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o limite é o cosmos - a poesia de Marly de Oliveira -

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o limite é o cosmos

- a poesia de Marly de Oliveira -

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Copyright © by Fábio Daflon

Copyright © 2019 by Cousa para a presente edição

Editor Saulo Ribeiro

Assitente editorial Gabriel Nascimento

Projeto gráfico, diagramação e capa Luana Dias

IMPRESSO NO BRASIL |2019|

Editora Cousa | Rua Gama Rosa, 236 Centro Histórico de Vitória, ES - CEP 29.015-100 www.cousa.com.br | facebook.com/editoracousa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D124l Daflon, Fábio.

O limite é o cosmo: a poesia de Marly de Oliveira / Fábio Daflon. – Vitória: Cousa, 2019.

48 p.

ISBN: 978-85-9578-091-0

1. Literatura brasileira – Crítica literária 2. Poesia 3. Marly de Oliveira I. Marly de Oliveira II. Título

CDU 82.02(81)-1

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o limite é o cosmos

- a poesia de Marly de Oliveira -

)iELR'DÁRQ

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A mulher que alegra a alma para poeta Marly de Oliveira, in memória

Dou agora um passo maior que as pernas na hora em que o amor é feito de eternas palavras em que há apenas o momento de caber nas palavras todo o sentimento

entre o que a língua fala e a mente consente.

No gosto há o paladar do amor saboreado, também numa mulher que hoje se faz presente entre o frio do inverno que era enregelado,

cerco da primavera que nasce das pernas e o verão fecundado por amor imenso na tensão do segundo ao abranger a alma,

tempo também de outono em palavras ternas em que é possível ser tudo o que penso ter vindo da mulher que me alegra a alma.

Fábio Daflon

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SUMÁRIO

9 | O rio em paixão de calmaria na obra de Marly de Oliveira 11 | A suave pantera: uma delimitação de território, no segundo livro de Marly Oliveira

15| O sangue na veia, 1967, terceiro livro de Marly de Oliveira 17| A vida natural, livro também de 1967, sobre a sintonia como arte de percepção

19| Contato – livro de 1975 –; nos fala da questão do tempo na poesia de Marly de Oliveira

21| Invocação de Orpheu – 1979-1980 23| Aliança – 1979

27| Reflexões: o mundo e sua paisagem 29| A força da paixão – 1982-1984 31| A incerteza das coisas – 1984 35| Retrato – 1986

39| Vertigem – 1986 41| Banquete – 1988 45| O deserto jardim - 1990

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O rio em paixão de calmaria na obra de Marly de Oliveira

A obra da poeta Marly de Oliveira, mulher capixaba da me- lhor cepa, nascida em Cachoeiro de Itapemirim, não só por sua beleza, mas por sua obra poética e sua própria vida, era merece- dora há muito tempo de algum estudo e análise. Convidado para falar sobre a obra de Marly na Biblioteca Pública do Espírito Santo, comprei alguns livros e na própria biblioteca pedi empres- tado algum. Mestre em Literaturas Neolatinas, o seu percurso acadêmico não foi o único substrato para realizar a grande e ins- tigante obra poética que realizou. Marly foi até à morte de João Cabral de Mello Neto sua esposa e companheira, amiga e braço de apoio. Como intelectual e mulher de um dos poetas canônicos brasileiros isso bastaria a muitas mulheres para uma realização plena do intelecto e da sensibilidade, mas não para uma pessoa com tanta luz própria como foi Marly de Oliveira.

Sua produção é extensa, sua obra é harmônica e vamos de- senvolver a ideia que formamos dessa obra sem partir de premis- sas, porque seria impossível analisar a obra dessa grande poeta sem saborear o espanto que o sabor dos versos trouxe passo a passo, poema a poema. Desde a primeira linha, desde o primeiro título de o primeiro livro publicado. Oras qual o poeta capaz de gostar de cercos, de limites, ao ponto de dar nome de batismo ao primeiro livro de o Cerco da primavera?

Que estranheza enorme!

Cerco para que cerco; oras, que poesia precisa de cercos? Po- eta afeito a mares sempre de mal definidas margens me incomo- dou demais a palavra cerco, mesmo esse cerco vernal do título do primeiro livro de Marly de Oliveira. Cerco primaveril, que diabo fosse isso estava diante de um desafio, de reduzir o mar a um rio para compreender o fluxo do rio onde se fez navegar a poesia de Marly de Oliveira. Como poderia reduzir as minhas porosidades de mar sem fim, ou ainda sem fim, para compreender o fluxo do rio em a obra de Marly?

Os primeiros sinais do ritmo desse fluxo se encontram em versos do terceiro poema do livro Cerco da primavera:

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Caminhos fora convidam/onde não leva teu passo, mas vou por amor me dando/ao atraso que me faço./ E enquanto a ma- nhã se adianta/com firme desembaraço,/ bebo horizonte de amor/ na curva do último abraço.

Meu deus, o que é isso? Perguntei-me ao ler o título do pri- meiro livro e esses versos. Que calmaria é essa? Onde a poeta desembarca do tempo em prol do instante sem futuro, sem a ân- sia do futuro, ou coisa que a valha. Onde estará o segredo dessa viagem que começo a fazer sem saber onde estou, mas sabendo onde a poeta, a mulher, a professora, a esposa e a mãe que Marly foi, está desde agora para sempre. Eu que sempre fui projeto e sendo projeto sempre fui fato em função de projeto e tendo sido fato, hoje, sou muito mais história do que fato. Da obra de Marly de Oliveira, mas tive de seguir adiante na leitura para não me magnetizar nem me cristalizar dentro do prisma de luzes e de polissemias causadas em mim mais do que existentes no livro inicial de Marly de Oliveira, quando ela tinha a idade de vinte e dois anos apenas, no ano mil novecentos e cinquenta e sete.

Mas o escopo agora não é o dizer a impressão toda do poe- ta que escreve sobre a obra da poeta Marly de Oliveira, autora, como se disse, de vasta obra. Talvez os versos que traduzam a impressão maior desse rio em fluxo que é a obra de Marly de Oliveira, sem se importar com eventuais margens que possam comprimir esse rio são os versos de uma canção de Suely costa:

Quando o mar tem mais segredo,/ Não é quando ele se agita/

Nem é quando é tempestade/ Nem é quando é ventania/ Quando o mar tem mais segredo/ É quando é calmaria.

