com a produção de videoclipes, casos de Tadeu Jungle (“Silêncio”, Arnaldo Antunes), Sandra Kogut (“Manuel”, Ed Motta) e Lucas Bambozzi (“feitoamãos”, FAQ). Possivelmente, por este mesmo motivo, não foram localizadas outras incursões de videoclipes nacionais em mostras ou exibições de arte contemporânea, com exceção do levantamento realizado em visita à retrospectiva de 30 anos da Videobrasil em janeiro de 2014, no Sesc Pompeia, evento em que pudemos levantar (a partir dos arquivos disponibilizados) os seguintes videoclipes exibidos por mostra: II Videobrasil – “Eletricidade” (1984) – direção de Alfredo Nagib para música de Kodiak Bachine;; III Videobrasil – “Pulsar” (1985) – dir. Paulo de Tarso para canto de Caetano Veloso sobre poema de Augusto de Campos;; VII Videobrasil – “Manuel” (1989) – Dir. de Sandra Kogut para música de Ed Motta;; VIII Videobrasil – “Eu Vi” (1990) – Dir. de Anna Muylaert e Márcia Carvalho para música de Os Mulheres Negras;; XII Videobrasil – “Os Cegos do Castelo” (1997) – Dir. de Marcelo Campos e Rogério Vilela para música do grupo Titãs;; XIV Videobrasil – “Anatawa Ikaga Desuka, How are You, como vai?” (2002) – dir. de Almir Almas;; XV Videobrasil – “Kátia Flávia, a Godiva de Irajá” (1987) – dir. de Roberto Berliner e Sandra Kogut para música de Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros. Há, ainda, outros trabalhos de caráter híbrido, como
videoclipes nacionais integrando as primeiras edições do Festival Videobrasil, assim como a itinerância da exposição “Spectacle: Music Video”, realizada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) em 2012/2013, montada originalmente para o Contemporary Arts Center de Cincinatti (Ohio-EUA).
No caso dos museus de arte, o The Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, é um dos espaços que vem, com mais força a partir dos anos 19709, colocando- se com mais presença junto a objetos e produções da chamada 'cultura popular'10. A exposição “The Arts for Television” (1989), por exemplo, é uma das primeiras que busca discutir a televisão enquanto campo de expressividade contemporâneo. Objetos como filmes, videoclipes e videogames passaram ora a compor mostras, ora a integrar as coleções oficiais da instituição – caso, por exemplo, dos videoclipes de David Bowie, doados em sua integralidade aos arquivos do MoMA em 2008, ou da aquisição recente na coleção do museu, em 2013, do aplicativo para Ipad “Biophilia”, desenvolvido pela cantora Björk para seu álbum musical homônimo. É um trânsito intenso de obras e artistas entre circuitos artísticos/comunicacionais – antes mais identificáveis em experiências de performance, televisão, Arte Postal e circuitos telemáticos em geral – hoje espalhados com mais penetrabilidade mútua entre a indústria fonográfica e as artes visuais em pontos físicos e virtuais.
Ao nos aproximarmos dos objetos específicos que estão nestes eventos ou coleções institucionais, nota-se que esta relação entre segmentos da música popular e as artes visuais já se colocam nos anos 60 e 7011. Há parcerias na criação de vídeos (como entre Andy Warhol e a banda Velvet Underground, Nam June Paik e Laurie Anderson, Zbigniew Rybczynski e John Lennon, David Byrne e Brian Eno), situações em que os músicos são os próprios diretores ou videoartistas (como Laurie Anderson e David Bowie) e situações que o trânsito interdisciplinar se coloca em outros objetos,
o documentário “Um Vídeo da Lata” (1989) de Daniel Brazil, onde a música se coloca como elemento essencial para a construção da narrativa.
9 Especialmente através da figura curatorial de Barbara London, sobre a qual se tratará mais
detidamente ao longo do texto, à frente do Departamento de Mídia e Performance do MoMA por quatro décadas.
10 Presença que se faz tanto pelo Departamento de Pintura e Escultura quanto pelo departamento de
mídias e artes performáticas do MoMA (The Department of Media and Performance Art) assim como pelo Departamento de Design e Publicidade (The Department of Advertising and Graphic Design), o qual tem uma maior autonomia na apreensão de objetos das chamadas 'artes aplicadas' para o interior da instituição, como videogames, móveis, peças de arquitetura, discos musicais e armas.
