Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
O Patriarcado presente na Contemporaneidade: Contextos de Violência1
Leonardo José Cavalcanti Pinheiro2 (UCSAL)
Patriarcado; Família; Violência
ST 66 - Construindo novas relações de Gênero: a presença feminina nos territórios do saber.
Sabe-se que a família tem passado por diversas mudanças na atualidade, sendo passível de vários modelos de configuração. Alguns valores “tradicionais” nas relações familiares são abandonados e uma nova forma de relação é construída a partir dessas mudanças na contemporaneidade. Porém, a literatura sobre família apresenta uma leitura, ainda bastante firme, do patriarcado, assumindo valores imutáveis nas famílias. Diante deste contexto, vê-se a necessidade de descrever brevemente a sociedade patriarcal e, conseqüentemente, a sua compreensão de família, para então compreender a nova família contemporânea, entender os conflitos de gênero que regem os dias atuais, e que assumem contextos de violência dentro da estrutura familiar.
Foi no início da colonização do Brasil, que a partir das condições locais, que favoreciam o estabelecimento de uma estrutura econômica de base agrária, latifundiária e escravocrata. E também associado aos diversos fatores, como a descentralização administrativa local, excessiva concentração fundiária e acentuada dispersão populacional se fez surgir uma sociedade do tipo paternalista. (SAMARA, 1998).
Segundo Freyre3 (apud BRUSCHINI, 1993), o patriarcado, base familiar da sociedade agrária escravocrata do Brasil colonial, dava importância fundamental ao núcleo conjugal e à autoridade masculina, esta sendo função do patriarca, chefe ou “coronel”, dono do poder econômico e mando político. Ou seja, além de possuir o poder econômico, político, o chefe de família procurava exercer sua autoridade sobre a mulher, filhos, e demais agregados sob sua tutela. É possível ver a imagem clarificada de mulher e filhos submissos e a de homem dominador.
A família patriarcal, como o próprio nome sugere, se baseia fundamentalmente na exploração do homem sobre a mulher, tendo a sexualidade deste, estimulada e reforçada, enquanto que com a mulher, a sexualidade é reprimida. Bruschini (1993), partindo deste pressuposto, caracteriza a família patriarcal pelo controle da sexualidade feminina e regulamentação da procriação, para fins de herança e sucessão. Freyre (1990) caracterizou a mulher como esposa dócil, submissa, ociosa e indolente, porém esta mulher possui importância extrema na educação dos filhos, na gerencia do domicílio, muitas vezes assumindo a função de chefe na ausência do patriarca.
Talvez a própria rigidez da divisão sexual do trabalho associada à dominação masculina tenha permitido a emergência dessas duas formas como modos alternativos de organização familiar. É característica dessa divisão sexual do trabalho a atribuição da responsabilidade pela casa e pelas crianças exclusivamente à mãe: nesse sentido, ela favorece a constituição de uma área de atuação feminina relativamente autônoma, que tanto pode contrabalançar o poder paterno como ser integralmente esmagada por ele. (DURHAM, 1982 p. 38).
Até meados do século atual, o modelo familiar predominante foi a chamada “família tradicional”, com numerosos traços do patriarcado. Nesse modelo, o homem é o chefe da casa, é responsável pelo trabalho remunerado, exercendo autoridade sobre a mulher e os filhos. A mulher entra nesse contexto como a responsável pelas funções domésticas, dedicando-se aos filhos e ao marido. (PRATTA; SANTOS, 2007)
Segundo Romanelli (2000), a autoridade paterna se baseava no saber do pai, adquirido pelas suas experiências, suas vivências para encontrar soluções para os problemas do cotidiano. Nesse contexto, o saber se tornava legítimo e era transmitido pela socialização, através de orientações explicitadas verbalmente, ou, pelo exemplo paterno, que projetava no futuro o saber adquirido no passado. E assim, o pai assentava a legitimidade da autoridade na condição de provedor financeiro da família; no saber adquirido que permitia articular passado e presente, projetando-se no futuro; nas posições hierárquicas de marido e de pai, e no caráter institucional de representante da unidade doméstica.
Devido às diversas mudanças na organização social, que surgem em um contexto de crescente urbanização e industrialização, de avanços tecnológicos, pela lógica do mercado de culto ao consumo, pela entrada da mulher no mercado de trabalho, a sociedade requer uma nova forma de referência valorativa, baseada no individualismo, ou seja, na busca às individualidades e ao imediatismo.