Eu, poeta carioxabaiano, nascido no Rio de Janeiro, pai de fi- lha baiana, por ter morado na Bahia por sete anos, residente no Espírito Santo, em sua capital, Vitória, por enquanto fico aqui a pensar com os meus botões se o que disse sobre a ausência do mar na obra de Marly, no dia em que falei sobre a sua obra, na Biblioteca Pública do Espírito Santo, desde essa linha de costa atlântica composta pelo Rio, pelo Espírito Santo e pela Bahia, se o que disse é pertinente ou não. Fica, por ora, a impressão que o primeiro livro de Marly de Oliveira me causou. Um livro extraor- dinário para qualquer experiente leitor de poesia. Voltarei a falar mais sobre o passo a passo de toda a obra dessa grande poeta.

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A suave pantera: uma delimitação de território, no segundo livro de Marly Oliveira

A ambiência só vence a circunstância quando os olhos perce- bem todos os detalhes do ambiente antes de uma ação ser reali- zada, isso demanda atenção, muita atenção, para cada detalhe ter o tratamento merecido e não se trata aqui, ao menos ao que nos parece, haver uma obsedada colecionadora de detalhes das coisas que a cercam. Em seu segundo livro, A pantera suave, lançado em mil novecentos e sessenta e dois, data colocadora de Marly como poeta da geração dos anos sessenta, quando efetiva- mente foi publicada por grandes editoras, porém sem o viés con- testador daquela geração sofredora de tantas influências vindas então de uma aldeia global que fez Marshall Macluhan escrever que o meio é a mensagem, mas sim a partir de uma sólida for- mação pessoal e acadêmica especializada em letras neolatinas, nem tão presentes como referências denominadas em sua obra poética. Conheçamos, então, e tentemos entender a suavidade da pantera proposta por Marly ao incorporar o animal felino que dá título ao seu segundo livro, na realização agora, do animal hu- mano, animal-mulher, que dá título ao livro.

Como qualquer animal olha as grades flutuantes.

Eis que as grades são fixas:

ela, sim, é andante.

Oras, ao que nos parece essas grades são para Marly necessá- rias a uma delimitação de território, como a teriam entendido os poetas dos anos rebeldes da geração dos anos sessenta? Seriam essas grades mais protetoras do que grades de uma prisão? Re- fletiriam essas grades uma ausência de necessidade de catarses meio a uma geração extremamente catártica? Uma geração que efetivamente deixou uma herança de mudança de costumes.

Transcrevemos agora o restante do poema, antes de pensar- mos nessas respostas.

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Sob a pele, contida – em silêncio e lisura – a força do seu mal, e a doçura, a doçura, que escorre pelas pernas e as pernas habitua a esse modo de andar, de ser sua, ser sua, no perfeito equilíbrio de sua vida aberta:

una e atenta a si mesma, suavíssima pantera.

Talvez esse seja o poema mais delicado, ou um dos mais deli- cados, sobre a capacidade de tratamento dado à besta que existe em cada um de nós. A força do seu mal, o mal do animal dito irra- cional que é a pantera, é contida; o território andante da pantera tem limites, significaria isso fazer uso da metáfora apenas para negá-la em sua razão bestialógica?

Os versos em que a poeta fala do cio da pantera são de gran- de beleza. A doçura escorre pelas pernas, e habitua a pantera a andar no território delimitado do cio, cio aqui representativo do amor, por ter doçura, negando sim a condição de animalidade que há potencialmente em todo ser humano, seja no sexo ou em suas outras atividades laborativas ou não, para a paz ou para a fuga, às vezes fuga de si, de quem não consegue aprisionar o pró- prio corpo à ação da própria vontade.

No décimo segundo verso ela diz:

de ser sua, ser sua,

Para continuar logo abaixo:

no perfeito equilíbrio/ de sua vida aberta Diga-se aqui ser necessário o leitor entender, ou discordar que o que a poeta fala de sua vida aberta é a de ser aberta para si mesma em propriocepção e auto percepção, seja dos sentimen- tos do corpo e dos que se arranjam no aparelho psíquico numa indisposição a qualquer entropia. Apesar de o destino humano, ao longo da existência, ser o do envelhecimento e da decadência

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física, o que a poesia de Marly de Oliveira quer nos propor desde o início é que no continente corpo caiba o conteúdo, então nesse jogo é que a poeta dá o seu passo de pantera suave.

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O sangue na veia, 1967, terceiro livro de Marly de Oliveira

Fulano é sangue bom, diz-se hoje em dia, de forma popular, sobre um sujeito que forma bom juízo a seu respeito. O ano de 1967 construía mitos até hoje candentes e pungentes como Che Guevara, se derramava muito sangue pelo mundo, e a mundia- lização dos conflitos como o da Guerra do Vietnã, agitava a ju- ventude, jovens pegavam em armas para lutar pela implantação da ditadura do proletariado, perspectiva autoritária da esquerda que deixou uma herança maldita de implantação de ditaduras por toda a América Latina, por sua vez vítima de um colonialis- mo cultural e econômico contra o qual a juventude se insurgia e ainda se insurge, quando pode.

Nessa conjuntura, Marly de Oliveira publicou o instigante livro O sangue na veia, onde faz uma valorização dos princípios, hoje tão lassos ao ponto de o direito consuetudinário quase não fazer mais sentido pela ausência de costumes.

Diz ela, na terceira estrofe dos versos da primeira página do livro:

A carne é o instrumento do princípio, é por ela que eu vivo, que vivemos, e se revela o amor, como é preciso;

o que está fora se une ao que está dentro, alma e corpo no corpo confundidos, e a sensação completa de estar vendo.

T.S. Elliott se regozijaria em ler este poema, ele que disse algo como em todo princípio existir um fim e em todo fim existir um princípio. Devemos nós leitores também nos regozijar.

De fato, a paz existe quando o corpo se encontra com o espí- rito. Para Marly se a carne é o instrumento do princípio, mais do que carne ela é espírito, e sendo espírito é alma. Há aqui, obvia- mente uma alusão à tradição judaico-cristã, mesmo Marly não sendo uma poeta mística, sua objetividade é outra, é a de a pru- dência ser a aplicação dos princípios aos fatos, talvez, e a guisa

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de maior aprofundamento possa ser ousado agora uma modifi- cação no último verso da estrofe escolhida para ilustrar o mote de O sangue na veia, se reescreveria aqui nessa pequena crítica ao invés de “ e a sensação completa de estar vendo.” a emoção completa de estar vendo, ou melhor estar lendo, porque é na con- dição de leitor distanciado do momento da publicação do livro que penso esse verso. Explico, ou tento explicar, melhor a seguir.

