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Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 Capoeira

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Revista Textos do Br

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

destacam as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.

A capoeira é

africana e que marcou profundamente a

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

Formação de Jornali

do Brasil em Angola (Novembro de 2008).

A Revista:

Prefácio

Os desafios contemporâneos da capoeira

As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

A repressão à capoeira

O Capoeira

A Guarda Negra: a capoeira no palco da política

Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

A performance ritual da roda de capoeira angola

A capoeira e seus aspectos mítico

Capoeira: metáforas em movimento

A música na capoeira angola da Bahia

A mulher na capoeira

Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira

Capoeira e inclusão social

A internacionalização da capoeira

Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 – Capoeira

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.

A capoeira é uma arte que está fortemente relacionada com a história

africana e que marcou profundamente a cultura brasileira.

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

Formação de Jornalistas (Cefojor) que faz parte da programaçã

do Brasil em Angola (Novembro de 2008).

Os desafios contemporâneos da capoeira

As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

A Guarda Negra: a capoeira no palco da política

Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

A performance ritual da roda de capoeira angola

A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

em movimento

angola da Bahia

Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira

A internacionalização da capoeira

Capoeira

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

que está fortemente relacionada com a história

cultura brasileira.

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

stas (Cefojor) que faz parte da programação da semana

As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

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Comentários:

Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, para

presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal da

Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos os

textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site.

Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas a

presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal e

contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem.

Saudações Capoeirísticas

Luciano Milani

Editor Portal Capoeira

Ministério das Relações Exteriores

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A capoeira é uma das expressões mais características da cultura brasileira. É comum encontrarmos defi nições de que o “jogo da capoeira” consiste numa atividade esportiva, praticada em clubes, academias ou nas ruas, atividade sem regras fi xas, mas que segue um protocolo característico, com música própria, no qual o instrumento musical que comanda o desenvolvimento do jogo e da roda é o berim-bau. Trata-se, não obstante, de uma defi nição que reduz a prática da capoeira a seus aspectos puramente esportivos, preterindo todas as suas demais dimensões presentes na sociedade brasileira. O intuito desta publicação é justa-mente expor os elementos da capoeira que transcendem a atividade física, abordando as signifi cativas implicações que sua prática engendra em diversas áreas da vida social, razão pela qual pode ser considerada como uma das mais complexas manifestações culturais brasileiras.

Os aspectos mítico-religiosos da capoeira, por exemplo, integram uma dimensão do “sagrado”, marcante no Brasil, permeando as crenças, os modos de vida, os sonhos e as lutas de sua sociedade. Evidentemente, trata-se, como bem defi niu Sérgio Buarque de Holanda, de uma religiosidade intimista e familiar, transigente a diversas contribuições espirituais e paradigmática da cordialidade que esse autor atribuiu ao brasileiro. Desse modo, o componente de magia que reveste o universo da capoeira, embora proveniente do imaginário popular, expressa o vasto campo de signifi -cados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações com o sagrado, assim como muitas das manifestações e tradições da cultura popular no Brasil.

Também o léxico da capoeira revela um pouco da re-lação idiossincrática do brasileiro com o meio ambiente. Com efeito, os nomes de movimentos e golpes da ca-poeira remetem, freqüentemente, a elementos da natu-reza, denotando a forte relação dessa prática com a ob-servação do meio ambiente. Outro exemplo é a própria etimologia do termo “capoeira”, que, de origem indígena, signifi ca “mata extinta”.

Ademais dos aspectos sociais, pela história da capoei-ra revelam-se também determinados aspectos signifi cati-vos da história do Brasil. As mutações ocorridas no jogo da capoeira refl etem muitas das transformações ocorridas no país nos últimos séculos. Nesse sentido, a abordagem histórica não poderia deixar de fora comentários sobre a repressão da capoeira, verifi cada sobretudo ao longo do século XIX e início do XX. A despeito das iniciativas para

re-primi-la, a capoeira superou todos os óbices que lhe foram impostos. Talvez isso tenha ocorrido justamente devido ao fato de se tratar de uma manifestação cultural ampla e profunda da índole brasileira, não sendo, por conseguinte, elemento de fácil repressão.

Produto da cultura popular brasileira, a capoeira era vista com certas reservas pela elite, que a associava à ba-dernagem, à vadiagem e à ausência dos bons costumes. Nesse sentido, é interessante notar que a capoeira é atual-mente utilizada para resolver mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora. Com efeito, a capoeira tem se mostrado excelente instrumento de inclusão social. Isso se deve, em boa medida, ao fato de que as atitudes dos capoeiristas na roda privilegiam a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos, num constante exercício de humildade e paciência.

Em 2007, o Ministério das Relações Exteriores teve oportunidade de patrocinar a realização de mais de 50 eventos de capoeira em todos os continentes. Essa expan-são da capoeira para outros países tem provocado um inte-ressante processo de fortalecimento e de dinamização de sua prática. Existem, atualmente, diversos mestres estran-geiros que jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros. Desse modo, talvez não seja exagero dizer que, embora a capoeira seja uma manifestação cultural originada no Bra-sil, e carregue, portanto, símbolos inquestionáveis de brasi-lidade, sua prática já é tão comum em âmbito internacional que se constitui em mais uma contribuição brasileira para o patrimônio cultural da humanidade. Prova disso são algu-mas das ilustrações dessa publicação – fotografi as de Pier-re Verger e desenhos de Carybé, ambos estrangeiros, mas que, por meio de sua arte, revelam ter apreendido adequa-damente as peculiaridades da capoeira.

Como anexo da presente edição da coleção Textos do Brasil, há um trecho do documentário “Mestre Bimba: a capoeira iluminada”, gentilmente cedido pela Lumen Pro-duções. Inspirado no livro “Mestre Bimba: Corpo de Man-dinga”, de Muniz Sodré, o fi lme apresenta depoimentos de antigos alunos e imagens, inéditas no cinema, da trajetória de vida de uma das principais referências do universo da capoeira. Desse modo, ao leitor que ainda não teve oportu-nidade de presenciar uma roda de capoeira, é apresentada uma amostra de seus movimentos, música e ritual. Quiçá a publicação e o documentário o incitem a tomar parte no fascinante mundo da capoeira...

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

A CAPOEIRA DEU A “VOLTA DO MUNDO”, LITERALMENTE. A PRÁTICA DE ESCRAVOS AFRICANOS E

CRIOULOS, DOCUMENTADA DESDE O FINAL DO PERÍODO COLONIAL E DURANTE O IMPÉRIO, VIROU

UMA BRINCADEIRA MASCULINA DAS CAMADAS POPULARES NA REPÚBLICA VELHA.

TRANSFORMOU-SE EM ESPORTE A PARTIR DA DÉCADA DE 1930 E, COMO TAL, PASSOU A TRANSFORMOU-SER PRATICADA POR

JOVENS DE AMBOS OS SEXOS E DE TODAS AS CLASSES SOCIAIS NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970. A

PARTIR DA DÉCADA DE 1980, COMEÇOU A EXPANDIR-SE PELO MUNDO, SENDO PRATICADA HOJE

POR CENTENAS DE MILHARES DE PESSOAS NOS CINCO CONTINENTES.

Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

A percepção da capoeira também mudou radicalmen-te. De ofensa contra a ordem pública, passível de correição imediata com açoite, e de costume bárbaro de negro, obs-táculo ao progresso que precisava ser erradicado, passou a ser vista como folclore exótico, digno de preservação e matriz de uma luta genuinamente brasileira. Mais recente-mente, cresceu a enfâse sobre a dimensão cultural da arte, que está na iminência de ser declarada patrimônio imate-rial do Brasil e da humanidade. A globalização da capoei-ra tcapoei-ransformou-a numa expressão bcapoei-rasileicapoei-ra daquilo que o sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou cultura internacional-popular.

Desde os anos 1980, a capoeira tornou-se também campo de refl exão acadêmica, em que se entrecruzam pesquisas de mestrado e doutorado realizadas, no Brasil e no exterior, em áreas como antropologia, história, socio-logia, ciências da educação e educação física. Os próprios grupos de praticantes espalhados pelo Brasil e pelo mundo discutem os estudos sobre capoeira em círculos de debate ou nos eventos que organizam. Além da esfera estritamen-te acadêmica e do universo próprio da arestritamen-te, a capoeira está cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais, desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios de publicidade.