Deste individualismo surgirá a procura por igualdade pelos indivíduos. Petrini (2003) esclarece que a igualdade é assegurada no cotidiano, que é onde se formam novas formas de divisão de tarefas e responsabilidades entre homem e mulher. O modelo tradicional, no qual as mulheres realizam as tarefas domésticas e o primado, sendo responsabilidade dos homens, é abandonado, porém, não surge outros modelos familiares que tenham uma validade universalmente reconhecida e aceita. Segundo Sarti (2000) novos papéis familiares dos homens e das mulheres são estabelecidos, modificando a forma de relacionar entre o homem e a mulher e entre os pais e os filhos. A autora acrescenta que os papéis sexuais e os deveres entre pais e filhos não estão mais claramente preestabelecidos, o que favorece a divisão sexual das funções, o exercício da autoridade e todas as questões das obrigações e dos direitos da família estarem em constante negociação, sendo passíveis de serem revistas à luz destas
negociações. “Como na França, família é um campo de estudos tradicional no Brasil e pode-se perceber que, ao longo dos anos, o modelo gilbertiano da família patriarcal cede lugar a outras formas de casamento onde, como assinala G. Velho, “o indivíduo é percebido como o potencial sujeito de sua existência, tendo na construção e desenvolvimento de projetos a possibilidade de realização de sua vida”. (PEIXOTO, 2007, p.25).
Bruschini (1993), em contraponto, afirma que apesar destas transformações, a nova família que surge ainda preserva um traço típico da família patriarcal: o predomínio da dupla moral sexual. Ou seja, ainda há a repressão da sexualidade feminina e a intolerância para com o adultério, enquanto nos homens a prática da sexualidade é estimulada e, por conseqüência, o adultério masculino é tolerado. Apesar da valorização da independência da mulher, a contemporaneidade, em nenhum momento, caminha no sentido de uma alteração profunda nos papéis de gênero e na estrutura tradicional da família. Devido a uma exposição a novos valores e acesso à educação é possível um questionamento das mulheres sobre o casamento e o lar que as sufoca. Uma nova esposa, mais moderna, menos subjugada ao marido tirano, mas nem por isso menos dedicada ao lar e a família, passa a ser valorizada. (BRUSCHINI, 1993).
Castells (2002) afirma que o patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas. Os relacionamentos interpessoais são marcados pela violência e dominação que têm sua origem na cultura patriarcal . Saffioti (1996) vai além quando afirma que o patriarcado está em constante transformação. A autora exemplifica o caso da Roma antiga, aonde o pai detinha o poder de vida e morte sobre as esposas, enquanto nos dias de hoje, o poder não existe legalmente. Porém, os homens continuam matando suas esposas, violentando-as, de formas muitas vezes perversas e cruéis.
Oliveira; Cavalcanti (2007) tratam a violência no espaço doméstico como uma reação das mulheres quanto às desigualdades nas suas relações com o marido. A mulher quando questiona seus direitos, quando percebe que está em uma relação desigual, se volta contra o marido. A partir deste contexto que acontece a violência dos homens contra as mulheres, quando o homem não tolera uma reação das mulheres ao seu poder de dominação. A concepção social possui base patriarcal, sendo assim, ainda existe bastante tolerância social para com a violência contra as mulheres.
É paradoxal esse modelo relacional uma vez que, apesar de ser conferido ao homem o ‘poder’, este por si só não é suficiente, necessitando ser garantido pela força física masculina. O poder como posição privilegiada de mando é compreendido aqui como exercício, possuindo um caráter relacional e disseminado por toda estrutura social. E
onde há luta para a manutenção desse poder, há resistência.
Segundo Saffioti (1996), o mundo público não tem menor relevância para o patriarcado. Além de contaminar a sociedade civil, as relações hierarquizadas de poder e dominação, se estendem ao Estado. Chauí (apud OLIVEIRA;CAVALCANTI, 2007, p. 35)4 considera “violência como toda e qualquer violação da liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história. Liberdade aqui entendida como ausência de autonomia”. O uso de poder para dominar e explorar outrem, é considerado prática de violência. Os autores afirmam, portanto, a violência contra a mulher é uma prática já instaurada pela própria subordinação a que ela está submetida. Sua identidade é construída a partir desta concepção de dominação. Quando esta identidade não atinge o esperado, ou seja, quando se constrói algo que é oposto ao que é constituinte da sociedade, comumente as mulheres são alvo de agressões e de discriminações.
Esta situação, para Beauvoir (1967), sugere a concepção de “outro” que os homens lhe impõe. A mulher não possui autonomia, porque está sendo controlada por uma consciência que ela considera soberana. Portanto, a autora considera que “o drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial”. (BEAVOIR, 1967, p.63)
O ponto básico a caracterizar a situação da mulher é que a ela é vetada a ação: ela não pode fazer, produzir, criar, ultrapassar-se em direção à totalidade do universo. Presa ao lar, ela é destinada a ser, confinada à imanência, suas atividades não têm um sentido em si, não se projetam para o futuro, mas apenas mantêm a vida. A transcendência lhe é permitida unicamente através da intermediação do homem, o qual revestirá de um valor humano a contingente factilidade dela. (ARDAILLON; CALDEIRA, 1984, p. 4)
É certo, na sociedade atual, que ainda é regida por forte concepção patriarcal no que tange às questões de relações de gênero, vê-se claramente as crenças de dominação homem-mulher, do patriarcado, referindo-se ao plano individual, além de serem praticadas e reforçadas pelas instituições do Estado, como as políticas sociais e públicas, os sistemas de saúde pública, a economia e a própria sociedade. Portanto, é fato que as crenças individuais são influenciadas por toda uma concepção social, que representa estas mesmas crenças, o que não permite chance de uma oposição das mulheres a esta situação, e o uso da violência, se ocorrer tal reação. (OLIVEIRA;CAVALCANTI, 2007).
