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Movimento Nacionalista Hindu e Ensino de História.

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Movimento Nacionalista Hindu e Ensino de História.

Carla Cristiane de Oliveira Marson

Resumo

Desde o início do século XX, o Movimento Nacionalista Hindu vem buscando construir uma identidade nacional baseada em uma memória coletiva religiosa que reconheça as glórias do passado indiano. O movimento se opõe às narrativas da história acadêmica, defendendo aquelas baseadas nas tradições religiosas e nos mitos que legitimem o ufanismo nacionalista. A disputa entre história e memória religiosa tem gerado conflitos entre o movimento e os profissionais de história, tanto indianos quanto estrangeiros, devido a alterações arbitrárias nos livros didáticos, especialmente após a vitória do partido nacionalista Bharatiya Janata Party (BJP), braço político do movimento, nas eleições de 2014. Estes conflitos adotam feições por vezes violentas, com perseguições e ataques tanto a outros grupos religiosos quanto a professores e pesquisadores não alinhados com a ideologia nacionalista hindu ( hindutva). A vertente mais radical do movimento foi responsável pelo assassinato do líder pacifista Mahatma Gandhi, em 1948, pela morte de milhares de mulçumanos em 1992 e pelo banimento de obras historiográficas como Three hundred Ramayanas, de A.K. Ramanujam (1987), retirado da biblioteca da Universidade de Nova Deli, devido a protestos de nacionalistas hindus.

O objetivo deste trabalho é analisar alguns aspectos do discurso nacionalista religioso em relação à história. Partimos da hipótese de que o discurso nacionalista é construído com base em uma memória coletiva segundo a qual, a civilização, a cultura e mitologia indianas são homogêneas, puras, exclusivas e isentas de influências interculturais. Nesta perspectiva, o estrangeiro é visto como uma ameaça à integridade da cultura e da nação. A história secular é posta, desse modo, na posição de ameaça inimiga. Além disso, a ideologia nacionalista cega seus seguidores para o trânsito de culturas, ao ignorar a influência ocidental presente em seus próprios valores e ideais,

Doutoranda em Memória: linguagem e sociedade (UESB) sob orientação da Profa. Dra. Isnara Pereira Ivo. Bolsista da Capes.

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como sua concepção de “nação”. O Movimento Nacionalista Hindu, por meio de seus representantes em diversas associações, fundações, escolas e seitas religiosas, apresenta-se como legítimo representante dos interesses do povo indiano, ignorando a extrema heterogeneidade desse povo. Com uma população de mais de um bilhão de habitantes, que fala 21 línguas diferentes, com maioria hindu, mas com uma forte representação mulçumana (13,4%) e complexas desigualdades sociais herdadas do antigo sistema de castas, é improvável que um único grupo consiga representar essa diversidade.

É importante ressaltar que a ideologia nacionalista hindu não é uma exclusividade de indianos, mas é adotada por pessoas de diversas nacionalidades, inclusive historiadores, devido, frequentemente, a uma identificação religiosa com o hinduísmo. Diante disso, consideramos relevante identificar ingerência desta ideologia político-religiosa no ensino de história.

O nascimento da ideologia nacionalista hindu

O movimento nacionalista hindu começou a ganhar evidência na mídia indiana nos anos 1990 quando o partido político que o representa, o Bharatiya Janata Party (BJP- traduzível como Partido do Povo Indiano), alçou grande representatividade política, ao passar de dois a cento e setenta e oito deputados entres os anos de 1989 e 1998, chegando ao topo do poder com a eleição do primeiro Ministro Narendha Modi, em 2014.

No entanto, o movimento já vinha sendo ativo na sociedade indiana há décadas, sendo uma das mais antigas correntes ideológicas da Índia. Sua formação concreta se deu no início do século XX com a constituição do Rashtriya Swayamsevak Sangh ( RSS – Corpo Nacional de Voluntários), em 1925. O desenvolvimento do movimento se deu em oposição política ao Partido do Congresso, liderado ideologicamente por Mohandas [Mahatma] Gandhi, tanto por serem contrários à doutrina da não-violência (ahimsa), quanto por discordarem do conceito de nação proposto por Gandhi.