11 Já que não estamos considerando como parceria, por exemplo, as produções e experimentos em
Música Visual dos anos 1920 aos anos 1950, uma vez que os diretores utilizavam como base músicas previamente concebidas, caso do curta “An optical Poem” (1938), de Oskar Fischinger sobre a Rapsódia Húngara n. 2 de Liszt (1847).
caso de pôsters e capas de discos, como a colagem no álbum “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” (1967, Peter Black para os Beatles) e a também colagem para a capa de “Legal” (1970, Hélio Oiticica12 para Gal Costa). Uma das possíveis observações sobre essas aproximações é feita por Arlindo Machado:
Na verdade, sempre acaba acontecendo uma atração natural entre videastas e músicos que buscam um trabalho menos esclerosado e que se dispõem a colocar entre parênteses os esquemas adquiridos à custa do hábito, da repetição ou da imposição do mercado (MACHADO, 2000, p. 178).
Capas de “Legal” (1970) e “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” (1967).
12 De fato, parece haver uma recorrente admiração entre artistas visuais e músicos, além de
eventualmente se notar um senso de 'concretude' neste tipo de produção integrado à indústria cultural, como se observa nestes trechos de cartas (FIGUEIREDO, 1996) trocadas entre Hélio Oiticica e Lygia Clark em 1970: [OITICICA, Rio de Janeiro] “... fora isso, o que tenho feito é a capa do disco de Gal, que está lindíssima: o 'cabelo' são milhões de fotos em tamanho de contato, e a cara pela metade na borda do disco, de modo que quando o disco é retirado parece que está saindo da boca. Na série de fotos pequenas, escolho tudo o que seja uma referência poética, virtual, nada de coisas 'ligadas a Gal', mas imagens sem limite: uma das fotos é do seu trabalho (uma daquelas que enviou para Mário), que aí funciona também como uma homenagem;; espero que você goste;; estou adorando fazer este trabalho, pois ao menos é algo em que posso ganhar dinheiro e algo 'real', que pode ser feito, isso é o que me agonia aqui: encontrar algo palpável, que não se limite à mente das pessoas;; tudo parece ser 'planos', nada de real, de vivido... […] Pena que vocês não viram os Rolling Stones aí;; foi genial. Realmente, as coisas que mais me interessam como 'espetáculos' são as de música;; não se as vê como algo feito como espetáculo [...];; em música (Woodstock, e como esse festival há milhares toda semana, cada vez mais) não se precisa concentrar, etc., o que me revitaliza de um modo incrível;; faça a experiência e veja;; adorei tudo o que me disse sobre Woodstock, é realmente lindíssimo;; imagine que, no último dia dessa vez em Nova Iorque, fui a um estádio e vi inclusive o Jimmy Hendrix: viu que maravilha no fim de Woodstock o solo dele? Creio que nunca mais aparecerá um guitarrista desse nível;; é demais!”
[CLARK, Paris] “Mande para mim a capa de Gal em que entra uma foto do meu trabalho e também gostaria de escutá-la, pois a dizem genial. Para mim o rei é o Jorge Ben mas existe ainda Caê e Gil e Paulinho da Viola e ainda Roberto Carlos... Quanta gente boa em música;; é fantástica a música brasileira!”
Pontos de encontro interdisciplinares no campo das artes são observados desde as atividades e eventos do Fluxus nos anos 1960, com Cage, Paik, Beuys, Yoko Ono e outros;; assim como localizados na The Factory de Andy Warhol e suas parcerias com bandas e artistas do rock (Lou Reed e a The Velvet Underground, Bob Dylan, Brian Jones);; passam por registros em 16mm, pelo Portapak, pelas imagens e sons sintetizados e sua transmissão nas emissoras públicas, como o “Good Morning Mr. Orwell” (1984) de Nam June Paik com participação de Laurie Anderson. E nas décadas seguintes se recolocam de novas maneiras com a captação, edição e transmissão digital, passando a integrar também o público como participante da criação das obras.
