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CAUSOS DOS PÉS DE MINAS:

REGISTROS, ESTUDOS E TRANSCRIAÇÃO CÊNICA DE UMA PRÁTICA POPULAR

CAMPINAS - SP

2015

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LUÍS CARLOS NEGRI

CAUSOS DOS PÉS DE MINAS:

REGISTROS, ESTUDOS E TRANSCRIAÇÃO CÊNICA DE UMA PRÁTICA POPULAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestre em Artes da Cena.

Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO

LUÍS CARLOS NEGRI, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. SUZI FRANKL SPERBER

_______________________________________________

CAMPINAS - SP

2015

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(5)

a meu pai Nelson, e ao meu tio Pe.

Silvério Negri, grandes

incentivadores e inspiradores.

Aos meus amigos, ao Grupo de

Teatro Arte Federal e a todos os

contadores e contadoras, atores

dessa pesquisa.

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esse caminho percorrido, contribuindo, direta e indiretamente, para a realização desta pesquisa.

Minha gratidão, em primeiro lugar, a Deus, por estar comigo em todos os momentos e iluminando-me, sendo meu refúgio e fortaleza nos momentos mais difíceis. Por se manifestar nas formas mais variadas de fé, no vento que sopra, na chama das velas, no fervor das preces e no olhar daquele que caminha conosco. A ele, minha eterna gratidão. Aos santos anjos da guarda pela proteção na caminhada e a São Francisco pelo exemplo de vida.

Agradeço, especialmente, à minha família, por sempre acreditarem e se orgulharem de mim, por me inserirem no mundo da arte e apoiarem todas as minhas escolhas. Pelo café quentinho, pelas mesas sempre fartas, pelas rezas e novenas. À minha mãe Maria (in memoriam) por seu olhar doce e cheio de amor, por ter me ensinado a olhar o mundo e as pessoas com afeto. Ao meu pai Nelson, por sempre se preocupar com a cultura de seu lugar, pelas histórias divididas e cantadas. Ao meu tio Pe. Silvério Negri por me mostrar que a cultura do lugar em que vivemos também nos forma e é parte de nós, e que é preciso valorizá-la.

À Professora Dra. Suzi Frankl Sperber , pela paciência na orientação e carinho na troca de experiências e saberes.

Registro também meu agradecimento à Universidade Estadual de

Campinas, de forma especial ao corpo docente do Programa de Mestrado em

Artes da Cena, pelas diversas contribuições para esse trabalho. Agradeço

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Colla por seus apontamentos sempre certeiros e por sua imensa produção no campo das Artes da Cena, com a qual aproveito para agradecer ao Lume Teatro. À Professora Dra. Neide das Graças por seu encanto com a Arte e a Educação, por seu carinho nos apontamentos e emoções ao transmitir seus ensinamentos.

A todos os meus amigos Paula, Aline, Melissa, Cris e José, Rafa e Nat, Lidi, Paulo e Francisco (nosso mais novo integrante e não por coincidência o nome do santo), Rafael, Fernanda e Keila, pela paciência com as alterações de humor, por me incentivarem a persistir, por serem referências e modelos nas discussões, por me convidarem para espairecer e me darem comida, café e amor quando precisei; À Mônica e Érica, por me permitirem as vivências em um mundo de estranhos, em que risadas e duetos fora do tom são permitidos e bem vindos, a natureza e o por do sol são o cartão de visita e a chita na parede é o pano de fundo.

Ao Grupo de Teatro Arte Federal por aceitarem trilhar comigo esse caminho, dividindo as paisagens, corpos e memórias desse lugar.

Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – campus Inconfidentes pela colaboração na execução dessa pesquisa e pelo precioso espaço para que ela se desenvolvesse.

Por fim, agradeço aos diversos atores dessa pesquisa, pessoas

essenciais para que ela acontecesse, pelos dedos de prosa, pelas lembranças,

pelos corpos, pelos causos.

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pesquisa vinculado ao Grupo de Teatro Arte Federal no IFSULDEMINAS – Câmpus Inconfidentes. Como trabalho artístico, importa-nos toda a trajetória, desde os primeiros encontros e a caminhada em busca dos causos, à inserção do material coletado em sala de trabalho, culminando na criação do Exercício Cênico “Causos, Café e Canções”. Essas vivências poderão ser encontradas ao longo deste relato. Ao final, apresentamos algumas considerações com reflexões sobre a memória e o desaparecimento dessa prática, além da busca por responder ao leitor sobre a finalidade dessa pesquisa. Foram inseridos ainda anexos com a transcrição dos causos e registros de foto e vídeo de todo o processo.

Palavras-chave: Teatro; Transcriação cênica; Arte-Educação; Tradição oral

ABSTRACT

This paper seeks to work scenic transcreation from popular stories, called

“causos”. Through meeting with storytellers from South of Minas Gerais State, whose we chose to call "Pés de Minas", and from the collection of resulting materials of these experiences, we began a research process linked to the Theater Group “Arte Federal” in IFSULDEMINAS - campus Inconfidentes. As artwork, this paper is important all the process, since the first meetings and the steps in search of the “causos” , until the insertion of the collected material workroom, culminating in the creation of Scenic Exercise "Causos, Café e Canções". These experiences can be found throughout this report. Finally, we present some considerations with reflections on memory and the disappearance of this practice, as well as search for responding to the reader about the purpose of this research. It was inserted attached to the transcript of the causos and photo and video records of the entire process.

Keywords: Theater; Scenic Transcreation; Art Education; Oral tradition

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Será isso possível?

A cada vestir um revelar-se, impregnado pelas ações do outro aproveito para espelhar meus próprios sentires.

Interpessoalidades. Intersubjetividades.

Intercorporeidades.

Encontro. Confronto.

O outro como objeto de pesquisa. Objeto vivo, composto de pele, ossos, calor, ritmo, textura, cheiro, palavras, gestos, histórias, sentimentos, dores, alegrias. E eu, o observador externo, composto de pele, ossos, calor, ritmo, textura, cheiro, palavras, gestos, histórias, sentimentos, dores, alegrias.

Encontros. Confrontos.

No outro-eu mesmo, me vejo. Aceito ou renego.

Ana Cristina Colla

1

1

COLLA, 2006, p. 94-95

(10)

Apresentando a caminhada... 17

1. O CAUSO... 24

2. OS CAUSOS DOS PÉS DE MINAS E SEUS CONTADORES: as vozes que ecoam na pesquisa e outras referências... 30

3. BREVES REFLEXÕES SOBRE O MATERIAL COLETADO ... 53

PARTE II – A História... 73

4. PESQUISA PRÁTICA: a transcriação cênica a partir dos causos... 75

4.1 Referências artísticas e teóricas para a pesquisa... 76

4.2 Arte-Educação em Cena... 83

4.3 Grupo de Pesquisa Teatral “Arte Federal”... 86

4.3.1 A entrada dos causos na sala de trabalho... 120

4.3.2 O Exercício Cênico “Causos, Café e Canções”... 122

PARTE III – O (Não) Fim da História... 129

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 130

5.1 É PRECISO LEMBRAR! – o corpo-memória e a memória-corpo nos Causos dos Pés de Minas... 130

5.2 Os porquês da diminuição dessa prática oral... 136

5.3 Reflexões finais sobre a pesquisa: pra que serve / não serve / é preciso servir?... 141

REFERÊNCIAS... 145

ANEXOS... 150

ANEXO 1 – Causos coletados durante a pesquisa... 150

(11)

ANEXO 3 – Causos dos Pés de Minas – Espetáculo... 179 ANEXO 4 – Reportagens e Links relacionados ao Exercício Cênico

“Causos, Café e Canções”... 202

ANEXO 5 – DVD “CAUSOS DOS PÉS DE MINAS” – Registros em Vídeo

de etapas da pesquisa... 207

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PARTE I

O Pré da História...

(13)

PARTE I

O PRÉ DA HISTÓRIA...