O mundo das sensações, hoje, é o mundo das excitações, e se há algo que não excita na obra de Marly de Oliveira é a excitação.

Claro que em algum momento da vida a autora se excitará como qualquer um, porém se espantará dessa excitação surgir como paixão, não como mera excitação, sim como algo que a espanta sentir excitação dentro de os limites impostos a si mesma, even- tualmente, implodido, mais pela emoção de sentir a sensação ex- citante do que pela excitação alienante em si mesma.

Então o sangue na veia da poeta, sempre foi e sempre será o sangue da emoção mais do que o da sensação, o sangue do senti- mento do corpo sensível não alienado de si mesmo nunca.

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A vida natural, livro também de 1967, sobre a sintonia como arte de percepção

Composto em versos livres, aliás, versos clássicos, porque como ensinou Borges, versos livres são versos clássicos, isto é, os primeiros poemas foram escritos em versos livres, que se os denominem de brancos o que seria a mesma coisa, distribuídos em conjuntos de estrofes numeradas, os versos de A vida natu- ral, livro de Marly de Oliveira, ensinam o olhar que a poeta lan- çava sobre as coisas vivas do mundo. Um olhar de comunhão com a vida, que segundo Marly é comunhão com a vida, que segundo Marly

“corre nas veias/como nos rios, na seiva bruta, no bicho quente,/no miúdo peixe,/em qualquer alga/ macia e fria, / e não se separa/gente de bicho,/só unifica, na indiferença/ mesma que anima/o que se move/”.

E isso é o que nos diz no primeiro conjunto de estrofes para que comecemos a pensar. Ajudando, mais ainda, ao começar o segundo conjunto de estrofes dessa maneira:

“Mas será mesmo a vida?/ Ou quem sabe se iludem os meus sentidos,/ e o que vive não vive,/ pois não sabe que vive,/ e na seiva das plantas é invisível,/”.

Oras, no primeiro conjunto de estrofes a poeta nos propõe uma sintonia com as coisas vivas, no segundo conjunto identifi- ca essas coisas vivas com as coisas vivas que não se sabem vivas no nosso próprio corpo, a seiva das plantas pode representar o nosso sangue e o sentido iludido é o não saber o sangue ou a seiva que o sangue e a seiva estão vivos, cabendo à poeta dar o significado, o significante e o sentido a essas coisas vivas e inani- madas só animadas pelo sentimento da vida, que as transcende, sem que necessariamente o sangue ou a seiva tenham que sair dos seus ductos ou vasos para se saberem vivos. Pois só estarão vivos estando onde estão em harmonia com os seus próprios flu-

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xos e invisíveis para si mesmos ( sangue e seiva ).

Pois nos dirá, ainda nesse conjunto de estrofes:

“o que é vivo precisa/ do que é vivo animado por si mesmo,/e cumpre o que está vivo/uma finalidade, / embora não se saiba bem qual seja.”.

Não nos diz aqui a poeta nada sobre a alteração dos humores em um sentido sentimentalista, não nos fala de melancolias ou miasmas, nos fala de uma missão diante da vida e da natureza, a de estar bem em relação às coisas que estão vivas. Marly de Oli- veira não é poeta amiga das pulsões de morte, e o estranhamento que a sua poesia causa é exatamente a de ter esse comprometi- mento com a vitalidade.

Afinal de contas, nos diz: ainda no segundo conjunto de es- trofes

“O sentido das coisas,/ onde achar senão nas próprias coi- sas?”. Pois “As coisas tem um brilho para dentro/ que lhes é ine- rente,/”.

E é esse o brilho da poesia de Marly de Oliveira. Os últimos versos desse livro são de grande beleza, o que é o brilho para dentro a faz perceber é que

“ o amor e o não-amor estão unidos,/ e aquilo que me escapa é que é o sentido./”

Essa é a vida natural, o que o corpo sabe de si e de seus hu- mores e pulsações eventualmente alienados ao que o corpo sabe de si, é o que escapa à poeta, e o sentido é o de que o que escape seja o menos possível para que o ser seja o mais possível dentro do limite do seu próprio corpo, dentro de um apascentar não aco- modado, porém tranquilo, pois o que flui no corpo é vida e o que dele escapa vem da manutenção das coisas vivas no continente do corpo, numa economia de emoções em que a união do amor e do não-amor ser o que faz a força.

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Contato – livro de 1975 –; nos fala da questão do tempo na poesia de Marly de Oliveira

Para Marly de Oliveira o fluir do rio importa muito mais do que as margens que o comprimem. Mesmo a fonte, se a fonte re- presentar a memória que impeça o fluxo contínuo e cuidado para que continue, normalmente, a ser contínuo, é renegada por essa poeta, não afeita a refluxos e muito menos ainda a ruminações das águas do rio corrente.

Vejamos os versos mais importantes entre os coligidos pelo poeta João Cabral de Melo Neto, no livro Antologia Poética, refe- ridos ao livro em tela.

O vazio é um fogo e o Um sagrado forma com ele o símbolo perfeito, mas como perceber

sem fragmentar ou dividir esse acabado símbolo e círculo? Eu que sei de números?

O descer fundo

no agora, isso é esperança, o todo-o-tempo amor com que contemplo

o justo convergir

do futuro e passado nesse eterno presente, inatingível, se procuro mais que o mergulho

na água. A memória é um vínculo imperfeito e vão impedimento

para o livre sentir.

Tais versos, definitivamente, desvinculam a poesia de Marly de Oliveira de qualquer narrativa em prosa, onde o tempo agosti- niano é predominante, isto é, onde a convergência entre o passa- do, presente e futuro fazem a síntese e dão a ilusão de eternida- de, que era assim como Santo Agostinho concebia a largueza do tempo e acreditava ser essa largueza a eternidade.

Não há fato passado que deva conspurcar o presente na pu- reza do poema de Marly de Oliveira, não há subjetividade que

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possa atrapalhar o momento, Marly, em seu livro Contato, re- afirma a sua sintonia com o agora, com a disponibilidade vital para o agora, e o vazio é um fogo e sendo fogo existe onde há ar respirável, fogo que alimenta o ar mais que o ar alimenta o fogo, fogo brando, poético, mais chama que expresse a vida do que a faça arder. Porque a sentimentalidade da poesia está no amor, não na paixão; vejamos os versos abaixo:

O fino amor que sinto,

resiste à fria pedra, à dura gema, e se exercita na constância da água;

e cresce enigma, absinto, ora dilui, ora dilata a pena.