O caso da islandesa Björk é um dos mais sintomáticos13, assim como os
trabalhos da banda Radiohead (que compôs músicas em 2011 para espetáculo da Merce Cunningham Dance Company), Arcade Fire (no desenvolvimento de videoclipes interativos com o artista multimídia canadense Vincent Morisset) e Sigur Rós (nos projetos “The Valtari Mystery Film Experiment”, com videoartistas convidados para desenvolverem videoclipes livres a partir de cada música do álbum, e o projeto “Stormur”, videoclipe em constante mutação feito em tempo real pelos usuários que enviam vídeos com a hashtag #stormur pelo aplicativo Instagram). Curiosamente, estes objetos e suas sintaxes continuam presentes no desejo colecionista das instituições de arte, como o já citado aplicativo “Biophilia”, e também inserem problemáticas na própria noção de arquivo frente sua difusão em rede, uma vez que não se pode mensurar onde está essa produção ubíqua, que sofre revisitações constantes e atemporais. Também colocam um problema de identificação de poéticas, do que é o desvio em um sistema industrial de produção, e até mesmo do que constitui formalmente um videoclipe:
Eu diria que já soubemos em algum momento o que é um videoclipe, mas não mais. O contexto em que os videoclipes circulavam nos anos 80 e 90 é diferente de agora. Até então os clipes eram vistos em poucos serviços de satélite – como a MTV;; a censura era alta, e era difícil para diretores e gravadoras colocarem seu trabalho no ar. Hoje os videoclipes estão
13 Sua extensa obra, além de ter o olhar do já citado MoMA e integrar o acervo permanente do Musée National d'art Moderne (Centro Georges Pompidou, Paris), é largamente difundida pelos usuários na internet, com dezenas de vídeos que chegam a milhões de visualizações no YouTube. Seus parceiros diretores também passam por circuitos múltiplos, caso de Chris Cunningham, que dirigiu o videoclipe de “All is full of love” para Björk em 1999, dirigiu comerciais para marcas de roupas, carros e entretenimento, e que teve obras de vídeo exibidas na Royal Academy of Arts (2000), na galeria Anthony d'Offay (2000 e 2001) e na 49a Bienal de Veneza (2001).
espalhados por um número de websites comerciais como o YouTube. Há pouco veto e o acesso é muito mais amplo (VERNALLIS, 2013, p. 11, tradução nossa).
Delineiam-se assim as primeiras inquietações: teria o marco de legitimação poética dos videoclipes (enquanto produtos de divulgação de um álbum musical) se alterado, reconfigurado ou multiplicado em pouco mais de três décadas de existência? Como o aumento exponencial deste corpus na era digital é apreendido e tratado pelas instituições de arte? Em que medidas os procedimentos mercadológicos de circulação dos videoclipes se aproximam dos procedimentos presentes no mercado da arte contemporânea? E, mais ainda, como a potência deste campo continua a 'escapar pelos dedos' de quem tenta sobre ele se deter? Desde já, se coloca a suspeita de que reste ao curador e pesquisador trabalhar dentro de sua experiência e referências individuais (seu próprio Musée Imaginaire), em um exercício constante de expandir seus pontos de visão – mas ciente de que o limite sempre existirá - e com a constituição de arquivos a partir do ato de pinçar videoclipes que estão na coleção do museu, no catálogo da mostra, na televisão, na internet, no celular, em bases de dados que, assim como as narrativas pessoais, não são permanentes ou lineares14 15.
Retorno dos espectros: algumas hipóteses
Voltando ao campo da memória, desta vez mais recente, um fato curioso: em meados dos anos 2000, houve um específico e curto período de alguns anos - que coincidiu com a transição analógico-digital do mercado de produção, e subsequentemente, com alterações no cotidiano dos alunos de graduação em audiovisual e artes visuais (das fitas Mini DV para os cartões de memória e câmeras DSLR) - em que as conversas de corredor entre colegas apontavam para grandes
14Em relação à obsolescência do suporte, o departamento de Design do MoMA posiciona o interesse
do museu em adquirir ‘artefatos digitais’ (ANTONELLI, 2014), a partir dos quais se estabelece um protocolo de aquisição de códigos, arquivos e vídeos para conservação e exibição. Em 1994 isso é feito com os livros reativos de John Maeda (que realizavam uma interação entre disquetes e livros físicos), a partir do qual a instituição começa a sinalizar o interesse em preservar a natureza transitória deste tipo de objeto digital – basta pensarmos que muito do que foi produzido em disquete ou CD- ROMs nos anos 1990 hoje não possui suporte para os sistemas operacionais de diferentes empresas, que se atualizaram. Com os videogames, se adota a mesma abordagem por parte do MoMA: um interesse maior nos códigos de programação que os mantém em funcionamento do que os meios/suportes que os executam, e que liberam a visualização dos jogos da necessidade de uma infraestrutura datada.
