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Luto e maternidade na adoção de crianças maiores

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Academic year: 2021

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Luto e maternidade na adoção de crianças maiores

Uma homenagem às Mães Nordestinas

Vixe...

O cabra pode escolher muita coisa nessa vida...

Ser artilheiro ou goleiro, pedalar ou correr,

Inté o sabor das coisas a gente pode escolher!

Mas a coisa mais joiada, mais preciosa, mais arretada da vida da gente,

Simplesmente não se escolhe...

A MÃE!

Ela que é um pedacim de Deus no mêi do mundo, Um tantim assim de bravura,

e um tantão assim de ternura.

Mãe é doce feito mel de rapadura, macia feito algodão,

cheirosa feito milho na fogueira numa noite de São João.

Mãe é pura perfeição, não tem pra que escolher.

E mesmo assim,

se eu tivesse a graça desse poder, de todas as mães do mundo, teria escolhido você!"

- Bráulio Bessa

Começamos o trabalho com o poema de Braulio Bessa (2015), feito em homenagem às mães nordestinas, mas porque não dizer às mães, de um modo geral? A intenção de trazer esse texto é lembrar como, em nossa sociedade, é representado o papel de mãe: “pura perfeição”, “coisa mais joiada, mais preciosa”. Embora não tenha essa sido uma verdade sempre.

Durante vários séculos o exercício da maternidade fora dispensado. Considerada mais um membro da família inferior ao marido, a mãe era hierarquicamente tratada como os filhos em referência ao pai. Da maneira que conhecemos hoje, a imagem da mulher-mãe, responsável pelos cuidados dos filhos, pelo afeto e pelo afago, pintada nos

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versos acima, surgiu com muito menos doçura, tendo sido construída, na verdade, pela conveniência social de um determinado momento da história.

O mito do amor materno, incondicional e perfeito, foi criado no final do século XVIII, quando fez-se surgir a ligação fundamental entre o sexo feminino e a maternidade, que até então não existia. Até aquele momento, as mulheres não eram consideradas responsáveis pela sobrevivência ou pela educação dos seus filhos, nem eram convocadas a assumir a função de maternagem, que era delegada a amas de leite e criadas, logo após o parto ser realizado (Badinter, 1985).

Ironicamente, foi o aumento do índice de mortalidade infantil e da transmissão de doenças relacionados a promiscuidade que tornaram necessária a beatificação da função de mãe para as mulheres. Com a necessidade de se preservar a saúde da burguesia e a vida das crianças que um dia serviriam de mão de obra; transformar a mulher em mãe se constituiu em um projeto de Estado, que envolvia reformular a imagem do sexo feminino para o modelo que até hoje conhecemos (Nunes, 2000).

Apoiados ainda pelos princípios do catolicismo, diversos movimentos foram realizados com esse objetivo. Antes julgada um ser de pecado a partir da figura de Eva, era através da imagem da virgem Maria que se oferecia às mulheres a opção se ascenderem, de se tornarem mais puras, se aproximando da imagem da mulher que concebeu Jesus Cristo. Ser mãe se tornou divino, um papel único que só aquela que gesta pode desempenhar, uma missão para todas as mulheres e uma definição do que é o feminino.

Em razão da necessidade emergente da criação de novos ideias para o feminino, o próprio Iluminismo se torna veículo de difusão dessa proposta. A partir de pensadores como Rousseau, Diderot e Voltaire, portanto, surgem argumentações racionais de que à mulher cabia a maternidade, uma vez que esse fora um papel designado-lhe pela própria natureza de seu corpo delicado e frágil, características pertinentes para o cuidado das crianças (Nunes, 2000).

Hoje, quando relemos o poema de Braulio Bessa, passado-se quase três séculos dessas medidas, percebemos que pouco mudou acerca dessa imagem. Talvez não mais pelas mesmas razões políticas, mas, ainda assim, meninas continuam sendo preparadas para desejar o papel de mãe, e mulheres convocadas para exercê-lo, como maneira de se reafirmarem enquanto mulheres.

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O próprio discurso psicanalítico reforça a maternidade como um lugar de distinção, condição única na qual só a mulher poderia oferecer os cuidados que a criança precisa, pois teria em si o “instinto” necessário para atender ao filho (Freud, 2006[1905]). Além disso, atribui à chegada do bebê um sentimento de compensação pela sua castração, um deslizamento na equação simbólica em que o desejo do pênis é representado, então, pelo desejo de um filho (Freud, 2006[1924]).