Para contar uma boa história é preciso, antes, contextualizá-la, introduzi-la e torná-la atraente aos olhos e ouvidos dos espectadores. Essa será a função dessas primeiras linhas. Pedimos licença para, com cuidado, tomar a sua mão e guiar-te por esses caminhos que levam à História em si.

Trilharemos por caminhos tortuosos, estreitos, às vezes feitos de duras pedras, embrenhados em matas fechadas, com suas altas árvores trançadas de cipós que impedem a passagem dos raios de sol. Mas, ao atravessarmos a mata densa, poderemos sentir a leve brisa tocar nossos rostos, e, quando nossos olhos se abrirem e se acostumarem de novo com a claridade, veremos a paisagem verde e brilhante estendida como um tapete à nossa frente, e uma cadeia infinita de montanhas dobrando-se aos nossos pés. Dê-nos sua mão!

Caminhe conosco. Estaremos lado a lado, pé com pé, refazendo cada trilha por onde passamos. Existe melhor maneira de conhecer a história do que revivendo-a , outra vez?

E para caminhar é preciso dar o primeiro passo. Eis que tudo começa... um primeiro movimento, o girar da roda. Faz-se um impulso. Aos poucos nos deixamos levar pelo movimento contínuo das esferas, o fluxo de ar que balança as folhas é o mesmo que preenche os pulmões. Caminhamos. A paisagem passa por nós como um filme bom numa tarde agradável, são verdes, são doces, são essenciais. A quaresmeira, com suas cores, reflete um tempo que ainda nem chegou. Mas, vai chegar. Um tempo de gostos e amores.

Doce como a manga rosa que salta do pé e cai, madura, no quintal. Precioso como uma caixa preta repleta de memórias e sentimentos, ansioso por perder- se nas alegrias de um ser que espera. E a espera valerá. Ela chegará. Ao longe, uma música brota da paisagem:

Cantado dus Pé di Minas cuá viola a impunhá Na bainha u’as par di trova pa tristeza istorvá...

...Que sodade que me dá dus corgo i dus tisôro

(14)

I lá pás banda dus pé de Minas, as água cristalina quiseru si ispraiá

I já que pispiei minha canturia a lua e as cutuvia, vieru mi iscuitá...

23

Alex Duarte

4

A canção nos faz lembrar um tempo precioso, de afetos, de gostos e sabores, de histórias. É por aqui que passa nosso caminho, pelos Pés de Minas, por sua gente e suas histórias. E sou parte disso. Nós somos parte disso.

Adentremos, portanto, por esse ambiente novo chamado Dissertação. Esse é seu primeiro nome, mas também pode ser chamado de Momentos, Vivências, Experiências. Queremos lhes mostrar cada canto desse espaço que não tem nada de quadrado, obscuro ou triste, pelo contrário, é um ambiente vivo, mutante, itinerante, decorado com as cores da alegria e das manifestações populares.

Vamos?

2

Trecho da Música “Pas banda dus Pé di Minas” de Alex Duarte. In: CD Canteiro de bálsamo.

3

O músico apresenta um glossário para que se possa entender o que chama de “palavras i expressão usada nu indioma Brasilêis, dialeto Mineirês”. Eis algumas, usadas na citação acima:

Cantadô dus pé de Minas: cantor do Sul de Minas

Na bainha u’as par di trova pa tristeza istorvá: na bainha um monte de trovas para atrapalhar (espantar) a tristeza.

Que sodadi qui mi dá dos córgo e dos tisôro: que saudades tenho dos córregos e seus encantos Que sodadi qui mi dá das asa qui num vi avuá: que saudades das aves Jacutinga que por aquelas bandas já não mais existem

Que sodade dá di vê os roxo dus pé di ipê: que saudades das flores de ipê que coloriam a paisagem

As água cristalina quiséru si ispraiá: as águas cristalinas quiseram se espraiar (alusão ao circuito das águas do Sul de Minas e em especial à cidade de Jacutinga, Estância Hidromineral)

Já qui pispiei mi’a canturia: já que principiei minha cantoria

4

Nas palavras de Ian Guest, no encarte do CD citado acima: “Alex Duarte, jovem músico, utiliza o canto,

violão, flauta, percussão e outros sons como intérprete e arranjador. Compositor de livre trânsito em

múltiplas linguagens, vem resgatar uma linguagem musical e coloquial bastante particular do sul de

Minas, uma região da qual é bem conhecedor por ser de suas próprias raízes. Sua intimidade e

versatilidade com o idioma da melodia e do palavreado lhe permite reproduzir a riqueza que vive na

memória daquele povo e alcança a sensibilidade de um público de amplas áreas”.

(15)

Caminhe conosco, venha ao nosso lado, olhos nos olhos. É possível sentir os cheiros, os gostos, a respiração desses seres.

Na abertura desse trabalho temos a imagem de uma estrada. A escolha dessa imagem para abrir as páginas da presente dissertação não foi aleatória. Esse foi um dos caminhos percorridos durante a pesquisa. Não vemos o seu fim e também não sabemos onde essa estrada começa.

Relacionando a imagem com esta pesquisa: se olharmos para o fim, não encontraremos um ponto final, pois quanto mais se busca, mais se encontra;

quanto mais se sabe, mais se quer saber; porém, deixemos isso para depois, e concentremo-nos no ponto de partida. Encontramo-nos no meio dessa estrada, se nos virarmos e forçarmos nossa vista para buscar onde tudo começou, também será difícil saber ao certo. Esse início vem cercado de vivências e experiências acrescidos da trama da memória e do tempo. É daqui que partiremos.

Uma casa simples, de paredes gastas, chão vermelho e telhado por onde passam feixes da luz do sol. Alguns cômodos têm assoalho e pelas frestas da madeira, os olhos curiosos do menino podem ver partes de pequenos tesouros guardados. Na cozinha, paredes e telhados são pretejados pela fumaça do fogão à lenha. Ah, o fogão à lenha! É dali que saíam as comidas maravilhosas que enchiam os olhos e o paladar de todos que se aproximavam. E eram muitas as bocas a alimentar! Mas, o fogão não atraía só pelas comidas, mas também por ser o palco de onde surgiam histórias fantásticas. Ao cair da noite, enquanto a mãe preparava a comilança, o menino pegava um pequeno banco de madeira, que teria sido construído por seu nonno

5

, e se colocava sobre a taipa quente do fogão. Ouvidos atentos e olhar fixo nas chamas amarelo-avermelhadas das labaredas que subiam, iam surgindo aos poucos seres fantásticos e histórias que teriam sido vivenciadas pelos protagonistas ou por seus conhecidos. Os protagonistas são os membros dessa família que ora apresentamos: uma grande e tradicional família de descendência italiana, moradora da zona rural do município de Jacutinga, no Sul de Minas Gerais, região que aqui optamos por chamar de Pés de Minas

6

. A

5

Nonno – do italiano, avô.

6

A expressão, adotada no título da pesquisa, e que será usada ao longo do trabalho foi retirada da Música

“Pas banda dus Pé di Minas” de Alex Duarte, já apresentada nas páginas anteriores. A expressão vem

caracterizar a região da pesquisa, situada no extremo sul do Estado de Minas Gerais.

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lenha, ouvia boquiaberto as histórias de assombração que magistralmente eram contadas, em um ambiente que colaborava para essa apreensão, pois conforme a noite ia caindo, as personagens iam aumentando, e criando, ao redor, uma mistura perfeita entre o real e o imaginário. Qualquer barulho que se ouvia lá fora fazia com que seu corpo todo se arrepiasse. Medo?

Curiosidade? Crença? Paixão! Isso... Crescia, aos poucos, no coração do menino uma paixão pelo tema, que o leva a pesquisá-lo e a escrever essas páginas hoje. O menino cresceu, mas continua a pulsar constantemente, cheio de vida e vontades, e é o que o move pelas páginas dessa dissertação- vivência.

O universo que nos cerca é fator fundamental em nosso desenvolvimento pessoal e cultural. Confirmando este pensamento, temos as palavras do grande Álvaro de Campos no poema “Sou eu”:

“Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, (...) Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.

Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma”.

