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FREI LUÍS DE SOUSA, de ALMEIDA GARRETT

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FREI LUÍS DE SOUSA, de ALMEIDA GARRETT

A DIMENSÃO PATRIÓTICA E A SUA EXPRESSÃO SIMBÓLICA

• O patriotismo é um dos temas de Frei Luís de Sousa. A ação do drama é marcada pela situação do País em fins do século XVI, época em que se encontra sob dominação de Espanha, e pelos sen- timentos de amor nacional que esta realidade polí- tica desperta nas personagens.

• A situação política de Portugal tem grande im- portância na ação da peça, tendo em conta que D. Manuel de Sousa Coutinho, Telmo e Maria desejam a independência do Reino e não aceitam a governação espanhola; o protagonista recusa-se mesmo a colaborar com os governadores ao ser- viço do rei estrangeiro e a afronta-os incendiando a sua própria casa. Numa das linhas de ação da peça, a tensão dramática resulta deste conflito.

• A própria ideia de Portugal é assumida como tema desta obra de Garrett, que se assume como a tra- gédia coletiva de um povo. Frei Luís de Sousa apresenta uma reflexão sobre a nação portuguesa, uma nação que tinha sido grande mas que, na época histórica da ação do drama, perdera a sobe- rania política e se encontrava em estado de hiber- nação, esperando ressurgir… caso ainda fosse possível.

• A peça constrói a ideia de que Portugal deixou de existir durante a Dinastia Filipina e é um mero fantasma (é «Ninguém!») que alguns creem poder res- suscitar (Lourenço, 2013: 86): o Reino perdeu a sua independência e espera recuperá-la com a chegada de D. Sebastião, que, na verdade, morreu na Batalha de Alcácer-Quibir.

• A família de D. Manuel de Sousa Coutinho representa simbolicamente a tragé- dia coletiva de Portugal. Os protagonistas, Maria e Telmo, anseiam pela liber- dade e pelo ressurgimento da pátria. O velho aio deseja que o seu antigo amo, D. João de Portugal — que representa simbolicamente D. Sebastião —, esteja vivo e regresse. Porém, hesita quando dá conta de que o seu regresso trará a ruína da família.

• Desta forma se inculca que o velho Portugal, que morreu em Alcácer-Quibir

— o Portugal de D. Sebastião e de D. João —, já não conseguirá um novo ímpeto e fazer ressurgir a Nação; trata-se apenas de um fantasma sem sentido que está preso na saudade e na ideia de passado. Por outro lado, o novo Portugal, representado por D. Manuel, D. Madalena e Maria, acaba por não ser a solução para o problema da Nação, pois estas personagens morrem (física ou simbolicamente) e com eles morre a esperança de futuro de um novo País.

Miguel Lupi, D. João de Portugal, cena de Frei Luís de Sousa (1865).

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O SEBASTIANISMO: HISTÓRIA E FICÇÃO

• Devemos assinalar o patriotismo de Garrett, que exprime nesta peça o seu sentimento nacional, o orgulho por temas pátrios e o seu combate pela liber- dade na período da política autoritária e opressiva do governo de Costa Cabral (1842-46). O olhar crítico sobre uma época do passado (Dinastia Filipina) alude indireta e criticamente às circunstâncias políticas da época da escrita da peça (1843-44).

• A ação de Frei Luís de Sousa decorre vinte e um anos após a histórica Batalha de Alcácer-Quibir (1578), em que morreu o rei D. Sebastião e parte da nobreza nacional. A batalha teve consequências diretas na perda da soberania nacional, pois Portugal foi politicamente anexado a Espanha em 1580.

• O sebastianismo consiste, inicialmente, na crença de que o jovem rei, que morre em Alcácer-Quibir, regressará não só para recuperar a independência de Portugal como também para dar um novo impulso ao Reino a fim de conse- guir que este saia do estado de ruína e marasmo em que se encontra. Nesta vertente, trata-se de uma crença messiânica pois parte do princípio de que a salvação da pátria e de um povo está nas mãos de uma figura (histórica ou lendária) e que ela fará renascer a Nação a partir das cinzas e a conduzirá num caminho glorioso.