É impossível às mulheres construírem um “contra-universo” para se oporem ao dos homens. O mundo ao qual constroem possui o homem como intermediador. Este contra-universo só pode vir da elaboração coletiva de uma experiência em termos universais. Ou seja, uma nova concepção de relação, mais igualitária, totalizante, deve ser construída socialmente, pelo coletivo. A mulher também pode
escapar a esta condição de subordinada através da revolta, da recusa coletiva aos limites da situação dada. (ARDAILLON; CALDEIRA, 1984).
Segundo Oliveira; Cavalcanti (2007), é correto pensar na condição de vítima da mulher. O que não se deve é retirar a possibilidade de superação e reação quanto à relação violenta a qual a mulher se encontra, porque é a partir desta concepção que ocorre a naturalização da violência que está submetida. Ardaillon; Caldeira (1984) afirmam que para a mulher se tornar um indivíduo pleno, constituído autonomamente, identificado com a condição humana, ela deve lutar para “se fazer”, tendo como referencia o seu desejo por igualdade.
A partir deste breve estudo é possível perceber a realidade a qual a mulher se encontra no contexto social atual. No que se refere às relações e outras questões sociais, a sociedade ainda assume bastante força patriarcal, favorecendo um contexto de dominação de um sexo sobre o outro, neste caso, do homem sobre a mulher e, conseqüentemente, do contexto de violência a qual a mulher é submetida. É muito comum pensar a violência como natural, inerente ao campo social, muitas vezes banal e imutável. Para se conquistar uma mudança na esfera coletiva, ou social, é preciso pensar na mudança do campo individual. O consentimento e a passividade à violência em que a mulher se encontra só faz fortalecer a ordem patriarcal vigente. É necessário que a mulher se liberte da subordinação em que está submetida, e para isto, é preciso se opor, se faz necessária a revolta, a denúncia, a conscientização das mulheres em relação à condição inumana a qual se encontram. A partir da desnaturalização do princípio de dominação-subordinação e da violência, que uma nova concepção de relação social e de gênero se faz presente.
Referências Bibliográficas
ARDAILLON, Danielle; CALDEIRA, Teresa. Mulher: indivíduo ou família. Novos estudos, V. 2, São Paulo: Cebrap, 1984.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo I – Os fatos e os mitos. São Paulo: DIFEL, 1967.
BRUSCHINI, Cristina. Teoria Crítica da Família. In: AZEVEDO, M.A, GUERRA, V. N. A. (orgs).
Infância e Violência doméstica: Fronteiras do Conhecimento. São Paulo: Cortez ed, 1993.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2003.
CHAUI, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Perspectivas antropológicas da
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DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III encontro Nacional de Estudos Populacionais,1982. http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1982/T82V1A002.pdf
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: Decadência di Patriarcado Rural e Desenvolvimento do
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Políticas Públicas. Rev. Brás. Crescimento Desenvolvimento Humano, 2007.
PEIXOTO, Clarice Ehlers. Prefácio – As transformações familiares e o olhar do sociólogo. In: SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. PETRINI, J. C., Mudanças sociais e mudanças familiares In: PETRINI, J. C., CAVALCANTI, V. R. S. (orgs) Família, sociedade e subjetividades: uma perspectiva multidisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
PRATTA, Elisângela Maria Machado, SANTOS, Manoel Antônio. Família e adolescência: a
influência do Contexto Familiar no desenvolvimento psicológico de seus membros. Revista Psicologia
estudos, v.12, n.2. Maringá, 2007. Disponível em
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Contemporânea em Debate. São Paulo: Educ/Cortez, 2000.
SAFFIOTI, H.I.B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1996. SAMARA, E.M. A Família Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1998.
SARTI, A.C. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO, M.C.B. (org). A
Família Contemporânea em Debate. São Paulo-SP:Educ/Cortez, 2000.
1 Artigo realizado para o Simpósio Temático: “Construindo novas relações de gênero: a presença feminina nos territórios do
saber” do Seminário Internacional Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder.
2 Mestrando em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL – Universidade Católica do Salvador.
3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.
4 CHAUI, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: