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A eficácia da lei Maria da Penha como mecanismo apto a garantir a ruptura do ciclo de violência doméstica e familiar

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

CAMILA FABÍOLA OLIVEIRA FERREIRA

A EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA COMO MECANISMO APTO A GARANTIR A RUPTURA DO CICLO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

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CAMILA FABÍOLA OLIVEIRA FERREIRA

A EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA COMO MECANISMO APTO A GARANTIR A RUPTURA DO CICLO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Msc. Raul Nepomuceno.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

F383e Ferreira, Camila Fabíola Oliveira.

A eficácia da lei Maria da Penha como mecanismo apto a garantir a ruptura do ciclo de violência doméstica e familiar / Camila Fabíola Oliveira Ferreira. – 2014.

94 f. : il. color., enc. ; 30 cm

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2014.

Área de Concentração: Direito Processual Penal e Direito Penal. Orientação: Prof. Me. Raul Carneiro Nepomuceno.

1.Violência doméstica. 2. Lei Maria da Penha. 3. Violência familiar – Brasil. I. Nepomuceno, Raul Carneiro (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.

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CAMILA FABÍOLA OLIVEIRA FERREIRA

A EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA COMO MECANISMO APTO A GARANTIR A RUPTURA DO CICLO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Aprovado em ___/___/___.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Prof. Msc. Raul Carneiro Nepomuceno (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Profa. Dra. Gretha Leite Maia

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Prof. Msc. William Paiva Marques Júnior

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A Deus e à Nossa Senhora.

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A Deus, inicialmente, por toda a força necessária para trilhar o longo período acadêmico. À Nossa Senhora, por sempre ter intercedido e me auxiliado nos momentos mais difíceis.

Ao meu pai, Francisco, por todo amor, carinho, compreensão e esforço despendido, a fim de garantir que eu tivesse uma formação acadêmica de qualidade, bem como por ter me ensinado valores tão escassos nos dias atuais, como humildade e honestidade. Além disso, por me ter proporcionado um enriquecimento cultural imensurável a cada mudança de Estado.

À minha mãe, Sandra, por ter abdicado da vida profissional, somente para se dedicar exclusivamente à família, sendo presença marcante e essencial em todos os momentos da minha vida. Obrigada por ter sido minha Grande Mestre, ensinando-me a ler e a escrever, bem como a acreditar no meu potencial e a nunca desistir dos meus sonhos. Outrossim, sou grata por ser além de uma mãe sensacional, ser minha melhor amiga!

À minha irmã Priscilla, por toda paciência, amor, auxílio e amizade, bem como por ser minha fonte inspiradora de coragem, disciplina e fé.

Ao Pedro, amigo, namorado, amor, obrigada por toda mansidão, aprendizagem e auxílio emocional. Obrigada por se fazer tão presente nesses anos, mesmo que tão distante fisicamente.

À Promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar e à 5ª Promotoria de Justiça Auxiliar, do Ministério Público do Ceará. Em especial, ao Dr. Anaílton Mendes de Sá Diniz, por toda compreensão e paciência em compartilhar seu conhecimento acerca da violência doméstica e familiar e por me fazer mais apaixonada por esse tema tão palpitante, sendo um verdadeiro exemplo de dedicação profissional. À Dra. Roberta Coelho Maia Alves, por toda aprendizagem. Aos técnicos ministerias, Thiago, Rita e Lisiane, pela camaradagem e ensinamentos. Às minhas colegas de estágio Nayara, Judith, Rayssa e Alexandra pela amizade e por fazer do ambiente de trabalho algo agradável e divertido, mesmo com as dificuldades diárias.

Às entrevistadas, por dividirem seus medos, tristezas, decepções e vitórias, assim como pela coragem em denunciar toda a violência sofrida.

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atenção, paciência e instrução, assim como ao Prof. Msc. William Paiva Marques Júnior, por toda alegria e ensinamentos ao longo dessa trajetória acadêmica.

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“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

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A Lei n.11.340/06 criou mecanismos, a fim de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres baseada no gênero. Em decorrência disso, foram criados instrumentos jurídicos e assistenciais, como as medidas protetivas de urgência, a não aplicação dos institutos despenalizadores da Lei n. 9099/95 e a criação de uma rede e programas de atendimento às mulheres em situação de violência. No entanto, a eficácia da lei é questionada diariamente ante as notícias recorrentes de mulheres que são vítimas de feminicídios e agressões por seus companheiros, maridos e familiares. Assim, isso reflete que a lei ainda não está sendo suficiente a fim de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Além disso, é comum que a sociedade não compreenda o porquê dessas mulheres, apesar de toda violência a que são submetidas, permanecerem nessas relações. Assim, as pessoas acabam culpando a vítima pelas agressões. Outrossim, os próprios intérpretes do direito têm dificuldade em aplicar a lei adequadamente, o que obsta uma maior eficácia do diploma. Assim, a fim de modificar essa situação, é necessário que a sociedade e o Poder Público se unam com o fito de dar a eficácia necessária à Lei Maria da Penha. Desse modo, as vítimas poderiam romper o ciclo de violência e mudar essa triste realidade.

Palavras- chave: Lei n. 11.340/06. Violência doméstica e familiar contra a mulher.Lei Maria

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Law 11.340/06 established mechanisms in order to restrain and prevent domestic and family violence against women based on gender . As a result , legal and health care instruments, such as urgent protective measures , the non-application of despenalizadores institutes of the law 9099/95 and the creation of a network and programs to assist women victims of violence were created . However , the effectiveness of the law is challenged daily in the face of recurring news of women who are victims of femicide and assaults by their partners, husbands and family . Moreover , it is common that society does not understand why these women , despite all the violence that are submitted , remain in such relationships . So people end up blaming the victim for the abuse. Furthermore , the interpreters own right have difficulty applying the law properly , which precludes a more efficient degree. So in order to change this situation , it is necessary that society and the Government to join with the aim of giving the necessary effectiveness to Maria da Penha Law . Thus, the victims could break the cycle of violence and change this sad reality.

Keywords: Law 11.340/06 .Domestic and family violence against women. Lei Maria da

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Gráfico 1 – Relações interpessoais da vítima com o agressor...26

Gráfico 2 – Formas de violência doméstica e familiar mais frequentes: Ligue 180...28

Gráfico 3 – Feminicídios no Brasil...41

Gráfico 4 – Formas de violência doméstica e familiar mais frequentes: Fortaleza/CE...66

Gráfico 5 – Histórico de violência doméstica e familiar...67

Gráfico 6 – Presença de substância psicoativa nos agressores...68

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1 INTRODUÇÃO ... 12

2 A LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA)... 15

2.1 A origem da Lei n. 11.340/2006... 15

2.2 O âmbito de incidência da Lei n. 11.340/06... 19

2.2.1 O âmbito doméstico, familiar e relação íntima de afeto... 23

2.3 As espécies de violência doméstica e familiar contra a mulher... 26

2.4 Os beneficiários da Lei n. 11.340/2006... 31

3 OS INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 35 3.1 As medidas protetivas de urgência... 35

3.1.1 A natureza jurídica das medidas protetivas de urgência... 36

3.1.2 As espécies de medidas protetivas de urgência... 38

3.2 A possibilidade da prisão preventiva e as consequências jurídicas do descumprimento de medidas protetivas 48 3.3 A importância do reconhecimento da constitucionalidade dos artigos 12,I, 16 e 41 da Lei n. 11.340/06 55 4 O CICLO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER BASEADA NO GÊNERO 59 4.1 A relação de gênero: a diferença histórica e cultural entre homens e mulheres 59 4.2 O perfil da vítima de violência doméstica e familiar: uma análise das vítimas de Fortaleza/CE 64 4.3 O ciclo de violência doméstica e familiar, sua difícil ruptura e a eficácia da Lei Maria da Penha 69 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 82

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1. INTRODUÇÃO

A violência doméstica e familiar contra mulheres é um verdadeiro atentado aos direitos humanos1. Como forma de coibir e prevenir essas práticas foi criada em 07 de agosto de 2006 a Lei n. 11.340/06, que ficou conhecida como “Lei Maria da Penha”.

No entanto, apesar da lei ter sido criada há ao menos oito anos, os índices que contabilizam a violência doméstica e familiar só têm aumentado2 o que implica que a Lei n. 11.340/06 não tem sido eficaz a fim de combater tal problemática. Mas por que dados tão assustadores? Será que a Lei Maria da Penha é realmente eficaz? Como a eficácia do referido diploma pode auxiliar as mulheres vítimas desse tipo de violência a romperem o ciclo na qual estão inseridas?

Esses são alguns dos questionamentos que o referido trabalho buscará responder. Assim, a fim de elucidar esses questionamentos, foi realizada uma análise sob o enfoque histórico da Lei, observando-se o cenário na qual ela foi criada, bem como os motivos de sua criação.

Posteriormente, será feito um estudo dos aspectos jurídicos da Lei Maria da Penha. Inicialmente, delimitou-se o conceito de violência doméstica e familiar, bem como aquela que se baseia no gênero. Sendo o objeto da lei, justamente, coibir e prevenir a violência que ocorre nesse contexto.

Em seguida, discorrer-se-á sobre as hipóteses de incidência da norma, definindo o que seria o âmbito de unidade doméstica, o âmbito de unidade familiar e relação íntima de afeto. Outrossim, abordaram-se as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca da aplicação da lei nessas relações, principalmente, no que concerne aquelas que decorrem de uma relação íntima de afeto.

A outra problemática abordada foram as formas de violência (patrimonial, sexual, física, psicológica, moral, entre outras), que a violência doméstica e familiar contra a mulher

1

Conforme preconiza o artigo 2º da Lei n. 11.340/06, in verbis:

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

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baseada no gênero se manifestam. Ademais, foram apresentados alguns dados fornecidos pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), os quais demonstravam as formas de violência que mais ocorriam.

No primeiro capítulo, foram enfrentados os questionamentos acerca dos beneficiários da Lei Maria da Penha. Essa indagação à primeira vista, parece óbvia. No entanto, não é. Se forem exploradas as diversas relações que podem advir de unidade doméstica, familiar e relações íntimas de afeto, que tenham mulheres em um dos polos, ensejará intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da aplicação ou não da Lei n. 11.340/06.

No segundo capítulo, foram apresentados os instrumentos jurídicos previstos na Lei Maria da Penha que são aptos a auxiliar as mulheres a romperem o ciclo de violência. Dando enfoque especialmente às medidas protetivas de urgência e às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4.424 e na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19.

Preliminarmente, realizou-se um estudo acerca dos institutos das medidas protetivas, analisando-se a natureza jurídica, as espécies de medidas protetivas destinadas ao agressor e à vítima, a possibilidade de prisão preventiva e as consequências jurídicas ao descumprimento das medidas protetivas. Além disso, observaram-se a qualidade da rede de apoio e os programas, como centros de referências e casas-abrigos, destinados a auxiliar as vítimas. Assim, para os dados apresentados, utilizou-se como fonte de pesquisa o relatório elaborado pela Comissão Mista Parlamentar de Inquérito formada no ano de 2013, a fim de avaliar a aplicação da Lei Maria da Penha e investigar as denúncias de omissão por parte do Poder Público.

Por fim, foram abordadas as consequências das decisões do STF na ADI 4.424 e na ADC 19, as quais trouxeram importantes consequências, como a declaração de constitucionalidade da Lei n. 11.340/06 e a pacificação do entendimento acerca da natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal leve e culposa que ocorrem no contexto de violência doméstica e familiar.

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Em seguida, apesar de não existir um perfil exato das vítimas de violência doméstica e familiar, foi realizada uma pesquisa quantitativa e descritiva, sendo analisados 32 processos decorrentes de prisões em flagrante ocorridas no período de janeiro a abril de 2014, que estavam com vistas à Promotoria de Combate a Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público do Ceará, a qual abrange a Comarca de Fortaleza. Assim, tentou-se delimitar qual o perfil dessas vítimas na cidade de Fortaleza.

Ulteriormente, demonstrou-se como ocorre o ciclo de violência doméstica e familiar, assim como as fases dele. Como forma de melhor elucidar essa problemática, foram realizadas sete entrevistas, no mês de abril de 2014, com mulheres3, vítimas dessa forma de violência. Acentua-se que para as entrevistas foi utilizado o método livre com questionário semi-estruturado, sendo que algumas delas ocorreram diretamente e outras indiretamente (por meio de telefone). Assim, alguns trechos das entrevistas foram utilizados, a fim de ilustrar ao leitor como ocorre o ciclo, os motivos que dificultam sua ruptura, bem como o comportamento do Poder Público influi, por vezes, em uma menor eficácia da Lei Maria da Penha.

Por fim, elucidou-se como a Lei aplicada eficazmente pode contribuir como importante mecanismo, a fim de auxiliar as vítimas a romperem o ciclo de violência e, assim, diminuir os índices de mulheres que são vítimas de violência doméstica e familiar baseada no gênero.

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2 A LEI N. 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA)

A Lei n. 11.340/06, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, teve sua entrada em vigor em agosto de 2006, estabelecendo uma série de medidas que têm por escopo a proteção de mulheres vítimas da violência doméstica e familiar baseada no gênero, trazendo diversos instrumentos de caráter jurídico e outros de cunho assistencial.

Assim, a fim de melhor compreender a problemática arguida no presente trabalho, faz-se imperiosa uma análise do referido diploma, considerando os motivos que ensejaram sua criação, seu âmbito de incidência, as espécies de violência abarcadas pela lei, bem como quem são os seus destinatários.

2.1 A Origem da Lei n. 11.340/06

A Lei n. 11.340/06 introduziu significativas mudanças na legislação brasileira, sendo imprescindível fazer uma abordagem de sua origem, a qual está indissociavelmente ligada à história da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Entretanto, salienta-se que a luta dos movimentos feministas, com o intuito de garantir políticas a fim de evitar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, advém desde a década de setenta.

Assim, dentre as conquistas alcançadas por esses movimentos feministas, pode-se citar a criação, em 19854, da primeira delegacia especializada no atendimento às mulheres. Posteriormente, buscava-se uma alteração na legislação brasileira, o que foi sendo feito paulatinamente, como a introdução do artigo 61,II, “e” no Código Penal, o qual considera circunstância agravante a prática de crime em desfavor do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.

No mesmo sentido, ocorreu a revogação do artigo 35 do Código de Processo Penal5 que previa a necessidade da anuência do marido para que a mulher pudesse exercer o seu direito de queixa, salvo em caso de separação ou se a queixa fosse contra ele. Outra vitória legislativa na tutela dos direitos femininos foi a inclusão do assédio sexual como crime.

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CAMPOS, Carmem Hein de (Org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.39

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No entanto, apesar de uma maior proteção às mulheres, não havia ainda lei que tratasse especificamente da violência doméstica e familiar, sendo que os crimes daí decorrentes, em sua esmagadora maioria, eram tratados como de menor potencial ofensivo, sendo processados e julgados pelos Juizados Especiais Criminais.

Nesse sentido, acrescentam Matos e Cortes ( 2011, p.42),

Cerca de 70% dos casos que chegavam aos juizados especiais tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Além disso, 90% desses casos terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era geralmente condenado a entregar cesta básica a alguma instituição filantrópica.

Desse modo, a violência doméstica, sendo tratada como crime de menor potencial ofensivo, acarretava uma consequente impunidade e desestimulava as vítimas a noticiarem as violências sofridas. Isso porque, existia uma enorme resistência para comunicar as agressões toleradas, aliado a isso, a certeza de que o agressor, se fosse punido, somente pagaria cestas básicas, fazia que muitas mulheres se calassem.

Com isso, buscando a criação de uma lei para combater a violência doméstica e familiar, em julho de 2002 foi elaborado um consórcio formado por seis ONGs feministas6.

Paralelamente a essa luta, a cearense Maria da Penha buscava justiça indo inclusive perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de modo que se faz imprescindível um breve relato do caso dessa brasileira.

Em 29 de maio de 19837, na cidade Fortaleza, Maria da Penha foi alvejada por um tiro de espingarda enquanto dormia, o qual foi perpetrado por seu marido, pai de suas três filhas. Por conta disso, ela sofreu lesões na terceira e quarta vértebras, as quais a deixaram paraplégica.

Posteriormente, uma semana após esse primeiro fato, ela sofreu uma nova tentativa de homicídio, na qual recebeu uma descarga elétrica enquanto se banhava.

Isso posto, como bem relata Cunha e Pinto (2012, p. 25), essa violência foi reflexo de um relacionamento extremamente conturbado, marcado pelas agressões do marido em desfavor da esposa e filhas, assim como pelo temor da vítima em noticiar às autoridades esse sofrimento.

6

CAMPOS, Carmem Hein de (Org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.43.

7CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha comentada

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No entanto, o maior sofrimento de Maria da Penha ainda estava por vir, isto é, conseguir ver seu agressor ser responsabilizado penalmente pelos crimes cometidos, o que somente foi possível em setembro de 20028, quando seu algoz foi finalmente preso.

Em razão dessa morosidade do Poder Judiciário, que quase acarretou a prescrição do crime e consequentemente a impunidade, o caso da brasileira chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual elaborou o relatório 54/2001, onde apontava o descompromisso do país com os acordos internacionais firmados, em especial, com a Convenção Americana e a Convenção de Belém do Pará.

Por conseguinte, como acentuam Cunha e Pinto ( 2012, p.28),

Mais especificamente quanto ao caso concreto, a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos assim se pronunciou: ‘A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatores ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica

contra mulheres’.

Desse modo, toda essa repercussão serviu como estopim para que fossem tomadas medidas mais enérgicas e eficazes a fim de combater a violência doméstica.

Assim, como já exposto, após o Consórcio ser formado, iniciou-se a elaboração do anteprojeto de uma lei que combatesse a violência doméstica e familiar e conforme asseveram Matos e Cortes ( 2011, p. 44),

Resumidamente o estudo do Consórcio continha as seguintes propostas: a. conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral; b. criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher; c. medidas de proteção e prevenção às vítimas; d. medidas cautelares referentes aos agressores; e. criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar; f. assistência gratuita para as mulheres; g. criação de um Juízo Único com competência cível e criminal através das Varas Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e outros relacionamentos; h. não aplicação da Lei 9099/1995 – Juizados Especiais Criminais – nos casos de violência doméstica contra as mulheres.

Dessa forma, com o anteprojeto elaborado, o Consórcio o apresentou ao Poder Executivo por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres- SPM, sendo formado um Grupo de Estudo Interministerial, o GTI, o qual foi criado em 20049 e que tinha

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CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. - 4. ed.rev.atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.26.

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como principal objetivo “elaborar proposta de medidas para coibir a violência doméstica contra a mulher”, consoante o artigo 1º, Decreto 5.030/2004.

Em novembro de 200410, o projeto de lei elaborado pelo GTI foi encaminhado ao Poder Legislativo, mas, infelizmente, mantinha como competente para processo e julgamento dos crimes envolvendo violência doméstica contra a mulher, os Juizados Especiais Criminais, o que diferia do inicialmente apresentado pelo Consórcio.

Ao chegar ao Congresso Nacional, o projeto de lei 4559/2004, que criava mecanismos a fim de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, foi encaminhado inicialmente à Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), ocasião em que foram realizados diversos debates com a sociedade com o intuito de apresentar as principais propostas do projeto de lei, bem como se buscar algumas sugestões acerca dos temas ali apresentados.

Assim, algumas questões foram objeto de intensos debates e divergências, como a necessidade de um centro de reabilitação para os agressores. Pois para alguns grupos, isso poderia diminuir os recursos que seriam destinados a auxiliar as vítimas, por sua vez, outros entendiam ser medida imperiosa a fim de se evitar uma maior reincidência. Todavia, cumpre salientar que dentre esses debates e seminários realizados, um ponto foi objeto de consenso, qual seja, a necessidade de não aplicação da Lei n. 9099/95 aos crimes cometidos no contexto de violência doméstica e familiar, evitando-se assim a impunidade11.

Destarte, em 24 de agosto de 2005, foi aprovado o PL 4559/05 na CSSF e consoante pontua Matos e Cortes (2011, p. 51),

As principais inovações apresentadas no substitutivo foram: retirada dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher da abrangência da Lei n. 9099/95; criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, com novo procedimento (com competência para os processos civis e criminais); renúncia à representação somente em audiência, perante o juiz, que poderá rejeitá-la; vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e de cesta básica [...].

Em seguida, ele foi encaminhado à Comissão de Finanças e Tributação e à Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, sendo aprovado unanimemente nas duas comissões. Posteriormente, ele seguiu para o Senado, em 30 de março de 200612, ocasião em que recebeu o número PLC 37/2006. Inicialmente, ele foi encaminhado à Comissão de

10

CAMPOS, Carmem Hein de (Org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.46.

11

CAMPOS, Carmem Hein de (Org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.55.

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Constituição e Justiça, onde foram realizados diversos debates acerca das propostas apresentas, sendo aprovado e encaminhado à sanção do Presidente da República, a qual ocorreu em 07 de agosto de 2006.

Por fim, cumpre salientar as consequências práticas decorrentes do Relatório 54/2001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), apontadas por Matos e Cortes (2011,p. 56) ,

Mencione-se ainda, as recomendações da CIDH ao caso Maria da Penha Maia Fernandes, por não cumprimento do previsto no artigo 7º da Convenção de Belém do Pará e nos artigos 1º,8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, e ainda, o dever do Estado brasileiro de indenizar a vítima, monetária e simbolicamente. Ademais, a Comissão recomendou que o Brasil adotasse várias medidas de combate à violência contra a mulher, entre elas, a elaboração de uma lei específica para este fim. Desse modo, a Presidência da república, com acessória da SPM, decidiu, ao sancionar a Lei aprovada no Congresso Nacional, cumprir a recomendação da OEA, nominando a nova lei de Lei Maria da Penha , como uma forma simbólica de cumprir as recomendações da Comissão.

Assim, foi a partir da luta desses movimentos feministas com o intuito de garantir uma maior igualdade entre homens e mulheres, bem como em razão da morosidade do Poder Judiciário para processar e julgar o caso da Maria da Penha Maia Fernandes, o qual chegou ao conhecimento da CIDH, ensejando recomendações e relatórios internacionais (54/2001), que a Lei n. 11.340/06 foi criada.

2.2 O âmbito de incidência da Lei n. 11.340/06

Ante o exposto do breve histórico da Lei n. 11.340/06, passar-se-á a problemática seguinte, que consiste na elaboração de um conceito de violência doméstica e familiar, bem como o âmbito de incidência da Lei Maria da Penha, que tem como objetivo preponderante a criação de mecanismos a fim de se evitar e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme prevê o artigo 1º13 do referido diploma.

No entanto, antes de se discutir o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, cumpre salientar que essa se distingue da “violência doméstica”, que foi inserida pela lei 10.886/200414, acrescentando assim os parágrafos 9º e 10, no artigo 12915 do

13

Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

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Código Penal. Desse modo, violência doméstica pode ser compreendida como toda lesão que tenha como objetivo violar a integridade física ou a saúde do ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro do agente. De forma que ele irá aproveitar-se das relações domésticas, de coabitação e de hospitalidade, para assim, praticar a conduta delituosa.

Logo, observa-se que a violência doméstica é um gênero, na qual a violência doméstica e familiar contra a mulher está inserida. Desse modo, para ambos os casos, o art.129,§9º será utilizado. Nesse sentido, acrescenta Greco (2011, p. 272/273),

Merece ser esclarecido, nesta oportunidade, que o §9º do art. 129 do Código Penal deverá ser aplicado não somente aos casos em que a mulher for vítima de violência doméstica ou familiar, mas a todas as pessoas, sejam do sexo masculino ou feminino, que se amoldarem às situações narradas pelo tipo. No entanto, quando a mulher for vítima de violência doméstica ou familiar, configurando como sujeito passivo do delito de lesões corporais, tal fato importará em tratamento mais severo ao autor da infração penal, haja vista que art.41 da Lei nº 11.340/06, de 7 de agosto de 2006, proíbe a aplicação da Lei nº 9099/95.

Por fim, cumpre ressaltar que a Lei Maria da Penha é uma lei que não tipifica condutas em seu bojo, sendo um diploma que traz instrumentos jurídicos (processuais e procedimentais) e outros de cunho assistencial. Assim, ao se analisar um crime que tenha ocorrido no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, devem-se observar os tipos penais previstos no Código Penal ou na Legislação Penal Extravagante, como por exemplo, na Lei nº 9455/97 (Lei de Tortura).

Vencidas essas distinções iniciais, passar-se-á ao conceito de violência doméstica e familiar, o qual está previsto na Lei n. 11.340/06, em seu artigo 5º16, que deve ser

15 Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano.

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).

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Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

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combinado com o artigo 7º17, sendo essa definição legal objeto de críticas por parte de alguns doutrinadores, conforme assevera Nucci ( 2013, p. 613):

Conceito legal de violência doméstica e familiar: é a ação (fazer algo) ou a omissão (não fazer alguma coisa) baseada no gênero (este termo, utilizado no art. 5º, caput, desta lei é ininteligível para o contexto e totalmente inapropriado) que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial. O conceito é lamentável, pois mal redigida a norma e extremamente aberta [...].

Outra questão divergente na doutrina é o âmbito de incidência desse conceito, isto é, se para configurar a violência doméstica e familiar é necessário existir um vínculo familiar, ou somente uma relação íntima de afeto, ou uma relação no âmbito doméstico, ou devem coexistir esses três conceitos, uma vez que a lei apresenta essas expressões interligadas pela conjunção aditiva “e”. Nesse sentido, Dias ( 2009, p.40) pontua,

Deste modo violência doméstica é qualquer das ações elencadas no art.7º (violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral) praticada contra a mulher em razão de vínculo de natureza familiar ou afetiva.[...] É obrigatório que a ação ou omissão ocorra na unidade doméstica ou familiar ou razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação. [...] Basta que o agressor e a agredida mantenham, ou já tenham mantido, um vínculo de natureza familiar.

Em consonância a esse entendimento, assevera Lima (2014a, p.885),

No entanto, para fins de incidência da Lei nº 11.340/06, basta a configuração de qualquer uma das situações elencadas no art.5º, incisos I, II e III, ou seja, uma violência perpetrada contra a mulher no ambiente doméstico (art.5º, I), no âmbito familiar (art.5º, II) ou em qualquer relação íntima de afeto (art.5º, III). Portanto,

melhor teria andado o legislador se tivesse optado pela expressão “violência

doméstica ou familiar contra a mulher”, sobretudo se considerarmos que o próprio art.5º, inciso I, da Lei Maria da Penha, deixa claro que, nas hipóteses de violência executadas no âmbito da unidade doméstica, sequer há necessidade de vínculo familiar entre agressor e vítima – note-se que o dispositivo faz referência ao espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.

17

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

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Quanto à problemática acerca da definição de violência doméstica e familiar, outros dois conceitos são valiosos, o apresentado por Cunha e Pinto (2012, p. 49), como sendo “a agressão contra a mulher, num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com finalidade específica de objetá-la, isto é, dela retirar direitos, aproveitando-se da sua hipossuficiência”.

E por fim, a definição apresentada por Bianchini (2013, p. 28), segundo a qual,

[...] “configura violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero”. E não é só. Nos incisos do mesmo dispositivo legal antes citado, a Lei mencionou o contexto em que a violência de gênero deve ser praticada: no âmbito da unidade doméstica, da família ou em uma relação íntima de afeto.

Assim, ante o exposto, outra questão se torna relevante, qual seja, a delimitação do conceito de “violência baseada no gênero”. Isso porque, não é qualquer violência doméstica e familiar que será objeto da Lei nº 11.340/06, e sim, somente aquela que for baseada no gênero.

A violência baseada no gênero está muito relacionada à distinção milenar entre homens e mulheres, ou melhor, ao sistema patriarcal na qual se colocava o homem em uma posição de superioridade e a mulher como sendo submissa a essa condição. Assim, essa condição definia como mulheres e homens agiriam perante a sociedade, bem como possibilitava aos homens, por serem “superiores, dominadores”, aplicarem castigos físicos, morais, psíquicos e sexuais as mulheres que a eles eram subjugadas.

A respeito dessa situação, chancela Bianchini (2013, p. 30/31),

Resta tão desproporcional o equilíbrio de poder entre os sexos, que sobre uma aparência de que não há interdependência, mas hierarquia autoritária. Tal quadro cria condições para que o homem sinta-se (e reste) legitimado a fazer uso de violência e permite compreender o que leva a mulher vítima da agressão a ficar muitas vezes inerte e, mesmo quando toma algum tipo de atitude, a acabar por se reconciliar com o companheiro agressor, após reiterado episódios de violência.

Em complemento a esse raciocínio desenvolvido, a lição de Silva Junior (online), em artigo acerca da conceituação de violência baseada no gênero,

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Assim, vencidas essas conceituações iniciais, pode-se definir a violência doméstica e familiar como qualquer ação ou omissão, baseada na distinção cultural entre homens e mulheres, em que estas foram colocadas em condição de subjunção, que ocorra no âmbito doméstico, familiar ou decorra de uma relação íntima de afeto, dispensando-se a coabitação.

2.2.1 O Âmbito doméstico, familiar e relação íntima de afeto

Não é qualquer violência doméstica e familiar que será tutelada pela Lei Maria da Penha, mas sim, somente aquela que for baseada no gênero. Outrossim, essa violência merece uma maior proteção porque o agressor se prevalece justamente da relações pessoais que possui com a vítima, bem como em virtude do poder que exerce sobre ela naquele ambiente , normalmente o seio familiar, onde não há testemunhas que presenciem as agressões. Por isso, torna-se imperioso entender a extensão das definições de unidade doméstica, unidade familiar e relações íntimas de afeto, situações previstas pela Lei nº 11.340/06, onde restaria configurada a violência doméstica e familiar baseada no gênero.

Assim, ao tratar do conceito de unidade doméstica, Nucci (2013, p. 613) pontua “ é o local onde há o convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar, vale dizer, como se família fosse, embora não haja necessidade do vínculo familiar”.

Já Lima (2014a, p. 888/889), acentua que, no caso da unidade doméstica, o que se leva em consideração é o local onde ocorreu a violência, não sendo preponderante, nesse caso, os laços familiares ou uma relação íntima de afeto. Assim, seria necessário o convívio permanente no mesmo espaço, isto é, na mesma unidade doméstica, inclusive, abrangendo aqueles que fossem esporadicamente agregados.

Por fim, salienta-se o conceito, mais adequado, na visão da presente autora, trazido por Cunha e Pinto (2012, p. 49) “agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, integrantes dessa aliança”.

Quanto à definição de âmbito familiar, Nucci ( 2013, p. 614/615) apresenta uma visão mais radical asseverando,

Segundo esta lei considera-se a “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade

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mas não se pode admitir em hipótese alguma, a situação de quem “se considera aparentado”. [...] Por outro lado, o termo afinidade, igualmente previsto no II do art.5º, não merece crédito em âmbito penal, se desvinculando de norma estabelecida pelo Código Civil. Finalmente, deve-se interpretar a expressão vontade expressa, ao final do referido inciso, II, como sendo o parentesco civil (ex: adoção).

Em contrapartida, Dias (2009, p. 43/44) elogia a inovação legislativa chancelando que “pela primeira vez o legislador, de forma corajosa, define o que é família trazendo um conceito que corresponde ao formato atual dos vínculos afetivos”. De modo que, esse conceito de família engloba não apenas as famílias decorrentes do casamento, mas também aquelas advindas da união estável, das uniões homoafetivas, monoparentais. No entanto, esses conceitos devem ser interpretados à luz do Direito de Família.

Já Cunha e Pinto (2012, p.51) pontuam que “a violência no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, em razão de parentesco (linha reta e por afinidade), ou por vontade expressa (adoção)”.

Por fim, o conceito que enseja mais polêmica e divergência em nossa doutrina: “relação íntima de afeto”, que, para alguns autores, extrapola os preceitos previstos nas normas internacionais ratificadas pelo Brasil, de modo que não deveria ser aplicado. Nesse sentido, pontua Nucci (2013, p. 614),

Relação íntima de afeto: é o relacionamento estreito entre duas pessoas, fundamentado em amizade, amor, simpatia, dentre outros sentimentos de aproximação. Por isso, em face da extremada abertura que gera, deve ser visto com máxima cautela no contexto penal.[...] Cremos ser inaplicável o disposto no inciso III do art.5º desta lei, para efeitos penais.Na Convenção Interamericana para prevenir, punir a violência contra a mulher, art.2º,§1º, prevê-se que a violência

contra a mulher tenha ocorrido ‘dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, em que o agressor conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual’. Logo, é menos abrangente do que a redação do inc.III do art.5º da Lei n. 11.340/06. Exige-se, no texto da Convenção, a existência de coabitação atual ou passada. Na Lei n. 11.340/06 basta a convivência presente ou passada, independente de coabitação. Ora, se o agressor e vítima não são da mesma família e nunca viveram juntos, não se pode falar em violência doméstica e familiar. Daí emerge a inaplicabilidade do disposto no inc.III.

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Além disso, pelo raciocínio apresentado por Guilherme de Souza Nucci, excluiríamos da tutela da Lei n. 11.340/06, relações como namoros, noivados, simplesmente porque não haveria coabitação e, consequentemente, o vínculo familiar. Assim, caso haja um episódio de violência entre ex-namorados, por exemplo, em razão do rapaz não aceitar o fim do relacionamento, por considerar sua ex-namorada como se fosse propriedade dele, aplicar-se-ia a Lei n. 9099/95, o que implicaria em um grande retrocesso.

Em consonância ao entendimento acima exposto18, assevera Lima (2014a, 891/892),

A despeito desse entendimento, preferimos entender que, por força do princípio pro homine,segundo o qual, em matéria de direitos humanos, deve sempre prevalecer a norma mais favorável, entre a norma de direito internacional (Convenção de Belém do Pará, art.2º, alínea ‘a’) e a norma de direito interno ( Lei nº 11.340/06, art.5º, III), há que ser aplicada aquela que confere maior proteção à mulher vítima da violência, qual seja, aquela constante da Lei Maria da Penha, que dispensa a coabitação entre o agressor e a vítima para fins de reconhecimento de uma relação íntima de afeto.

Ademais, os próprios Tribunais de nosso país têm firmado o entendimento que se no caso concreto demonstrar-se que a violência perpetrada decorreu em virtude da relação íntima que existia, deve ser aplicada a Lei n. 11.340/06. Nesse sentido, o julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 42092/RJ, no caso em que o padrasto agrediu a enteada:

De acordo com o artigo 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Da leitura do

referido dispositivo legal, constata-se que é perfeitamente possível a prática de violência doméstica e familiar nas relações entre o convivente da mãe e a filha desta, ainda que não tenham coabitado, exigindo-se, contudo, que os fatos tenham sido praticados em razão da relação de intimidade e afeto existente entre o agressor e a vítima. ( STJ, Quinta Turma, RHC 42092/RJ, Min. Rel. Jorge

Mussi. DJe 02.04.2014, com grifos no original).

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Acentua-se que o fato do Brasil ter ratificado a Convenção Interamericana para prevenir, punir a violência contra a mulher, não o impede de criar uma lei que seja mais protetora , excluindo assim das relações íntimas de afeto a coabitação, conforme prevê a Lei n. 11.340/06. Ademais, o legislador pátrio já o fez em outras hipóteses como o que ocorreu com a Lei n. 9455/97 (Lei de Tortura), na qual o país é signatário da Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 10.12.1984. Assim, o conceito do crime de tortura apresentado pela norma internacional só consideraria como sujeito ativo o funcionário público ou aquele que no exercício de suas funções públicas, cometesse atos que ensejassem dores, sofrimentos agudos, físicos, mentais com a finalidade de obter dela ou terceira pessoa, informações ou confissões, bem como de castigá-la, intimidá-la, coagi-la ou por qualquer outro motivo discriminatório.

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Outrossim, cumpre-se apresentar o balanço semestral do ano de 2013 das ligações realizadas ao Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para mulheres – SPM, conforme o Gráfico 1,

Gráfico 1- Percentual das relações interpessoais entre vítima e agressor comunicadas ao Ligue 180/SPM de janeiro a julho de 2013.

Fonte: Central de Atendimento à Mulher – ligue 180/SPM

Assim, como se pode inferir do gráfico acima, a maioria das agressões às mulheres decorrentes de violência doméstica e familiar advém de relações íntimas de afeto. Desse modo, não há como ignorar essa realidade, devendo-se aplicar a lei a essas situações.

2.3 As espécies de violência doméstica e familiar contra a mulher

A ideia de violência doméstica e familiar contra a mulher deve ser entendida com a interpretação em conjunto do art.5º, o qual traz o conceito do que seria a violência doméstica e familiar, combinada com o art.7º, que apresenta as formas dessa violência.

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como uma alusão ao fato de que aqueles conceitos apresentados pela lei, a depender do caso concreto seriam conceitos abertos, mas não de modo a prever outras formas de violência.

No entanto, parece forçosa essa posição, uma vez que a Lei Maria Penha tem como escopo coibir e prevenir todas as formas de violência praticadas contra a mulher vítima da violência doméstica e familiar, sendo uma verdadeira norma de direitos humanos. Por conseguinte, o rol apresentado no artigo 7º deve ser entendido como meramente exemplificativo. Assim, filiado a essa corrente, Lima (2014a, p.894) assevera,

Tem-se aí verdadeira hipótese de interpretação analógica: como o legislador não é capaz de prever todas as situações de violência que podem ocorrer no âmbito de uma relação doméstica e familiar ou íntima de afeto, utiliza-se de uma fórmula casuística

– violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral -, para depois se valer de uma fórmula genérica – entre outras -, o que significa dizer que toda e qualquer forma de violência contra a mulher semelhantes àquelas anteriormente mencionadas será idônea para autorizar a incidência dos ditames gravosos da Lei Maria da Penha.

Acentua-se que esse conceito de violência elencado pela lei, é demasiadamente abrangente, nem sempre implicando em um ilícito penal, como pode ocorrer na violência psicológica, quando o marido humilha constantemente sua esposa alegando “que ela não sabe cozinhar”, “não limpa a casa direito”, “não vai trabalhar, porque mulher tem que cuidar de casa”, enfim, em todas essas situações, coloca-se a mulher em uma situação de inferioridade, diminuindo-lhe a autoestima, desencadeando, em muitos casos, diversas enfermidades de cunho emocional, como a depressão ou mesmo o suicídio. Todavia, tais comportamentos não implicam em condutas penalmente tipificadas, mas podem suscitar medidas de cunho assistencial e preventivo, como a manutenção do vínculo trabalhista, por até seis meses, caso seja necessário o seu afastamento19 (art.9º, §2º, II, Lei n. 11.340/06).

Nesse sentido, acrescenta Bianchini (2013, p. 42),

De tal alargamento, decorre que nem todas as condutas consideradas violentas pela Lei possuem um correspondente penal. É por isso, que se deve ter muita atenção com o conceito de violência lá trazido. Enquanto no direito penal a violência pode ser física ou corporal (lesão corporal, p.ex.), moral (configurando grave ameaça) ou imprópria (compreendendo todo meio capaz de anular a capacidade de resistência – uso de estupefacientes, p. ex), a Lei Maria da Penha se vale do seu sentido sociológico; mais do que isso, utiliza-se do conceito de violência de gênero, [...].

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Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

§ 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:

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Desses tipos de violência trazidos pela Lei n. 11.340/06, a mais frequente é a física, seguida da psicológica e depois da moral, sendo esse o balanço apresentado ao se analisar as ligações realizadas ao Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para mulheres – SPM, conforme o Gráfico 2.

Gráfico 2- percentual dos tipos de violência sofrida pelas vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher que buscaram o Ligue 180, sendo esse balanço realizado nos anos de 2006 a 2013.

Fonte: Central de Atendimento à Mulher – ligue 180/SPM

Destarte, a violência física pode ser compreendida como “o emprego de força física sobre o corpo da vítima, visando a causar lesão à integridade ou à saúde corporal da vítima” (LIMA, 2014, p.895). Logo, pode ser qualquer ação ou mesmo omissão que se dê por meio da força física que viole a integridade física ou a saúde corporal da vítima, podendo ou não deixar vestígios da violência perpetrada, como ocorre na contravenção penal de vias de fato. Como se depreende do gráfico, ela é a modalidade de violência que mais ocorre, tendo sido registradas no Ligue 180, somente no primeiro semestre de 2013, 4655 espancamentos20. A violência psicológica, que possui maior incidência depois da física, pode ser entendida como aquela em que “o agressor procura causar danos emocionais à mulher, geralmente por meio de ameaças, rejeições, humilhações ou discriminações, objetivando não apenas diminuir sua autoestima, como também prejudicar seu pleno desenvolvimento” (LIMA, 2014, p.895). Acentua-se que, por vezes, tal violência não implica em um ilícito

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penal, o que faz que muitas vítimas não compreendam que aquele comportamento humilhante, degradante, é uma forma de violência, ensejando diversos problemas de ordem emocional. Um exemplo disso, é que somente no primeiro semestre de 201321, 177 mulheres cometeram suicídio devido a essa “violência silenciosa”.

O conceito de violência sexual apresentado pela Lei n. 11.340/06, em seu artigo 7º, III é bem completo, sendo compreendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Interessante destacar a distinção entre direitos sexuais e reprodutivos elencada por Bianchini (2013, p.48),

Os direitos sexuais pressupõem a livre exploração da orientação sexual, podendo a pessoa promover a escolha do parceiro(s) e exercitar a prática sexual de forma dissociada do objetivo reprodutivo. Deve ser assegurado o direito à prática sexual protegida de doenças sexualmente transmissíveis, além do necessário respeito à integridade física e moral. Já os direitos reprodutivos levam em conta a livre escolha do número de filhos que um casal deseja ter, independentemente de casamento, sendo assegurado o direito ao matrimonio desde que haja concordância plena de ambos.

A violência patrimonial, outra modalidade de violência explicitamente prevista, implica em “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” (artigo 7º, IV, Lei nº 11.340/06).

Ante essa definição de violência patrimonial, questão interessante é suscitada pela doutrina, qual seja, a possibilidade de ter o referido artigo revogado as imunidades absolutas e relativas previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal22. Assim, em razão dessas escusas absolutórias, os crimes patrimoniais ocorridos sem violência, se praticados em desfavor de

21 Disponível em: http://www.spm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2013/10/07-10-ligue-180-e-acessado-por-56-dos-municipios-brasileiros. Acesso em: 28 março 2014.

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Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;

II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;

II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;

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qualquer uma das pessoas elencadas no art. 181 do Código Penal, ensejam a extinção da punibilidade. No entanto, o fato continua a ser típico, ilícito e culpável, mas por questões de política criminal, visando proteger a instituição familiar, o legislador optou por não tornar o fato criminoso punível. Logo, pode até ser instaurado um inquérito policial, uma vez que se trata de procedimento administrativo, mas não haverá o ajuizamento da ação penal, tendo em vista que o agente não poderá ser punido.

Com isso, entendem alguns doutrinadores que a Lei n. 11.340/06, teria revogado as escusas absolutórias e relativas previstas no Código Penal, nesse sentido Dias (2009, p. 52), A partir da nova definição de violência doméstica, assim reconhecida também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas ou relativas do arts. 181 e 182 do código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua cônjuge ou companheira , ou, ainda, alguma parente do sexo feminino. Aliás, o Estatuto do Idoso, além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta excludente da criminalidade quando a vítima tiver mais de 60 anos.

Por sua vez, uma segunda corrente entende que se a Lei Maria da Penha não trouxe em seu corpo qualquer vedação expressa, não há que se falar em revogação dos artigos 181 e 182 do Código Penal. Ademais, quando a própria lei quis excetuar alguma situação a fez de forma expressa, por exemplo, no artigo 41, em que previu a não aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9099/95. Do mesmo modo, outras normas, quando ressalvaram a não aplicação das escusas absolutórias e relativas, o fizeram expressamente, como no Estatuto do Idoso23. Assim, chancela Cunha e Pinto (2012, p. 66),

Ante o silêncio do legislador no que concerne à mulher vítima de crime patrimonial, a conclusão é mesmo no sentido de que as imunidades previstas no Código Penal não suportaram qualquer espécie de alteração. Nem vale argumentar como eventual aplicação da analogia entre situação de idoso e mulher. Primeiro, porque é um tanto discutível se pretender igualar ambas as condições, de forma a propiciar a incidência da analogia. Segundo, como já destacado, porque não foi essa opção do legislador. E terceiro, em virtude de que o emprego desse processo de autointegração, no caso, seria francamente desfavorável ao agente, pois importaria na adoção da chamada analogia in malam partem.Ora, é sabido que a analogia jamais pode incidir sobre normas penais incriminadoras, criando figuras típicas não previstas em lei, ao arrepio do art. 1º do CP. Por conta disso é que, a despeito da Lei Maria da Penha , nenhuma alteração experimentou o Código Penal no que tange às imunidades.

Por fim, dentre as modalidades de violência expressas trazidas pela Lei n. 11.340/06, a violência moral, na qual se buscou um conceito que deve ser interpretado em conjunto com os Crimes Contra a Honra previstos no Código Penal, isso porque, a violência

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moral é entendida como qualquer conduta que enseja calúnia, difamação ou injúria. A calúnia pode ser compreendida como a falsa imputação de fato criminoso, atingindo assim a honra objetiva da mulher, isto é, como ela é vista, respeitada, perante a sociedade. A difamação é a imputação de fato ofensivo à reputação, pouco importando se o fato é verdadeiro ou falso, de modo que também atinge sua honra objetiva. Já a injúria, é a atribuição de impropérios de modo a atingir a honra subjetiva da mulher, ou seja, como a mulher a ver si, afrontando sua dignidade e seu decoro.

2.4 Os Beneficiários da Lei nº 11.340/06

Após ser definido o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo tal violência baseada no gênero, assim como as formas em que ela pode manifestar-se, passar-se-á a um dos temas mais conflitantes, qual seja, os beneficiários da Lei Maria da Penha.

Inicialmente, parece ser irrelevante tal questionamento, pois parece óbvio que o sujeito passivo dos crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher seria a MULHER. No entanto, em razão da hermenêutica legislativa e da dinamicidade das relações sociais, muitas indagações surgem acerca da incidência ou não da lei, como exemplo, “ se a vítima for transexual”, “se a vítima for empregada doméstica”, “se o conflito for entre pai e filha”, e assim englobando todos os conflitos familiares que tenham uma mulher como sujeito passivo.

No caso do transexual, este se distingue do homossexual e do travesti, e a própria lei em seu artigo 2º24 combinado com o parágrafo único do artigo 5º25 , prevê a possibilidade do referido diploma às relações homoafetivas. Logo, se uma mulher agride sua companheira, em razão da condição dela ser mulher e assim submissa, aplicar-se-á a Lei Maria da Penha.

No entanto, o transexual é aquele que não aceita a sua condição fisiológica de homem ou mulher, uma vez que no seu íntimo, se sente como o sexo oposto. Se normalmente

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Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

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Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

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gênero e sexo concordam no indivíduo, o que ocorre no transexualismo, segundo o autor, é justamente um desacordoinsuportável para o sujeito entre seu gênero e seu sexo26.

Desse modo, se após realizada a cirurgia, o transexual torna-se como se fosse mulher perante a sociedade, poderia assim ser beneficiado pela Lei n. 11.340/06? Mesmo que em seus registros civis continue a ser homem?

Interessante destacar a posição do STJ, ao definir o sujeito passivo dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo a Ministra Maria Thereza de Assis Moura pontuado no relatório do Habeas Corpus nº 178-751/RS,

Para ter incidência a lei nova o sujeito passivo da violência deve necessariamente ser uma "mulher" (tanto quanto, por exemplo, no crime de

estupro). Pessoas travestidas não são mulheres. Não se aplica no caso delas a lei nova (sim, as disposições legais outras do CP). No caso de cirurgia transexual,

desde que a pessoa tenha passado documentalmente a ser identificada como mulher (Roberta Close, por exemplo), terá incidência a lei nova. (STJ, Sexta

Turma, HC 178-751/RS, Rel. Min. Maria Tereza de Assis Moura, DJe 21.05.2013)

Todavia, essa questão é polêmica, pois para aqueles que adotam a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha aos transexuais, o fundamento seriam os artigos 2º e 5º, parágrafo único, os quais dizem que a lei será aplicada independente de orientação sexual.

No entanto, é mais razoável observar o contexto em que ocorreu a violência, vez que, caso tenha ocorrido em razão do transexual ter uma aparência de mulher e, por isso, o agressor acreditar que está em uma posição de superioridade, pois é o homem da relação, aplica-se perfeitamente a Lei n. 11.340/06.

Em decisão interessantíssima, a Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, da 1ª Vara Criminal de Anápolis/GO ( Processo nº 201.103.873.908)27, aplicou a Lei n. 11.340/06 a um transexual que, apesar de não ter alterado seus registros civis, tinha feito a cirurgia há mais de 17 anos, logo “seu sexo social era o feminino”. Ademais, o réu no processo, era o ex -companheiro da vítima, tendo o casal convivido maritalmente por aproximadamente um ano, sendo os episódios de violência doméstica recorrentes. Outrossim, a Juíza destacou ainda a diferença que deve ser feita entre sexo e gênero, acentuando ,

Assim, diz-se que aquele sistema normativo é baseada no gênero, pelo fato dessa violência se referir às características sociais, culturais e políticas impostas a homens e mulheres e não às diferenças biológicas entre homens e mulheres.[...] Para tanto, importante fazer a seguinte distinção: a) sexo refere-se às características biológicas de homens e mulheres, ou seja, às características específicas dos

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PERELSON, Simone. TRANSEXUALISMO: UMA QUESTÃO DO NOSSO. Revista Epos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p.3-19, dez. 2011. Disponível em: <http://revistaepos.org/arquivos/04/simoneperelson.pdf>. Acesso em: 31 março 2014.

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aparelhos reprodutores femininos e masculinos, ao seu funcionamento e aos caracteres sexuais secundários decorrentes dos hormônios; b) gênero, por seu turno, diz respeito às relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres, que são o resultado de uma construção social do papel do homem e da mulher a partir das diferenças sexuais.

Desse modo, se a lei se refere a qualquer relação íntima de afeto, bem como se aplica independente de orientação sexual da vítima, é perfeitamente possível sua aplicação ao transexual, mesmo que não haja a alteração nos Registros Civis de Pessoa Natural, uma vez que isso implica em um exercício do direito de personalidade. Logo, se o sexo social é o feminino, o qual ocorreu após uma intervenção cirúrgica e a violência sofrida foi doméstica e familiar baseada no gênero deve ser aplicada a Lei n. 11.340/06.

Outra questão palpitante é a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha às empregadas domésticas. Uma primeira corrente entende que não é possível sua aplicação, uma vez que as relações laborais não se encontram sob a tutela da Lei n. 11.340/06, haja vista não ter previsão legal, bem como que o intuito do legislador foi proteger a mulher que se encontrasse em situação de violência, no âmbito doméstico, familiar ou em uma relação íntima de afeto, baseada nas diferenças culturais entre homens e mulheres. Desse modo, a empregada doméstica deveria buscar o juízo criminal comum ou mesmo a Justiça do Trabalho para satisfazer sua pretensão.

No entanto, uma segunda corrente entende que é possível a incidência da Lei Maria da Penha, vez que é viável a aplicação dela, se a violência ocorrer no âmbito da unidade doméstica, que, nesse caso, não se faz necessário o vínculo familiar, apenas o convívio naquele espaço, inclusive, podendo ser pessoas esporadicamente agregadas.

Desse modo, ante o exposto, apesar de a lei prever a possibilidade de aplicação no âmbito de unidade doméstica, incidindo em relações de pessoas esporadicamente agregadas e não necessitando de vínculo familiar, a relação empregado-patrão encontra-se na seara laboral, havendo institutos específicos e princípios que visam a proteger o trabalhador. Ademais, dificilmente a motivação desse tipo de violência será baseada no gênero, decorrendo, por vezes, da forma em que a atividade laboral é desempenhada ou mesmo do abuso do poder disciplinar que goza o empregador. Assim, a primeira corrente é mais adequada, não devendo ser aplicada a Lei n. 11.340/06 aos casos que envolvam a relação patrão – empregado doméstico.

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Gráfico 1- Percentual das relações interpessoais entre vítima e agressor comunicadas ao Ligue  180/SPM de janeiro a julho de 2013
Gráfico  2-  percentual  dos  tipos  de  violência  sofrida  pelas  vítimas  de  violência  doméstica  e  familiar contra a mulher que buscaram o Ligue 180, sendo esse balanço realizado nos anos de  2006 a 2013
Gráfico 3  –  Porcentagem de feminicídios do Brasil em 2012
Gráfico 5: Se havia histórico de violência doméstica e familiar
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Referências

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