• Com o passar dos tempos, o sebastianismo já não se referirá ao regresso físico de D. Sebastião mas sim à chegada de uma personagem que assumisse esta função salvadora ou a uma ideia que desempenhasse esse papel, como sucede com o mito do Quinto Império, de que Vieira e Fernando Pessoa trataram.

• Em Frei Luís de Sousa, D. João de Portugal não regressa de Alcácer-Quibir, é feito prisioneiro e só voltará vinte e um anos depois à Pátria, com D. Madalena casada em segundas núpcias, desencadeando assim as consequências trágicas que se conhecem. D. João alude simbolicamente a D.  Sebastião, e o seu regresso serve para especular sobre as consequências do regresso do antigo rei.

• Nesta peça de Garrett, o sebastianismo é perspetivado de forma crítica e nega- tiva. Por um lado, porque a saudade deste velho Portugal, que Telmo protago- niza, não traz a solução para o problema da Pátria. Por outro, porque o regresso de D. João (e da ideia de uma nação decadente) impossibilita que se opere a mudança e o surgimento de um novo Portugal (de Madalena, Manuel e Maria) que consiga triunfar.

RECORTE DAS PERSONAGENS PRINCIPAIS 1. D. Madalena

• D. Madalena vive numa grande instabilidade emocional: o terror que lhe provoca a possibilidade de regresso de D. João nunca a deixa desfrutar da felicidade de viver ao lado do homem que ama. Os seus receios são alimentados pelas contí- nuas alusões de Telmo à iminente vinda daquele que considerava como o verda- deiro amo. A  tensão nervosa em que vive mergulhada é também aumentada pelo pecado que lhe pesa na consciência: o facto de se ter apaixonado por D. Manuel de Sousa Coutinho enquanto ainda era casada com D. João. Muito embora se tenha mantido fiel ao seu marido, considera que o facto de amar secretamente D. Manuel era já uma traição. O sofrimento é ainda intensificado pelo profundo amor que sente pela filha, na medida em que tem consciência de que o regresso de D. João — ou a simples noção da sua existência — a poderiam matar.

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•    A sua crença no oculto leva-a a entrever  presságios de desgraça em vários aconte- cimentos aparentemente fortuitos.

•    Apesar de parecer psicologicamente mais  frágil do que D. Manuel, curiosamente,   é ela quem, no fim, se mostrará mais re-  voltada por ser forçada a  separar-se do  marido e a ingressar no convento. 

•    Ao contrário de D. Manuel, mantém até  ao último momento a esperança de evitar  o desenlace trágico.

2. D. Manuel de Sousa Coutinho

•  Esta personagem é, tal como D. Madalena, uma figura de grande densidade  psicológica, o que se manifesta nos contrastes que marcam a sua personali- dade. Todo o seu discurso se pauta por uma racionalidade e lucidez que se  traduzem na recusa dos agouros e de qualquer sentimento de culpa em relação  ao passado. Apesar disto, até ele se mostra desagradado quando Maria lhe fala  na possibilidade de regresso de D. Sebastião, o que demonstra que, na reali- dade, não estava absolutamente convicto de que D. João tinha morrido na  Batalha de Alcácer-Quibir. O ceticismo que mostra em relação aos presságios  é também contrariado quando recorda que o pai fora morto pela própria  espada, interrogando-se sobre se também ele não será vítima do fogo que  ateou.

•  O heroísmo que demonstra ao atrever-se a enfrentar abertamente os governa- dores portugueses ao serviço de Castela parece esbater-se aquando do regresso  de D. João: ao contrário de D. Madalena, o seu sofrimento não o impede de  aceitar com resignação a solução de ingressar numa ordem religiosa.

•  Finalmente, a cultura revelada por D. Manuel e o seu amor às letras funcionam  como prenúncios de que se irá converter num dos maiores prosadores da lite- ratura portuguesa.

3. Maria

•  Maria é uma menina muito inteligente e precoce para a sua idade.