A geração de capoeiristas que se formou a partir dos anos 1980 está, de fato, participando de uma transição fundamental na história dessa arte. Se os atuais pratican-tes se acostumaram a ouvir de seus mestres e professores histórias sobre perseguição, rodas interrompidas pela polí-cia e correrias nas praças e festas de largo, a realidade que passaram a viver é, regra geral, completamente diferente. A capoeira tem-se inserido nas instituições e no contexto político mais amplo por muitas vias, alterando dramatica-mente sua prática e seu signifi cado. Este cenário acelerado de mudança traz novos desafi os tanto para os capoeiristas quanto para o Estado e os produtores culturais.

A FORMAÇÃO DO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO DA CAPOEIRA. Voltemos um pouco no tempo, para explicar melhor a emergência da capoeira contemporânea. No início dos anos 1970, os capoeiristas ainda tinham algo de exó-tico. A própria capoeira era vista como uma manifestação cultural que buscava se afi rmar como esporte, cujo lugar “natural” seriam as comunidades mais pobres e periféricas, de população predominantemente afrodescendente. Em instituições mais elitizadas, a capoeira ainda causava estra-nheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas para essa prática. Era necessário, portanto, um grande esforço de “organização”, dando continuidade à trajetória iniciada pelos capoeiras da primeira metade do século XX.

Assim, as décadas de 70 e 80 se caracterizam como a época dos grandes projetos relacionados à capoeira, a maioria deles com algum grau de pioneirismo (embora houvesse muitas e importantes iniciativas isoladas

anterio-Além da esfera estritamente acadêmica

e do universo próprio da arte, a capoeira

está cada vez mais presente em muitas

outras esferas sociais, desde os palcos de

teatro e salas de cinema aos anúncios de

publicidade.

Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil

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res): capoeira na escola, na universidade, para portadores de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em educação física, em institutos de reeducação de menores infratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e como objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literatura sobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes, em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa proposta aqui enumerá-los. O importante é destacar esse momento de mudança na história contemporânea da ca-poeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira conquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e ob-teve reconhecimento de vários órgãos governamentais li-gados ao esporte e à educação. No início, as competições de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades de luta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-a a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se che-gando a formas mais elaboradas e completas de avaliação dos capoeiristas e as competições fi caram muito pareci-das com as próprias ropareci-das de capoeira. Convém lembrar o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para a construção de uma visão mais global da capoeira.

É importante destacar que os anos 1980 foram também a década da expansão nacional dos grandes grupos de ca-poeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossa arte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que

mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essa forma de organização contribui para preservar a diversidade e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento cole-tivo da arte como forma de resistência cultural.

Outra tendência importante, a partir do início dos anos 1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mes-tres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de ca-poeira angola, que ganharam muito espaço à medida que a comunidade da capoeira começava a questionar os cami-nhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetória de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros de prática mais tradicionais, que se refl etiu nas linguagens próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação musical e até mesmo na abordagem histórica dos

pesqui-(1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escola fundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensino constituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupos pequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência, ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição de professor, por razões profi ssionais. Essas circunstâncias modifi caram profundamente o signifi cado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, o nome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno de Pastinha), atualmente o praticante se identifi ca pelo grupo do qual faz parte.

(2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regime militar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-se a abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”.

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

sadores, que passaram a acentuar as origens africanas e buscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a lad-ja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte, passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do processo de formação da capoeira, inserindo-a na história da resistência dos africanos escravizados e de seus descen-dentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava ser tratada como um esporte, mas que a arte não poderia ser reduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abor-dagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos anos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” pas-saram defi nitivamente a fazer parte do vocabulário comum dos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que ti-nham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais fun-cionais e fáceis de afi nar, voltaram a preferir os tambores trançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva – como cultura, e não como modalidade esportiva – que a

capoeira ganha o mundo nos anos 1990. Passada a fase da afi rmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se um fenômeno cultural de massa em escala mundial.