E assim foi... tudo ao redor contribuiu para que o menino chegasse a essa tríade com a qual vem trabalhar nessa pesquisa: o Teatro, a Educação e os Causos.

A vontade por trabalhar esses aspectos é uma soma de tudo que foi

apreendido e incentivado desde criança em seu lar, e acrescido das outras

muitas vivências que estavam por acontecer. Fazem parte dessas experiências

a participação, na adolescência, do Grupo Diversão e Arte, um pequeno grupo

de teatro na cidade de Jacutinga-MG, sob a coordenação de seu primeiro

mestre, Roberto Moreno. Mais tarde o ingresso na Faculdade de Artes

Cênicas. Cursar Artes Cênicas, por si só já seria uma etapa singular na vida do

menino, mas isso veio acrescido do fato de que seu curso seria na cidade de

Ouro Preto, em Minas Gerais. Morar em Ouro Preto já é um estágio para

qualquer estudante de Arte, visto que a cidade é uma pérola do barroco

(17)

brasileiro e conta com um acervo maravilhoso de obras, tanto artísticas quanto arquitetônicas, do período colonial brasileiro, e ainda é um celeiro de causos e histórias. E o menino aproveitou muito bem essa oportunidade: estudou, pesquisou e conheceu cada beco, cada igreja, cada curva e contra-curva barroca, cada ladeira, cada morro, cada paisagem, cada rosto. Afetou e foi afetado!

Depois de muito beber dessa fonte que jorrou com fartura, inundando todo o seu ser, o menino enveredou-se pelos caminhos tortuosos, porém bonitos da Educação, da Arte-Educação.

Esse é o caminho que o trouxe até aqui. Ele-Eu nos encontramos no meio desse caminho, essa estrada que lhes foi apresentada. É daqui, do ponto intermediário dessa via, que te estendemos a mão, caro leitor, curvando-nos para alcançar-lhe, e mais uma vez perguntar: “Caminha conosco?”.

Como pode perceber, caríssimo leitor, o narrador dessa pesquisa, a voz a guiá-lo por essas páginas, não é um, mas vários. Até aqui já conhecemos dois, o menino que pulsa incessante nas ações da pesquisa, curioso, a buscar sempre mais, e o pesquisador que capta, organiza e traz as informações e vivências até você. Só aqui já deixamos de ser eu, para sermos nós. Mas, não paramos por aqui. Ao longo desse processo somar-se-ão a essas duas vozes, muitas outras, acoplando ainda mais pessoas a essa narração. Por respeito a todas essas pessoas, partes da pesquisa, falaremos sempre em nós.

Apresentando a caminhada

Pé ante pé, adentraremos por essa trilha, mas, antes, é preciso fazer

um panorama desse caminho, traçar um mapa, fazer a cartografia desse

terreno, para que assim possas me seguir com convicção de pisar em chão

firme. Já fizemos uma explanação do que veio antes, das inspirações e

vontades que nos trouxeram até esse ponto do caminho, agora é daqui pra

frente. Falaremos um pouco do que trata essa pesquisa, do que se pretende

falar, ou seja, lhe mostraremos o caminho a ser trilhado. Mas, sempre é bom

lembrar que nenhuma estrada é imutável, e ainda bem! O caminho está à

frente, mas atalhos podem surgir, percalços podem acontecer, a natureza pode

(18)

apresentado anteriormente e o foco está no processo de transcriação cênica feito a partir de causos levantados em algumas comunidades do Sul de Minas Gerais, região que optamos chamar de Pés de Minas.

A transcriação é um processo muito utilizado no campo das artes da cena e pode ser entendida como a utilização de fontes de outras linguagens artísticas, literárias ou de outras áreas como material de criação de um processo cênico. É comum nos depararmos com espetáculos cênicos criados a partir de textos não-dramáticos (poesia, romance, conto), de pinturas, ou obras musicais, dentre outras inúmeras possibilidades. A pesquisadora Maria Fonseca Falkembach perpassa por esse processo em seu trabalho Dramaturgia do corpo e reinvenção da linguagem e traz as definições da transcriação cênica. Nas palavras da própria pesquisadora:

Na busca por sentidos, o ator-dançarino encontra referência e síntese provocativas em outras obras (literárias, figurativas, etc.) e em outros artistas. O corpo, devido à sinestesia, é ávido por diferentes signos, múltiplas materialidades, diversas formas de afetar seu sistema sensório. A apropriação de outras lógicas de vida, de outras visões de mundo, e a consequente reorganização do próprio viver, acontecem na relação corporal com tais obras, quando o artista deixa-se afetar por elas, reinventando-as, tornando-as suas; quando essas obras abrem caminho para o devaneio. Estou falando da apropriação reconfiguradora, da recriação de signos e da reestruturação de significados de uma determinada obra, que se atravessa num processo de pensamento criativo na materialidade do corpo.

Assim, ainda que seja muito frequente no teatro contemporâneo não

se trabalhar com um texto teatral, por se buscar na materialidade do

corpo a lógica de composição das ações, é também usual encontrar

em obras literárias não dramáticas, a inspiração, a base, o impulso, o

universo, a atmosfera e o argumento para a criação de novas

dramaturgias do corpo. Essas obras de referência podem afetar

intensamente o ator-dançarino, transformando-o durante sua

(re)criação, podem contribuir para ampliar sua atitude filosófica e suas

possibilidades criativas. No caso do artista do corpo, a apropriação

reconfiguradora de tais obras pode ampliar suas possibilidades

corporais, as formas de esse corpo se relacionar com o mundo e de

conhecê-lo. É através dessas experiências de deixar-se afetar e

recriar, modificando-se, superando-se e encontrando sentidos para

sua arte e sua vida, num processo de autoconhecimento, que

compreendo a transcriação entre linguagens (FALKEMBACH, 2005,

p. 68).

(19)

Em nossa pesquisa, propomos essa mesma transcriação a partir da criação de um processo cênico baseado nos causos, ou seja, no acervo colhido da literatura oral da região pesquisada.

Esta região, aqui chamada de Pés de Minas, compreende um circuito turístico chamado de Circuito das Malhas, e engloba as cidades de Jacutinga, Ouro Fino, Monte Sião, Inconfidentes, Borda da Mata e Bueno Brandão, todas localizadas no extremo sul do estado de Minas Gerais. As cidades que compõem este circuito foram formadas principalmente por famílias de imigrantes vindos da Itália que trouxeram consigo fortes tradições, tais como a deliciosa culinária, a música, a dança e um grande acervo de histórias orais, num precioso processo de interculturalidade

7

. Essa tradição oral, ao se misturar com as histórias fantásticas da cultura local, transformou-se num precioso acervo transmitido de geração a geração. Hoje, a região passou da subsistência rural para uma forte indústria têxtil, daí seu título de Circuito das Malhas.

Como não quisemos limitar territorialmente a coleta dos causos a apenas uma cidade, e preferimos que um causo levasse a outro, ou uma situação a outra, tomamos por bem intitular a pesquisa de Causos dos Pés de Minas. Como já explicitado anteriormente, essa expressão foi retirada da obra do cantor e pesquisador musical jacutinguense Alex Duarte, apresentada em páginas anteriores. Em suas composições, o músico mergulha no vocabulário rural da região e mescla a arranjos quase medievais, propondo o que se pode chamar de uma nova música mineira. Ele consegue de forma singela e consistente atingir uma musicalidade que remete a imagens de sua infância nessa região, criando ambientes belos e bucólicos, de verdes serras e ar puro.

O material levantado inclui os causos coletados e também as impressões encontradas na interação pesquisador-pesquisados, suas ações, corporeidades, e seu modo de vida. Todo este material foi utilizado no Grupo de Teatro Arte Federal, um projeto de extensão vinculado ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS) – campus Inconfidentes, onde leciono desde 2010. O Grupo Arte Federal surgiu em 2010 como um Projeto de Extensão da Instituição e é formado por

7

Entende-se por interculturalidade a interação entre duas ou mais culturas (FLEURI, 2003), no caso ao

que o texto se refere, à cultura dos imigrantes italianos com a brasileira.