Gandhi vislumbrava a futura nação indiana como um conjunto harmônico formado por diferentes comunidades religiosas, posicionadas em pé de igualdade. A religião hindu seria o resultado da fusão de diferentes credos e tradições, todos

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merecedores de cidadania indiana. Para os ideólogos do Partido do Congresso, a nação indiana deveria ser pensada em termos territoriais e não religiosos-culturais.

Em oposição a este pensamento, os ideólogos do RSS como Keshav Baliram Hedgewar, Vinayak Damodar Savarkar e M. S. Golwalkar, propuseram a definição de nacionalidade indiana a partir da pertença cultural, a chamada ideologia “Hindutwa”

segundo a qual os não-hindus, em especial os mulçumanos, seriam invasores estrangeiros ou inimigos da Índia (JAFFRELOT, 2007).

Para Subramanyam (2013, p.3) a essência do conflito está na noção de que cerca de 500 a.C. o conceito de “civilização indiana” já estivesse plenamente desenvolvido.

De acordo com esta corrente de pensamento, a Índia Antiga é representada como autossuficiente e homeostática, isto é, capaz de apenas de exportar cultura, mas nunca de ser influenciada por agentes externos. Assim, foi construído o mito da “Era de Ouro Védica”, protagonizada por nobres “arianos”, e que teria sido destruída por estrangeiros.

A ingerência do Nacionalismo Hindu sobre os livros escolares

Uma das principais bandeiras do movimento nacionalista hindu é o resgate da mitologia suprimida, segundo o movimento, por uma visão secularista importada do Ocidente. Com esse objetivo, o Partido Nacionalista determinou alterações nos livros escolares de história, no período em que fez parte da coalisão do governo entre 1998 e 2004, anunciando que a educação deveria ser “indianizada, nacionalizada e espiritualizada” (GUICHARD, 2012, p.1).

A atuação da militância nacionalista hindu rompeu as fronteiras da Índia e chamou a atenção da comunidade acadêmica internacional quando, em abril de 2005, organizações hindus propuseram cento e cinquenta modificações nos livros escolares de história adotados para a sexta série do ensino fundamental no estado americano da Califórnia, sob o argumento de que as representações sobre a Índia e o hinduísmo lá contidas eram equivocadas e desrespeitosas. Os editos tratavam de temas variados, desde a questão sobre a natureza politeísta do hinduísmo, até as inexatidões sobre a escrita e o idioma. Os pontos mais polêmicos, entretanto, foram sobre a formação étnica do povo indiano, as desigualdades na posição social da mulher e a natureza do sistema de castas. Discordâncias sobre esses três temas provocaram uma reação de

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acadêmicos ocidentais e indianos, que afirmaram em um abaixo-assinado, que as modificações sugeridas não tinham base científica, mas político-religiosas.

(GUICHARD, 2010, p.82).

Vale mencionar que, a cada seis anos, o Conselho Estadual de Educação da Califórnia (SBE) submete os livros escolares à apreciação de pais e entidades educacionais, sendo que outros grupos religiosos como judeus, mulçumanos e cristãos também propuseram modificações aos livros em nome de uma maior exatidão nas informações sobre suas religiões. Porém, nenhuma das alterações causou tanta polêmica quanto as elaboradas pela Sociedade Védica e a Fundação Educacional Hindu, dois braços do Partido Nacionalista Hindu nos Estados Unidos. A confluência de discurso político e religioso e a virulência dos debates atribuiu grande notoriedade ao caso, que ficou conhecido como “A Controvérsia dos Livros da Califórnia1” Nos trechos citados abaixo é possível verificar o teor de algumas propostas de modificações.

Sobre a posição da mulher na Índia Antiga:

Original: “Homens tinham muitos mais direitos que as mulheres.