•  Tendo sido criada por Telmo, tem-lhe um amor profundo, partilhando da sua  crença no regresso de D. Sebastião. 

•  Maria acredita ter a capacidade de desvendar o oculto, traço que, supostamente,  é agudizado pelo aumento da sensibilidade que o facto de estar tuberculosa lhe  proporciona. A sua intuição apurada leva-a a compreender que há algo que toda  a família lhe quer ocultar, no intuito de a proteger. 

•  A coragem que demonstra quando incita o pai a queimar o palácio  manifesta-se  também no fim, quando enfrenta as convenções sociais e as próprias conven- ções religiosas, afirmando que nada justifica a destruição de uma família.

•  Apesar da sua força interior, a sua fragilidade física não lhe permite sobreviver   ao desgosto de descobrir que é filha ilegítima, acabando por morrer de vergonha.

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4. Telmo

• O escudeiro destaca-se, numa fase inicial, pela sua severidade, que o leva a criticar D. Madalena por se ter casado segunda vez sem estar certa da morte do primeiro marido e mesmo a sugerir que, em consequência disto, Maria poderia não ser uma filha legítima.

• No entanto, a inflexibilidade que revela (e que se manifesta, por exemplo, no facto de nunca mentir) virá a ser quebrada aquando da chegada do Romeiro.

Confrontado com a necessidade de salvar Maria, apercebe-se de que já a amava mais do que ao primeiro amo. Assim, dispõe-se, pela primeira vez na vida, a mentir, em nome dos afetos. É interessante verificar que, desta forma, se humaniza, aproximando-se de D. Madalena, a quem tanto criticara anterior- mente, na medida em que se apercebe de que o amor por vezes se sobrepõe aos princípios morais.

5. Frei Jorge

• Tal como o irmão, Frei Jorge caracteriza-se pela sensatez, procurando sempre auxiliar a família.

• A personagem tem um papel determinante na resolução do conflito entre D. Manuel e os governadores ao serviço de Castela.

• No Ato Terceiro, quando D. Manuel se verga ao peso da desgraça, é Frei Jorge quem toma todas as providências para que o irmão e D. Madalena ingressem no convento — procurando, simultaneamente, amparar a família e funcionar como intermediário entre as personagens.

• Apesar de se comover com o sofrimento a que assiste, Frei Jorge mostra-se inflexível na obediência aos seus princípios, recusando qualquer solução que passasse pela mentira, mesmo que esta lhe permitisse impedir a catástrofe.

Com efeito, considera que a entrada na vida religiosa proporcionará a D. Manuel e a D. Madalena o consolo e a redenção de que necessitavam.

6. D. João de Portugal

• Este fidalgo, apesar de ser considerado pelas outras personagens como uma figura digna de temor pela dignidade e rigidez na fidelidade aos seus princípios, acaba por revelar-se muito humano. Confrontado com o facto de que D. Madalena tinha feito todos os esforços para o procurar e de que ela tinha uma filha, mostra-se disposto a anular a sua própria existência para salvar toda a família da catástrofe.

O ESPAÇO E O TEMPO 1. O espaço

• Podemos distinguir dois tipos de espaço num texto dramático: o espaço cénico, formado pelo palco e pelo cenário, e o espaço representado, o lugar a que o espaço cénico pretende aludir («faz de conta» que estamos num palácio, no campo, etc.). A informação sobre o espaço é dada ao leitor atra- vés das didascálias, sobretudo as que se encontram em início de ato, mas também através das falas das personagens.

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• A ação de Frei Luís de Sousa desenrola-se em dois palácios de Almada. As salas dos palácios onde os acontecimentos têm lugar constituem o espaço represen- tado. As personagens fazem também referência a outros locais com importância para o enredo: este é o espaço aludido, mencionado por palavras. Esses lugares são, sobretudo, Alcácer-Quibir e a Palestina, onde D. João estivera aprisionado.