(20)

corporal, vocal e de interpretação, além da montagem de algumas peças.

O objetivo da inserção do material coletado no grupo de teatro foi o trabalho desse material pelos alunos-atores, que resultaria num processo de transcriação cênica com a montagem de um processo artístico.

Como visto, esse caminho passa por lugares diferentes, tais como o levantamento e a coleta de causos, a utilização desse material num grupo teatral, mas, tudo isso tendo como foco central o trabalho artístico, o processo inventivo comum às artes. Acreditamos que essa pesquisa-caminhada nos ajudará a responder várias questões, tais como: por que esse processo popular vem se enfraquecendo com o passar do tempo? Qual a importância do processo de contação de causos para a manutenção da memória desse lugar?

É possível a transcriação cênica a partir desse material coletado? E de que servirá? Mas, talvez o mais importante sejam as perguntas e não as respostas.

E, por fim, cremos que o registro do material recolhido, bem como sua utilização na criação de um processo artístico, servirá como um incentivo da continuidade dessa prática na região. Assim, poderemos recolher materiais que possam servir tanto de arquivo e registro dessas atividades populares, e que ao mesmo tempo possam ser trabalhados com os alunos em sala de aula.

Há ainda o intuito de promover ações que não deixem que esse patrimônio imaterial se transforme em “matéria morta”, mas que sejam utilizados em outras pesquisas e trabalhos.

Mas, você ainda deve estar se perguntando: como foi feita essa pesquisa? Eu lhe explico! As atividades e os procedimentos desenvolvidos ao longo da pesquisa foram:

1 - pesquisa bibliográfica sobre o assunto e um levantamento dos locais e histórias a serem pesquisadas:

A pesquisa bibliográfica foi importante para dar base para o que

viria a seguir, além de apontar possíveis interlocutores que integrariam o

processo de escrita e discussão. Afinal, sempre é bom ter “amigos” com quem

discutir num processo como esse. O levantamento dos locais e causos a serem

coletados foi feito a partir das seguintes fontes: de referências próximas a mim,

(21)

uma vez que sou parte do próprio lugar, e assim, já conhecia algumas dessas histórias e sabia de possíveis contadores e contadoras, além de contar com indicações de familiares; de referências próximas aos alunos membros do Grupo de Teatro Arte Federal, uma vez que a pesquisa passaria por eles, e tornar-se-ia essencial que também participassem dessa fase; por meio de pesquisa em livros ou documentos sobre histórias da região; além de contar com possíveis indicações surgidas livremente ao longo do processo, como de um contador indicando outro.

2 - coleta dos causos:

A partir desse levantamento, passamos para a coleta, por meio de pesquisa participante (interação entre pesquisador e membros das comunidades), das histórias e causos, que fazem parte do imaginário popular dos moradores do lugar. Essa pesquisa desenvolveu-se por meio de livres conversas, em visitas feitas aos contadores e contadoras, e o conteúdo foi guardado de forma escrita (transcrição dos causos – Anexo 1, p. 156 - 180) e eletrônica (diário, gravações de voz, fotos e filmagens, conforme DVD – Anexo 5, p. 213).

A pesquisa participante foi uma importante ferramenta para o trabalho, pois possibilitou uma interação mais livre com os personagens sociais em questão, garantiu-nos uma observação do evento como um todo, permitindo-nos ir além das palavras e dos registros.

Sobre o causo, seus contadores e o processo de coleta, nos ateremos logo nos dois primeiros capítulos deste trabalho.

3 - breve estudo do material:

Com o material coletado em mãos, optamos por fazer um breve estudo antes de o inserirmos no Grupo de Teatro. Esse estudo será apresentado detalhadamente mais adiante, no terceiro capítulo desta dissertação, e nos apontou elementos importantes para que pudéssemos inseri-lo de forma mais segura em sala de trabalho.

A toda essa primeira parte da pesquisa, optamos por chamar de “O Pré da História”.

4 - processo de trabalho do material – transcriação cênica:

A partir daqui, ingressamos na segunda parte do trabalho, que

chamamos de História. No capítulo 4, apresentamos as referências que

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A pesquisa prática foi desenvolvida da seguinte forma: no grupo de teatro, apresentamos o material coletado, apreciamos o material trazido pelos alunos e outros que pudessem servir de referência ao que pretendíamos trabalhar. Percebemos na prática a importância dessas manifestações na formação cognitiva de cada um, tais como, o desenvolvimento do imaginário, a formação de um sujeito pensante, ativo e participativo da cultura do lugar onde vive. A partir disso, vislumbramos as contribuições da cultura popular para esses alunos e retomamos o exercício de contar causos. Optamos aqui por trabalhar com exercícios teatrais inspirados em algumas técnicas, com destaque para a de improvisação e a de Mímesis Corpórea

8

.

5 - montagem de um exercício cênico:

No fim, o que se buscava era a montagem de um exercício cênico, não como um produto final, mas como uma soma de tudo que nos afetou nesse processo, e sobre ele falaremos ainda no capítulo 4.

O 5° e último capítulo será um espaço para as últimas reflexões e considerações finais.

Todo o processo de pesquisa durou aproximadamente todo o ano de 2014, mesmo sabendo que não se extinguiria após a apresentação do exercício cênico, como se verá nos últimos relatos desse processo.

Essas serão, portanto, algumas das paisagens encontradas após o primeiro passo rumo à pesquisa. Mas antes do primeiro passo, lembremo-nos de Agamben, que nos apresenta uma metáfora ao colocar que o ser contemporâneo deve perceber o escuro ao olhar para o seu tempo, e nos diz que devemos “neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas” (AGAMBEN. 2009, p. 63). Relacionamos a pesquisa a essa escuridão, ou seja, buscamos algo que se encontra ainda no encoberto. A escuridão não existe quando já sabemos o que queremos ver, onde queremos

8

A Mímesis Corpórea é uma metodologia de atuação desenvolvida pelo Grupo Lume que

utiliza de ações do cotidiano, coletadas por meio da observação atenta, imitadas e codificadas

no corpo dos atores. As ações observadas são retiradas de um contexto específico pré-

determinado, e após codificadas transformam-se em ações físicas e vocais que tornam-se

material de trabalho e criação.

(23)

chegar. Assim, é importante que partamos da ausência de luz, para que possamos conquistar objetivos mais claros ao final.

E assim, principiando dos escuros essenciais para qualquer pesquisa, começamos essa jornada...

Vamos?

(24)

...E o contador de causo é quem conta o causo do jeito que quer... quem conta um causo melhor do que é?

9

Como já dito anteriormente, nessa pesquisa tomaremos como cerne os causos, e a partir dessa manifestação popular levantaremos questões, teceremos relações e trilharemos caminhos.

Assim, é indispensável que nos atentemos inicialmente sobre alguns pontos e busquemos algumas definições que poderão nos auxiliar no desenvolvimento da pesquisa.

As definições e terminologias para se chegar ao causo podem ser inúmeras, e, por diversas vezes são contraditórias entre si. Aqui, resolvemos apresentá-lo como uma prática popular, uma vez que é a manifestação genuína de um povo, e sua tradição é perpassada de pessoa a pessoa. Assim, podemos entender o causo como uma tradição oral, folclórica e popular.

Como tradição oral, trata-se de uma narrativa, uma história contada na maioria das vezes no meio rural, por “caipiras”.

...é estruturado a partir da visão do homem do campo, trabalhador rural, que, ao contar o acontecimento para a comunidade, mesmo avaliando o acontecido, não deixa de convertê-lo em algo imanente, concreto, importante, rememorável (SPERBER, 2009, p. 461).

Seus relatos perpassam pelo assombro, pelo susto, pelo medo, têm sempre algo de misterioso, de suspense. Sperber (2009, p. 461) destaca ainda o tom recriminatório que está presente nos causos, sempre buscando atribuir culpa aos envolvidos, e causar nos ouvintes arrependimento e o propósito de não cair em tentação.