Passou-se do perfi l aventureiro do capoeirista que ia arriscar a vida no exterior nos anos 1970 para uma visão estratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmen-te não há grupo consolidado no Brasil que não atualmen-tenha os seus representantes sediados no exterior. A capoeira é fa-cilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grande cidade do mundo, com poucas exceções. Já é possível ver, com certa facilidade, professores autóctones, formados por brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse é o desafi o que se coloca para nós, estudiosos e praticantes: compreender a nova inserção da capoeira como fenôme-no incorporado à cultura internacional-popular, em que em alguns momentos se destacam suas raízes brasileiras ou sua inserção no mercado de consumo e, em outros, se

va-Esse, sem dúvida, foi o passo que mais

se destacou na história contemporânea

da capoeira: a consolidação da lógica da

organização na forma de grupos, em que

o professor ou mestre que se forma e

organiza sua escola procura vincular-se a

uma instituição já reconhecida no mercado.

Foto: Lilia Menezes

Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil

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loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de crítica à cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essa expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura globalizada, mas também na sua lógica interna, que refl ete essas contradições.

OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. A modernização e a desportivização da capoeira a partir da década de 1930 resultou na formação de dois estilos distin-tos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criado pelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo de alunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baia-na”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham de-safi ando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimba selecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas, eliminou outras que considerava ultrapassadas e integrou alguns golpes novos – geralmente de grande efi cácia – à sua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o

de-senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino na academia – treinos com uniforme – e a imposição de uma disciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande su-cesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilo não logrou unanimidade entre os capoeiras baianos.

Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 por Mestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueles elementos da antiga capoeira que a regional decidiu des-cartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento, a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (co-meçando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba desta-cava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resga-te da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando, dessa forma, a continuidade em relação às origens africa-nas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – de resto, característica dos angoleiros até hoje – não resta

dú-vida de que representa um estilo novo, que se defi niu não somente a partir da continuidade com a capoeira baiana como se praticava na década de 1930, mas também a par-tir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se, por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angolei-ros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem na capoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lem-brar que a capoeira baiana antes da modernização não era homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um conjunto específi co de movimentos, ritmos e rituais. Tanto que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar, Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características bastante distintas da forma ensinada por Pastinha.

Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolí-tica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitou que posteriormente cada grupo ressaltasse elementos di-versos e mesmo confl itantes da “tradição”. Por outro lado, convém salientar que ambos os estilos – regional e angola

– coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga, transferindo a prática da capoeira da rua para uma aca-demia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos, expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recru-tando novos segmentos da população brasileira: crianças e jovens da classe média e mulheres.

A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir desses dois estilos baianos complicou ainda mais a ques-tão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio de alunos já formados pelos mestres baianos que se fi xaram em outros estados, sendo que a grande maioria migrou para cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de ou-tros estados que só receberam instrução ocasional desses mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter auto-didata da prática encorajava mudanças de estilo, como se pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Além do mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias

ci-Foto: Acervo Luiz Renato Foto: Acervo Luiz Renato

Capoeira Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

dades tradições locais de capoeira. A importância dessas formas locais para a formação dos estilos contemporâneos é muito controversa, sobretudo no caso do Rio de Janeiro, onde professores como Sinhozinho já ensinavam um estilo de capoeira sem música antes da chegada dos baianos.

Atraídos pela esperança de melhorar suas condições de vida, muitos baianos migraram para as cidades do Sudeste entre 1950-1980 (depois dessa data, parte desse fl uxo des-tinar-se-á ao exterior). Entre os capoeiristas-migrantes havia mestres, alunos formados e praticantes amadores. Fora do Nordeste, a prática da capoeira virou parte da cultura especí-fi ca dos migrantes, e como tal, incorporou referências nostál-gicas à Bahia que ainda caracteriza a arte até hoje. A situação de exílio criou laços de solidariedade entre capoeiristas de estilos diferentes, a ponto de enfraquecer a oposição regio-nal-angola. Houve muitos casos em que professores e mes-tres de angola e regional ensinavam e criavam grupos juntos, particularmente em São Paulo (Cordão de Ouro etc.). Mas, de maneira geral, o estilo angola, mais dependente de todo um referencial cultural afro-baiano de mais difi cil assimilação pe-los novos grupos de praticantes, não se logrou impor duran-te esses anos. Predominou um estilo de jogo mais próximo da forma ensinada por Bimba, mesmo que fosse sem a sua didática (como o treino das oito seqüências).3 A música dos grupos fora da Bahia tampouco era típica da regional. Em vez dos toques de berimbau ensinados pelo Mestre Bimba, trei-nava e jogava-se sobretudo ao ritmo de São Bento Grande de Angola.4 Por essa razão a geração seguinte dos mestres vivendo fora da Bahia reduziu a ênfase na oposição entre an-gola e regional, freqüentemente argumentando que “a capo-eira é uma só”. Essa postura “ecumênica” tinha e tem várias vantagens. Primeiro, amenizava confl itos entre capoeiristas, em um momento em que ainda era necessário convencer a opinião pública de que sua arte não era “coisa de marginal”. Segundo, ia ao encontro de toda uma corrente nacionalista que tinha como objetivo fazer da capoeira não somente um esporte, mas a luta brasileira, expressão privilegiada da iden-tidade nacional.

Sob os auspícios do regime militar instalado em 1964, criou-se a Federação Paulista de Capoeira, em 1970, e o de-partamento de capoeira da Confederação Brasileira de Pugi-lismo (CBP), em 1972, que reunia as lutas que não possuíam confederações específi cas. Os grupos-membros se compro-metiam a implementar regras estabelecidas pela Federação, que iam da utilização obrigatória do uniforme, da saudação

(3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” confi guram uma das mais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestre baiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas e atuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional. As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para o ensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado. (4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbau

tem um importante valor simbólico signifi cativo na roda. Os toques do berimbau expressam algumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade e outras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e “de regional”.

Em outras palavras a transformação da

capoeiragem – entendida aqui como o

contexto social da capoeira – também

impactou o conteúdo da arte. Acreditamos,

por isso, que é preciso, além da clássica

oposição binária angola–regional,

distinguir vários estilos de capoeira,

dependendo dos aspectos enfatizados: luta,

tradição, cultura, brincadeira ou dança.

Ministério das Relações Exteriores

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inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas de capoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Se essa evolução facilitou a integração da capoeira em ativida-des escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por con-seqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou, por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristas comprometidos com o ideal de resistência.

Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somen-te se recusaram a aderir à federação, mas buscaram de-marcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo, sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéis de graduação alternativos. Nesse processo, o resgate das tradições afro-baianas começou a assumir papel importan-te, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeira angola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultu-ra afro-bcultu-rasileicultu-ra pela qual lutava o movimento negro. Esse processo também favoreceu o fortalecimento da capoeira angola, que havia passado por longa fase de declínio marca-do pela extinção de toda uma geração de antigos mestres baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). A partir da década de 1980, esse estilo passa a formar novos mestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mas também no exterior. A partir de então, ocorrem tensões en-tre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagem direta com um mestre baiano, e estilos que poderiamos denominar de “angolizados”, por incorporar parte das ca-racterísticas estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonar outras características suas, consideradas “regional” pelos primeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarem a reivindicar a condição de angoleiros, qualifi cativo que lhes é negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o “núcleo duro” da angola.

A situação torna-se ainda mais confusa quando nos referimos ao qualifi cativo “regional”. Para os angoleiros em geral, todos os demais estilos são classifi cados, indis-tintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo que assume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas. Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros di-retos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestre sem outras grandes inovações, igualmente proclamam que só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, mui-tos mestres de capoeira que não pertencem a nenhum desses dois extremos ou estilos “puros” começaram a se autodefi nir como fazendo capoeira “contemporânea”, ou afi rmar que praticam os dois estilos (o que se afi gura van-tajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vez mais competitivo). Também é comum o uso da expressão “angonal” como termo depreciativo pelos puristas, para desqualifi car quem está “em cima do muro”, mas reivindi-cado abertamente por outros.

Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, não esclarece muito de que capoeira se trata, dado que há mui-tas formas distinmui-tas na atualidade, a começar pela angola e regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu

contexto original e seu ingresso em academias, escolas, universidades, palcos de dança, competições de luta livre e até salas de terapia multiplicou sentidos, signifi cados, for-mas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a transformação da capoeiragem – entendida aqui como o contexto social da capoeira – também impactou o conte-údo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da clássica oposição binária angola-regional, distinguir vários estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados: luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.

Foto: Embratur

Capoeira Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Esse complexo cenário, que neste texto apenas esboçamos, coloca para a nova geração de praticantes e, de resto, para os dirigentes de grupos, academias e gestores públicos, uma série de ques-tões fundamentais para o desenvolvimento da capoeira. Se as gerações anteriores precisaram lidar com um possível desaparecimento da capoeira – uma vez que isso, de fato, ocorreu com outras manifestações brasileiras de danças de combate ou lutas viris, como o batuque, a pernada carioca e a tiririca – os dilemas que se apresentam no cenário atual são de ordem completamente diferente. A capoeira está presente no dia-a-dia dos brasileiros e difundiu-se como um dos principais símbolos da cultura brasileira no exterior. Nessa trajetória de massifi cação e expansão internacional – às vezes como desporto, outras vezes como manifestação predominantemente cultural – constroem-se e reforçam-se diversos estereótipos. Como em qualquer outro proces-so relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas.

Por desafi os contemporâneos entendemos os temas que, em nossa opinião, precisam fi gurar na agenda de discussões sobre a capoeira nos tempos atuais, seja no debate sobre a atuação dos capoeiristas no exterior, seja em termos do plane-jamento da atuação governamental envolvendo os diversos aspectos relacionados à prática, ensino e à divulgação da arte.

Uma das questões que identifi camos como fundamen-tais no debate contemporâneo diz respeito à transmissão das tradições e dos conhecimentos ancestrais da capoeira. Essa temática materializa-se na discussão sobre quais são as condições exigíveis para que um praticante da arte se torne professor ou mestre. Afi nal, a noção tradicional de mestre – indivíduo reconhecido pela comunidade e portador de saberes ancestrais, transmitidos por oralidade e pela convi-vência cotidiana e prolongada com o discípulo – vem sendo substituída pelo capoeirista cuja condição de mestre passa a ser outorgada por determinado grupo, federação ou alguma entidade de caráter mais ou menos ofi cial. A comunidade

Nessa trajetória de massifi cação e

expansão internacional – às vezes como

desporto, outras vezes como manifestação

predominantemente cultural –

constroem-se e reforçam-constroem-se diversos estereótipos.

Como em qualquer outro processo

relacionado à dinâmica cultural, há ganhos

e perdas.

Foto: Lilia Menezes

Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil

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da capoeira está muito longe de um consenso a respeito do assunto. Embora as principais escolas ou grupos de capoeira obtenham sucesso na intenção de legitimar os mestres (te-mos, portanto, o mestre que se fi rma em virtude do peso da entidade que representa, além de suas qualidades e saberes individuais), há todo um universo de prática da capoeira que se encontra à margem desses espaços de convívio da arte, onde não há referências claras no que concerne à formação de um professor de capoeira.

Esse tema se torna ainda mais complexo quando trata-mos da expansão internacional da capoeira. Afi nal, há uma tendência natural das entidades e indivíduos que acolhem o capoeirista brasileiro no exterior no sentido de querer co-nhecer suas referências no Brasil. Não há solução simples para a questão. Algumas alternativas propostas e bastante discutidas no âmbito da capoeiragem apresentam mais problemas do que soluções, como, por exemplo, autori-zar determinada federação ou entidade governamental a implementar um cadastro “ofi cial” de mestres ou pessoas autorizadas a ensinar a arte. O tema precisa ser aprofun-dado, e caminhos precisam ser defi nidos, ainda que não seja viável defi nir critérios aplicáveis a todos os estilos para a obtenção do grau de professor ou mestre. Os mestres pioneiros na expansão da capoeira pelo exterior sempre manifestaram preocupação com a chegada de capoeiris-tas, muitas vezes desconhecidos no Brasil e sem qualquer experiência de ensino, que estabelecem trabalhos e, muitas vezes, se auto-intitulam mestres. Esse fenômeno, da uti-lização indevida dos títulos de professores ou mestres, já foi uma preocupação no Brasil, mas, atualmente, a difusão da capoeira e a formação de um mercado próprio, com o esclarecimento da população, coibiu signifi cativamente a atuação de professores sem a devida qualifi cação. O mes-mo, entretanto, ainda não ocorre no exterior.

À falta de uma discussão aprofundada sobre a questão, formou-se um cenário complexo, em que alguns atores se

destacaram.5 É importante lembrar a intensa discussão ini-ciada no fi nal da década de 90 e, com menor ênfase, ainda em curso, sobre a atuação do professor de educação física no ensino da capoeira. A lei federal nº 9.696, editada em 1998, regulamentou a atuação do profi ssional de educação física e criou os respectivos conselho federal e conselhos regionais. Ocorre que, em virtude de um entendimento am-pliado – e conforme se verifi cou posteriormente, equivoca-do – equivoca-do conceito de “atividade física”, procurou o Conselho Federal disseminar a concepção de que, a partir da edição da lei, a capoeira estaria entre as atividades cujo ensino se-ria de exclusividade do professor de educação física.

Chega-se, assim, a outro tema que, em nossa avaliação, confi gura um importante dilema da capoeira nos tempos atuais, concernente à preservação da diversidade cultural da arte. Ora, por mais que possamos considerar a capoei-ra uma linguagem corpocapoei-ral fundamentada em elementos universais, há diferentes formas de compor seus elemen-tos, produzindo “sotaques” diferentes. E não estamos nos referindo aqui apenas à distinção angola-regional. Estamos remetendo a diferenças internas nessas grandes escolas da capoeira, que vão das características técnicas do jogo às concepções sobre rituais e padrões éticos que orientam o capoeirista. O desenvolvimento dos grandes grupos de capoeira, com sua organização empresarial e sua estraté-gia agressiva de expansão para o interior do Brasil e para outros países, chegou a causar apreensão nos estudiosos quanto à possibilidade do desaparecimento das ricas ma-nifestações da capoeiragem nas comunidades do interior do Brasil e nas periferias das grandes cidades. Dessa for-ma, a ação das entidades ligadas à difusão da cultura e, principalmente, dos órgãos governamentais que atuam na área, precisa pautar-se pelo princípio de que não há uma capoeira apenas, mas capoeiras, no plural. Preservar essa diversidade e difundir uma cultura de tolerância é preservar um cenário em que cada manifestação particular da capo-eira encontra seu lugar.

Em muitos casos, preservar a diversidade da capoeira envolve assegurar aos capoeiristas condições para que possam viver de seu ofício. E isso se torna, no Brasil atual, particularmente complexo no caso de mestres idosos que vivem nos tradicionais centros da capoeira nacional (cida-des como Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e também em pequenas localidades do interior, onde sobrevivem mani-festações tradicionais da capoeira. Consideramos esse um dos importantes desafi os a serem enfrentados na

imple-(5) É importante observar que, pela legislação em vigor no Brasil, não há exclusividade assegurada às entidades de organização esportiva como federações ou confederações. Não se pode, portanto, considerar tais entidades “ofi ciais”, no sentido de terem maior respaldo do poder público do que quaisquer outras no que concerne à organização e representação dos praticantes de uma determinada modalidade. Pode haver para uma mesma modalidade esportiva – e, de fato, em muitos casos há – mais de uma federação por Estado ou mais de uma confederação de âmbito nacional. Isso sem falar nas ligas e outros tipos de associações, que, em relação ao tema aqui abordado, têm as mesmas prerrogativas na representação dos praticantes que federações. No caso da capoeira, alguns grupos constituíram suas próprias federações, confederações ou ligas.