• Em termos de macroespaços, toda a ação de Frei Luís de Sousa decorre em Almada. A cidade reveste-se de um forte valor simbólico pela oposição que estabelece com Lisboa: na capital está instalada a sede do governo de Portugal, que é controlado pela coroa espanhola. A classe dominante e os governadores portugueses traíram a sua pátria e colaboram com a potência invasora. Daí que a peste que se abateu sobre Lisboa sugira simbolicamente o estado de corrup- ção moral e política em que vivem aqueles que se venderam ao rei de Espanha.

Por seu turno, do outro lado do Tejo, longe da corrupção moral, Almada respira ares «saudáveis». Aí se encontram as personagens patrióticas, fiéis a Portugal:

destacam-se D. Manuel, Maria, Telmo e D. João.

• O Ato Primeiro decorre no palácio de D. Manuel, numa sala ornamentada e luxuosa, sugerindo que este lugar é habitado por personagens nobres. Se uma casa simboliza a estabilidade de uma família, este palácio transmite a ideia de conforto, bem-estar e a união e o amor familiares. Por esse motivo, o incêndio que destrói o solar revela-se um presságio da desagregação do núcleo familiar, consumada pela catástrofe que se abaterá sobre os seus membros.

• Perdido o palácio de D. Manuel, a família muda-se para a antiga casa de D. João de Portugal (e de D. Madalena). O Ato Segundo decorrerá numa sala austera e fria, pouco ornamentada e de «gosto melancólico e pesado». Os retra- tos de D. Sebastião, D. João e Camões conferem solenidade à cena e são uma recordação do velho Portugal independente e grandioso que pereceu em Alcácer-Quibir. Esta sala é uma divisão interior, sem janelas ( simbolizando a prisão e o afastamento do mundo), inóspita, pautada pela gravidade e ilumi- nada por tochas e não pelo Sol. As personagens perderam a noção de lar.

D. Madalena vive em estado de receio e tensão.

• A ação do Ato Terceiro decorre na parte baixa do palácio de D. João. O espaço subterrâneo é ainda mais fechado, mais escuro, quase não tem ornamentos:

trata-se de um lugar propício a sensação de claustrofobia — há mesmo portas que separam as personagens e que lhes impedem a livre circulação. A sala subterrânea tem ligação à «capela da Nossa Senhora da Piedade», represen- tando que o casal optou pela vida religiosa e a família está condenada à desa- gregação. No fim do ato, surge, ao fundo, o interior da Igreja de São Paulo.

• Podemos, assim, interpretar a sucessão de espaços como um percurso grada- tivo do mundo terreno para o sagrado e espiritual. É este o caminho que a família vai percorrer: D. Madalena e D. Manuel, porque ingressarão na vida monástica; Maria, porque morrerá e irá para o «Céu».

• Assistimos também a um progressivo afunilamento do espaço: de uma sala com grandes janelas e onde a luz natural penetra, no Ato Primeiro, passando por uma sala fechada (Ato Segundo) até chegarmos a um espaço subterrâneo e em que as personagens parecem já enclausuradas (Ato Terceiro). Por um lado, este fecha- mento do espaço contribui para o aumento da tensão em cena; por outro, esse trajeto ilustra a progressiva limitação de soluções para o problema com que a família de D. Manuel depara.

• O espaço psicológico — domínio das vivências mentais de uma personagem:

pensamentos, sonhos, sentimentos dessas — tem, no texto dramático, o monó- logo e o solilóquio como modos privilegiados de expressão (mas não os únicos).

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• O solilóquio inicial de D. Madalena dá voz às inquietações da personagem, ainda que de forma enigmática. Na penúltima cena do Ato Primeiro, é D. Manuel que, só em palco, justifica o gesto de atear fogo à sua própria casa. Na Cena IX do Ato Segundo, desempenhando funções semelhantes às do coro da tragédia grega, Frei Jorge, só em palco, dá conta da preocupação que sente com a situa- ção em que aquela família se encontra. Por fim, no importante solilóquio da Cena IV do ato final, Telmo manifesta o conflito interior entre a fidelidade ao seu antigo amo e um grande amor a Maria.