Daniel Borges (2014) também destaca a importância dos causos dentro da cultura caipira ao dizer:

É uma importante forma de expressão do imaginário caipira, respaldando o indivíduo em sua capacidade imaginativa e resolvendo

9

Trecho da Música “O contador de causo” de Chico Teixeira - Composição: Marcelo Barbosa /

Fábio Caetano

(25)

sincretismos culturais de outras culturas absorvidas pela cultura caipira durante os últimos séculos. Os seres lendários destas culturas, africanas, europeias e indígenas, foram em sua maioria, posicionados dentro da cosmogonia caipira (BORGES, 2014, p. 157).

Além de ser um importante elemento do sincretismo entre as culturas, como apontado acima, o causo é também um relato do vivido, pois o contador insere em seu contexto ficcional elementos do real, afirmando mais uma vez a cultura caipira.

Faz-se necessário um esclarecimento sobre o termo “caipira”, que já foi e ainda será usado diversas vezes no decorrer dessas páginas. Falamos de caipira, não como usualmente encontraremos divulgado pela massa, de forma pejorativa, porém como um modo de vida, um tipo social e cultural, que engloba as culturas tradicionais do homem do campo. Sabemos que essa cultura passou por inúmeras transformações ao longo do tempo, mas apresenta particularidades e características que vão muito além daquelas tratadas diversas vezes de forma caricatural pela grande mídia. Como Antônio Cândido, adotaremos o termo caipira para “designar os aspectos culturais (...) exprimindo desde sempre um modo de ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial” (2010, p. 27).

O termo folclore

10

, porém, pode causar algumas confusões e torções de nariz ao ser usado. Para clarear o uso do termo aqui, usaremos das falas de Câmara Cascudo, ao dizer que “para que [a prática] seja folclórica é preciso uma certa indecisão cronológica, um espaço que dificulte a fixação no tempo”, e mais, “o folclórico decorre da memória coletiva, indistinta e contínua”

(CASCUDO, 1978, p. 23). Sabemos que o termo folclore, ou aquilo que dele deriva, não é muito bem visto nos dias de hoje, por seus usos equivocados e pejorativos. Se nos virarmos para trás, para observarmos um pouco a própria história relacionada ao uso do termo, veremos que foram muitas as críticas dentro do próprio campo da sociologia e da antropologia:

As críticas ao caráter colecionador, descontextualizado, a-crítico e descritivo das pesquisas folclóricas constituem seu ‘calcanhar de Aquiles’, quando vistas pela perspectiva das ‘Regras do Método

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O termo Folclore (folk-lore) surgiu pela primeira vez em 1848 pelo etnólogo inglês William John Thoms em uma carta publicada na Revista The Atheneum para designar os estudos das então chamadas

“antiguidades populares” (ROCHA, 2009, p. 219).

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antropologia ainda por muito tempo (ROCHA, 2009, p. 222-223).

A partir da ideologia do desenvolvimentismo implantada no governo de Juscelino Kubitschek (1955), que pregava um desenvolvimento racional e científico, o folclore passa a ser incompatível com o projeto de construção da sociedade moderna, e vê-se ligado à tradição, e por isso, preso ao passado.

Assim, começa a ser pregada uma distinção entre folclore e cultura popular, em que folclore estaria ligado à tradição, e cultura popular à transformação. A partir daqui, o folclore passa a adquirir um sentido negativo, ligado inclusive a certo atraso cultural (ROCHA, 2009, p. 223).

Mas, neste trabalho, buscamos usar o termo folclore e seus derivados em sua forma mais pura e límpida, ligado às manifestações populares e, no caso, às manifestações orais. O folclore, nesse sentido, torna- se sinônimo de cultura popular e ambos estão diretamente ligados ao conceito de patrimônio cultural imaterial. Assistimos, nos últimos anos, a essa retomada das tradições culturais, mas é preciso ter claro que para que uma tradição permaneça existindo, ela deve modificar-se.

Sem cair no romantismo que caracteriza os estudos folclóricos passados, o que muda nessa nova abordagem da cultura popular à luz do conceito de patrimônio imaterial é a tentativa de restituir ou de dar voz ao ‘povo’. Daí não parecer ocasional a profusão de estudos sobre performance no campo da cultura popular. Afinal, não só a expressão corporal, mas também a oral ganham enorme visibilidade e significação na antropologia da performance (ROCHA, 2009, p. 230).

O termo performance é usado aqui ao tratarmos da ação dos contadores e contadoras. Esse termo é usado em lugares e situações diversas, seja no campo artístico, filosófico ou científico, e por isso torna-se importante delimitar um pouco seu uso neste trabalho. Abordaremos a performance como

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Émile Durkheim elaborou um conjunto de métodos que julgava importante ao trabalhar a natureza dos

fenômenos sociais. As regras que propõe no processo de investigação dos fatores sociais passam pela

observação, à distinção entre normal e patológico, à constituição dos tipos sociais, à explicação dos fatos

sociais e à administração das provas. Para aprofundamento no assunto, pode-se ler As regras do método

sociológico (1895) e Da divisão do trabalho social (1893).

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(...) uma série de enquadramento de ações – gestos, impostações de voz, escolha e uso de palavras – que configuram, por sua vez, um certo modo de ser, de se conduzir – que restaura um comportamento determinado, tornando-o, por assim dizer, coreografado – própria do espaço em que se insere e no tempo que lhe é determinado pela comunidade a qual se dirige (PEREIRA, 2010, p. 146).

Dessa forma dá-se ao termo uma qualidade que intensifica a palavra, altera. Instaura-se uma aura. Aproxima-se do ritual. A performance como uma techné ultrapassa o saber fazer e atinge o saber ser. E nesse sentido, a performance sai do campo de estudo individual, e liga-se ao comportamento humano e sua organização em uma determinada cultura, ou seja, está relacionada às relações entre os indivíduos. Performance, aqui, está relacionada à experiência em si, ao encontro com os atores de nossa pesquisa, e aquilo que resulta dele, ao acontecimento como um todo.

(...) é ação de palavra que carrega seu gesto e sua voz, o mundo e sua terra. Performance é ato de potência, conjuga na emissão uma recepção: é voz que escuta, ouvido que fala, olho que gesticula; ato único de participação, de co-presença. Ela conduz, ainda, ao secreto, às secreções do corpo – sendo o que vaza do corpo, o que borra o conceito (PEREIRA, 2010, p. 149).

Hartmann também utiliza do termo performance em sua pesquisa

com os contadores de causos da Campanha do Rio Grande do Sul, e coloca

que o uso desse conceito mostra uma mudança no foco dos pesquisadores,

que, a partir dele, buscavam trabalhar com a totalidade do evento narrativo

(2000, p. 54). Em nossa pesquisa, cada elemento no ato da contação será de

essencial valia, uma vez que buscamos a recriação desse processo vivo em

sala de trabalho. Assim, um gesto, uma alteração no tom de voz, uma pausa,

uma interrupção, um cheiro, enfim, qualquer elemento que vá além da palavra

em si torna-se um elemento importante. Aqui está o tesouro que tanto

buscamos: mergulharemos nesse espelho d’água límpido, e nos deixaremos

inundar pelas vivências dessas manifestações, pois, se cada contador ou

contadora imprime sua cor, sua dança, sua versão a essas histórias, também

nós – agora parte dessa manifestação, e não meros observadores – também

nos deixaremos afetar e seremos marcados nas brasas dessa fogueira de

possibilidades.

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intelectual, enquanto a sua irmã, bem mais popular, “age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo (...)” (CASCUDO, 1978, p. 26), espalhando-se pelos terreiros, festejos, bailes, novenas...

A literatura oral brasileira reúne todas as manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição. Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo. É a quase definição dicionarista do Morais

12

, na edição de 1831: “Tradição, notícia que passa sucessivamente de uns em outros, conservada em memória, ou por escrito” (CASCUDO, 1978, p. 27).

Quando se fala em recreação popular, Cascudo nos lembra que vai além das brincadeiras e divertimentos, próprios do universo infantil. A recreação passa também pelo caráter religioso, com suas festas e liturgias.

Antônio Cândido também fala do caráter lúdico-religioso ao tratar dos modos de vida do caipira em sua obra Os parceiros do Rio Bonito, colocando-o como um elemento essencial nesse modo de vida. Ele define esse aspecto como algo que vai além do âmbito familiar, e essencial para sustentar o sentimento de grupo, a socialização (2010, p. 85).

Luciana Hartmann, da mesma forma, fala sobre o uso dos termos e denominações em sua pesquisa sobre os contadores de causos da Campanha do Rio Grande do Sul em 2000. Nela, a autora aponta que as manifestações orais vêm recebendo uma série de denominações por parte dos pesquisadores, e que muitas vezes são polêmicas e geram controvérsias. Especificamente, ao usar o termo literatura oral, por exemplo, alguns autores dão mais ênfase ao uso da “palavra, desconsiderando as expressões não verbais, gestuais e vocais dos narradores e sua interação com o público” (HARTMANN, 2000, p.

53). Dessa forma, Daniel Mato

13

sugere o uso do termo “arte de narrar”, pois assim haveria uma importância dada não só à palavra em si, mas ao ato como

12

O Diccionario da Lingua Portugueza de António de Morais Silva, publicado em 1789, constitui uma das mais importantes obras relacionadas à lexicografia portuguesa. Vários autores faziam referência a essa obra em suas pesquisas, como podemos confirmar na citação de Câmara Cascudo.

13

MATO, Daniel. Narradores en Acción – problemas epistemológicos, consideraciones teoricas y observaciones de campo en Venezuela. Caracas, Academia Nacional de la Historia / Fundacion Latino.

1992.

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um todo. Esse termo aproxima-se bastante do que propomos trabalhar, uma vez que nos interessa o fenômeno da narrativa em sua totalidade.

Esses processos populares fazem parte do imaginário coletivo de um lugar, compõem o conjunto que forma o patrimônio imaterial de um povo.

Seu canto, sua dança, seus mitos, suas fábulas, suas tradições, seus causos, trazem junto a si a história do local, as emoções de seu povo, suas conquistas, suas decepções, enfim, elementos que tecem a teia da memória do seu lugar.

E os causos dos Pés de Minas, da mesma forma, reúnem em si esses

elementos que por meio da memória oral vem formando as características que

moldam esse povo e essa região.

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que ecoam na pesquisa e outras referências

Para se escrever sobre um meio, é necessário senti-lo até no sangue, e não poder viver nele. Assim como para escrever sobre um ser humano é necessário compreendê-lo, a ponto de amá-lo... e não poder fazer nada por ele – às vezes nem mesmo suportá-lo.

14

Mas, de que lugar estamos falando? Quem são esses contadores?

De quem são essas vozes que ecoam pelos ares? Atentaremos, nesse capítulo, em caracterizar esse lugar, essas pessoas, seu modo de vida e sua cultura. Apresentaremos um pouco melhor os caminhos trilhados, tentando dividir com você, leitor, um pouco das paisagens, das cores, dos sabores, dos climas encontrados nessa peregrinação em busca de causos. Daremos corpo a essas vozes.

Paralelamente a isso, teceremos relações com autores com os quais fomos dialogando ao longo do processo e apresentaremos ainda outras obras, artísticas e literárias, que influenciaram de alguma forma a pesquisa.

Aproveite que embarcou conosco nessa viagem e abra seus olhos e seus ouvidos para deixar-se levar por essas sensações. Já não estamos mais no meio daquela estrada, mas dobramos algumas curvas, subimos alguns morros e, podemos avistar à nossa frente algumas casas espalhadas pela paisagem. Observe como a fumaça preta sobe pelas chaminés, nos convidando a experimentar novos cheiros e sabores. Mas, antes de chegarmos, achamos por bem apresentar-lhe melhor a esse lugar.

Serras verdes que mais parecem grandes tapetes espalhados até onde a vista alcança, horizonte límpido e infinito, cheiro de terra molhada, fumaças que sobem pelas chaminés anunciando que o café está saindo do coador na taipa do fogão a lenha... Esses são alguns elementos dos cenários

14

Delmiro Gonçalves (Prefácio). In: ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. p. 14. São Paulo:

Perspectiva, 1986.

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encontrados nessa peregrinação em busca dos causos. Cenários perfeitos que se mesclam às vozes entoadas nas preces e cantorias em honra ao santo padroeiro, no cheiro das velas que iluminam as capelinhas, ponto alto da fé de um povo, e na contação de causos que surgem de forma quase espontânea.

Como já dito antes, optamos por nomear o trabalho de Causos dos Pés de Minas por buscar recolher causos desse lugar que compreende o extremo Sul de Minas. É difícil nomear geograficamente, visto que Minas Gerais tem um território bastante extenso, e quando falamos em Sul de Minas, ainda assim, trata-se de um território bastante grande e diverso. Dessa forma, a solução foi estreitar ainda mais o espaço, tomando o lugar pelo Circuito do qual faz parte, uma vez que Minas é dividida em diversos desses circuitos.

Assim, nos restringimos ao Circuito das Malhas, que compreende as cidades de Borda da Mata, Inconfidentes, Ouro Fino, Monte Sião e Jacutinga.

Imagem 1: Mapa do Circuito Turístico das Malhas. Fonte: www.turismo.mg.gov.br. Acesso em 7 de Agosto de 2015 às 14h04.

Mas, ainda assim, tratava-se de um espaço amplo a ser explorado, e

o objetivo do trabalho, mais que obrigar-se a explorar todo esse mapa, era o de

encontrar, aqui e ali, contadores e contadoras que ainda mantivessem a

tradição de espalhar a oralidade desse povo. Dessa forma, decidiu-se partir

para um encontro mais livre, e iniciou-se assim, a busca. Não recolhemos

causos em todas as cidades do circuito, mas de certa forma, todas as cidades

estiveram presentes, seja pelas referências, quando um contador citava causos

acontecidos nas cidades vizinhas, ou pela própria proximidade, pois algumas

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conversamos muito no decorrer da pesquisa. Trata-se de Antônio Cândido e sua obra Os parceiros do Rio Bonito. Nela o autor apresenta de forma bastante clara o caipira e suas características, e ao lê-la me pegava, a todo instante, fazendo aproximações e relações com os Pés de Minas. A leitura fácil, fluida e tranquila me fazia crer que lia uma importante pesquisa, porém com algo muito próximo ao que me pretendia escrever. Pude perceber que enxergaria melhor o contexto da atual pesquisa pelos olhos de Antônio Cândido, e a partir de sua leitura, (re)significar minha própria existência e da cultura de meus pais.

Bem, voltemos à apresentação do local da pesquisa. Os Pés de Minas encontram-se em uma área de confluência com o Estado de São Paulo, e Antônio Cândido, que situa seus estudos no caipira do interior de São Paulo, nos mostra que, ao contrário do que se pode pensar, nossas pesquisas não encontram-se distantes e isoladas, mas, possuem uma forte ligação, apesar de encontrarem-se em estados diferentes. O esclarecimento encontra-se na própria obra de Antônio Cândido:

(...) notemos que o mineiro, (...) não é indiscriminadamente o natural das Minas Gerais: é, sobretudo, o habitante das suas áreas centrais, relativamente urbanizadas, beneficiadas pelo surto civilizador da mineração, ligadas à capital do país. O habitante do sul e do oeste de Minas, (...) aproximavam-se, inclusive ética e historicamente, do caipira paulista, de quem se originam muitas vezes, e com o qual mantêm contacto incessante, pelas migrações que os vêm trazendo a São Paulo de torna-viagem, há mais de um século (CÂNDIDO, 2010, p. 53).

Ao ler Cândido, fica clara esta forte ligação entre o Sul de Minas e o interior de São Paulo. Essa ligação pode ser facilmente notada nas aproximações entre seus costumes, crenças e seu sotaque. O autor chega a chamar esta área de paulista-mineira, ou Região Mojiana. Mojiana porque cortada pelo Rio Moji, que sai de Minas e chega a São Paulo, e é aqui o lugar onde se concentra nossa pesquisa.