15 Além do suporte físico, os próprios websites como o YouTube também demonstram essa
incertezas sobre a 'sobrevivência' econômica e até de interesse dos músicos e realizadores de vídeo pelo clipe musical. Bandas e artistas ainda lançavam seus clipes a cada álbum, mas com menos 'entusiasmo' da crítica, e com uma circulação mais indefinida, muito pela mudança gradativa ocorrida na própria programação da MTV (que passou, como outras emissoras, a investir mais em gravações de shows ao vivo, além de programações não necessariamente musicais). Havia então ainda uma indefinição de propósitos do YouTube e as trocas virtuais e uploads de vídeos com resoluções mínimas de 360 linhas davam seus primeiros passos de existência. Por mais que muitos dos trabalhos práticos desenvolvidos nesses cursos de graduação fossem realizados no ‘formato’ videoclipe, uma das grandes referências da geração, a sensação predominante era a de não se saber para onde caminhar com eles e até mesmo onde exibi-los, com exceções dos encontros e mostras universitárias de audiovisual ou festivais de cinema – estes últimos com o agravante de separarem gêneros rígidos entre “documentário”, “ficção” ou “animação”, onde não havia um espaço adequado para a inscrição de videoclipes, à exceção dos eventos que disponibilizam a seção “experimental” - ou de aberturas pontuais de emissoras públicas e educativas, como a TV Cultura, para exibir este material.
Foi tudo muito rápido, em algumas piscadas de olhos que provavelmente ocorreram entre 2006 e 2010, mas sem uma precisão exata de período. Canais no YouTube, Vimeo, VEVO, vídeos de produtoras mas também de realizadores individuais em home studios, projetos de crowdfunding (financiamento coletivo) para videoclipes, experiências interativas com música, aplicativos para celular para download de videoclipes. E em um caminho novamente paralelo a um interesse do mercado cultural, o que se observou foi uma 'retomada' do interesse de museus neste objeto, em exposições, retrospectivas, mostras. O videoclipe, que não havia ido a lugar algum, se recoloca deste 'lugar algum' em novas possibilidades de circulação, não como algo 'novo', mas pertencente novamente a uma determinada mentalidade. Por mais que o videoclipe musical nunca tenha se desligado da reflexão acadêmica ou mesmo saído de circulação16, existe uma suspeita de que este 'retorno' de olhares e de investimentos financeiros tenha acontecido pelas potencialidades do
16 Carol Vernallis, sobre este sumiço e reaparecimento, diz que “nos anos 2000, os videoclipes passaram por um escasseamento de orçamentos, reemergindo depois como chave da cultura popular. Essa reaparição se assemelha ao momento em que a MTV inaugurou: é uma questão de o que o videoclipe pode fazer e onde ele se encaixa” (2013, p. 24, tradução nossa).
digital, como um conjunto de relações de concepção, realização, circulação e reapropriação de repertórios. Que passa pelo sensível e pelo afeto contemporâneo, e que continua a constituir nossos rastros de imaginários, individuais e coletivos. Este 'retorno' do videoclipe às mostras em museus, agora atrelado a outras configurações de programação (divulgações em redes sociais, shows ao vivo nos museus durante as mostras, chamadas de trabalhos dos realizadores independentes) reflete também em sua essência a passagem na arte contemporânea do sistema curador-marchand para um sistema essencialmente comunicativo e estruturado comercialmente em rede (CAUQUELIN, 2005), com as instituições exibindo seu próprio valor de espetáculo. Em um universo de rede que disponibiliza a qualquer momento - e instavelmente - imagens musicais de todos os tempos, me deparo e me coloco à frente do que passou e retorna, ao tempo de um clique ou de um dedo que desliza pelo visor, seja com o “Garoto Enxaqueca”, seja revendo videoclipes de décadas anteriores alternadamente a novas experiências que parecem insistentemente remeter a este passado, apenas utilizando outras roupagens17. Tento ao mesmo tempo acompanhar o que aparece como pontos diários de novas produções, ao seguir canais de artistas, páginas de produtoras independentes, acompanhar blogs e colunas de críticas musical, e até inscrever as produções pessoais em bancos de dados como o IMVDb - The Internet Music Video Database, na tentativa de arquivar também a própria história – a panaceia humana para lidar com nossa finitude.