Esmorece? Edifica? Em forma lenta permite, e não, o anelado contato com o que é, sem atrever-se ao mínimo movimento de entrega.

O gesto volta em ondas para dentro:

tenho o rosto tranquilo e o peito ardendo.

Mas quem salva do tempo esse passivo contemplador do amor e do infinito?

Em Contato o tempo e o tema da morte, que tanto preocupou a poeta se encontram pela primeira vez em sua poesia. E a não entrega não é um ato de defesa contra o que possa representar o fluxo da vida sempre presente, a não entrega é uma não entrega à morte, fazendo da ação passiva uma opção clara de vida em detrimento ao que poderia ser uma ação de mortificação pelas coisas dos acontecimentos, trata-se aqui do corpo em contato com a vida, embora o sentimento da morte se faça presente pela passagem do tempo agora embarcado também no fluxo contínuo do rio.

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Invocação de Orpheu – 1979-1980

Na primeira estrofe de Invocação de Orpheu, a poeta Marly de Oliveira nos diz do que não sabe:

O canto é minha explicação, mesmo que diga o que não sei.

Sou o sentido do que se transforma, do que resiste à petrificação.

Nada se fossiliza na poesia de Marly de Oliveira, e petrifica- ção aqui significa medo, não rigidez, até porque toda a rigidez de caráter, mesmo a baseada em bons princípios, não passa de uma covardia. O que se transforma é a poeta diante da vida, se transforma sem deixar de ser o que é. Uma grande poeta.

Vejamos o que nos aconselha na terceira estrofe desse poe- ma:

Ouvi no entanto, vós, que a ilusão buscais sempre na vã agitação;

eu vos ensino a insubmissão do amor, a inquietude que leva até o inferno em vida, o êxtase, o delírio. E vos ensino a dor e vos ensino a cólera,

que ela vos salve de vosso destino

menor e implacável. E vos ensino a glória.

A ilusão a que a poeta se refere é a agitação vã da catarse, do se colocar em fúria para fora, é a ilusão de quem é incapaz de viver em si mesmo a inquietude do inferno, e é esse homem incapaz desse inconformismo de viver em si mesmo a inquietude do inferno que Marly de Oliveira considera um fraco. Diz ela no terceiro conjunto de estrofes do livro:

Esta a minha esperança, que conheçam os desígnios que nos regem, o absurdo de se aspirar ao absoluto, quando

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tudo ao redor nos diz que é impossível

ir além de nós mesmos. Mas um dia conheceremos, como prometido nos foi por boca de sibila, tal como conhecido se supõe que sejamos dos deuses?

Que sabe Orpheu, senão apaziguar com o canto o desespero? Ele que dá o que não tem, cai sobre a relva e chora: esse lamento vem direto à minha alma e o vento leva.

O poder ontológico da poesia se faz presente mesmo na po- eta, e a agitação se torna o lamento que o canto (vento) leva. O sentimento imperioso age na poeta sem que ela necessariamente tenha de agir para responder a essa fúria, a essa loucura que as- sola os fracos e aos fortes da mesma maneira e com a mesma in- tensidade, o não saber da poeta é o não deixar a fúria e a agitação tomarem conta do seu espírito, em versos quase confessionais é isso que ela nos diz nos últimos versos do livro;

Não sei a que vim, não saberei jamais o que há por trás desse meu não saber aflito, medalha que levo comigo pendurada no peito.

Só há tanta beleza em não ser quando o amor ao se encontrar com o não-amor não permite que o não-amor apague a chama do vazio, nem coloque essa chama em fúria. O canto é a chama no Orpheu invocado por Marly de Oliveira nesse jogo de espelhos do corpo em que novamente é ela que se movimenta como pantera suave. Há momentos em que o não saber é a maior sabedoria.

O que terminaria em mortificação não vale a pena ser parte da aprendizagem. A medalha no peito é o compromisso com a vida, quase um ato heroico para todo e qualquer mortal.

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Aliança – 1979

Em Aliança, livro lançado no fim da década de setenta, a nar- rativa da poeta já não se basta, embora continue bastante, no jogo de clarear escuros da sua poesia. O livro é quase um grito de socorro. O espanto com o mundo continua a ser encanto, mas as questões semânticas mostram variações e polissemias antes recônditas, se existentes. A mulher-poeta está com quarenta e quatro anos. Nos primeiros versos escreve o seguinte:

Perdi a capacidade de assombro mas continuo perplexa:

esta cidade é minha, este espaço nunca se retrai,

mas onde o ardor da antiga chama que me movia no mínimo

gesto?

Qual seria a diferença entre estar assombrada e estar perple- xa? Se em sua poesia não há fantasmas até então? O espaço não se retrai sem querer isso dizer que aumente; talvez a poeta nos fale das mudanças corporais da mulher de meia-idade que antes se movia com vigor maior. O cerco da primavera começa a acabar, a juventude se foi.

Na terceira estrofe continua o seu lamento:

Perdi também no contato com o mundo, pérola radiosa, vão pecúlio, uma certa inocência; ficou a nostalgia de uma antiga união com o que existe, triste alfaia.

O tempo é inexorável para qualquer pessoa. Em uma entre- vista Carlos Heitor Cony disse que a saudade é sentida a partir das coisas que se teve e que a nostalgia é sentida das coisas que não se teve ou não mais se pode realizar, de fato, a palavra é am- bígua, Aldyr Blanc, poeta e atabaqueiro, ao envelhecer disse sen- tir saudades do futuro, futuro que sabe não terá muito além do

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momento.

Marly de Oliveira dá à saudade das coisas em relação a que esteve unida a força da nostalgia, o que torna seu poema mais pungente ainda!

No segundo bloco de estrofes do poema diz o seguinte:

Contudo, creio em mim, asseguro que tenho amor, que me invade em momentos de fraqueza a força da fraternidade.

O seu criar poético não é um eremitério, Marly de Oliveira tem amigos, tem familiares, e é nesses amigos e familiares que encontra a Aliança. Homenageia Murilo Mendes, com quem se desculpa.

Dói, sobretudo, o que não transmiti, a palavra não dita em seu momento justo, o suspiro deitado a algum crepúsculo, que o eco distribuiu sem entender, a carta que ficou sem responder aguardando o momento mais propício – seta que ainda me atinge o coração – o gesto que indeciso rabiscou

uma sombra no muro e se perdeu – e eu sabia que tinha direção.

Homenageia Clarice Lispector que junto com Manuel Bandei- ra foi sua madrinha de casamento.

Quem esteve ao seu lado sabe o que é a fulguração do abismo e piscar de estrela na treva.

São pequenas odes-elegias para os amigos que partem dessa vida, Murilo em 1977, Clarice em 1979. Em um poema para Ma- nuel Bandeira, falecido há cerca de uma década da data de a pu- blicação de Aliança é manifestada uma grande saudade.

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A andorinha de Manuel me lembrou um passarinho que tive quando menina e morreu sem ser preciso,

Retorno algumas paginas do livro para ouvir o que a poeta diz no poema ( Ausência de Mônica), quando nos fala sobre a filha morta:

Nesta casa vazia recomponho teu rosto:

o dia não desculpa a forma escura e fria, uma floresta feita só de silêncio e ausência.

Há uma dor que não se extravasa para continuar sendo sen- tida no limite do corpo. Sobre o que sente diz à filha, e, ao que parece, somente para a filha:

Eu te anuncio

o caprichoso, vário, imerecido desconcerto, o vão recolhimento ao catre de lembranças e o despertar um dia para aquilo

que milagrosamente nos circunda e de tão perto nem vemos:

o difícil presente inacessível.

A poeta não nos dá a mínima ideia de quem foi a filha, con- tinua a ser a pantera suave que se move atrás de grades fixas, agora representativas de o catre de lembranças.

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Reflexões: o mundo e sua paisagem

Em seu livro Reflexões: o mundo e sua paisagem, Marly de Oliveira nos permite viajar por sua bagagem cultural, como mu- lher e mestra em letras neolatinas, há paisagens de Roma, diva- gações sobre o inferno dantesco, diz ter acreditado no inferno quando era criança e preferir o purgatório. João Cabral de Melo Neto, seu marido, não acredita em deus, mas diz acreditar no in- ferno. O inferno são os outros, escreveu Sartre, e o céu também, acrescentou Hélio Pellegrino. Onde há a harmonia, senão com o pé na estrada?

Vejamos os versos do oitavo segmento do livro.

Pior do que o cão é sua fúria, pior do que o gato é sua garra, pior que a sanha de ferir a que se esconde sob feição de amor.

Pior que a vida é a não-vida do que se faz espectador:

nem mergulha, nem nada, nem conhece o mar fundo:

está sempre à beira da estrada.

Mais do que o olhar lançado às coisas do mundo que estão aí para a gente aprender, importa o participar do mundo, questio- nar a sua origem, há que semear para também ser origem desse mundo.

Aquele que semeia escava a terra e não se aflige,

ama a terra, ama o pó a que retorna um dia.

Não dá as costas, não vitupera, não grita:

planta.

É interessante notar como a poeta, enfática e de forma mo-

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nossilábica, eventualmente, fecha as estrofes de seu poema, não para promover uma aporia, mas para ampliar o significado da pa- lavra. Recurso estilístico sofisticado e de grande força!

Sua paisagem do mundo é também captada nos livros, mu- lher de diplomata é pessoa viajada, mas vejamos o que diz:

Para fazer uma promessa

não vou a lugar algum, fico aqui mesmo.

Distribuo ao vento o meu lamento, recordo Jeremias, leio de novo os Salmos, o livro de Daniel, o livro de Jó.

A paisagem do mundo também está nos escritos da poeta, isto é, sua estrada é a sua poesia, seus passos são os versos, os poemas o caminho, os livros cada um deles um lugar distinto.

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A força da paixão – 1982-1984

No livro Antologia poética - reunião de poemas de Marly de Oliveira -, que teve a organização e o prefácio de João Cabral de Melo Neto, são poucos os poemas colimados para representarem o livro A força da paixão. Tenho para mim que são oito os gigantes da alma: a dor, o amor, o medo, a ira, o dever, o pensamento, o humor e o desejo. Esses gigantes são para mim uma cosmologia, escrevi um livro de poemas sobre cada um deles, e, no livro, A força da paixão, Marly de Oliveira nos fala da dor, basicamente da dor de viver, e viver sempre foi um compromisso importante para a poeta em tela.

Oras, tendo pensado com relativa profundidade tais temas referidos aos gigantes da alma, tendo querido saber tudo que posso sobre esses gigantes, fiquei surpreendido e grato com a leitura desde os primeiros versos de A força da paixão. Vejamos:

A dor de ser consiste em não saber.

O mais é paisagem vista da minha janela,

onde o sol entra/ e não aquece.

Seria a senhora, senhora aqui no sentido de grande, poeta capaz de na invenção do seu mundo prescindir do sol? Seria a condição de saber o sol um vir a não ser? O que vem à mente, muito desconfiadamente, no momento é que o saber o sol talvez impeça que a poeta tenha o sentimento do sol, sendo o não saber o sentimento do sol o próprio sentimento do sol desde quando o sol nasce e se deita a cada dia a dia.

Muitos poetas, não só Marly de Oliveira, se esvaziaram de tudo em prol do ser poder ser o próprio sentimento do ser. Ser a ser sabido de forma fugaz para não se sobrepor nenhuma sabe- doria ao que é o sentimento do ser.

Pouco adiante, na terceira estrofe do primeiro conjunto de versos, a poeta assume um tom confessional cheio de indaga- ções.

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E a verdade, e a razão, e o suporte em que eu ingenuamente construí a pedra, onde assentar

tudo o que penso ou vi?

Ficou-se o coração de muito isento, de si cuidando mal.

Perdi/ganhei, não sei. Estou de novo órfã, de novo à mingua, de novo à beira

do que quase entendi.

O que seria para a poeta estar à beira do que quase entendeu?

Que linha é essa tão mal traçada por quem tão bem escreveu seus versos em busca de ampliações de limites? Que ausência de jac- tância em quem tanto sabe e é, agora, uma mulher madura, é essa?

Há o limite da morte, e a poeta reconhece-o. Não faz nenhum desdém, é humilde; vejamos:

Recurso do desdém: também inútil.

Da música, que embala, do estudo que ainda ajuda, da verdade, que perde e ganha aquele que algum dia a descortina:

este estar cercada de vidro por todo lado, podendo a mínima pedra

ser a ocasião do desastre.

A força da paixão em Marly de Oliveira é a de não saber a mor- te e o que a representa para sentir a vida e tentar representá-la em sua poesia muito mais a partir do que sente do que possa ima- ginar qualquer vã filosofia.

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A incerteza das coisas – 1984

Em seu livro A incerteza das coisas, pela primeira vez em sua obra Marly de Oliveira mostra alguma preocupação social, e este é um ponto de inflexão no tangente ao que seria a inserção da poeta no mundo material, face ao seu desencanto com o mundo místico, onde já não encontra a unidade desejada. Aqui é trans- crita a primeira estrofe inteira.

No escuro, o canto. E o sono da criança.

Não fosse a dureza do mundo,

a incerteza das coisas pronta a explodir, o câncer, a vitória

do perjuro, a aceitação da mentira, sempre inglória a fome, o desconcerto, o desvario, os que vivem sem dentes para agarrar a matéria mais tosca

sob a ponte de seu destino, infenso à mínima alegria

– e se estaria em paz.

Na terceira estrofe Marly fala que à parte isto tem a paixão pela comédia, pelo entendimento das coisas lido em Lucrécio, por Sêneca e Marco Aurélio, Camões, Petrarca, Murilo, Montale, Drummond, Bandeira ou Virgílio. Isto é, há um mundo constru- ído a partir da cultura, porém este mundo não suprime a sensa- ção de orfandade, talvez essencial a qualquer artista que queira ser único, que fala de si mesma na terceira estrofe:

Insigne & insone & incompleto.

Ó Rei & Rainha & Rato & rápido passa tudo o que é vivo, (Sabei disso.)

A fúria do leão, a doçura da sombra, a força da pantera,

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o giro das esferas,

é tudo igual. Basta que se observe e se reconsidere o universo.

Será essa reconsideração o bastante face às imperfeições do mundo. Marly cultua o fluxo do rio, sem dar muita importância ou nenhuma importância, para usar uma metáfora de Brecht, com as margens que o comprimem, margens essas que compor- tam fomes e desvarios.

Diz ela, na quarta estrofe, ao que parece cheia de dúvidas:

Jamais o mar, violento e esquivo.

Sempre o rio, o fluir sem assalto Ou sobressalto. Memória, amor, é tudo o mesmo.

Mesmo porque na quinta estrofe revela uma descrença, uma mudança de visão, talvez ainda incipiente:

Houve um tempo em que pensei na pedra colocada sobre pedra:

acreditava na reconstrução.

Hoje vejo paredes levantadas e as conservo

e luto para que nos abriguem a mim e meu rebanho sem pastor.

Marly aceita a originalidade da sua obra, não há pastor, mas há rebanho. Os paradigmas canônicos não pastoreiam os seus versos. Mas há um sinal de entropia nesse livro. As paredes se levantam, embora sejam conservadas, sabe-se lá a que preço. Es- creve na sexta estrofe:

... Vê:

eu não sou livre, me ocupa inteira esta contemplação.

Vem daí essa espécie de riqueza, que a ninguém se comunica, e que ninguém entende, salvo eu mesma.

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Para a poeta o que é plantado, repetindo rituais antigos, cresce, enquanto ela se repete. Obviando, nessa repetição, uma angústia simultânea a uma conformação: – a de se aceitar como a semeadura do que planta.

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Retrato – 1986

São raros os poetas que cantam o amor conjugal e o lar na poesia brasileira, para não ficarmos apenas com o exemplo de Marly de Oliveira cito, aqui, Adélia Prado, que pareia com Marly, também como grande poeta, entre os poetas cantadores do espa- ço doméstico. Oras, são raríssimos os poetas moradores de rua, e mais ainda os poetas dentro dos limites da paredes, mas não há muitos outros casos a citar, talvez, na contemporaneidade, apenas a poeta paulista Mariana Ianelli, com seus livros Fazer Silêncio, Almádena e Treva Alvorada, uma trilogia de livros em si complementares, publicados pouco antes do livro O amor e de- pois, que celebra o amor conjugal e a intimidade em seu pudor revelado.

O olhar de Marly de Oliveira, e ela usa essa metáfora algumas vezes é o de um acrobata, isto é, o de procurar ver as coisas por vários ângulos, não se escravizando ao ângulo, pois há a singula- ridade da pessoa que se movimenta, sem que o movimento mo- difique a pessoa que olha. Marly ao dizer em seu livro Retrato, como se traduziu em seus escritos escreve no terceiro grupo de estrofes para representarem o livro Retratos, de acordo com a Antologia Poética, organizada pelo poeta João Cabral de Melo Neto:

Falei depois da pantera prisioneira de si mesma, na negrura toda alerta.

E comparei-a a uma joia ( que contivesse uma fera) Intensíssima e do próprio Sangue animada;

de sua fúria, que alcança de si o máximo amor, à parte qualquer luxúria, vaga, concreta, flutuando (em si mesma) parada, poderosa e bela.

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Mas é claro que eu pensava na condição do animal todo presente a si mesmo, íntegro, inteiro, atual, enquanto nós nos perdemos em pretérito e futuro, sem dar a atenção devida ao que de fato importa.

Importam a Marly as margens do rio, o tempo presente com seus enfeites e questões, se já não há o cerco da primavera, há outros limites a serem visitados. Diz ela:

Livra-nos do assédio dos fracos, da inconsistência das coisas, do medo sem motivo, da confissões excessivas e do sucesso,

que tira a nossa liberdade

e é capaz de iludir os mais sagazes.

Seria esse fechamento a outras interlocuções de pessoas di- ferentes dela uma ausência de compaixão? Teriam esses versos da poeta a ver com uma característica da família capixaba de ser uma estrutura em geral bastante fechada aos outros, representa- da aqui por uma incapacidade da escuta? Algo tão marcante no modo de viver dos capixabas? Teria a poeta levado isso para os outros lugares além das fronteiras do Espírito Santo? Essa é uma questão antropológica que cabe sim deixar em aberto. Porque é uma questão que nos reporta à ética compassiva em Nietzsche, que indaga o porquê de sentirmos raiva de quem se põe em uma posição de insuficiência diante do mundo. O é o assédio dos fra- cos? Afinal de contas.

Mas voltemos ao foco central desse artigo, isto é, ao canto celebrante do lar, e é o que a grande poeta nos canta, após confes- sar seu espanto em não ter mudado essencialmente quase nada, agora no oitavo conjunto de estrofes com que fecho este texto.