A escolha do ponto de partida dessa peregrinação se deu pela

proximidade entre autor e lugar. Local onde havia nascido, crescido, ouvido

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inúmeras histórias fantásticas. Não podia ser diferente. A plataforma de embarque foi a cidade de Jacutinga. O município tem sua origem da forte imigração italiana, iniciada por volta de 1835, data da construção de sua primeira capela do então povoado chamado de Ribeirão de Jacutinga. Situada no extremo sul de Minas Gerais, a apenas 12 km da divisa com o Estado de São Paulo, a cidade hoje se destaca como polo de fabricação de malhas de tricô. Conta, aproximadamente, com 22.772 habitantes

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, numa área territorial de 347, 750 km².

Imagem 2: Mapa territorial da cidade de Jacutinga / MG. Fonte: IBGE (www.cidades.ibge.gov.br). Acesso em 7 de Agosto de 2015 às 13h49.

É uma cidade, hoje, bastante evoluída economicamente e que vem ocupando lugar de destaque no cenário nacional. Mas, percebemos que muito de sua história vem se perdendo, escrava dessa marcha desenfreada do progresso, como podemos perceber nos apelos de Benedito Campos Pereira do Valle, um filho da terra, que escreveu um livro elencando preciosas memórias desse lugar:

15

Fonte: IBGE (www.cidades.ibge.gov.br). Acesso em 7 de Agosto de 2015 às 13h 30 .

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uma e outra autoridade ou anunciar que o júri estava se formando.

Em você ao falar de sino, me fez lembrar de um na Matriz de Santo Antônio, de bela sonoridade, que segundo habitantes mais antigos, na liga havia prata; o sino que serviu por muitos anos, para chamar e dar entrada aos estudantes nas casas de ensino; sinos de fazendas que badalavam o início e o término da jornada dos trabalhadores rurais.

Lembro-me também, da caminhada do antigo mercado municipal que às 12 horas (meio-dia), tocava, avisando aos vendedores de que podiam baixar o preço da mercadoria em até 20%, às 14 horas, novo sinal – para o vendedor apreçar ou optar pelo preço que quisesse e finalmente um sinal longo e em seguida outro curto, às 16 horas para o encerramento dos negócios e posteriormente fechamento do prédio.

Lembranças de muitas saudades.

Havia na Igreja Matriz um altar de madeira da lavra e labor da família Pinheiro (como se diz: Pretos de alma branca), que também construíram a antiga casa paroquial. Mas, o altar, como se diz hoje de linhas e acabamento do Primeiro Mundo. Onde será que está?

Também havia em cima do altar-mór uma imagem de Santo Antônio, talhada a canivete, em tronco de laranjeira. Onde estará? (VALLE, 2000, p. 20-21).

Podemos perceber em suas falas uma preocupação urgente com a preservação do patrimônio da cidade, e nas páginas que escreve, busca com simplicidade e maestria nos alertar para a importância dessa preservação.

Insere, inclusive, em suas colocações a importância da oralidade do povo:

No Largo da Capela havia um único hotel do distrito, denominado:

hotel “O Machadinho”. Grandes árvores de Santa Bárbara faziam a arborização das ruas. Quando houve a devastação das florestas para se construir a capela, essas árvores foram preservadas. Perto de cada casa existia uma ou mais árvores. Pegado ao tronco, cada proprietário tinha o seu banco de madeira para a tomada da fresca à tardinha. Em frente ao hotel “O Machadinho”, reunia-se os próceres locais para conversar sobre política e caçadas (VALLE, 2000, p. 41).

Os causos colhidos em Jacutinga estão ligados a dois bairros rurais da cidade: Serra Morena e Fubá. Perguntar-me-ão, por que começar por esses? A resposta é simples: porque aqui começou também a minha história.

Aqui residiram e ainda residem a minha família. Aqui começou o interesse por

essa manifestação da cultura popular. Assim, como toda caminhada deve

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iniciar-se pelo primeiro passo, nada melhor trilhar os primeiros passos por um território conhecido.

Além disso, as comunidades localizam-se num ponto estratégico, pois fazem divisa com outras comunidades localizadas nas cidades vizinhas de Ouro Fino e Monte Sião. Assim, vários causos fazem parte da memória coletiva e envolvem acontecimentos e lugares desses três municípios. Por exemplo, o causo do fazendeiro que virou corpo-seco (Anexo 1 – p. 177 - 178) tem sua história desenrolada exatamente na divisa entre o Bairro Serra Morena (Jacutinga) e o Bairro dos Almeidas (Monte Sião), onde se localiza a capela que faz parte da história (Imagem 39 - Anexo 2 – p. 181). O Mato dos Penacchi, palco de várias histórias assombrosas também está localizado nos dois municípios. É comum algumas histórias contadas por moradores do Bairro Fubá (Jacutinga) fazer referência ao vizinho Bairro dos Peitudos (Ouro Fino).

Começamos a perceber então que, na verdade, as histórias transitavam bastante por esses territórios, livremente, como eu me dispunha a desenrolar a pesquisa.

Partimos daqui então.

A partir de agora, você poderá apreciar anotações do Diário de Bordo que me acompanhou durante toda a pesquisa. Esses trechos integrarão essa dissertação, acompanhados por comentários e relações que possam acrescentar na construção da mesma. Esses primeiros relatos dizem respeito à primeira etapa, a da coleta de causos. Por se tratar de anotações pessoais e impressões particulares, perceberá a transição da primeira pessoa do plural (nós) para a primeira pessoa do singular (eu).

Dia 24 de Julho de 2014.

Primeiro dia.

Sítio Santo Ângelo. Bairro Serra Morena. Jacutinga-MG.

Residência da Família Negri.

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de levantar. Despertado por uma boa caneca de café e bolinhos de chuva que acabam de sair do fogo, é hora de caminhar, revisitar antigos locais, presenças reais e causos que me acompanharam toda a vida.

O sol também acorda preguiçoso, mal querendo sair por entre as nuvens... Mas, amanhece.

Imagem 3: Nascer do sol no Sítio Santo Ângelo – Bairro Serra Morena – Jacutinga / MG. 24/07/2014

Subo o morro em direção ao lugar que costumava chamar de “meu

lugar preferido no mundo”. Por quê? Não sei ao certo, mas, aqui sentado,

traçando essas linhas, posso desconfiar e ouso citar alguns motivos: talvez

esse tenha sido, e é, um refúgio, porto seguro a me lembrar sempre de onde

vim e para onde vou. A vista que aponta para cadeias de montanhas sem fim

parece nos lembrar do infinito, e apontar o caminho que se inicia aqui, mas não

sabemos onde termina.

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Imagens 4 e 5: Paisagem vista do alto de um morro no Sítio Santo Ângelo – Bairro Serra Morena – Jacutinga / MG. 24/07/2014.

*Nas imagens é possível avistar cadeia de montanhas e terras pertencentes a outros municípios vizinhos.

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música nesse palco imenso e divinal. Talvez por isso seja meu lugar preferido?

Costumava me sentar aqui, desde criança, solitário, mas não sozinho. Como estar sozinho com tamanhas histórias rondando meu pensamento? É daqui, deste porto seguro infinito, início da estrada, que parto em busca de mais histórias, mais pessoas, mais lugares...

Mas, hoje, a caminhada não será para ouvir causos, e sim para revisitar lugares. Decidi andar por paisagens e locais que me trouxessem de novo o cheiro da infância, que me fizessem reviver a sensação de ser parte desses causos. Quem sabe assim, embebido por essas sensações, torne-se mais fácil fazer-me expressar nessas linhas?

Parti. Dei um primeiro passo. Caminhei. Pelo espigão

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afora, fui observando as montanhas se estenderem pela paisagem. Fui ouvindo o barulho do vento soprando nas folhas verdes das bananeiras, que parecem desencadear uma dança com todas as outras vegetações. Fui olhando as ruas de café que parecem grandes labirintos, onde não é possível ver o fim. Pronto, o menino está de volta, a pensar: “O que tem depois daquela curva?”, “Que barulho é esse?”, “Será um passarinho a remexer as folhas secas de café que amontoam-se no chão?”, “E se não for um pássaro?... O que será?”. Estava instaurado de novo o clima ideal para a absorção dos causos.