2. O tempo

• A peça inicia-se com a apresentação dos antecedentes da ação, que abarcam um longo período temporal. Há referências à Batalha de Alcácer- Quibir, que tivera lugar vinte e um anos antes, e a momentos ainda anteriores. Depois da batalha, e durante sete anos, D. Madalena promoveu buscas para saber se D. João ainda está vivo. No fim deste período, e como a procura se revelou infrutífera, acabou por casar-se com D. Manuel.

• Em contrapartida, a ação da peça desenrola-se num breve período de tempo, sensivelmente uma semana. O segundo ato decorre no dia do aniversário da Batalha de Alcácer-Quibir. Tendo em conta que esta batalha teve lugar no dia 4 de agosto de 1578, e que D. Madalena afirmara que já haviam passado vinte e um anos desde a batalha, é possível localizar a ação deste ato no dia 4 de agosto de 1599. Uma vez que estes acontecimentos se desenrolam oito dias depois dos do primeiro ato, podemos concluir que o primeiro ato decorre no dia 28 de julho de 1599. Quanto ao terceiro ato, passa-se durante a noite do dia 4 de agosto.

• Constatamos que há uma progressiva concentração temporal: da evocação dos episódios de um longo período de vinte e um anos (Ato Primeiro), passamos a acontecimentos que se desenrolam em dois dias, separados entre si no período de uma semana. Nos Atos Segundo e Terceiro, a velocidade dos acontecimen- tos precipita-se: tudo sucede no dia do aniversário da Batalha de Alcácer- - Quibir, prolongando-se depois pela noite e pela madrugada, que anuncia já o dia seguinte.

• Este afunilamento progressivo do tempo contribui para intensificar a tensão dramática, na medida em que todos os acontecimentos se sucedem de forma cada vez mais rápida, até ao desenlace trágico.

A DIMENSÃO TRÁGICA

• No que diz respeito à intriga trágica, é interessante verificar que há uma con- centração de personagens, de espaço e de tempo, como vimos, de modo que nada seja supérfluo e que tudo contribua para a intensificação da tensão dra- mática.

• De notar que, de acordo com os factos históricos, D. Madalena tivera três filhos do primeiro casamento, que são aqui eliminados, para que a aniquilação de Maria represente, de facto, o extermínio completo da família.

• Da mesma forma, todo o desenrolar da ação converge para o desenlace trá- gico. Mesmo o momento em que D. Manuel parece revoltar-se contra o destino, incendiando o seu palácio, acaba por servir a fatalidade que se abate sobre as personagens, na medida em que as obriga a família a mudar-se para o palácio de D. João, local aonde este regressará.

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1. Presença dos elementos da tragédia clássica

Elementos da tragédia clássica Presença em Frei Luís de Sousa

• Hybris — consiste num desafio feito pelas personagens à ordem instituída (leis humanas ou divinas).

• A hybris é perpetrada tanto por D. Madalena como por D. Manuel de Sousa Coutinho. Com efeito, no primeiro caso, o desafio consistiu no facto de a personagem se ter apaixonado por D. Manuel de Sousa Coutinho quando ainda era casada com D. João de Portugal. Além disso, ambas as personagens põem em causa a ordem instituída ao casarem sem terem provas irrefutáveis da morte de D. João de Portugal.

• Peripécia — de acordo com a Poética, de Aristóteles (2000 [c. 300 a. C.]), é «a mutação dos sucessos no contrário», isto é, o momento em que se verifica uma inflexão abrupta dos acontecimentos.

• Anagnórise — palavra que significa

«reconhecimento»; segundo a Poética, de Aristóteles, «é a passagem do ignorar ao conhecer», podendo consistir na revelação de acontecimentos desconhecidos ou na identificação de determinada personagem.

• Na Poética, Aristóteles afirma que

«[a] mais bela de todas as formas [de anagnórise] é a que se dá juntamente com a peripécia, […] porque suscitará terror e piedade […].»

• A peripécia e a anagnórise ocorrem em simultâneo: com a chegada do Romeiro e o reconhecimento da sua identidade (anagnórise), dá-se uma inversão brusca nos acontecimentos (peripécia) — o casamento torna-se inválido e Maria torna-se filha ilegítima.

• Clímax — momento culminante da ação.

• O clímax ocorre na cena final do Ato Segundo, pois é neste momento que a tensão dramática atinge o seu auge: D. João de Portugal dá a conhecer de forma inequívoca a sua identidade, demonstrando, ao mesmo tempo, de forma paradoxal, que o esquecimento a que foi votado anulou a sua existência.

• Catástrofe — desenlace trágico. • A família é totalmente exterminada: D. Madalena e D. Manuel morrem para o mundo, ingressando na vida religiosa, e Maria morre, de facto.

• Ágon — conflito vivido pelas personagens; pode designar o conflito com outras personagens ou o conflito interior.

• As atitudes de D. Madalena ao longo da intriga são um reflexo do conflito interior que a atormenta: desde o primeiro momento que mostra sentir-se grata por viver com o homem que ama, tendo, no entanto, consciência de que a sua felicidade é frágil, dado que a construiu com base na suposição da morte do marido.

• Por seu lado, também Telmo é vítima de um conflito interior:

depois de ter passado vinte e um anos a desejar o regresso do antigo amo, apercebe-se de que, na verdade, o seu amor por Maria acabou por superar o que nutria por D. João de Portugal, mostrando-se disposto a abdicar dos seus princípios éticos para a salvar.

(continua)

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LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA 1. Estrutura

1.1 Estrutura externa

• A estrutura externa de uma obra diz respeito à organização «visível» do texto literário (e traduz-se na forma como essa organização se apresenta grafica- mente). Frei Luís de Sousa é uma obra dramática, ou seja, um texto preparado para a representação teatral.

• Como a esmagadora maioria das obras do modo dramático, a peça de Garrett é composta por um texto principal, que consiste nas falas das personagens, e por um texto secundário, que é constituído pelas didascálias, ou seja, pelas indicações cénicas sobre a ornamentação do palco, os adereços, a luz, a movi- mentação e os gestos das personagens, etc.

• Enquanto drama romântico, Frei Luís de Sousa é um texto em prosa estruturado em três atos: a mudança de atos corresponde à mudança do local da ação.

(Note-se que as tragédias clássicas eram compostas em verso e dividiam-se, por regra, em cinco atos.) Por sua vez, cada ato organiza-se em várias cenas, que terminam com a entrada ou saída de personagens do palco.

(continuação)

Elementos da tragédia clássica Presença em Frei Luís de Sousa

Pathos — sofrimento crescente das personagens.

• O sofrimento das personagens vai-se intensificando,

a ponto de o próprio Frei Jorge se sentir inclinado a acreditar na possibilidade de uma catástrofe iminente.

Ananké — é o destino; preside à existência das personagens e é implacável.

• A presença do destino é visível pelo facto de todos os

acontecimentos convergirem para o desenlace trágico e de haver um afunilamento do espaço e do tempo, que mostra que as personagens são inexoravelmente conduzidas para a catástrofe.

Catarse — efeito purificador que a tragédia deve ter nos espectadores:

ao desencadear o terror e a piedade, permitir-lhes-ia purificarem as suas emoções.

• O terror e a piedade desencadeados nos espectadores são adensados pelo facto de a catástrofe se abater sobre uma família (na qual se inclui Telmo) que se ama profundamente e de todas as personagens serem profundamente retas e dignas.

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1.2 Estrutura interna

• A estrutura interna de uma obra dramática refere-se à organização do enredo.

Tradicionalmente, divide-se a ação dramática em três momentos: exposição inicial da situação, conflito e desenlace.

• Na exposição inicial de Frei Luís de Sousa, que ocupa, sensivelmente, as Cenas I a IV do Ato Primeiro, são-nos apresentados a época e o contexto em que o enredo se desenrola, as personagens centrais do drama (D. Manuel é apenas referido) e os antecedentes da ação (o passado das personagens).

O conflito vai-se adensando ao longo do texto (entre a Cena V do Ato Primeiro e a Cena IX do Ato Terceiro). As questões que animam este conflito são, essen- cialmente, os receios de D. Madalena, o antagonismo entre D. Manuel e os governadores do Reino e a doença de Maria. Um primeiro momento de grande intensidade ocorre quando o Romeiro afirma que D. João de Portugal (ele pró- prio) está vivo, no fim do Ato Segundo.

• O desenlace (Cenas X e XII do Ato Terceiro) dá conta da resolução do problema central da obra e do «caminho» que cada personagem toma: Maria morre, D. Madalena e D. Manuel ingressam na vida religiosa. Note-se que este desenlace tem na morte de Maria o segundo momento de grande intensidade da peça.

• A estrutura interna de Frei Luís de Sousa é pautada pelos elementos trágicos da ação (cf. páginas 35-37 deste livro).

2. Linguagem e estilo

• Ao contrário da tragédia clássica, por regra escrita em verso, Frei Luís de Sousa foi composto em prosa. Desta forma, os diálogos ganham um sabor de colo- quialidade e fluidez que dificilmente teriam com o verso.

• Por outro lado, seguindo as regras da tragédia clássica, a linguagem das perso- nagens centrais adequa-se ao estatuto social da nobreza: assim domina o nível de linguagem elevado e, frequentemente, encontramos um léxico rico e até erudito («ignomínia», «opróbrio», «pejo», etc.).

• As falas das personagens de Frei Luís de Sousa são marcadas por uma grande emotividade, fruto do seu estado de espírito quando confrontadas com os acontecimentos intensos ou com os seus receios. No texto abundam marcas linguísticas que traduzem os sentimentos das personagens: as interjeições (e as locuções interjetivas), as frases exclamativas e os atos ilocutórios expres- sivos. Os melhores exemplos estão nas falas de D. Madalena e revelam a influência dos melodramas românticos com uma linguagem demasiado retórica e emotiva.

• Associados aos sentimentos e ao estado de espírito das personagens estão as frases suspensas (ou seja, interrompidas), que pontuam as falas de diferentes personagens, exprimem as suas inquietações, perplexidades e hesitações. Por vezes, deixam no ar alguns subentendidos cujo significado é partilhado pelas personagens (ver o diálogo da Cena II do Ato Primeiro). Telmo e D. Madalena deixam por terminar as frases por não quererem mencionar o que receiam (o regresso de D. João, a desonra ou a doença de Maria) ou por hesitarem em verbalizar certos factos (a possibilidade de D. João não ter morrido).

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• As frases interrogativas, frequentes nas falas mais tensas, dão igualmente conta dos anseios e do desassossego das personagens, mas também da sua desorientação ou da incerteza em relação ao futuro. Por outro lado, a frase curta (por vezes constituída por uma única palavra: «Ninguém!») confere um tom incisivo aos diálogos e contribui para fazer crescer a tensão dramática.

• Por fim, ainda a nível do vocabulário, encontramos certas personagens associa- das a determinados campos lexicais. Frei Jorge e os outros prelados glosam o campo lexical da religião; Telmo, o aio, recorre a termos associados às ideias de honra e servidão («senhor», «amo», «servidor»). As repetições de palavras são utilizadas para exprimir a ansiedade ou a inquietação, mas frequentemente também o afeto entre os membros da família.

3. O drama romântico: características

3.1 O género de Frei Luís de Sousa

• Como introdução a Frei Luís de Sousa, Garrett apresenta uma «Memória ao Conservatório Real», texto ensaístico no qual reflete sobre questões centrais da sua obra dramática — sobretudo sobre o seu género, as suas fontes e o que o levou a escrevê-la.