É diante dessa ligação fundamental entre o sexo feminino e a maternidade que se torna relevante pensar os lutos que envolvem a adoção para a mulher e principalmente para aquelas mulheres que optam pela adoção de crianças maiores de quatro anos, nesse trabalho nomeadas “adoções de crianças maiores”. Isso porque tem se tornado evidente nas adoções de crianças nesse perfil uma frequente dificuldade dos adotandos se filiarem as mulheres que os adotam, sem apresentar a mesma dificuldade, no que se refere aos pais adotivos.

Não sem grande sofrimento, às adotantes é reservado um período de exílio afetivo, que muitas vezes dificulta a formação do vínculo de filiação, podendo levar a desistência da adoção, o que reeditaria para criança adotada sua história de rejeição e abandono.

Nesse sentido, percebemos a necessidade de compreensão desse fenômeno e dos processos psíquicos envolvidos nesse tipo específico de adoção, na tentativa de promover filiações mais bem sucedidas, onde prevaleça a qualidade das adoções realizadas sobre a quantidade.

Para isso, há que se pensar: embora a chegada da criança adotada, seja geralmente experienciada como um momento de realização e encontro, não podemos deixar de considerar o fato de que, para adoção acontecer, vários desencontros e abandonos foram necessários. Para a família que recorre a adoção, principalmente em razão da infertilidade, alguns lutos precisam ser vivenciados para que enfim, a libido, outrora investida no filho biológico, na gestação e na maternidade, esteja disponível para ser reinvestida no filho adotado.

De modo geral, para os requerentes à adoção, torna-se necessário primeiro luto:

o luto do filho biológico. Isso porque o filho se inscreve na história de cada um como projeto de imortalidade do ego (Freud, 2006[1914]). A realidade de não tê-lo biologicamente se apresenta como grande ferida narcísica a ser trabalhada, para se possa

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reescrever o projeto de imortalidade do ego com um filho que não portará herança genética, mas herdará seus valores, nomes e se inscreverá numa cadeia simbólica, pertencendo a sua linhagem familiar.

Portanto, como um processo fundamental para o acolhimento do filho adotivo, é necessário que ocorra o reconhecimento da infertilidade. Caso contrário, a vulnerabilidade do casal afetado pela impossibilidade de gerar pode constituir um problema, impedindo a vivência do luto e consequentemente impedindo que a libido seja retirada do objeto ausente – o filho biológico –, sendo reinvestida em um novo objeto.

Aqueles que não conseguem elaborar sua impossibilidade de filiar biologicamente acabam colocando a adoção como subfiliação, na qual o adotando vem apenas amenizar a ferida narcísica. Isso porque, se por um lado, a criança adotada torna possível o sonho de ter um filho, por outro, ela pode tornar-se a representação viva da impossibilidade de gerar. Por conseguinte, caso não haja o desinvestimento do filho desejado biologicamente e se os pretendentes à adoção não se apropriem e elaborem os efeitos da infertilidade, as arestas referentes a tais dificuldades serão permanentes marcas e obstáculos no estabelecimento do novo vínculo (Queiroz, 2012)

Como um segundo luto, especificamente, no que se refere às mulheres, as requerentes precisam elaborar a impossibilidade da gestação. Em uma sociedade que atribui ao bebê a compensação da castração e à gravidez a reafirmação do feminino, não gestar remete a mulher a inferioridade, afastando-a da pureza da virgem Maria, e reforçando sua falta. Por essa razão, na adoção, além do luto do filho biológico, passa a ser necessário, para as requerentes, uma ressignificação do feminino, um desinvestimento da gravidez como única representação da maternidade: o luto de não ter engravidado.

Porém, ainda que elaborados esses dois lutos, no cenário já exposto, em que as famílias optam pela adoção de uma criança maior, um terceiro luto se torna imprescindível: o luto do lugar de mãe enquanto objeto de amor primordial. Isso porque, pela experiência com adoções nesse perfil, percebemos que a formação de vínculos frequentemente ocorre de maneira diferente para homens e mulheres. Os adotantes são quase que imadiatamente nomeados como “pai”, enquanto as requerentes permanecem como “tias” durante um longo tempo do estágio de convivência. Além disso, não é incomum que surja na fase de adaptação narrativas de resistência aos afagos

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das mães e até mesmo comportamentos agressivos direcionados às requerentes (Albuquerque, 2016).

Evidentemente isso não acontece sem porquê. Para as crianças adotadas em idade maior, o lugar de mulher-mãe tem cargas afetiva e mnêmica que dificultam a vinculação com a mãe adotiva, o que não ocorre com a figura do pai. Quando pensamos as vivências dessas crianças colocadas para adoção em uma idade maior, precisamos lembrar que a maior parte delas não teve em sua história uma referência paterna. Em contrapartida, em razão da idade, elas têm recordações vivas de sua genitora e a referência afetiva dessa mulher enquanto mãe.

Usando o mesmo discurso de ascensão do papel materno, aqui podemos pressupor que para as crianças colocadas disponíveis para adoção, mãe também é insubstituível, não havendo espaço para a adotante ocupar esse lugar, sem que a criança passe por um trabalho de preparação e luto relacionado às suas próprias vivências. Além disso, em razão de seu estágio no desenvolvimento infantil, a criança adotada em idade maior não exige mais a colocação da mãe como objeto de amor primordial.

Sendo assim, a mulher que até então fora privada da filiação biológica e tolhida de parte de sua feminilidade pela infertilidade, após recolher sua libido investida nesses projetos, busca na adoção uma maneira de reinvestir em uma criança adotada a libido outrora voltada para a filiação biológica. Investindo na adoção acreditam que enfim serão compensadas pela sua castração, se tornando o grande objeto de amor de seus filhos. Porém, nas adoções desse perfil, as mulheres não mais parecem tão necessárias e, muitas vezes, na verdade, acabam preteridas a figura do pai.

Além de se sentirem cerceadas do direito de gerar filho, na adoção empreendida, são solapadas no direito de ser o primeiro objeto de amor. Veem-se preteridas e em desigualdade com seus maridos que passam a ocupar o lugar primeiro para a criança adotiva.

Nesse sentido, torna-se imprescindível pensarmos na importância da vivência do luto, para essas famílias e principalmente para essas mulheres, no que se refere aos investimentos que fizeram acerca do papel de mãe, como primeiro objeto de amor de seus filhos. É preciso pensarmos no auxílio possível às famílias em tal situação para lidar com todas as marcas afetivas que podem aparecer nas adoções de crianças maiores.

Pensadas as diferentes formas de vinculação do homem e da mulher aos objetos de amor, parece pertinente ressaltarmos a responsabilidade do homem na garantia do lugar de mãe para a mulher adotante. Se, para a criança recém-nascida, o pai é inserido na sua

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realidade pela mãe (Winnicott, 1999), podemos dizer que, na adoção de crianças maiores, o pai se apresenta como resposta para melhor vinculação da criança com a mãe adotiva.

Com isso apontamos para uma ressignificação do trabalho realizado com adoção, para melhor pensarmos a metodologia utilizada nas filiações de crianças maiores, uma vez que ainda nos valemos dos métodos aplicados nas adoção de bebês. Sendo clara as diferenças no processo de filiação das crianças em diferentes estágio de seu desenvolvimento, a nova e urgente demanda de adoção de crianças maiores, traz consigo evidentes implicações psíquicas, jurídicas e sociais carentes de maior compreensão, as quais não podem ficar sob controle do empirismo para serem respondidas (Trindade-Salavert, 2010).

Portanto, para aqueles comprometidos com a qualidade dos serviços voltados a

"proteção integral da criança e adolescente" e o "melhor interesse da criança”, compreender as vicissitudes que permeiam as adoções de crianças acima de quatro anos torna-se uma obrigação. Pois, embora não seja possível abolir os sofrimentos permeiam as histórias de todas as famílias em algum momento, seria criminoso negligenciar a prevenção de sofrimentos que hoje se sabem certos de acontecer.

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REFERÊNCIAS

Albuquerque, C. (2016). O Processo de Filiação de Crianças Maiores aos Pais Adotivos. Recife, PE. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica – UNICAP Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:

Novas Fronteiras.

Bessa, B. (2015). Homenagem às mães nordestinas. Acesso 12 ago. 2016. In:

https://www.facebook.com/nacaonordestina/posts/958996774133559

Freud, S. (2006[1905]) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, pp. 117-297.

Freud, S. (2006[1914]) Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, pp. 75-108

Freud, S. (2006[1924]) A Dissolução do Complexo de Édipo. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, pp. 189-199

Levizon, G.K. (2004). Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Nunes, A. (2000) O Corpo do Diabo entre a Cruz e a Caldeirinha: um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Queiroz, E. (2012) O “Romance Familiar” na adoção. In: Queiroz, E. F.; Passos, M.

(Org.) A Clínica da Adoção. Recife: Editora Universitária da UFPE, pp. 103-116.

Trindade-Salavert, I. (2010) Subjetividades que se Interligam: Adotantes, Adotados e Intermediários. In: Trindade-Salavert (org). Os Novos Desafios da Adoção:

Interações psíquicas familiares e sociais. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, pp.

15-43.

Winnicott, D. W. (1999) Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.

Referências

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