• Nenhum resultado encontrado

MEUS PENSAMENTOS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "MEUS PENSAMENTOS"

Copied!
38
0
0

Texto

(1)

MEUS PENSAMENTOS Romance de Ficção:

CAPITULO I:

A DÚVIDA:

A casa era antiga mas muito conservada. Um casarão colonial do século passado. A escada de mármore conduzia até a porta de entrada. Apertei a campainha antes de ver a placa que se lia: “Entre, consultório psiquiátrico do Dr. Pogossi”. Adentrei na imensa sala de espera, não havia nenhuma atendente, apenas um cartaz que dizia: “Aguarde, por favor”. Um conjunto de poltronas de cor vermelho escuro a estilo Luiz XV, me convidavam a sentar. A porta com mais de dois metros de altura, acabara de ser aberta.

Um homem, aparentando mais de 60 anos, com abundantes cabelos brancos, e aproximadamente um metro e noventa de altura. Vestido de branco, com um largo sorriso que descobria uma perfeita dentadura postiça.

Se aproximando, estendeu a mão direita a qual apertei e disse:

- Sou o Dr. Pogossi, muito prazer em conhecê-lo!

- Eu sou Otrebor Ozodrac, sou engenheiro e estou necessitando de sua ajuda.

- Queira entrar Sr. Ozodrac e sente-se.

O Dr. Pogossi, sentou-se atrás de uma escrivaninha, onde havia um micro computador. Colocou ambas as mãos sobre a mesa entrelaçando os dedos e disse:

- Em que lhe posso ser útil?

- Dr. Pogossi, eu necessito saber se eu estou ficando louco.

- Porque tem tal dúvida? O que de estranho está acontecendo em sua vida?

- Não sei como explicar, porém se o senhor puder me ajudar, talvez fazendo testes para avaliar e meu estado de lucidez.

- Sr. Ozodrac, pelo simples fato do senhor me haver procurado achando que pode estar ficando louco, é uma afirmação que o Sr. não está, se o tivesse, jamais o faria. No entanto o senhor tem uma hora para me contar a sua história.

Viajara para Mato Grosso do Sul, na cidade de Dourados, com meu colega Dille. À noite estávamos jantando em um restaurante denominado de Magiori, localizado em uma rua central de grande movimento, local onde se encontram instalados os melhores restaurantes. O movimento dos carros era intenso. Pessoas e carros que circulavam, parecia que apenas por circularem, pois os carros passavam por diversas vezes, como que fosse um desfile. As árvores cujas copas cobriam uma grande parte da avenida em ambos os lados e no canteiro central. Nas esquinas podiam ser vistas as alegorias com motivos do lugar. Araras, capivaras, peixes, macacos e uma variada espécie de aves características do Mato Grosso do Sul.

(2)

Preferimos sentar no passeio, onde havia diversas mesas disponíveis.

Dentro do restaurante, um cantor solitário, com seu violão, cantava músicas de Zé Ramalho. Naquele momento, a música que se ouvia era Cidadão.

Chega o garçom e alcança o cardápio. O Dille pede uma cerveja eu, um suco de laranja. Para o jantar pedimos um file à parmejana. Conversa vai, conversa vem, quando de repente sinto uma forte dor no braço direito.

Apertei o braço. O Dille percebendo, perguntou o que estava acontecendo.

Disse-lhe que era uma dor de enfarto, mas que iria passar e de fato logo em seguida passou.

Chegando de volta a Montenegro, fui logo ter com minha cardiologista.

Contei-lhe o sucedido, ela pareceu-me preocupada e disse-me:

- Sr. Otrebor, considerando que o Sr. teve um enfarto em 1994 e o que acaba de narrar, acho prudente que o senhor seja submetido a um cataterisma para avaliar com segurança o que está ocorrendo.

– Concordei de imediato e passado alguns dias, dei entrada no hospital São Lucas, em Porto Alegre, onde por uma excelente equipe médica fui submetido ao procedimento. Anestesia local e uma punção na artéria na região da virilha, onde foi introduzida uma bainha e através desta um cateter, que foi até o coração.

Terminado o procedimento, que teve a duração de aproximados 30 minutos, tempo este necessário para que fossem tiradas várias chapas de RX. O procedimento foi dentro da normalidade, sem dor, apenas sentindo um calor intenso quando era injetado o contraste, porém este logo passava.

Sob o comando dos médicos tinha de respirar profundamente e trancar a respiração no momento do disparo do RX. Terminado o procedimento fui levado para a sala de recuperação, onde de imediato uma enfermeira retirou a bainha e ficou pressionando o ferimento até que este cicatrizasse, o que levou uns 15 a 20 minutos de pressão. Após, colocou uma bandagem e fixou com esparadrapo. Em seqüência tive de permanecer por 6 horas sem mover a perna direita. No decorrer das 6 horas que tive de ficar com a perna imóvel, dormi, e quando acordei, lá pelas 17 horas, havia uma senhora que gritava de dor e gemia muito, pois estavam retirando a sua bainha., Eu com os meus botões, pensáva: Que mulher vil é essa. A retirada da bainha não dói nada! Como umas pessoas são tão mais sensíveis do que as outras.

O resultado dos exames foi sombrio. Eu tinha uma coronária totalmente obstruída desde 1994, quando do enfarto. Uma outra coronária apresentava uma oclusão de 85% e a terceira uma oclusão de 45%. Em fim eu estava com o pé na cova. Quando da alta que ocorreu no mesmo dia, por volta das 21 horas, foi marcado o segundo procedimento, que ocorreria na semana seguinte. O próximo procedimento, seria uma angioplastia, que é uma técnica que utiliza um minúsculo balão inflado dentro da artéria obstruída

(3)

com placas de gordura e sangue, esmagando as placas que provocam o entupimento. O stent (que é uma tela de aço inoxidável), acompanha o balão. Além de esmagar a placa de obstrução, o balão, quando cheio, monta o stent. A tela de aço, já montada cola na parede interna da artéria e impede que esta se feche. O balão que acompanhou o fio durante a angioplastia esvazia e é retirado da artéria. Mas o stent permanece. No momento que o balão seca, o sangue volta a circular normalmente.

Na quinta-feira da semana seguinte, apresentei-me no hospital São Lucas, para mais um procedimento. Como de costume me despi e coloquei apenas uma camisola branca e pró-pés. Permaneci por algum tempo em uma maca até que uma enfermeira providenciou o acesso, ou seja, fez uma punção em uma veia e colocou o soro. O acesso é para durante o procedimento ser injetado os medicamentos se necessários.

Mais alguns momentos de espera e fui levado para a sala de intervenção, onde os médicos já estavam a postos. O procedimento iniciara com a anestesia da virilha e o puncionamento da artéria, introdução da bainha e através desta o cateter. Eu conseguia ver na tela o cateter penetrando no coração até chegar na coronária ocluída. De quando em vez a máquina lançava o contraste, que proporcionava um calor indescritível, porém logo passava. O tempo avançava, calculo que mais de 40 minutos já haviam passados, quando começou uma intensa dor na coluna ou nos rins.

Aparentemente pela posição que estava na mesa, imobilizado. Logo em seqüência veio uma grande necessidade de urinar, pois aos meus 61 anos, tenho de urinar normalmente de duas em duas horas. A máquina de quando em vez lançava o contraste, o calor já se tornava insuportável. A dor na coluna ou nos rins aumentava. A bexiga já estava doendo. Quando não mais suportava, comecei a queixar-me. O médico apenas dizia, falta pouco tem de ser paciente. Já fazia uma hora que, sem dúvida eu estava sendo submetido ao procedimento. O sofrimento era indescritível, a dor cada vez maior, já não mais sabia o que doíam mais se a coluna, os rins ou a bexiga.

Disse ao médico:

- Eu não agüento mais tenho de urinar.

O médico respondeu.

- Não é possível interromper o procedimento, seja paciente, seu comportamento não é adequado.

Nesse estado de agonia e sofrimento, comecei a perceber dentro do meu cérebro, uma mensagem, interessante. Tinha a impressão que era o mesmo tipo de pensamento, que tinha quando conversava com o Senhor Ro, ou seja, comigo mesmo. O pensamento como que alguém estivesse ditando, dizia:

Sr. Ozodrac lembre-se que isso vai passar. Tente projetar a sua mente de forma que a dor seja aplacada,. Interrompa as transmissões neurônicas que estão levando a dor até o seu cérebro. Projete uma sensação de dormência

(4)

nas partes afetadas. Isole a dor na sua origem. Relaxe, respire com calma, o seu sistema nervoso é que está provocando a maior intensidade de dor. A dor foi diminuindo, diminuindo até desaparecer por completo, Assim se passaram mais de trinta minutos e eu estava calmo e sereno, quando o médico disse:

- Está concluído, o procedimento foi um sucesso. Logo uma enfermeira colocou o meu pênis em um “papagaio” e eu liberei a urina. Fui levado para a sala de recuperação. Deram-me para beber um suco de frutas e um sanduíche para comer.

Permaneci imóvel, esperando que a enfermeira fosse retirar a bainha, notei que outros pacientes vinham da sala de procedimento e a bainha lhes era retirada. Chamei a enfermeira e perguntei, se havia esquecido de retirar a bainha, no que ela respondeu:

- Não posso retirar a bainha antes de seis horas. O Senhor recebeu uma dose de anticoagulantes, que seu efeito passará em seis horas.

Aí caiu à ficha, porque aquela senhora gemia e gritava tanto. Passando-se 6 horas o efeito da anestesia estaria findo. Não vou narrar se a dor foi muito intensa ao retirar a bainha. Eu a resisti, não é o escopo desta narrativa suplícios e dores.

Na manhã seguinte o médico deu-me alta e comentou que o procedimento teria ocorrido maravilhosamente bem. A coronária ocluída desde 1994, fora desobstruída, sendo colocado o stent, que é uma espécie de mola que não deixa a coronária fechar naquele local, segurado as placas moles, como já foi explicado. Informou-me ainda que dentro de trinta dias teria que retornar para um novo procedimento na coronária que tinha 85% de oclusão, que durante este período teria de tomar alguns medicamentos de praxe.

Trinta dias após, submeti-me ao último procedimento, pois a coronária que tinha uma oclusão de 45% não seria reparada. O procedimento foi tão simples como o primeiro, sendo colocado mais um “stent”, após haver sido feito uma dilatação com o balão, conforme já explicado.

Agora restabelecido, iniciara as minhas caminhadas, nas quais costumara a conjeturar com o Sr. Ro. Caminhava pelo parque centenário. Eram cerca de 7 horas da noite de outono, maio era o mês, mais precisamente no dia 7, numa sexta-feira. Atento a caminhada, sem qualquer pensamento objetivo, vieram na minha mente lembranças do procedimento em que eu próprio me tinha acalmado, pela força do pensamento positivo. Mas, estranho que neste momento, surgia de relance, pensamentos como:

- Você está bem agora? Foram momentos difíceis, não? Mas passaram!

Por que eu estava me fazendo perguntas? Não entendia nada. - “Eu sou Harmon”. - Quem é Harmon? Não conheço nenhum Harmon! Como posso ter pensado nisso? Como fiquei confuso, resolvi envolver-me em

(5)

pensamentos mais objetivos, pensando no trabalho que teria no dia seguinte e assim, terminei a caminhada.

Dormi aproximadamente às 21 horas, e como de costume acordei às 2 horas da madrugada. Levantei e quando estava vestindo um roupão, vieram-me estes pensamentos:

Bom dia Sr. Otrebor, eu sou Harmon.

Ora bolas, de novo este pensamento ridículo. Eu não conheço nenhum Harmon. Liguei o computador e enquanto esperava que abrisse, pois ele é um tanto lento por ser modelo antigo, fui assaltado novamente por um estranho pensamento.

- Sou Harmon, quero ser seu amigo.

Indignado afastei o pensamento e comecei a trabalhar, isto é escrever. De repente, pensei “será que estarei ficando louco? Terá sido pela idéia de criar o Sr. Ro ? Não, não é possível. Eu sempre tive um bom controle emocional, não vai ser isso que irá me abalar.” Às 4:15, o sono voltara e eu fui me deitar novamente. Acomodei-me na cama para dormir quando meu pensamento é invadido:

- Eu sou Harmon. Lembra que o ajudei quando estava em desespero na mesa de procedimento?

Estou ficando louco. Como posso estar pensando nisso. Dormi e no dia seguinte este pensamento foi à primeira coisa que me veio à cabeça. “De fato estou ficando louco.” Nos próximos dois meses tais pensamentos ocorriam a qualquer momento em que estivesse solitário, como se diz falando com os meus botões, o que me levou a pensar que poderia estar ficando louco.

Após haver narrado minha história nos mínimos detalhes, ao final o Dr.

Pogossi disse:

- Sr. Ozodrac o senhor está em seu juízo perfeito. No entanto entre o céu e a terra há muita coisa inexplicável e essa é uma delas. Aconselho-o a não rejeitar tais pensamentos, dê-lhes ênfase e se entender necessário volte na próxima semana, porém não esqueça de telefonar antes. Aqui tem o meu cartão.

Na estação rodoviária de Porto Alegre, esperava o ônibus para retornar a Montenegro. Sentado em um banco defronte ao estacionamento dos ônibus, contemplava a vista que se descortinava a minha frente. Do outro lado da rua, no estacionamento de chegada, as pessoas carregadas de bagagens se movimentavam freneticamente, parecendo que todos estavam atrasados. O ritmo intenso das pessoas, fez-me pensar sobre a individualidade de cada ser humano. Cada um com suas dúvidas, incertezas, preocupações e frustrações. À direita o caminho para o túnel do trem urbano, local onde havia maior movimento.

O ônibus chegara. Levantei, alcancei a passagem ao motorista e adentrei no veículo de transporte coletivo. Sentei-me na poltrona nº. 24, que ficava no

(6)

lado do corredor. Ao meu lado, uma senhora obesa se acomodava no banco, ocupando inclusive o meu espaço. Nada poderia fazer, era uma questão de tolerância com o meu próximo. Alguns minutos mais, o ônibus partira. Preparava-me para conciliar o sono, espremido no meu canto, A mulher gorda comia o conteúdo de um saco de batatas fritas. O estalar das batatas crocantes, quebradas pelo mascar da gorda, não me deixavam dormir. De repente:

Sr. Otrebor, eu sou Harmon, já fiz contato anteriormente com o senhor, sem que me tivesse dado atenção.

Quem é você?

– Sou uma criatura, às vezes sou confundido com o criador, por vocês humanos. Sou uma criatura abstrata, meu habitat é o universo. Sou do bem, não faço mal a ninguém. Quando é possível ajudo, como fiz com o Senhor.

- Estou contente em conhecê-lo Harmon. Que forma você tem?

- Não tenho forma, como disse sou abstrato. Não possuo massa como você.

Para os da minha espécie, não há tempo nem espaço. No início éramos seres primitivos, como o senhor tínhamos massa, depois veio à depuração e a libertação da massa, não temos fim, somos o que somos.

- Não estou entendendo, o que você é afinal, por acaso será você fruto da minha imaginação?

- O que você acha? Pode ser?

- Não, não pode. Eu percebo a sua presença dentro de meu pensamento, como algo que está ocupando um espaço na minha mente. A final! O que quer de mim?

- Nada, apenas relacionar-me com você. Conhecê-lo mais intimamente, afinal já nos conhecemos há muito tempo, só que o Senhor nunca percebeu a minha presença.

- Sr. Otrebor! Vou lhe dar uma prova da minha existência, é simples:

Peça que eu lhe responda algo que você nunca teve conhecimento, mas que possa comprovar posteriormente a minha resposta.

- Percebi, seria como eu propor uma adivinhação a mim mesmo, é isso?

– Tuche, Sr. Otrebor.

- Vamos lá. No dia 17 do próximo mês de junho, viajo para o estado do Mato Grosso do Sul. Sempre tive vontade de visitar uma aldeia indígena, naquele estado. Diga-me miudamente o que vou encontrar na referida aldeia, pessoas que a habitam, como são, quem é o cacique, como veste e como é fisicamente. Considerando que nunca estive naquela aldeia, você deve narrar tudo o que vou encontrar. Eu por minha vez, vou escrever tudo o que me disseres e colocarei em um envelope. Após a visita comprovarei a veracidade das informações.

CAPÍTULO II

(7)

NARRATIVA DE HARMON: -

Sr. Otrebor! Não vou lhe dizer como deve chegar à aldeia indígena, tão somente o que encontrará lá quando chegar! Entende?

A aldeia não é formada por ocas ou tendas, pois os índios já estão civilizados. A maioria mora em casas de madeira ou de alvenaria. As condições são de precariedade. Na aldeia as casas foram construídas sem o mínimo planejamento e distantes umas das outras. No entanto esta aldeia a que você deverá ir, possui uma gajekutu tradicional, onde o chefe faz as reuniões e os serviços religiosos da tribo. Lá você encontrará o cacique chamado de Aracaue, que é um homem simples. Quando você chegar lá, ele o estará esperando, vestindo uma bermuda de brim e uma camisa vermelha. Nos pés estará com uma sandália de couro, das que são compradas nos supermercados. Você estará levando para ele, uma garrafa de cachaça, a qual não seria necessária, pois você estará sendo esperado. O cacique o receberá com muita alegria.

Aracaue, o estará esperando e o saudará como a um irmão, dirá a você que nos últimos dez anos tinha sonhado com você. Isso será o suficiente para o seu convencimento?

- Sim, se isso ocorrer estarei satisfeito.No dia 7 de junho, dia do meu aniversário, tive de viajar a Passo Fundo, para fazer a integração de um novo funcionário da área de Segurança do Trabalho. Sai de Montenegro por volta das 7:30 da manhã, dirigindo calmamente, ouvindo a rádio Gaúcha, já tinha passado por Lajeado e Arroio do Meio e estava indo para Encantado, quando de repente:

- Bom dia Sr. Otrebor.

- Bom dia Harmon, como você está hoje?

- Como sempre, bem e tranqüilo. E você como está?

- Estou muito bem, obrigado.

- Você não está cansado? Eu posso dirigir para você!

- Como assim, você é capaz de dirigir o carro!

- Sim, enquanto você dorme.

- Não é possível! Você está brincando comigo!

- Quer tentar?

- Não, não sou louco de carteirinha.

- Vamos fazer uma experiência, você simplesmente fecha os olhos e eu dirijo o veículo, apenas, por 5 minutos, o que você acha?

- Não, já disse que não sou louco!

- Se eu fosse você, tentaria, apenas por um momento.

- Não, não insista!

- Tá bem, vejo que você ainda não confia em mim.

- Não é isso,. Veja bem, estou dirigindo um carro que não é meu, é da empresa para qual eu trabalho, se acontecer algo o que vou dizer? Que

(8)

deixei o meu amigo Harmon, que é um ser imaginário, ou que é um ser abstrato como você diz. Quem iria acreditar em tamanha doidice?

- Sr. Otrebor, como já lhe disse, para os da minha espécie, atualmente, não há tempo nem espaço, você se lembra quando você servia o exército, lá em Rio Grande? Sempre que você dormia quando estava de guarda, eu o apresentava para o ronda e você se lembra, isso aconteceu por mais de uma vez.

- Então era você quem me apresentava, serviço sem alteração, eu achava que o fazia dormindo.

- Lembras quando fostes pescar no balneário com o teu cunhado o Sandro, pobre coitado, achou que tu eras lobisomem, pois estavas conversando com ele e dormindo.

- Não é possível! Isso faz quase quarenta anos?

- Para você, para mim não, como disse, o tempo e o espaço não existem para os da minha espécie.

Lembra quando você e sua esposa vinham de Uruguaiana e quase se acidentaram lá pelas imediações de São Gabriel. Naquela oportunidade eu o ajudei a dirigir o carro, você nem percebeu, não é?

- Sim, como me lembro. Após haver parado no posto eu tremia todo e minha mulher não parava de chorar. Harmon você cada dia que passa me deixa mais preocupado.

- Sr. Otrebor. O rádio não mais está recebendo a onda.

- Sim é verdade, não havia percebido.

- Você não pode sintonizar uma rádio com música clássica, gosto muito de música clássica.

- Não Harmon, aqui não pega rádios com música clássica. Tenho em casa alguns CDs, de música clássica, vou trazê-los na próxima viajem.

- Ficarei muito grato se o fizerdes.

COMPROVAÇÃO DOS FATOS NARRADOS

“No dia 17 de junho, como previsto, viajei para Dourados, no Mato Grosso do Sul”. Às 5:00 horas da manhã, como combinado, a caminhonete Chevrolet, 4X4, de cabina dupla, encostara na frente da minha casa. Estava dirigindo o “Oficial”, este foi o apelido que lhe dei, por chamar todo o mundo de oficial, um jovem de aproximadamente 35 anos, cara limpa, com um abundante sorriso, que descortinava os dentes grandes, chegando a aparecer parte das gengivas superior. Carregada a minha bagagem, o

“oficial” tenta dar partida na caminhonete. A cada tentada a bateria ia morrendo. Constata que a bateria “foi pro saco”, pega o telefone celular, liga para os guardas da indústria, manda que eles peguem uma viatura e venham entre três para empurrar a caminhonete, deu a localização da minha casa, e antes que passasse 10 minutos os guardas apontaram em uma viatura, empurraram a caminhonete por uns trinta metros e, ela logo pegou

(9)

no tranco. Em seqüência pegamos um engenheiro mecânico, um alemãozinho de 29 anos, que também seria parceiro de viajem. O “oficial e o alemãozinho, não se conheciam antes, eu no entanto conhecia os dois”. A viajem transcorreu tudo normal, salvo a necessidade de trocar a bateria da caminhonete.

No dia 18 pela manhã, acompanhado do “oficial” e por um outro colega da unidade de Caarapó e Dourados, que presta serviços na área de segurança do trabalho, no retorno a visita de uma unidade de incubatório, fomos procurar por uma aldeia indígena, que se localizava nas cercanias da cidade de Dourados. A decepção foi tamanha. Na aldeia havia casas de alvenaria, madeira, barracos de lona, em fim de tudo um pouco dentro de um estado de miserabilidade incrível. O “Oficial”, que é acadêmico de historia, também tinha interesse em visitar uma aldeia indígena. Andamos nas estradas de chão batido no interior da aldeia e não encontramos a gajekutu narrado por Harmon. Ao final de quase uma hora de procura, desistimos do nosso intento e fomos para o hotel, porém antes, deixamos o colega em sua residência.

Na parte da tarde, devia ser próximo das 13 horas, como era sábado e o meu trabalho maior seria desenvolvido no domingo, estávamos de folga, o que me levou a procurar um taxista, para me levar a uma aldeias que tivesse uma gajekutu. Tive de explicar ao taxista o que era uma gajekutu, dizendo que era uma casa de sapé grande onde se reuniam os homens da tribo. O taxista disse que não sabia, porém, que a três quadra aproximadamente havia um ponto de “motoboys”, que lá eu procurasse um rapaz mestiço que conhecia tudo sobre os índios daquele lugar.

Aproximei-me do local indicado, lá estavam vários rapazes com suas motos. Cumprimentei-os e perguntei quem era capaz de me levar a uma aldeia de índios que tivesse uma gajekutu. Um rapaz de cara redonda, cabelos negros e escorridos, me disse:

- Eu tenho uns parentes índios, sei de que está falando, fica a uns 18 quilômetros de Caarapó, que fica a 43 quilômetros de Dourados. Posso levá-lo lá, mas o que irá fazer lá?

- Nada apenas conhecer a aldeia e seu chefe.

O rapaz movimentando a moto, convidou-me a subir, coloquei o capacete e ele foi em disparada. Quando chegamos à cidade de Caarapó, o rapaz parou em um “boteco” e comprou uma garrafa de cachaça. Perguntei para que comprara a cachaça, disse que era para levar para o pajé, dessa forma seriamos bem vindos. Havíamos percorrido os 18 quilômetros de estradas de chão, caminhos tortuosos, picadas na mata rala, quando ao longe avistamos a aldeia, composta de muitas casas, dentro da reserva, em desordem e de diversos tipos, madeira, sapé e alvenaria. Logo avistamos o gajekutu, imensa casa de sapé, no sentido longitudinal devia ter mais de 40 metros de comprimento por uns 15 metros de largura, com seus cantos

(10)

arredondados e uma porta no centro de uma das laterais. Um grande pátio ao seu entorno, onde os índios faziam suas danças, conforme me foi dito pelo meu condutor. Por incrível que pareça tudo estava em minha mente, exatamente igual ao que narrara Harmon. Parou a moto, a uns 20 metros da entrada da gajekutu, a qual, no centro, se encontrava Aracaue, com um sorriso de alegria e lágrimas nos olhos. No primeiro momento, pensei que tal emoção seria motivada pela presença do rapaz que me acompanhava.

No entanto Aracaue, se dirigindo a mim, disse:

- Meu irmão! Tenho sonhado contigo nos últimos dez anos, que como agora vens em uma motocicleta com um abrigo azul e tênis branco. Fui convidado a entrar na gajekutu. Ao adentrar mais impressionado fiquei, tudo o que estava vendo já era do meu conhecimento pelas narrativas de Harmon. A aldeia, o cacique, suas vestes, em fim, tudo exatamente como ele havia narrado.

Estava diante de um fato indubitável. “Harmon existia realmente, não era fruto de minha imaginação. Tinha de aprender a lidar com isso.”

De volta ao meu domicílio na cidade de Montenegro, curioso com o que tinha visto na aldeia indígena, dirigi-me até a biblioteca municipal e fiz a seguinte pesquisa:

“Seis nações indígenas de Mato Grosso do Sul ainda mantém seus costumes, tradições e sua língua nativa”. Os Kadiwéu, Guató, Terena, Ofayé, Caiuá e Guarani somam mais de 60 mil índios no território de Mato Grosso do Sul, colocando o estado como o segundo mais populoso do país, apesar da Fundação Nacional de Saúde reconhecer apenas 45 mil índios aldeados.

Os indígenas que vivem nas periferias das cidades, (aqueles a quem visitei na cidade de Dourados), não são reconhecidos pela Funasa. Este contingente de mais de 15 mil índios reside em 22 municípios de norte a sul do Estado, morando e trabalhando em condições precárias, mas buscando melhores condições para seus filhos. Sem recursos e um programa do Governo Federal para definir suas terras e programas de incentivo a agricultura e desenvolver sustentabilidade, a Fundação Nacional do Índio, órgão responsável pela assistência às comunidades indígenas, assiste a agonia das comunidades e nada pode fazer para impedir o êxodo de suas terras para os trabalhos nas destilarias, fazendas e subempregos nas cidades. A cada ano a tendência é piorar.

Muito diferente do que eu imaginava, os índios não usam cocares coloridos, vestem-se como os brancos, e, continuam lutando pela demarcação de suas terras e lutando por saúde, educação e programas para melhorar o desenvolvimento nas áreas indígenas. Os índios do Mato Grosso do Sul, vivem da agricultura e da pecuária, integrados ao processo de desenvolvimento, como parte da sociedade.

(11)

Os silvícolas não vivem mais da caça e da pesca. As matas deram lugar às plantações de capim para pecuária e o plantio de soja. As reservas legais onde vivem estão cada vez menores, em conseqüência do crescimento populacional. Nas ruas de Dourados, por exemplo, é comum ver-se curumins vendendo trabalhos artesanais ou pedindo dinheiro.

Atualmente possuem pequenas porções de terras insuficientes ao seu crescimento populacional. Com isso os homens são obrigados a sair para o trabalho pesado nas usinas de álcool, fazendas ou nas cidades como mão de obra barata e não especializada. As mulheres ficam em casa com as crianças, mas muitas saem para vender frutas e verduras ou trabalhar como empregadas domésticas.

O idioma Terena ainda é falado na maioria das aldeias, apesar da grande convivência com o meio urbano nas cidades de Aquidauana e Miranda. O povo Terena está tentando resgatar sua cultura e, algumas comunidades, mantêm suas tradições como a Dança do Bate Pau e a produção de cerâmica e tecelagem.

Mesmo com uma pequena área, sobressaem-se na agricultura, cultivando arroz, feijão, mandioca e milho, que são à base de sua alimentação.

Plantam ainda o feijão de corda e o maxixe. O excedente de sua produção é levado paras as cidades, onde é comercializado.

Capítulo III

Diálogo com Harmon.

- Harmon você está aí?

- Sim Sr. Otrebor, eu sempre estou aqui. Em que lhe posso ser útil?

- Caro Harmon! Se me lembro bem, você me disse que não está sujeito a tempo nem a espaço, estou certo?

Sim, está perfeitamente certo. Parece-me, que já provei essa condição, quando da sua viajem a Mato Grosso do Sul.

- Então, diga-me! Se eu o convencer a me fazer um trabalho, como buscar uma informação privilegiada de algum fato que ocorreu ou que irá ocorrer, isso será possível?

- Sim, tudo é possível. Porém o que não será fácil é eu ser convencido a lhe prestar tal serviço. Somos considerados, pelos da sua espécie, muitas vezes como fantasmas, espíritos de pessoas mortas, profetas, adivinhos e até às vezes somos considerados um Deus ou seres de outros planetas e daí por diante. Mas jamais um da minha espécie, após a depuração, fez qualquer ato ilícito. Nada que pudesse subverter a harmonia do universo.

O COMPLEXO MUNDO DE HARMON.

- Caro Harmon, como é o seu mundo? De onde você é? Como surgiu? Em fim, fale-me de sua espécie!

- Sr. Otrebor, você gostaria de fazer uma viagem ao meu mundo?

- Sim, perfeitamente.

(12)

- Para que isso seja possível, é necessário que o Sr. consiga criar em sua mente uma grande tela branca, Como a de um cinema. Você terá de exercitar muito até que a tela permaneça estável em sua mente, ou seja, nada mais do que a tela. Em momento algum a tela pode ser modificada.

Quando conseguir isso eu passarei a projetar na tela todo o meu complexo mundo.

Nos dias seguintes quando ia conciliar o sono, seguindo as instruções de Harmon, eu ficava por algum tempo exercitando a fixação da tela. Não era fácil. Harmon já me tinha avisado que dependeria de muito exercício para obter os resultados desejados. Quando conseguia a formação da tela, esta não permanecia estável. Era apagada ou distorcida por qualquer outro pensamento.

Enquanto exercitava a formação e fixação da tela, notei que Harmon permanecia ausente, fato este que me causou estranheza. Como vou fixar a tela e falar com Harmon ao mesmo tempo?

- Harmon você esta aí?

- Sim Sr. Otrebor eu sempre estou aqui, o que deseja?

- Harmon como vou fixar a tela e falar com você ao mesmo tempo?

- Este é um problema futuro, que somente será levantado quando você conseguir fixar a tela.

- Sim, será difícil. Se fosse fácil, todos os humanos conheceriam o complexo mundo de Harmon.

Por diversos meses exercitei a fixação da tela e, finalmente, consegui. A tela ficava fixa, sem qualquer perturbação.

- Harmon eu consegui fixar a tela.

- Meus parabéns Sr. Otrebor. Agora podemos passar para a próxima fase. A próxima fase consiste em você conseguir projetar na tela seus pensamentos, transformá-los em imagens. Coloque na tela o rosto de sua esposa. Exercite até que a veja com extrema perfeição. Após isso, junte a imagem dela a imagem de seus filhos. Procure na tela detalhes e amplie esses detalhes.

Mais exercícios diários. Permanecia acordado por mais de uma hora por noite exercitando. Era muito difícil, mas valia a pena. Algumas noites acordavam. Lá pela madrugada, tudo em silêncio, fixava as imagens na tela imaginária. Nesse horário era muito mais fácil. Primeiro por que já havia descansado por algumas horas, tudo ficava claro. Conseguia até mesmo trocar as imagens de posição.

Chamei Harmon e entusiasmado lhe disse:

Estou começando a mudar as imagens de posição.

- Caro Otrebor, você já se adiantou em uma etapa. Meus parabéns! No entanto, ainda está longe. O passo seguinte é fazer com que as imagens se movimentem e interajam umas com as outras.

- Quase virou costume eu acordar pela madrugada. Por vários meses exercitei, até que consegui as imagens não só da minha família, como

(13)

também de amigos e conhecidos, se movimentavam na tela e, até mesmo, dialogavam entre si. Revolvi chamar Harmon. Harmon você está ai?

Harmon onde você está? Porque não se comunica comigo? Nada!

O que estaria acontecendo com Harmon? Teria desistido de mim? Logo agora que estou craque em formar imagens na tela?

- Alguns meses se passaram sem que eu tivesse qualquer contato com Harmon, o que me levou a pensar que tudo não passara de minha imaginação, ou assim como veio, partiu e ninguém sabe para onde.

- Caro amigo leitor ou leitora, eu realmente sempre tive muitas dúvidas quanto ser Harmon, o que dizia ser. No fundo sempre o considerei como fruto de minha imaginação. Agora estava provado, pois quando consegui formar imagens na tela da minha imaginação, Harmon desapareceu.

Restou-me apenas uma dúvida. Qual a influência do exercício de projetar uma tela e nela projetar meus pensamentos, com o desaparecimento de Harmon? Não me restava alternativa, a não ser terminar com o livro sobre Harmon. Nada mais poderia escrever a esse respeito.

Muitos meses se passaram, já não mais recordava da possível existência de Harmon.

- Viajara a Passo Fundo e já estava retornando. Um tremendo temporal se aproximava. O céu escurecera por completo. O ribombar dos trovões, a repentina claridade dos relâmpagos que iluminavam o firmamento.

Cansado por haver trabalhado desde cedo, diminuíra a velocidade do carro.

A chuva torrencial, a faixa coberta de água, quase não se enxergava o caminho. Acostei o carro e parei. O mesmo fizeram outros carros, pois isso era o mais prudente naquele momento. O estresse era imenso. Liguei o pisca alerta e fechei os olhos, quando percebo em meus pensamentos:

- Como está Sr. Otrebor?

- É você Harmon? Por que me abandonastes?

- Não o abandonei, apenas tive de cumprir com minha natureza.

- Sua natureza?

- Sim, eu estava me reproduzindo.

- Como assim? Não estou entendendo?

- Isto vou lhe explicar em outra oportunidade. No momento quero saber como vão os seus exercícios de reprodução em tela?

- Acho que estão concluídos.

- Não, eu lhe asseguro que não. Agora vem uma fase em que nós teremos de trabalhar juntos. Eu vou colocar imagens na tela e você terá de velas.

Para tanto você irá formar a tela. Forme-a agora. Eu vou colocar uma imagem na tela. O que é que você está vendo na tela?

- Nada. Apenas uma luz puntiforme!

- Esta luz puntiforme é a minha imagem. Essa é a minha forma. Apenas energia luminosa. O que você esta vendo agora?

- Estou vendo duas luzes puntiformes.

(14)

- Uma luz sou eu a outra é a minha parte reproduzida. Agora, o que está vendo?

- Uma figura humana, porém diferente, fora do comum. Ela tem uma forma esguia, porém a forma é humana, como a minha.

- Essa e a forma que tínhamos quando ocupávamos espaço e tínhamos massa.

- Espere ai. Você me disse que não possuía massa e não ocupava espaço!

Explique isso?

- Você estranha o contraditório. No entanto, no momento não lhe posso explicar isso, porém, posso lhe assegurar que com o tempo você compreenderá sem que eu lhe tenha explicado.

- Não gosto disso. Aliás, não gosto de nenhum mistério.

- Posso lhe assegurar que não se trata de mistério, e sim de um tempo necessário para que você esteja preparado para assimilar o conhecimento sobre a minha espécie.

- Quero que entenda que já são dois mistérios que está me devendo. Um o da sua reprodução e o outro é este de você ocupar espaço e ter massa. Vou esperar pacientemente, mas não esquecerei que me deve estas explicações.

- Sim, perfeitamente entendido. Continuamos com os nossos exercícios. O que está vendo na tela?

- Uma espécie de cúpula imensa. Vejo luzes flutuando no espaço e adentrando na cúpula por aberturas estreitas. Outras saindo por idênticas aberturas. É possível penetrarmos numa das aberturas?

- Sim, perfeitamente possível.

- Mas veja! A tela ficou branca! O que houve?

- Para realizarmos o seu pedido temos de continuar com o aprendizado.

- Como assim. Não basta você projetar na tela para eu enxergar?

- Não. As imagens são Bi dimensional, o que você está pedindo somente pode ser realizado na forma tridimensional.

- Então o que devo fazer?

- Você treinará a sua projeção dentro da imagem que estiver na tela. A sua mente deve entrar para dentro da tela e se movimentar dentro dela. Quando conseguir isso me chame, por favor, para continuarmos.

CAPÍTULO III

O TAURA MAGNÍFICO:

Um compromisso profissional me obrigara a viajar para o interior de Santa Catarina, na cidade de Clivelândia. Resolvera viajar de ônibus, por ser mais seguro e menos cansativo, O ônibus vinha de Porto Alegre, eu o peguei em Montenegro, procurei assento na poltrona 19, lado do corredor, onde no lado da janela estava um homem gordo dormindo.

De olhos fechado tentava dormir, ao meu lado o homem gordo roncava.

Parecia que tinha dispnéia. Parava de respirar, por alguns segundos e logo

(15)

dava uma respirada que fazia vibrar as vias respiratórias, causando um importuno ronco, quando expirava. Sua gorda bochecha vibrava, fazendo um bla,bla,bla. Eu fingia estar dormindo, pois embora o quisesse, não o conseguia, meus pensamento projetados na tela me levavam até a minha infância, no lugar onde hoje se situa a Estação Ecológica do Taim.

Eu via as capororocas, que eram cisnes todo branco com o bico vermelho, que vinham da patagônia nos meses de setembro ou outubro de cada ano, a procura dos banhados para fazer seus ninhos no alto dos barrancos. De cada ninhada saiam três a quatro filhotes, que também eram cuidados pelo macho, que voava com eles no dorso, quando sentia algum perigo.

Quantos marrecões eu via! Pareciam que vinham apenas para serem caçados. Chegavam aos milhares, nos meses de junho a agosto. Raramente procriavam na região, vinham apenas para comer as sobras da colheita de arroz, camarões e peixes pequenos. Marreca do Pé Vermelho, proveniente do Chile, dirigindo-se ao Canadá, permanecendo no banhado do Taim, de outubro até o final do verão, procriando no meio dos juncos macegas nos banhados, em ninhos flutuantes. E, tantos outros como o Gavião Peregrino, o Falcão Quiri-Quiri, Marreca Pardinha e o cisne-do-pescoço-preto, como os via voando displicentes sobre as águas calmas da lagoa Mirim.

O Homem gordo roncava. O sono para mim não chegava. Por isso projetava meus pensamento:

Eu pequenino ficava insignificante perto daquele homenzarrão de um metro e noventa, ombros largos, nem gordo, nem magro, seus olhos azuis, quando me fitavam, me causavam um misto de medo e admiração. Ficava brincando na sala, mas quando ele sentava na cadeira de balanço, corria e num instante estava aninhado no seu colo. Quando chegava uma visita, eu me sentava no chão, perto de sua cadeira, onde atento ouvia a conversa, muitas vezes casos de assombrações eram contados, estes especialmente eu apreciava. No entanto a noite sentia medo. Quando a luz do candeeiro era apagada. Quando o medo era demais, eu chamava o papai dizendo que tinha medo, ele se levantava e ia até o meu quarto, que ficava contíguo ao dele. Retirava-me da pequena cama e me colocava entre ele e mamãe. Ali era o meu porto seguro. Sentia-me completamente protegido, podia dormir sem medo.

O homem gordo roncava e o ônibus seguia seu curso.

A velha fazenda no extremo sul do Rio Grande. Como gostava quando ele me levava a cavalo para percorrer o campo. Seu cavalo baio, da raça Normanda, chamado de Barril, com tamanho suficiente para acomodar aquele taura desenvolvido. Eu sentado na parte frontal das encilhas, com as duas mãos grudadas na lã do pelego e segurado por aquela grande mão que ocupava todo o meu ventre, sentia-me seguro e me deliciava com o passeio, para mim era a plena realização de uma criança.

E o ônibus andava e o homem gordo roncava.

(16)

– Oh! Petiço gateado! Como foste tolo e audacioso ao desafiar o taura magnífico. No campo ninguém conseguira levá-lo até o curral. Quando chegava na porteira, embestava, dava meia volta e disparava. O grande gaúcho resolvera pegá-lo. Mandou encilhar o cavalo baio, chamado Barril, calçou suas botas rangedeiras, feitas de couro cru. Amarrou o par de esporas nos calcanhares das botas, laço de vinte braças nos tentos, montado no maravilhoso corcel, dirigiu-se a fração de campo onde se encontrava o petiço Gateado. Ao se aproximar, o pequeno cavalo, logo percebeu e disparou. O centauro, desamarrou o laço dos tentos, armou a laçada e esporeou o baio, que saiu em disparada no encalço do gateado. O tropel era ouvido da cerca onde nós estávamos a apreciar a cena. Quando o baio se aproximava, o petiço caborteiro trocava de rumo. A perseguição durara, se me lembro bem, mais de 10 minutos e nenhum tiro de laço tinha sido dado.

O petiço já não fazia as manobras tão bruscas, quando em uma disparada reta. O taura rebolou o laço pela primeira vez e o arremessou. A laçada foi se fechando no ar, quando o diâmetro não era maior do que um metro entrou na cabeça do petiço e se fechou no pescoço. Cavalo e cavaleiro diminuíam a velocidade fazendo com que o laço apertasse o pescoço do animal fazendo-o diminuir a disparada. Laçado o petiço que era manso, que apenas disparara por saber que ficaria por seis meses no piquete, seguia o baio até a entrada do curral.

O homem gordo dormia. Seu ronco parecia cada vez mais forte. Eu tentava dormir, mas não conseguia. Meus pensamentos me lavaram até uma pequena chácara entre a cidade de Rio Grande e a Vila Siqueira. Até hoje não sei o porquê meu pai arrendara a fazenda, vendera o gado e fora morar na cidade. Como não suportou a vida na cidade, comprara a dita chácara. Três grandes figueiras, a cerca a 50 metros do grande casarão, construído no século XIX, já quase em ruínas. Uma planta que produzia picão preto, denominada vulgarmente de “Chinchila” tomava conta de todo o terreno na parte frontal da casa. Carrapichos e gravatas também ocupavam a terra. Toda a família trabalhara insistentemente até que a terra fosse toda livre de ervas daninhas. A casa fora reformada e galpões foram construídos. A terra fora toda cercada. Animais domésticos foram comprados como vacas de leite, ovelhas e cavalos.

Umas terras abandonadas, cheias de ínsos, fora transformada em um paraíso. Ali passei minha meninice, ou seja, dos 8 aos 12 anos. Lembro- me do “Guacho” que era um cavalo que quando pequeno perdera a mãe e fora criado com madeira, por isso o nome dado “Guacho”. Era tão manso que para andar nele não necessitava de nada. Bastava bater com a mão no pescoço para que virasse para o lado contrário. Certo dia quando montava o “Guacho” ouvi gritos de minha mãe. Corri e a cena que vi, fora inusitada, minha mãe dentro de uma aguada seca e na parte superior o “Chico”, que era um carneiro, manso, mas com a mania de marrar. Aliás o que fazia

(17)

quando alguém tentava atravessar o campo onde estava. Quando minha mãe levantava e tentava sair da aguada seca, o carneiro recuava e lhe aplicava uma marrada com a cabeça.

Eu sabia como dominar o Chico. Quando ele recuava, eu corria a seu encontro e me grudava na sua cabeça e o montava. Segurei-o até que mamãe se levantasse. Como não a tinha machucado, fiquei segurando-o até que ela chegasse em casa. Por esse mau hábito o Chico virou churrasco de final de semana.

O Homem gordo acordara. Com um lenço branco limpava a baba produzida enquanto dormia.

Lembro-me, quando aquele homem forte falecera em primeiro de janeiro de 1970. Faziam mais de 5 anos que não via o meu velho. A última vez que o vira, aos seus sessenta e cinco anos, ainda era um homem forte. Sabia então que um câncer o estava destruindo. Não pude conter a emoção, uma profunda tristeza, que nem sei como expressar tomou conta do meu ser.

Aquele grande homem, parecia ter encolhido. Velho e alquebrado pelo tempo, consumido pela maligna doença, era apenas um esqueleto coberto por uma pele escurecida, pela péssima falta de oxigenação do sangue.

O tempo em sua marcha inexorável, tudo vence tudo transforma, reduzira o meu herói, o meu ídolo máximo, para mim o homem mais forte do mundo, mais maravilhoso, inteligente e bondoso em um frangalho. Mal me reconheceu. Segurei sua mão gelada, a me ver, nada disse, porém, seus lábios esboçaram um leve sorriso, seus olhos brilharam. Beijei-lhe a mão, algumas lágrimas brotaram nos meus olhos, correram pela face até se juntarem no queixo. Seu último suspiro ocorreu quando segurava minha mão. A morte chegara para aquele grande homem. Restou-me apenas o desejo de ser para os meus filhos, apenas uma pequena parte do que ele fora para mim.

Perdido em pensamentos que me levaram ao passado, de repente, sinto a presença de Harmon que diz:

- Compartilho de sua tristeza e seu pesar Sr. Otrebor.

- Muito obrigado Harmon, com os teus ensinamentos de como projetar pensamentos em uma tela branca, eu sou capaz de rever o passado com grande perfeição e detalhes, o que antes não era possível.

- Após o seu último treinamento, você poderá fazer mais do que isso, poderá se transportar para a tela e assistir tudo em três dimensões, verá como parecerá real tudo o que hoje é passado.

Acho que envolto em pensamentos, adormeci, tendo acordado quando o homem gordo, me bateu no ombro dizendo, com muita parcimônia:

- Meu bom senhor, desculpe acordá-lo, mas o ônibus acaba de fazer uma parada estratégica e eu preciso ir ao banheiro.

(18)

Desculpe senhor. Respondi levantando-me e cedendo lugar para que ele passasse.

- De volta aos meus pensamentos, fui arremessado às incertezas do cotidiano. Como a vida é efêmera, quando estamos plenos de conhecimentos, auferidos ao longo da jornada da vida, o fim já é chegado.

Tentei formar a tela e nela projetar meus pensamentos, impedido pelo ruído dos falantes, não a consegui fixar. O homem gordo voltara, com a mesma cordialidade, que é peculiar aos obesos. Pediu licença para ocupar o seu lugar junto à janela. Cedi-lhe o espaço suficiente. Ele acomodou-se na poltrona, com o máximo de cuidado para não invadir o meu espaço e disse:

- Eu me chamo Afonso Medeiros de Albuquerque, sou representante comercial do ramo de vestuário.

- Eu sou Otrebor Ozodrac, Engenheiro, tenho muito prazer em conhecê-lo Sr. Afonso.

O Sr. Afonso revelou-se uma ótima companhia, divertido, contador de anedotas, fazendo com que a viajem transcorresse célere, não deixando espaço para eu continuar com os meus pensamentos. Sr. Afonso disse ser de origem portuguesa, mas que gostava mesmo era de contar anedotas de portugueses.

Entre as diversas que contou destaca-se as seguintes;

“A carta do português a seu amigo que emigrara para o Brasil.” Caro Amigo: Escrevi-te duas cartas uma dentro da outra, se não receberes uma às de receber a outra. Não mando dizer-te que tua mãe morreu para não te causar desgosto, mas que morreu, morreu mesmo. ““

Ao retornar no dia seguinte, após haver cumprido um extenso programa de trabalho. Solitário, sentado no lado da janela, sem que o assento ao lado tivesse ocupado, condições propícias para dormir ou manter contato por pensamento com Harmon. Através do pensamento, chamei Harmon:

- Harmon você está ai?

- Sim, Senhor Otrebor.

- Podemos manter contato?

- Porque não?

- Harmon seria possível à projeção de alguns momentos passados, cujas recordações me causaram alguns traumas emocional, ou que me trouxeram grande felicidade?

- Com certeza Sr. Otrebor. Eu posso projetá-lo no passado bastando para tanto que o Sr. forme na tela as imagens da época.

- Vou lhe contar a história, após houví-la, me dirá como devo fazer para estar presente no momento de maior emoção.

CAPITULO IV

VIAGENS AO PASSADO:

(19)

- Era um tempo de espera e de muita aflição, pois estava desempregado e aguardando o serviço militar obrigatório. Época em que eu costumava a passar até 30 dias na fazenda de meu tio João, casado com minha tia Georgina, irmã de minha mãe. A casa da fazenda, em alvenaria de tijolos, a uns cinqüenta metros da casa, um banhado coberto de junco e palhas. Palha essa, que os caboclos da localidade usavam para construir a cobertura das casas. O galpão estrebaria, também em alvenaria, onde havia as encerras dos touros reprodutores, as cavalariças e a encerra dos carneiros de raça, que eram utilizados para a reprodução. O escritório onde o primo Fernando fazia o controle da fazenda e a veterinária, local onde eram guardados os medicamentos.

Lembro-me das imensas mangueiras e dos banheiros de gados e de ovelhas.

Locais onde tinha recordações inigualáveis dos dias de banho e marcação.

Com saudades lembrava do primo Fernando, do criado José e do serviçal Sirino Mendes, preto velho, ao qual era atribuído ter mais de cem anos, encarquilhado com a carapinha branca, sempre fumando um cigarro de palha, o qual preparava, a partir de um rolo de fumo em rama dos bem amarelinho. Oh velho Sirino, como sinto falta da tua amizade e de todos os da fazenda. Lembro com saudades do dia em que me desafiastes a montar no petiço gateado. Apostara comigo um maço de cigarros feitos, se eu montasse no tal petiço. Não chegou a desafiar duas vezes e eu topei a parada. Ficamos mais de uma semana trocando farpas e desafios. Até que chegou o dia da troca dos cavalos, a tropilha foi arrebanhada e trazida para o curral. Entre mais de duas dúzia de cavalos, lá estava o petiço gateado. O velho Sirino Mendes, entrou na encerra onde estavam os cavalos, com um suveu de couro cru, laçou o petiço gateado e o levou para a mangueira redonda, toda cercada em madeira. Lá estando, o negro velho perguntou:

- Compadre, quer que eu encilhe ou vai montar em pelo. Esqueci de falar o preto velho, chamava todo o mundo de compadre, menos o patrão que chamava pelo nome de seu Fernando. Respondi que montaria em pelo.

Montado em uma égua mala cara, madrinhou o petiço até encostá-lo na cerca, onde eu estava já pronto para montá-lo. Quando montei o velho me alcançou a rédea do boçal e se afastou. O petiço, quando sentiu o meu peso no lombo, colocou a cabeça no meio das mãos e em um tremendo corcoveio, levantou ambas as patas para o alto. Tentei jogar o corpo para traz, mas foi em vão. Parti de cima do lombo do petiço como uma flecha, enterrando a cara na terra. Lembro que fiquei tão bravo, que corri na direção do petiço que novamente estava madrinhado pela égua do Sirino, pulei para cima dele de qualquer maneira, mais um tombo, e assim foi até cair pela quinta vez consecutiva. O velho Sirino, disse:

- Chega compadre. Estou satisfeito em vê vos mice cair por cinco vezes do gateado. Bom, você ganhou, mas eu não tenho cigarros feito, posso lhe pagar com cigarros de palha? Aceita?

(20)

Aceitei, só que cada vez que o velho Sirino, me fazia um cigarro, para fechá-lo, sempre passava a língua na palha e me alcançava o cigarro. Se eu reclamasse dizia que o cigarro era feito. Essa era a aposta.

A respeito do serviçal, Sirino Mendes, contava-se muitas estórias. Que ele fora o degolador de certo capitão, na revolução de 1893, o qual omitirei o nome por conveniência. Porém quando lhe era perguntado sobre o assunto dizia que muita coisa a cabeça tem de esquecer para livrar o corpo. Mas eu e o negro Zé, tínhamos combinado, dar um fogo, um porre, uma bebedeira no negro Sirino, para fazê-lo falar de quando fora ordenança do tal capitão.

Inventamos que eu estaria de aniversário no sábado e que comemoraríamos a noite com uma cachaçada.

Na sexta feira o José foi ao bolicho, de lá trazendo rapadura, cachaça e mel. Às sete horas da noite, começamos a bememoração, cachaça com mel e rapadura, sempre cuidando para que a bebida não faltasse na mão do nosso alvo. Começamos a contar causo, ora eu contava, ora o Zé, e, o trago corria solto, o Sirino bebia dois ou três goles, enquanto nós bebíamos apenas um. De repente, o veio começou a falar, se referindo assim:

Compadre, oceis querem me embebeda pra mode eu possa me lembrar das barbaridades que eu fiz nesta vida. Pois bem eu conto, afinal já to meio bebo mesmo.

- Eu nem sei que idade tinha, só sei que já estava brigando na revolução, entre os Chimangos e os Maragatos. As batalhas eram nas coxilhas do Rio Grande e nos campos do Uruguai. No final das batalhas, não eram feitos prisioneiros, o inimigo que ficava vivo era degolado. Essa revolução ficou conhecida como a degola.

Nota do Autor: o conto é baseado na guerra civil entre Chimangos e Maragato, que em 1893, deixou mais de 12 mil morto, entre os quais inúmero degolados.

MARAGATO: O termo tinha uma conotação pejorativa atribuída pelos legalistas aos revoltosos liderados por Gaspar Silveira Martins, que deixaram o exílio, no Uruguai, e entraram no RS à frente de um exército.

Como o exílio havia ocorrido em região do Uruguai colonizada por pessoas originárias da Maragateria (na Espanha), os republicanos apelidaram-nos de "maragatos", buscando caracterizar uma identidade

"estrangeira" aos federalistas. Com o tempo, o termo perdeu a conotação pejorativa e assumiu significado positivo, aceito e defendido pelos federalistas e seus sucessores políticos. O lenço VERMELHO identificava o Maragato.

CHIMANGO: A grafia pode ser ximango. Ave de rapina, falconídea, semelhante ao carcará. Epíteto depreciativo dado aos liberais moderados pelos conservadores, no início da Monarquia brasileira. No RS, foi à alcunha dada pelos federalistas ao governistas do PRR. O lenço de cor BRANCA identificava os Chimangos.

(21)

- Eu era ordenança e guarda costas de certo capitão. Eu tinha que fazer tudo o que ele mandava. Desde limpar as suas botas, carregar água para o banho dele, tirar as botas. Quando nas batalhas eu tinha de guardar suas costas, a ordem era de eu protegê-lo nem que fosse colocando o meu corpo para receber as balas ou a espada que o iria atingir. Mais de uma vez fui ferido para salvar a vida dele. Uma vez, nós estava travando uma batalha na Mantiqueira alta. Já tínhamos perdido mais de 100 homens. O capitão estava furioso com o inimigo, a luta foi ferrenha, corpo a corpo, espada contra espada, o fogo corria solto, os corpos caídos eram pisoteados pelos cavalos e pelos combatentes. Os lenços vermelhos dos maragatos e o sangue derramado coloriam o chão da batalha. Pra encurtar o causo, nos ganhamos à batalha e fizemos 18 prisioneiros, que foram amarrados, nos pés e nas mãos, sendo que 12 foram levados pro acampamento. 6 ficaram com 2 soldados, para enterrar os mortos.

O capitão contou 67 soldados estropiados da batalha, que tinham de ser levados pra cidade mais próxima.

No dia seguinte o batalhão levando os seus ferido foi colocado em marcha, O capitão antes de se retirar com a tropa, me chamou na tenda e me deu a ordem.

- Quando nós tivermos a um dia de viagem, degola todos os prisioneiros, antes faz com que dois deles cavem uma cova rasa para depois colocares os corpos. Não enterra sem antes retirar-lhes as calças, que eu quero que leves para mim. Quando o serviço estiver acabado vai nos encontrar.

- Compadre, eu apenas um ordenança, fiquei ali sozinho com 18 prisioneiros amarrados, uns aos outros, e, eu tinha de degolar a todos.

Compadre eu confesso que chorei, como um nego pequeno. Olhava aqueles homens, amarrados dos pés e das mãos, um após o outro, não sabia o que fazer, pra não ter que degolá-los. Andei pelos matos, chorei muito.

No meu pensamento vinha à ordem do meu capitão, eu tinha que degolar a todos e depois enterrar em cova rasa. A cova já estava pronta, coragem eu tinha, mais tinha pena dos pobres infelizes. O tempo ia passando e eu tinha que fazer o serviço, se não fizesse eu seria caçado pelo meu capitão e quando ele me pegasse eu é que seria degolado.

O preto velho, passou a mão nos olhos impedindo que uma lagrima lhe corresse pela face enrugada. Eu e o Zé estávamos curiosos para saber se o Mendes, tinha ou não, degolado todos aqueles homens.

– Mais um gole seu Sirino?

- Perguntou o negro Zé, alcançando a caneca com o preparado de cachaça, mel e limão.

- Após um grande gole o narrador prosseguiu:

- De repente eu me preocupei, com o fato de um poder ver o outro ser degolado e como eram 18 homens para eu fazer o trabalho, me veio uma

(22)

idéia, deixar o grupo amarrado e ir retirando um a um, levando ele para uma capoeiras e lá fazer o serviço. Um não podia ver o outro ser morto. A final, todos eram uns covardes, que se renderam, pois os valentes morreram brigando.

Compadre quando o homem chegava no outro lado das capoeira e via os mortos, uns se mijavam todo, os que tinham merda pronta se cagavam e eu corria a faca na goela. A degola era de orelha a orelha, quase separava a cabeça do corpo. O vivente morria quase sem penar. O corpo ficava se retorcendo, as pernas pareciam que estavam sapateando no chão, enquanto o sangue jorrava. Compadre eu levei o dia todo para fazer o trabalho, tive de arrastar um a um até a cova rasa, antes tive de tirar toda a roupa dos corpos, antes de enterrar, cuidando para não sujar de sangue as calças que eu tinha que leva pro meu capitão. Dois dias depois da matança eu tava me apresentando no acampamento, levando as 18 calças. A prova de que o serviço tinha sido feito.

O velho caudilho nada mais disse, começou a soluçar. Pegou sua manta e foi se deitar. Nós que havíamos ouvido a estória, ficamos chocados e não tivemos coragem de dizer qualquer frase para consolar o infeliz narrador.

Com toda a certeza, nós daquele dia em diante passamos a ver o Negro Sirino de outra forma. Lembro que às vezes eu ficava observando-o de longe e imaginando, como alguém podia viver tanto tempo com tamanho remorso.

Sim, entendi, quais os momentos que você deseja restabelecer e vivenciar!

Quero assistir do início da batalha até o final da degola.

- Antes de entrarmos na tela que estarás projetando, quero lhe dizer que a sua condição dentro do tempo e espaço passado será a mesma minha, de completa abstração, nada poderá ser mudado, entendido?

- Sim, perfeitamente entendido.

- Na tela mentalizada por mim, aparecia momentos antes do início da batalha. Os soldados se preparavam para entrar em combate. Com um grande esforço mental, consegui me projetar mentalmente dentro da tela.

Passei a ver os soldados ao meu lado. No entanto eles não me viam. Mas eu estava lá. Em uma coxilha os combatentes se encontraram. Cavalo contra cavalo. Homem contra homem. Nunca tinha visto tamanha selvajaria, até os cavalos eram mortos para desalojar o cavaleiro. Como havia contado o velho Sirino, o solo estava vermelho de sangue e lenços vermelhos. Os combatentes pisavam sobre os cadáveres, as lanças varavam os corpos que tombavam e ficavam tremendo enquanto as pernas sapateavam, encolhendo e distendendo as pernas num rítmico frenético, que ia diminuindo à medida que a morte se aproximava.

Embora tenha sido avisado por Harmon, mesmo assim, tentava interferir na brutalidade, mas eu não tinha massa eu era apenas um pensamento abstrato como Harmon, não era possível interferir.

(23)

Em certo momento, tentei interferir agarrando-me a uma lança. O lanceiro a erguera sobre o peito de um soldado que caíra do cavalo e se encontrava no solo na posição de cúbito dorsal. Agarrei-me à lança, mas nada consegui fazer. A lança adentrou no peito do soldado na altura do coração. Como se não bastasse, o lanceiro torceu a lança, o sangue jorrou aos borbotões, o corpo pela contração muscular por breves momentos, tremeu e retorceu. Eu mais uma vez pude observar o encolher e o sapatear dos que estão morrendo. A inércia se estabeleceu, o corpo jazia paralisado pela morte, os olhos regalados permaneciam abertos e estáticos.

Ao final da batalha, restaram 18 combatentes que haviam se rendidos.

Todos desarmados e com ambas as mãos ao alto. Foram amarrados uns aos outros e levados para junto a um capão, onde corria um pequeno riacho.

Pude presenciar o recebimento da ordem por Sirino para o sacrifício dos prisioneiros, o enterro em cova rasa dos mortos e a partida do grupo levando os estropiados. Restara apenas o Sirino com os prisioneiros a quem deveria degolar. Acompanhei o desespero de Sirino, andando pelo mato.

Chegada à hora da degola, Sirino deixa o grupo dos 18 homens, em um dos lados do capão e separou um desamarrando-o dos demais, amarrou-o com as mãos para traz, amordaçou-o com o lenço de pescoço, e, o conduziu até o outro lado do capão e aplicou-lhe um calço. O infeliz caiu ao solo. Sirino colocou-o de cabeça para baixo do barranco do riacho. Colocou o joelho no peito da vítima e puxou a faca que se encontrava nas costas engatada no cinturão. Com a mão direita virou a cabeça da vítima e enfiou a lâmina logo abaixo da orelha, até trespassar para o outro lado. A lâmina, ao penetrar cortara ambas as carótidas. O sangue jorrou pelo lado onde saíra à ponta da faca. O sangue escorria pela ladeira e encontrara a água.

Sirino deixa o corpo inerte e vai buscar o próximo. Ao retornar com a vítima já preparada, o homem, viu o corpo de seu antecessor, começou a chorar. A urina escorreu pela perna, molhando as calças. Sirino aplicou-lhe um calço, com uma rapidez de um leopardo. A vítima fora arrumada na posição e degolada. Assim assisti a toda aquela barbaria a qual jamais esquecerei.

Todos os fatos, muito bem narrados por Sirino, que por um longo tempo ficaram gravados em minha lembrança, foram por mim presenciados. No momento em que ocorreram, com toda a inimaginável agressividade dos seres humanos.

- De volta a realidade Sr. Otrebor?

Perguntou Harmon.

- Sim Harmon, uma experiência aterradora a qual não mais quero ter.

Harmon podemos voltar ao seu mundo, paramos por necessidade de treinar-me para ingressar na tela, o que agora está provado que conseguimos.

(24)

- Sr. Otrebor, nossa relação deve ter duas mão, ou seja a recíproca deve ser verdadeira.

- Desculpe, mas não entendi?

- Quero dizer Sr. Otrebor, que se eu faço algo para você, na contrapartida você deve fazer algo para mim.

- Entendi. E, em que lhe posso ser útil?

- Por alguns momentos você experimentou perfeitamente como é minha espécie, meus privilégios e minhas limitações, quero experimentar o que sente a sua espécie.

- O que devemos fazer?

- É muito simples, o Sr. adormece e em adormecendo, fará o desligamento entre o seu consciente e o subconsciente. Nesse momento eu assumo o seu consciente e passo a dirigir os sentidos de seu sistema neurocensorais.

- Se entendi bem, isso significa que você assumira o controle total sobre o meu corpo, estou certo?

- Sim, perfeitamente certo.

- Harmon eu fico completamente inseguro, quando a ceder meu corpo para você utilizá-lo. Este é o único corpo que possuo e ele está fragilizado pelos anos de uso. Você deverá prometer-me que não o prejudicará.

- Jamais faria isso. Já lhe disse que sou do bem. No entanto devo lhe prevenir, que você deve ter o cuidado de permanecer em sono profundo enquanto eu estiver dominando o seu corpo. Para tanto, será necessário um completo isolamento do seu consciente, dessa forma tudo que acontecer, enquanto eu estiver no domínio, você não irá recordar. Para evitarmos contratempos futuros, teremos de mudar a sua aparência, para que as pessoas não o reconheçam, caso contrário podemos ter embaraços .

- Se entendi bem, terei de me disfarçar, é isso?

- Tuchê Sr. Otrebor. E, lhe asseguro que isso não será difícil, bastará colocar uma peruca e pintar a barba, colocar algo dentro da boca, nas laterais dos dentes para que fique com as bochechas mais volumosas, para que o disfarce seja perfeito terá de providencias roupas que nunca usou antes.

- Harmon você está ai?

- Sim, Sr. Otrebor!

- Estou pronto com o disfarce e vou preparar-me para dormir.

Estarei vigilante e assumirei o comando quando você estiver em alfa...

- Bom dia Sr. Otrebor!

- Bom dia Harmon! Como foi a sua estada no meu corpo?

- Muito bem, foi uma experiência impar, tive o prazer de experimentar as emoções que só os mortais experimentam. Estou disposto a conceder-lhe uma nova experiência.

- Harmon, vou contar-lhe uma história, para justificar o meu pedido.

(25)

Meu filho nasceu em 29 de fevereiro de 1964, nesse mesmo ano tivemos a implantação da ditadura militar, através de um golpe militar. O regime de exceção instaurado, passou a reprimir todos aqueles que tivessem alguma relação política com o comunismo. Em setembro desse mesmo ano, fui a Rio Grande com minha mulher e meu primogênito que tinha apenas seis meses de idade. Tive de voltar a Montenegro dois dias antes por deveres de ofício e minha esposa retornava dois dias após juntamente com minha irmã.

Na Estação rodoviária de Porto Alegre, a polícia repressora fez a identificação de todos os passageiros. Minha mulher apenas tinha a certidão de casamento, que apresentou ao policial. Este confrontou a certidão com umas listas e voltando-se para minha mulher, lhe disse:

- Você terá de me acompanhar.

Levando-a a um escritório de identificação, encheram-na de perguntas sobre seu pai, pois este estava relacionado em uma lista como comunista.

Disse minha mulher que após um longo interrogatório, apenas foi liberada porque estava com uma criança de tenra idade.

Harmon esta é uma história que aconteceu com meu filho e minha esposa, na época da repressão. No entanto ouvi várias pessoas contarem que muita gente foi morta e outros torturados, incluindo o meu sogro, que foi interrogado e espancado pelos agentes da repressão. O que eu quero é retornar aquele tempo e assistir o que realmente aconteceu no período da revolução e repressão, onde os direitos institucional não eram respeitados.

Nota do Autor

“No início de 1964, o aprofundamento das reivindicações populares e a recusa dos setores conservadores em implantá-las geraram uma polarização social que o governo Goulart não conseguiu suplantar”. Um golpe militar poria fim ao Período Populista.

O Regime Militar foi instaurado pelo golpe de 1º de abril de 1964. O plano político era marcado pelo autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão e tortura dos opositores e pela imposição da censura prévia aos meios de comunicação. Na economia, houve uma rápida diversificação e modernização da indústria e serviços, sustentada por mecanismos de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital estrangeiro.

Com a deposição de Jango, o Presidente da Câmara, Ranieri Mazzelli, assumiu formalmente a presidência e permaneceu no cargo até 15 de abril de 64. Na prática, porém, o poder era exercido por uma junta militar intitulada "Alto Comando Revolucionário", composta pelo Gal. Costa e Silva, pelo Vice-Almirante Augusto Rademacker e pelo Brigadeiro Correia de Melo. Foi essa junta militar quem impôs o Ato Institucional I (AI-I). A Constituição de 1946 foi mantida, porém as alterações foram profundas.

Ato Institucional foi o mecanismo adotado pelos militares para legalizar ações políticas não previstas ou mesmo contrárias à Constituição. De

(26)

1964 a 1978 foram decretados 16 Atos Institucionais e Complementares que transformaram a Constituição de 46 em uma colcha de retalhos. O AI- I , de 9 de abril de 64, transferiu o poder aos militares e suspendeu por seis meses todas as garantias individuais. A cassação de mandatos alterou a composição do Congresso e intimidou os parlamentares.

“Logo após o Golpe, o Congresso elegeu para Presidente o chefe do Estado-Maior do exército, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que assumiu a 15 de abril de 1964.”

Nesse cenário político, muitas injustiças foram feitas em nome dos princípios constitucionais e a bem da ordem e da estabilidade do regime democrático.

- Harmon projeta a cena na tela imaginária e eu adentro nela.

- Estou nesse momento na rodoviária de Porto Alegre. O ônibus proveniente da cidade de Rio Grande encosta no boxe de estacionamento, antes que o primeiro passageiro deixasse o veículo de transporte, lá estavam dois agentes da repressão, identificando todos os passageiros.

Adentro no coletivo e vou procurando minha esposa, filho e irmã. Lá estão eles começando a se movimentar para a saída. Primeiro olhei para meu filho, um belo neném, alegre e esperto com as faces rosadas chupando o dedo polegar, hábito que adquirira quando no útero materno. Minha esposa, me chamou maior atenção, como era jovial e alegre naquela época, com cabelos pretos e ondulados a altura dos ombros, um sorriso permanente nos lábios, o qual havia se dissipado dado à tensão do momento, apertava meu filho nos braços. O agente da repressão pedira-lhe os documentos. Nervosa, entrega a ele a certidão de casamento. Uma lista é retirada do bolso interno do paletó. Procura o nome na lista, fecha-a e diz:

- A senhora terá de me acompanhar até o posto de investigação.

Minha irmã tenta argumentar, que estão com um bebe que já está com 4 horas de viagem. O homem não lhe dá ouvidos e diz para que ambas o acompanhem. O repressor às conduz até uma espécie de escritório de investigação. Ao adentrarem, um homem ocupando uma escrivanhia pega os documentos que lhes são alcançados, examina-os demoradamente e diz:

- Dona, o seu pai é procurado por atividades comunistas contrárias a segurança nacional. Sua bagagem será totalmente revistada. Vocês também serão revistadas por uma agente feminina e vá pensando onde está o seu pai para nos informar corretamente. Minha esposa treme de medo, consegue dizer apenas que seu pai é apenas um trabalhador, que não é um comunista.

O homem se retira e adentra na sala uma agente que fecha a porta e diz:

- Retirem as roupas inclusive a do bebê. Fiquei chocado com tais cenas. A mulher repressora examinou todos os objetos e roupas minuciosamente.

Depois de concluída a vistoria ordenou que se vestissem, o que foi feito. A mulher sai e logo em seguida adentra o homem, que pergunta?

Referências

Documentos relacionados

1.2 Constitui o objeto do presente instrumento a contratação de empresa para prestação dos serviços de limpeza pública urbana nas vias e logradouros públicos no

Neste relato descreve-se um caso de endoftalmite secundária à endocardite infecciosa, enfatizando-se a importância de considerar a endoftalmite sem antecedente de cirurgia ou

Um grande desejo que tive foi que outras crianças também pudessem ter a oportunidade de viver o Projeto Diário de Ideias, que a oportunidade que minha filha estava tendo

Com essas informações você poderá entender porque a Facelips nasceu para se tornar uma rede de franquias de sucesso!...

“Bem, é realmente muito encorajador ouvir você dizer assim porque isto não é algo que você possa fazer com sua própria força, contudo tampouco é algo que você possa

Centro Cultural do Poceirão TOBIAS – UM NATAL ESPECIAL Inf./Inscrições pelo 265 900 100 Org.: Câmara Municipal de Palmela Dia 13 – 15h00. Casa Expressões Fantasiarte, Palmela

Uma das conclusões de Latham e Pinder (2005) é a de que o cenário não mudou muito até 2003. As teorias de vertente mais cognitivista con- solidam-se no campo do estudo

Em um sentido social, político, equivale dizer que os que são oprimidos, os que são excluídos, enfim, violados - em uma perspectiva dos direitos humanos que visam a dignidade