É inesgotável. Centenas de videoclipes que aparecem a cada dia, de todos os continentes18. Nesta atividade de visionamento e de se colocar frente à produção, o tempo, como em saltos quânticos, não condiz com opções de passado, presente e futuro. Condiz com opções de potência – o que vemos, em tempo real, e que links fazemos de um vídeo assistido ao próximo, que links o imaginário pessoal configura em relação ao imaginário coletivo, na possibilidade ou não de um registro permanente
17 Andreas Huyssen, em sua discussão sobre as geografias do modernismo, dirá sobre essa nostalgia
que “já houve quem falasse numa retromania característica da década passada [anos 2000]. O que está em jogo aí, num sentido mais amplo, a meu ver, são mudanças contínuas nas estruturas da temporalidade vivida e novas percepções do tempo e do espaço nas sociedades midiáticas contemporâneas. As dimensões políticas dessas mudanças e percepções ainda estão em discussão. Tudo isso começou na década de 1980, mas se acelerou, é claro, com a introdução comercial da Internet em 1995” (HUYSSEN, 2014, p. 16).
18 Ainda com um maior investimento perceptível nas produções norte-americanas e europeias, mas
onde é possível também verificar outros pólos que assumem circulações intensas, como os asiáticos (videoclipes japoneses ou sul-coreanos), sul-americanos, africanos. O grupo nômade Tinariwen, por exemplo, composto por músicos da etnia Tuareg, disponibiliza com frequência seus videoclipes gravados em sua maior parte em regiões saarianas.
na memória. Registro, aqui intuído, que talvez só consiga retornar desamortecido ao consciente através de processos de desanestesia19, e que ao articular procedimentos expressivos específicos com momentos culturais em sua complexidade, retira o criador-espectador cotidiano de seu automático de produção e percepção do mundo ao seu redor, fazendo-o sentir seu corpo novamente.
Era assim que me parecia a disposição dos fundos brancos com os silêncios do Garoto Enxaqueca, como hoje percebo os videoclipes do Sigur Rós com sua musicalidade etérea e minimalista, da mesma maneira que trabalho pessoalmente ao editar um videoclipe e quase sentir com os dedos as texturas dos instrumentos musicais se relacionando às texturas das imagens: a imagem do vídeo se faz matéria corporal e cria espaços de respiro no fluxo da consciência. Mas há de se investigar com mais cautela essa intuição no que se segue.
Benjamin e a experiência moderna: choque e anestesia
O estudo nos anos 1990 feito em relação ao videoclipe, mesmo se apoiando a partir de Goodwin (1992) sobre a percepção da sinestesia (do grego sin + aisthesis como reunião de múltiplas sensações) do objeto, ou da noção de reversão da perspectiva clássica do clipe na TV a partir da camada sonora como propulsora para a imagem (WILLIAMS, 2000), em muito se pautou em uma compreensão geral do objeto como excesso, como bombardeio, como incrustação de camadas, e até mesmo como direcionamento a uma figuração avessa ao antropocentrismo (MACHADO, 1995).
A despeito deste mito hegemônico do videoclipe como eterno fluxo e fragmento que supostamente incute o espectador a um processo anestésico, a hipótese aqui colocada é de que há uma parcela de videoclipes musicais que, independente do suporte (vídeo ou digital) e de seu processo rítmico de montagem, são obras com estímulos poéticos específicos e que, em seus modos de visualização contemporâneos, retiram o espectador da situação do choque ao encarnarem potências em constante troca com o corpo do sujeito. Existe uma dúvida inicial sobre
19 É importante registrar a opção pela terminologia da desanestesia ao invés da estesia, uma vez que
o marco parte da anestesia e da anestética de Susan Buck-Morss, conforme nos deteremos a seguir, como ponto para encarnação da obra pelo sujeito - ou como saída do trauma e processo de cura, conforme se prefira.
o quanto estes procedimentos se ancoram no campo da videoarte e da performance, e em que momentos o videoclipe pode até mesmo subvertê-los, mesmo se tratando de um produto essencialmente comercial. Nisto reside a importância de abandonar qualquer entendimento do videoclipe como ‘diluição’ da videoarte, uma vez que a hipótese é a de que estes campos troquem procedimentos mutuamente.