Apenas homens podiam herdar propriedades, a não ser que não houvesse filhos do sexo masculino em uma família. Somente os homens podiam ir à escola e tornar-se sacerdotes” 2

Proposta de modificação: “Homens tinham diferentes direitos e deveres em relação às mulheres [...] a educação das mulheres era feita em casa”.

A fim de compreender este ponto é preciso considerar que as pesquisas sobre o passado da Índia se intensificaram no final do século XVIII e início do século XIX com o estabelecimento da ocupação colonial. A historiografia imperialista produzida, principalmente, na primeira fase da colonização inglesa, criticava aspectos da organização social indiana tendo como referência os valores da sociedade ocidental.

Um dos principais objetos de recriminação dizia respeito à posição da mulher na

1 http://en.wikipedia.org/wiki/California_textbook_controversy_over_Hindu_history.

2 Fonte : Livro escolar: Hartcourt School Publishers. p 245. Grifo nosso.

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sociedade indiana. Grande parte dos missionários cristãos e administradores coloniais apontavam o casamento de crianças, queima de viúvas e maus tratos aos quais as mulheres estariam submetidas como prova da natureza bárbara do hinduísmo, descrito por eles como uma religião primitiva, sem senso de ordem, progresso ou racionalidade, como se pode ver neste trecho de História da Índia Britânica de 1818:

Entre povos rudimentares, as mulheres são geralmente degradadas;

entre povos civilizados elas são exaltadas. Quando uma sociedade se desenvolve, a situação do sexo frágil [...] gradualmente melhora, até que seja comparada com a dos homens, e possam ocupar o lugar de coadjuvantes úteis e voluntárias. [...] Nada pode exceder o tratamento que os hindus concedem às suas mulheres [...] elas são mantidas, de acordo, em extrema degradação. 3

Assim sendo, o nacionalismo hindu elaborou um contra discurso no qual nega a desigualdade entre homens e mulheres, ou até mesmo a natureza patriarcal da sociedade indiana. Vale observar que neste período, a História da Índia era escrita, principalmente, por amadores sem instrução formal ou funcionários a serviço da Coroa Britânica, que procuravam legitimar os interesses do imperialismo Inglês. Movidos por ideais de modernização esses autores viam no passado indiano, basicamente, obscurecimento da razão, atraso e superstição e assumiam o discurso da missão civilizatória, especialmente a partir do momento em que a ocupação britânica tornou-se permanente, em 1773. Foi somente no final do século XIX, por meio do historicismo alemão, que a disciplina adquiriu seu caráter profissional e acadêmico (IGGERS, 2012, p.49). Uma das consequências dessa mudança para a escrita da História da Índia parece ter sido a valorização da história produzida por profissionais e acadêmicos em detrimento das narrativas sobre o passado baseadas em mitos e tradições nativas indianas, uma das fontes dos acirrados conflitos entre os nacionalistas e os acadêmicos educados nos padrões da historiografia ocidental.

Uma das narrativas mais disputadas pelos Nacionalista Hindus é a que trata da formação étnica do povo indiano e a origem da sociedade védica. A hipótese mais aceita

3Nossa tradução livre para: Among rude people, the women are generally degraded; among civilized people they are exalted. When a society develops, the condition of the weaker sex gradually improves, till they associate on equal terms with the men, occupy the place of voluntary and useful coadjutors[…]

Nothing can exceed the habitual contempt which the Hindus entertain their women…They are held, accordingly, in extreme degradation. In: James Mill. The History of British India,London: Baldwin, Cradock and Joy, 1818, p. 323.

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academicamente baseia-se na Teoria da Migração Ariana, elaborada pelo o linguista alemão F. Max Muller (1823-1900). De acordo com Muller, por volta de 1500 a. C, ondas migratórias compostas pelos chamados povos arianos ou indo-europeus, seminômades falantes de sânscrito e originários do norte da Europa, que teriam ocupado gradualmente o território das populações nativas indianas, forçando-as para a região sul do subcontinente. Os indo-europeus teriam estabelecido a religião védica e o sistema de castas, no qual os sacerdotes dos povos imigrantes ocupariam a posição mais alta na organização social. A teoria4 de Müller foi inspirada na descoberta de Sir William Jones, que se surpreendeu ao verificar as semelhanças entre sânscrito, o grego e o latim, o que sugeria um parentesco linguístico entre indianos, gregos e romanos (LITTLETON, 1973, p.32). A migração justificaria, entre outras coisas, as diferenças étnicas entre indianos de pele escura e clara, e seria mais tarde instrumentalizada pelo nazismo na construção do mito da “raça ariana”.

Teorias revisionistas5 defendidas pelo nacionalismo hindu afirmam que os falantes do sânscrito seriam nativos da Índia, o que significa renunciar qualquer influência estrangeira na composição dos Veda. A negação da contribuição de estrangeiros na formação étnica e cultural da Índia Antiga é uma das principais características da militância hindutva, como demonstra uma das primeiras formulações contrárias à teoria da migração elaborada pelo líder nacionalista Madhav Sadashiv Golwakar em 1939:

E afinal de contas, qual a autoridade para provar que temos uma natureza imigrante? O obscuro testemunho de acadêmicos ocidentais? Bem, não deve ser desconsiderado que o complexo de superioridade do “Homem Branco” macula sua visão 6.

4Friedrich Max Müller. Lectures on the Science of Language. London:Longman, 1862.

5 Cf. FEUERSTEIN Georg; KAK, Subhash; FRAWLEY, David. In search of the cradle of civilization. Delhi:

Motilal Banarsidass Publishers, 1999; RAJARAM, Navaratna S., The Politics of History: Aryan Invasion Theory and the Subversion of Scholarship. New Delhi: Voice of India, 1995.

6 Nossa tradução livre para: And after all what authority is there to prove our immigrant nature? The shady testimony of Western scholars? Well, it must not be ignored that the superiority complex of “The White Man” blurs their vision. In: GOWALKAR, Sadashiv. We or Our Nationhood defined. Nagpur: Bharat Publications, 1939, p.35

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Um dos pontos mais contestados da Teoria da Migração diz respeito às datações, pois de acordo com os livros sagrados e os mitos de origem, a Índia existiria como uma civilização homogênea, completa e culturalmente integrada há mais de 8.000 mil anos ou mesmo desde “tempos imemoriais”. Os esforços da militância hindu, no sentido de remover referências à migração indo-europeia nos livros escolares de história tanto na Índia quanto em outros países têm se acirrado sob a influência política do partido nacionalista Bharatiya Janata - BJP, vitorioso na eleição do atual primeiro-ministro indiano.

A adesão à ideologia da “pureza cultural” e a defesa do orgulho nacional parecem estar fortemente presentes na resistência nacionalista à ideia de mistura com outros povos. A tentativa de apagar a memória dessa possível influência estrangeira está presente também, nas propostas de mudança dos livros da Califórnia, como é possível verificar no trecho a seguir:

Original: A linguagem e tradições dos falantes de Indo-ária substituíram os antigos costumes dos Harapianos / Os arianos introduziram novas tecnologias.

Proposta: Substituir “falantes de Indo-ária” por “pessoas de outros locais da Índia” / “Novas ideias e tecnologias foram desenvolvidas na Índia” 7

A proposta de alteração feita pela Fundação Educacional Hindu omite a natureza imigrante dos falantes de indo-ária, reafirmando a origem exclusivamente nativa das alterações culturais e tecnológicas ocorridas na índia Antiga. A teoria da migração ariana predomina mundialmente nos livros acadêmicos e escolares, inclusive brasileiros:

Por volta de 1500 a.C., os arianos, povo nômade formado por pastores e guerreiros originários da Ásia Central, migraram para Índia. Lá se tornaram sedentários e organizaram tribos [...]. Sua língua era o sânscrito. As tribos arianas lutavam entre si e contra os antigos habitantes da região, ocupando suas terras (VAZ e PANAZZO, 2012, p.142).

O empobrecimento das cidades do Vale do Indo coincidiu com a chegada dos arianos ou árias, povos nômades e guerreiros originários

7 Livro escolar: Oxford University Press p.76 /Glencoe/McGraw-Hill. P.238. Grifo nosso.

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da Europa Oriental. Os arianos entraram na Índia e se instalaram no Vale do Ganges, onde fundaram uma nova civilização. Não se tratou de uma conquista militar, mas da migração de povos que viviam nas proximidades do Mar Cáspio (APOLINÁRIO, 2007, p.117).

As contradições entre as narrativas religiosas da tradição oral e a historiografia têm resultado não somente em uma profusa produção acadêmica, mas também em conflitos étnicos, culturais e sociais, por vezes bastante violentos, a exemplo do ocorrido em seis de dezembro de 1992, quando milhares de ativistas hindus promoveram a completa destruição da Mesquita Babri, construída no século XVI, na cidade de Ayodhya. Os embates que se seguiram resultaram na morte de mais de duas mil pessoas.

A motivação do ataque foi a acusação, por parte dos nacionalistas, de que os invasores islâmicos teriam construído a mesquita sobre o local de nascimento do rei Rama8, uma encarnação divina, segundo a mitologia hindu.

O nacionalismo hindu tem, desde sua origem, uma relação bastante tensa com o Islã. Os mulçumanos chegaram ao subcontinente a partir século VIII, quando a região foi conquistada por invasores vindos da Turquia, Afeganistão e Pérsia. O domínio político do Islã sobre a Índia durou até a Rebelião Indiana de 1847. Segundo Guichard (2010, p. 3), o Movimento Hindutva construiu uma representação estigmatizada dos mulçumanos como principais causadores dos dissabores da Índia, sendo este um dos argumentos acadêmicos contra as ingerências nacionalistas nos livros de história.

A nosso ver, o discurso nacionalista é construído com base em uma memória coletiva (HALBWACHS, 2006) segundo a qual, a civilização, a cultura e mitologia indianas são homogêneas, puras, exclusivas e isentas de influências interculturais. Nesta perspectiva, o estrangeiro é visto como o outro absoluto, uma ameaça à integridade da cultura e da nação. A história secular é posta, desse modo, na posição de ameaça inimiga. Sobretudo, a ideologia nacionalista cega seus representantes para o trânsito de culturas ao ignorar a influência ocidental presente em seus próprios valores e ideais, como sua concepção de “nação” e a insistência em historicizar a mitologia hindu.

O Movimento Nacionalista Hindu apresenta-se como legítimo representante dos interesses do povo indiano, ignorando sua extrema diversidade étnica e religiosa.

Mesmo nos Estados Unidos, as organizações hindus tentam se passar por porta-vozes

8 Não há provas históricas de que Rama tenha existido, tampouco há de que não tenha. Sua saga é contada no poema épico Ramayana.

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de toda comunidade indo-americana. Não é por acaso que a principal editora nacionalista é chamada “A Voz da Índia” (The Voice of Índia). No entanto, a Índia é um país de múltiplas vozes. Foi na defesa dessas múltiplas identidades e interesses que inúmeros acadêmicos e grupos de proteção aos direitos das mulheres e dos intocáveis9escreveram ao Conselho Educacional da Califórnia para protestar contra as modificações nos livros escolares de história.

As relações entre religião e secularismo na Índia constituem um objeto acadêmico que desperta animosidades, uma vez que envolve questões ideológicas variadas e complexas. A Índia conquistou sua independência em 1947 e a sua transformação em Estado-Nação foi naturalmente acompanhada pela busca de uma memória coletiva que superasse os sentimentos de subjugação deixados pelos invasores islâmicos e britânicos.

Desde então, o nacionalismo religioso tem buscado na mitologia a reafirmação de um passado de glórias, que teria sido ofuscado pelo domínio estrangeiro. A valorização da história factual é vista, assim, como uma forma de opressão ocidental que visaria suprimir a cultura local impondo sua própria versão do passado num desrespeito à memória indiana.

Entendemos que o conflito entre história e mito constitua uma falsa polêmica sobre a versão “verdadeira” dos acontecimentos do passado, uma vez que ambos possuem diferentes metodologias e critérios de verdade. Nem o relato mítico, nem o histórico podem ser considerados idênticos ao passado, pois ambos são meras representações, sempre passíveis de serem superados por novas versões, descobertas e modificações promovidas pelos interesses do presente.

O mito pode ser uma excelente fonte de pesquisa histórica, pois contém uma profusão de registros mnemônicos dos eventos ocorridos no passado, e principalmente, das diversas interpretações que os povos deram a esses eventos. Mas os mitos devem ser

9 Os intocáveis ou sem–casta estão no nível mais baixo da escala social, de acordo com a classificação hinduísta. Embora a descriminação por casta tenha se tornado ilegal desde a promulgação da Constituição Indiana, os intocáveis ainda sofrem seus efeitos. Muitos abandonaram o hinduísmo convertendo-se a religiões igualitárias, como cristianismo e budismo. Mahatma Gandhi chamava os intocáveis de “filhos de Deus” Harijan. O termo foi substituído pela palavra de cunho político “desprivilegiado” ( dalit ).

Atualmente, a denominação mais aceita é Scheduled Caste. As seguintes organizações dalit se envolveram na controvérsia da Califórnia: National Campaign on Dalit Human Rights, the Dalit Shakti Kendra, the Dalit Solidarity Forum in the USA, Ambedkar Center for Justice and Peace, Indian Buddhist Association of America, New Republic India, and Californian Dalit Sikh temples.

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respeitados em sua especificidade que é ser um produto da memória. Ainda que contenha verdades morais e resquícios de fatos empíricos, a narrativa mítica é fluida, mutável, capciosa. Sua plasticidade natural faz com que se molde ao tempo e lugar, refletindo as condições sociais das culturas em que são produzidas. Mito e História complementam-se mais do que se opõem, desde que seus respectivos campos sejam respeitados e não tentem impor-se um ao outro. A disputa entre as narrativas é uma construção, e é, frequentemente, baseada em interesses políticos e ideológicos mais do que em uma legítima busca da verdade.

O estudo das relações entre Nacionalismo Hindu e a História não é relevante apenas para indianos, pois ao contrário do que possa parecer, a ideologia nacionalista hindu cruzou já há bastante tempo as fronteiras da Índia, sendo adotada por vários acadêmicos e leigos ocidentais. Por outro lado, o secularismo também não é uma exclusividade ocidental, já que é defendido por grande parte dos políticos e intelectuais orientais. Na verdade, a disputa entre narrativa mítica e história secular oculta em seu bojo traços de um intenso intercâmbio de ideologias, valores e modos de pensar entre Ocidente e Oriente além de refletir uma tendência global contra a democracia e o secularismo.

Referências

APOLINÁRIO, Raquel (org.). História: Projeto Araribá. 6. Ano, 2. Ed. São Paulo:

Moderna, 2007

GUICHARD, Sylvie. The Construction of History and Nationalism in India. London, Routledge,2010.

GOWALKAR, Sadashiv. We or Our Nationhood defined. Nagpur: Bharat Publications, 1939, p.35

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou. 2. Ed São Paulo: Centauro, 2006.

IGGERS, Georg. La Historiografia del Siglo XX. Fondo de Cultura Economica. Cidade do Mexico, 2012

LITTLETON, C. Scott. The New Comparative Mythology: an anthropological assesment of the theories of Georges Duménzil. Berkeley: University of California Press,1973.

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SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in Connected Histories. New York: Oxford University Press, 2005.

_______________________ Is Indian Civilization a Myth? Ranikhet: Permanent Black, 2013.

VAZ, Maria Luísa e PANAZZO, Silvia. Jornadas.hist: história, 7º ano. São Paulo:

Saraiva, 2012

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