A casa não é um estado de espírito.

Não é também um símbolo.

É o lugar onde vivo

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e onde não sou feliz completamente, porque ninguém é completamente feliz.

Viajei muito, errei muito, aprendi.

Todos os lugares por onde andei terminam aqui (O resto é literatura)

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Vertigem – 1986

João Cabral de Melo Neto, organizador do livro Antologia po- ética, com poemas de todos os livros de Marly de Oliveira, do li- vro Vertigem escolheu as estrofes de 1 a 5, cujos versos são de ex- traordinária pungência e humildade, iremos citando as estrofes, que entre significados e significantes vão mesmo é significando para formarem um sentido fechado, como é tudo na poesia de Marly, onde o cosmos é o limite,

1. Meu nome é o nome que me deram numa pia de batismo,

cuja origem desconheço.

Mas há um nome secreto

que cada um escolhe quando chega o tempo de repelir o acessório:

e sou apenas um eu, um tu.

Despojada de tudo que me acrescentaram – sem a minha aquiescência –

retorno ao centro de mim mesma, ao núcleo.

Oras, desde o primeiro verso Marly ao renegar o nome, rene- ga a fantasia, renega qualquer máscara que desenhasse um falso self, seu objetivo é ser apenas verdadeiro self, para usarmos aqui termos referidos à psicanálise criados por um dos seus gênios, que foi e é Donald Winnicott. Marly renega qualquer vertigem.

2. Às vezes certa doçura é confundida com fraqueza (tremor ou submissão).

Ninguém está preparado para o amor fraterno, sem a vertigem do egoísmo ou da paixão.

Os versos acima quase fazem chegar às lágrimas, a poeta evo-

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ca no leitor todas as suas loucuras, todas as suas violências, to- das as suas paixões apenas para dizer da inutilidade delas. E nos diz porque não nos deixa entrar além das suas muradas, além das suas grades de pantera, onde defende o espaço com unhas e dentes.

3. Se de ânimo cativo se pudesse de forma inteira e livre então provar o excesso, a que me esquivo por costume e disciplina de alma, ah, se chegava então ao êxtase, em virtude

de, enfim, acreditar na entrega sem temor, franqueando a invasão do inimigo o muro erguido.

A poeta entende como estranho tudo que é humano, mas lhe é estranho, isto é, é estranho ao que ela julga ser a essência do que é humano. Cumpre como em nenhum outro momento da sua obra o dever de como poeta fazer a poesia cumprir a função ontológica da poesia, isto é, reclamar do leitor que o leitor esteja acima das loucuras das paixões em vertigem, vertigem entendida pela po- eta como vocação para o trágico, vocação para o desnecessário.

Vou de by-pass em relação à quarta estrofe para abreviar a conclusão, citando agora a quinta estrofe.

Sempre desejei estar onde estava, sempre quis ter o que tinha.

Inútil fingir que vivia à cata do que faltava, que, na verdade, é o que falta sempre: o entendimento do mundo e este vazio, esta ausência disfarçada numa pedra, no cedro, na esmeralda.

A poeta vive o que entende, e o que entende é o seu próprio ser e o seu modo de ser em sua singularidade como mulher e como poeta, ela tem duas mãos para serem sentidas, mãos que não se importam tanto com o sentimento do mundo.

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Banquete – 1988

Em O Banquete, livro publicado em 1988, ou seja, pouco an- tes da emergência da geração 90 dos poetas brasileiros, que teve como característica incluir a subjetividade no corpo da poesia na- cional de uma forma mais reflexiva, algo que se poderia esperar da geração 70, a mais beneficiada pelo boom da psicanálise, mas que só veio vinte anos depois, talvez em função da ressaca das revoluções de costumes dos anos sessenta (liberação sexual), se- tenta (culto ao corpo), oitenta (sob a influência Michel Foucault que pregou a danação das normas e fez haver uma epidemia de trabalhos acadêmicos baseados em seus textos nas universida- des), Marly de Oliveira escreve um livro de grande sutileza, em que fala das questões do desejo, por este resenhista considerado um dos gigantes da alma (junto com o amor, o humor, o dever, a ira, a dor, o pensamento e o medo). E sobre, hoje em dia, quase mais nada ser subjetividade, isto é, se tenta fingir que as coisas estarão bem, que o desejo expressado em suas diversas formas sempre fará que qualquer maneira de amor valha à pena, embora saibamos que os sofrimentos humanos sejam capazes de mudar de forma, não cremos que os conteúdos das paixões sejam capa- zes de se modificarem com o escorrer do tempo. E eis na quarta estrofe do livro a mensagem de Marly de Oliveira:

E a essa extrema pobreza faço conta que não chego, que nela tenho vivido, embora de outra maneira, já que prescindo do todo o chamamento corrente, mesmo se da natureza tão inclinada ao suplício de desejar sem valia, mesmo se da tentação de conceder uma graça a quem não a merecia.

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Para seguir da seguinte maneira na quinta estrofe:

Sou aquela que cantou com flauta rústica a vida natural ( já lá vão anos) e agora vê demolida a sua antiga morada, os jardins suspensos sobre uma vida malograda, o pomar (de frutas podres).

Um barco no cais parado da nossa falta de arbítrio são varandas estendidas como lençóis ao ar livre.

A nossa falta de tudo sobre fingida alegria, como quadros pendurados na casa toda vazia.

A poeta sente que o cerco da primavera não tem mais ne- nhum retorno, não há mais juventude, não há mais o mundo da juventude e o que surge não adorna as paredes da sua morada.

Na sexta estrofe, pela primeira vez Marly sente autocomise- ração e escreve em tom confessional:

E foi assim que dei de rosto com a humana desventura, preferindo sucumbir a essa chama interna e pura a ter por bem assentado o entendimento do mundo, ou melhor, a sua fábula, o esplêndido banquete para a curiosidade de artífices, capitães,

reis, filósofos, teólogos, que andam atrás da verdade como uma pessoa viva, uma pessoa que exista com carne, osso e coragem.

Oras, em 1989, com a queda do Muro de Berlim, quem achava

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que entendia o mundo – essa pessoa que exista com carne, osso e coragem de quem Marly sentia inveja – caiu do cavalo e demo- rou muito a tentar reassumir as rédeas, porque além do fim da bipolaridade URSS versus USA, o advento da Nova Ordem Mun- dial Neoliberal, a ambição dos países com algum poder no jogo de xadrez da política internacional em prol de uma multipolari- dade, começavam a ser plantadas as sementes do confronto de fundamentalismos entre o mundo árabe e o ocidente. Em que pé isso influenciou ou fez Marly pressentir as mudanças do mundo ou como a poeta pode se expressar em relação a isso tudo só ela mesma pode dizer como o faz na sexta estrofe.

Como quem sempre esteve à margem da vida intensa que cercava a sua vida, voltada para si mesma, como o livro ( de que fala o poeta) que fechado permanece, mesmo aberto a uma leitura de acaso.

E portanto reconhece que é bom deixar o desejo inaugurar novas formas

de amar sem medo e sem conta.

A poeta percebe o mundo e é assim, como nos conta na estrofe de número dez, que convida os novos epulários para o Banquete:

Nesse intuito é que convido para o Banquete maior todo aquele que deseje conseguir algo melhor que o simples comer à mesa.

E já fica declarado

que os ânimos que se renderem à tentação do convite

tenham, sim, outros valores além dos que se oferecerem gratuitos, à vista, apenas.

Fica também declarado nesta oportunidade que

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além de sentir precisam pensar a própria verdade, investigá-la, inquiri-la, pondo sempre em movimento o que ao homem foi negado:

ter além do pensamento e sentimento, equilíbrio para não ceder à chama e à tentação do infinito.

E o que é a tentação do infinito além de uma imensa pulsão de morte? O jogo de xadrez entre Eros e Phobos, entre a medici- na e a tanatologia (tanatofilia?) ao que parece, jamais será inter- rompido, e quando é interrompido é quando há o equilíbrio entre o amor e o não-amor.

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O deserto jardim - 1990

O livro O deserto jardim é o último que oferece exemplos da poesia de Marly de Oliveira entre os livros de os quais João Ca- bral de Melo Neto pinçou poemas para organizar A antologia po- ética sobre qual me debrucei para fazer este estudo da poesia de Marly de Oliveira, estamos então no último capítulo de ensaios sobre a produção poética dessa grande poeta. Confesso que foi uma experiência saborosa e não me senti só em nenhum momen- to da análise dessa obra, embora o ato de escrever implique em solidão, e O deserto jardim, ao que parece, é a solidão do escritor da qual a poeta nos fala na terceira estrofe do poema:

Assim, pois, para escrever, preferimos os lugares

mais secretos. Ah, quantas vezes não pensei na solidão

do que ali se faz rei,

sem espada, sem mais nada, salvo um cetro de madeira, algumas flores fechadas, com um certo ar tranquilo de festa calma, sem gala:

um quarto em algum mosteiro ou uma cela mesma em casa.

Para seguir na estrofe seguinte, a quarta, com os seguintes versos:

De onde, talvez, a impressão, de que no escuro se faz mais transparente a palavra, como aquela água que cai em pingos de chuva clara transformando o céu coberto numa festa iluminada.

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Eis que, apesar de a luminosidade da poesia de Marly de Oli- veira, de repente, ela diz o que faz da inclinação feérica que Car- los Drummond de Andrade diz ser necessária a quem escreve. E, ao admitir a existência das sombras, o faz numa bela epifania, isto é, na metamorfose de um escuro nada sólido em água de chuva, aqui escrita como metáfora da beleza do ato da criação poética. O cerco da primavera, título do seu primeiro livro, conti- nua a existir, a poeta agora, em mil novecentos e noventa, tinha cinquenta e cinco anos. Ainda ama o fazer poético. O criar a par- tir do mínimo a partir de coisas tão grandes, e as coisas grandes são os poetas que aqui e ali, até chegar ao livro O deserto jardim, ela cita: os poetas latinos, desde Dante a François Villon, entre outros, sem esquecer que Villon foi ladrão e assassino, trânsfuga como Rimbaud, e ainda assim, se vestiram eles de reis no mo- mento da criação poética. Fala, na décima estrofe do mesmo li- vro, um pouco mais da pantera, A pantera suave, do título do seu segundo livro, guardando uma coerência na obra como se o fio da meada tivesse sido utilizado para costurar os livros em uma unidade transcendente como poesia, por ser poesia de uma gran- de obra, porém sem tocar pessoalmente a pantera, presa em sua cela, agora com algum desejo de se libertar.

O segredo da paixão, essa fera que derruba qualquer faixa imperial – sem nenhuma oscilação, e luta e vela e persuade desejando no mais fundo ( de si) perder a vontade de reagir, drenar a ferida, e partir em liberdade.

O fato é que mesmo na obra, após a escrita e a publicação de O deserto jardim, a produção poética de Marly de Oliveira escas- seou, Marly de Oliveira, faleceu em dois mil e sete, aos setenta e dois anos de idade, tendo publicado ainda os seguintes livros:

• O Mar de Permeio (1998)

• Antologia Poética (1998)

• Uma vez, sempre (2000)

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Os títulos são interessantes, o livro Antologia poética foi o que forneceu os poemas para as análises da obra até aqui realiza- das. O mar é um elemento quase ausente, e apenas uma ou outra vez lembrado na obra da poeta, o mar representa a paixão, e a paixão para Marly, que escreveu o equilíbrio estar entre o amor e o não-amor, talvez seja para ela o não-amor, o poder da entropia da qual sentimentalmente a poeta fugiu encarcerando a pantera, pondo-a sob o cerco da primavera, até que pudesse passear por um jardim deserto. O termo anentropia é um neologismo, salvo melhor juízo, cunhado pelo psiquiatra Joel Birman, que ao fazer sua análise de o mal estar na contemporaneidade, vendo o des- monte de tradições judaico-cristãs e marxistas escreveu ser a anentropia um momento de construção ao invés de destruição.

Devido à minha vida de oficial da marinha, com toda a insta- bilidade geográfica que a vida de marinheiro me deu, mesmo por- que quilha de navio não deixa trilha, não guardei muitos livros, e optei por escrever sobre a obra da poeta de forma natural, sem muitas preocupações de citações bibliográficas, lerei os poemas dos livros O mar de permeio e Uma vez, sempre, se conseguir en- contrá-los em sebo, mas, por enquanto, o que tinha a dizer sobre a obra da poeta é só.

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Esta obra foi composta na tipografia Directa Serif, de Ricardo Esteves, corpo 10/ 14

e impressa em papel pólen bold 90g na cidade de Vitória no mês de julho de 2019.

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