Os conceitos de ‘choque’ e ‘anestesia’ de Benjamin, pontuados pelo autor no antológico “A Obra de Arte e sua Reprodutibilidade Técnica” em 1936, valem uma revisitação no escopo deste trabalho, em especial ao discutirmos o sensível em dinamogramas, mas sem perdermos a historicidade das formas de vista. Falando sobre o cinema, Benjamin diz se tratarem de obras de natureza tátil, por trabalharem com elementos temporais de mudanças de locais, cenários e personagens no decorrer do processo de montagem: imagens pulsantes que passaram a atingir o espectador na forma de choques sucessivos, impossibilitando a fixação de uma obra. Neste caminho e aliada à psicanálise, Susan Buck-Morss (2012) traz em seu ensaio “Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin” considerações significativas ao atualizar questões pertinentes ao universo das imagens técnicas. Sua retomada à origem do termo ‘estética’ como experiência sensorial não necessariamente ligada ao campo das artes faz com que se compreenda a experiência moderna a que Benjamin se refere em suas obras - uma correlação entre percepções sensoriais ligadas ao mundo exterior e imagens internas da memória e da expectativa:
A compreensão da experiência moderna por Walter Benjamin é neurológica. Centraliza-se no choque. Nesse ponto, como em raros outros textos, Benjamin apoia-se numa descoberta freudiana específica: a ideia de que a consciência é um escudo que protege o organismo de estímulos – ‘energias excessivas’ – provenientes de fora, impedindo a retenção deles, sua gravação na memória. [...] Sob tensão extrema, o eu usa a consciência como um amortecedor, bloqueando a abertura do sistema sinestésico e, desse modo, isolando a consciência presente e a memória passada. Sem a profundidade da memória, a experiência fica empobrecida. O problema é que, nas condições do choque moderno – os choques cotidianos do mundo moderno -, responder aos estímulos sem pensar se tornou necessário à sobrevivência (BUCK-MORSS, 2012, p. 167-168).
Ainda de acordo com Benjamin (2012), a experiência do choque é representada no campo das artes como reflexo da industrialização dos meios de produção e da segmentação da percepção do operário em linhas de montagem. Se para ele, já em
Baudelaire se passa a incluir o modo de vida da cidade moderna e fragmentada no campo estético, acrescentamos que a obsessão pelo tema é recorrente no pensamento do século XX e movimenta empenhos reflexivos sobre os efeitos psíquicos da vida na cidade e nas metrópoles, vistos em autores como Lasch (1984) através do conceito isolamento, Bauman (2009) e as relações líquidas, e Haroche (2011) e as reflexões sobre o fluxo das grandes cidades e as maneiras de sentir do indivíduo contemporâneo, entre outros.
No campo artístico, existiu um interesse das vanguardas do século XX de uma pretendida restituição da 'automatização' cotidiana através da obra de arte. Chklovsky (1999), por exemplo, apontou a importância que a obra teria em chamar a atenção do espectador ao promover novas sensações sobre o objeto, ao que ele propõe o termo de ‘desautomatização’ ou estranhamento [ostranenie]. Uma abordagem atrelada ao discurso de 'missão' da obra. Posteriormente, autores como Julio Plaza (1997) ampliam para o campo da complexidade estas percepções entre artista-significação- obra – no caso de Plaza, ele se vale também do conceito de fragilidade da informação estética de Max Bense. O estranhamento e o sensível vistos então não como missão de transcendência, mas como sistema imprevisível que opera a partir do 'jogo com as regras', na arte e na ciência.
Procurando então contribuir e ampliar o olhar sobre o formato videoclipe musical entendido hegemonicamente por poéticas de descontinuidade e de fragmento, propõe-se aqui outros olhares sobre procedimentos de jogo sintático, potência-evento, ludicidade e de jogos de enunciados proporcionados na circulação de algumas obras. Além disso, trata-se de um trajeto que parte em cascata, do primeiro ao último capítulo, de uma discussão mais objetiva de discursos sobre um produto da cultura visual, para a relação destes produtos com as figuras dos curadores e, por fim, para um mergulho mais particular sobre a relação destes objetos nos processos de curadoria pessoal como cuidar de si – cuidar do outro20. Pautada essencialmente tanto na leitura de Susan Buck-Morss sobre A obra de arte de Benjamin quanto no ensaio “A consumidora consumida” de Vilém Flusser, a busca pelas concavidades, feminilidades e erotismos destes trabalhos nos auxiliará a contar algumas das (tantas) histórias guardadas de vídeos que, como ninfas fetichizadas,
20 Na finalidade desta pesquisa, o termo não possui correlação com as discussões dos múltiplos
‘cuidados de si’ constituintes das subjetividades ocidentais, tecidas por Michel Foucault em “A Hermenêutica do Sujeito” (2006).