Quando dei por mim, andando perdido em meus pensamentos, estava eu em um lugar fantástico: sob as folhas da árvore do saci (Imagem 45 - Anexo 2 – p. 184). Exatamente! Um dos lugares mais incríveis e emblemáticos de minha infância. Lugar onde teria se desenrolado um dos causos que aconteceu em minha família – O causo do Saci que carregou o Loli (Anexo 1 – p. 168 - 170). Fiquei ali um tempo, a observar e imaginar como tudo teria acontecido, puxando pela memória os detalhes desta história fantástica. Depois de muito tempo ali, olhando de vários ângulos aquele lugar, continuei a caminhada, e passei pela jabuticabeira onde o Loli teria desaparecido (Imagens 43 e 44 - Anexo 2 – p. 183 - 184), ponto inicial desse causo. De lá, subi outra serra, enveredei pelo meio do mato... e assim, quando dei por mim, o dia já se

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Espigão é a parte mais elevada de uma serra, seu cume.

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findava, e achei melhor voltar pra casa, afinal no escuro é que essas histórias ganham vida, não é?

Para o dia seguinte, programei-me para iniciar a escuta e coleta das histórias.

A captação dos causos que integraram esse processo de transcriação cênica e dos corpos que deram vida à pesquisa foi feita da seguinte forma: não utilizamos um roteiro fixo, nem na procura dos agentes, nem nas entrevistas, mas optamos por um caminho mais livre, em que uma história levasse à outra, e um contador se ligasse ao outro. Por isso, começamos pelas relações mais próximas, as familiares. Num primeiro momento, ainda não elencaríamos nenhum familiar para contar histórias, somente utilizaríamos suas indicações, visto que havia uma forte carga desse processo popular no ambiente familiar. Mas, como bons contadores, não é preciso pedir para que emane uma boa história. E foi só surgir um ambiente propício para que se criasse uma genuína roda de contação. E como não incluí-la? Ou melhor, porque não? Resolvemos então começar por aí, e daí por diante foram só puxar pelas recordações para que surgissem outros contadores nas proximidades. Então, partimos para a caminhada. Agendamos outras conversas e comparecemos nas casas. Como uma boa “prosa”, iniciamos com as lembranças de pessoas, de lugares e logo iniciam-se os causos em si. E assim, o processo de coleta foi avançando.

Como a parte prática da pesquisa aconteceu na cidade de Inconfidentes, campus do IFSULDEMINAS, e acreditamos fosse muito importante que a captação também passasse pelos alunos, ao mesmo tempo, sugerimos que estes também partissem em busca de histórias. Assim, após algumas coletas, apreciamo-las em sala de trabalho.

Para a coleta, lançamos mão de diferentes meios: captação de vídeo

e áudio, fotografias, além da posterior transcrição dos causos.

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Durante as caminhadas, tivemos ao alcance todo o material a ser usado: para a captação de vídeo foi usada uma câmera digital portátil modelo DSC-S2000, uma máquina bastante simples, mas que servia ao objetivo que era simplesmente armazenar as imagens para posterior transcrição. Ao apreciar o DVD (Anexo 5 – p. 213), fica fácil perceber que a qualidade das imagens não é das melhores, mas, como dito, serviu-nos em nosso propósito naquele instante. Como forma de prevenção, caso algum imprevisto nos acometesse, trazia sempre também o aparelho celular, pensando na possibilidade de lançar mão de seu gravador de voz, mas isso nunca foi necessário. Além desse aparato tecnológico, trazia sempre à mão o velho diário de trabalho, em que anotava todo o processo e relatava momentos, sensações e reflexões. Por isso, tomamos a liberdade de relatar o processo de coleta no formato de diário, incluindo essas anotações às linhas dessa dissertação.

Como o foco dessa pesquisa é a transcriação cênica, que viria a ser trabalhada com os alunos posteriormente, não nos preocupamos com a coleta de um volume muito grande de material, até porque isso poderia confundi-los ou até atravancar o processo criativo que viria a acontecer. Assim, foram gravadas histórias colhidas do encontro com oito pessoas, e são essas que o leitor pode acompanhar pelos anexos. Todas essas conversas foram gravadas mediante a ciência dos contadores, tanto do ato da gravação, quanto do seu posterior uso na atual pesquisa. Mas é importante ressaltar que nem todas as experiências foram gravadas, pois algumas vivências aconteciam nos trajetos, em conversas informais, ou seja, na inserção no modo de vida dos mesmos.

Isso muitas vezes passou a integrar o processo de transcriação por meio de relatos orais e conversas com os alunos, que também traziam suas vivências, causos coletados e experiências, o que também foi incluído a este trabalho.

A partir de agora, então, nos ateremos à descrição do processo de

coleta dos causos:

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Dia 25 de Julho de 2014.

Segundo dia.

Sítio Santo Ângelo. Bairro Serra Morena. Jacutinga-MG.

Residência da Família Negri.

O dia amanhece molhado. Uma chuva fina cai lá fora, uma neblina toma conta da paisagem e o frio continua apertando. Nesse clima, a caminhada programada para o dia vai se tornando difícil. O jeito é esperar.

Pela hora do almoço minhas irmãs decidem iniciar o processo de feitura de uma feijoada. O dia está convidativo a isso. Uma vizinha, Míriam, mulher de um primo, chega e nos sentamos todos na cozinha, em volta do fogão. As mulheres proseiam e preparam o tão esperado almoço. Não demora muito e o assunto dos causos vem à tona. Aos poucos desencadeia-se uma corrente de lembranças e histórias.

Imagens 6 e 7: Contadoras Maria Ivone, Creuza e Miriam – Bairro Serra Morena – Jacutinga / MG. 25/07/2014

Eu não tinha programado que a pesquisa perpassasse pela minha família, mas pensando que o interesse nasceu e foi criado aqui nesse meio, e que esta também seria uma fonte inesgotável, pensei melhor. Por que não?

Afinal, ao abrir espaço para uma pesquisa assim, estamos sujeitos a todo tipo

de encontro e os mais valiosos são exatamente os menos formais.

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puxar a conversa foi Maria Ivone, sempre entrecortada, questionada e inflamada pelas outras duas, numa calorosa roda de contação. Surgiram lembranças, nomes, personagens, questionamentos, dúvidas e crenças.

É interessante notar que, além de relembrar os causos, surge uma preocupação das contadoras em analisar a verdade ou inverdade do mesmo.

Questões como “Por que hoje em dia as pessoas não veem mais as mesmas assombrações?” são lançadas à roda e elas tentam respondê-las, comprovando ou não a veracidade da história trazida à tona. Outra questão surgida diz respeito à religião e fé. Discutiremos mais sobre isso no capítulo 3, quando faremos uma breve reflexão sobre os causos coletados.

Após um bom tempo de conversa, encerramos essa roda de causos para saborear a maravilhosa feijoada que ficava pronta. Depois do almoço, na companhia de uma sobrinha, continuei visitando lugares dos causos. Fomos pelo alto de serra, até a Igrejinha dos Penacchi e à Casa Mal Assombrada (Imagens 39, 40 e 41 - Anexo 2 – p. 181 - 182), palco de outro causo, que será contado mais adiante.

Dia 26 de Julho de 2014.

Terceiro dia.

Sítio Santo Ângelo. Bairro Serra Morena. Jacutinga-MG.

Residência da Família Negri.

No dia seguinte, outra irmã (Mercedes) chegou para cuidar do meu

pai. Ficamos por ali. Eu pude acompanhar e auxiliá-las um pouco na rotina da

roça como amontoar o café no terreiro, cuidar das vacas e cavalos, da cerca,

mas as ações mais comuns nos traziam de volta às beiras do fogão de lenha. E

foi ali, com minha irmã Mercedes preparando a massa de um bolinho, que ela

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