• Relativamente ao género da obra, há que sublinhar o facto de Frei Luís de Sousa ter sido escrito em pleno Romantismo, um período literário cuja estética dominante rompia com os princípios da arte do período anterior — o Neo- classicismo. Coloca-se então a questão: este texto é uma tragédia clássica, de matriz greco-latina, ou um drama romântico, género literário que nasce no Romantismo e que representa o espírito da época? Garrett defenderá que Frei Luís de Sousa é um drama romântico que incorpora, a nível formal, características da tragédia (hibridismo de género).

a) Marcas da tragédia clássica

— Assunto digno de uma tragédia clássica, pela beleza, pela simplicidade e pelo sublime (segundo Almeida Garrett, na «Memória ao Conservatório Real»);

— Presença dos elementos da tragédia clássica (cf. páginas 36-37 deste livro);

— Ambiente carregado de presságios e sinais;

— Tom grave e estilo elevado;

— Linguagem cuidada;

— Personagens de condição elevada;

— Figuras que desempenham o papel do coro grego (que tem a função de comentar a ação):

Telmo e Frei Jorge.

b) Marcas do drama romântico

— Texto em prosa (e não em verso, como deve- ria suceder na tragédia clássica);

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— Não cumprimento da lei das três unidades (ação, espaço e tempo): na tragédia clássica, todos os acontecimentos deveriam convergir para o desenlace trágico, desenrolar-se no mesmo espaço e durar apenas vinte e quatro horas. Em Frei Luís de Sousa, não há, claramente, um cumpri- mento da unidade de tempo (a ação desenrola-se numa semana). Quanto à unidade de lugar, embora toda a ação se desenrole em Almada, há, de facto, uma mudança de espaço. Finalmente, podemos considerar que temos unidade de ação. Apesar de alguns estudiosos afirmarem que esta unidade é quebrada pela introdução do incêndio do palácio, evento que consideram que introduz uma ação secundária, a verdade é que o facto de D. Manuel destruir a sua casa obriga as personagens a mudarem-se para o palácio de D. João, local aonde este regressará;

— O drama romântico dá conta frequentemente de um tema histórico, que trata com liberdade literária;

— Presença de temáticas marcadamente românticas:

i. Liberdade individual — é visível na revolta de D. Manuel de Sousa Coutinho contra um governo ao serviço de Espanha, revolta que é apoiada por Maria e por Telmo, bem como no discurso final desta última personagem, no qual a jovem se insurge contra as normas de uma sociedade que lhe impõe a separação dos pais; além disso, a própria D. Madalena afirma a sua liberdade, ao casar-se com o homem que amava sem ter provas irrefutáveis de que o seu anterior marido tinha morrido;

ii. Patriotismo — é evidente não apenas na crença no comportamento de D. Manuel anteriormente referido, mas também na esperança de Telmo e de Maria no regresso de D. Sebastião, que implicaria a liber- tação de Portugal do jugo estrangeiro;

iii. Cosmovisão cristã — a religião tem um papel fundamental em Frei Luís de Sousa: é graças a ela que D. Manuel e D. Madalena conse- guem libertar-se da desonra que se abateu sobre eles com o regresso de D. João de Portugal (o ingresso na vida monástica permitir-lhes-á expiarem o seu pecado e renascerem para uma nova existência);

iv. Importância do oculto — a valorização do inconsciente e da intuição característica do Romantismo é visível pela referência às premoni- ções de Telmo, de D. Madalena e de Maria (que, no caso desta última, se associam à crença de que possui a capacidade de prever o futuro, através de elementos como os sonhos ou as estrelas); de notar que, à medida que a tensão dramática se adensa, a visão racional do mundo defendida por D. Manuel e por Frei Jorge é cada vez mais posta em causa — até que, no desenlace, todos os pressá- gios de catástrofe se cumprem;

v. Primazia dos sentimentos sobre a razão — além de comprovável pelo destaque conferido ao lado mais irracional do Homem (referido no tópico anterior), a valorização das emoções é também visível na importância conferida ao amor: é ele que leva D. Madalena a casar com o homem que amava sem ter a certeza plena de que o seu primeiro marido estaria morto;

vi. Mitificação da figura de Camões — no Romantismo, o poeta é,

muitas vezes, configurado como uma figura incompreendida e des- prezada pela sociedade, que não reconhece o seu génio; essa foi a imagem de Camões transmitida pelos românticos portugueses: a de um poeta que dedicou a sua vida à pátria e que, em troca, apenas foi alvo de ingratidão.

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Referências

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