Foto: Alexandre Gomes

Capoeira Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi

os Contemporâneos

da Capoeira

mentação de uma política pública de valorização da capo-eira como patrimônio cultural brasileiro.

Nesse sentido, cumpre registrar a importância do pro-jeto Capoeira Viva, do Ministério da Cultura (MinC), lançado 2006, no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover a ca-poeira e lançar as bases de uma iniciativa governamental consistente para o setor.6 O projeto consiste basicamente no apoio, mediante regras publicadas em edital de ampla divulgação, a projetos relacionados à capoeira em diversas áreas, da organização de acervos documentais a ações relacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres. Outras ações do governo federal foram lançadas anterior-mente, e algumas remontam aos anos 1980. Entretanto, o que peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avalia-ção, é o esforço no sentido de assegurar a transparência na defi nição de critérios para a seleção de projetos a serem fi nanciados e a ampla divulgação de seus resultados. Dessa forma, tem-se, no início do século XXI, uma primeira ação governamental, de caráter sistêmico, relacionada ao desen-volvimento da capoeira.

Em relação ao importante movimento de resgate das tradições ancestrais da capoeira, gostariamos de salientar o caráter restrito da apropriação da memória histórica e de diversos outros saberes relacionados à capoeira. Infelizmen-te, o esforço na direção do aprofundamento das pesquisas sobre a capoeira não tem encontrado correspondência em ações de divulgação desses saberes para a comunidade de praticantes e para a sociedade em geral. Ou seja, a pes-quisa, que tem nos antigos capoeiras e nas comunidades algumas de suas principais fontes, acaba promovendo um deslocamento desses saberes, fomentando a produção de uma elite de grupos e de capoeiristas com formação aca-dêmica elevada, mas com pouca consciência acerca da im-portância da existência de mecanismos de democratização desses conhecimentos. Identifi camos aí mais uma frente de atuação do Estado como promotor da cultura popular e da cidadania, não somente no sentido de viabilizar a pes-quisa, mas de, junto com ela, criar as condições para que se fortaleça o ambiente em que ela se produz como expres-são da vida das comunidades.

Finalmente, é necessário discutir as possibilidades de apoio aos mestres e professores de capoeira no exterior. O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exte-riores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados, tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do Brasil. As embaixadas poderiam, entretanto, fortalecer seu papel de pontos de referência da cultura brasileira, pro-porcionando, bibliotecas e videotecas para os mestres e professores e demais interessados. Gostaríamos de sugerir, ainda, a criação de conselhos informais de capoeira, apoia-dos pelas respectivas embaixadas, nos países onde ela já alcançou expressão signifi cativa. Caberia a esses conselhos

(6) O sítio eletrônico do projeto se encontra no endereço: www.capoeiraviva.org.br

O Departamento Cultural do Ministério

das Relações Exteriores (MRE), por meio

de suas embaixadas e consulados, tem

assegurado apoio aos capoeiristas que

atuam fora do Brasil, mas entendemos que

esse suporte pode ser mais sistemático.

Ministério das Relações Exteriores

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opinar na hora de assegurar registro dos profi ssionais de ensino – sempre preservando a pluralidade dos estilos – ou contribuir para a transparência nas decisões e patrocínios que concernem à capoeira. Como já foi apontado no caso do Capoeira Viva, é necessário que o crescente fl uxo de fi -nanciamentos para a capoeira através das diferentes leis de incentivos culturais sejam submetidos ao controle social, garantindo o acesso aos editais e a fi scalização dos resulta-dos. Acreditamos que a capoeira e as políticas públicas que a apóiam podem, inclusive, servir de exemplo para a globa-lização de outras manifestações culturais brasileiras, o que já está ocorrendo de forma incipiente com as batucadas de samba e os maracatus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O processo de globalização da capoeira constitui-se em um momento privilegiado para a refl exão sobre a expansão da cultura brasileira pelo mun-do. Entendemos que, em um mundo marcado pela circu-lação da informação pela Internet em velocidade instantâ-nea, com recursos como os sítios de compartilhamento de vídeos (ferramenta amplamente utilizada pelos capoeiras de todo o mundo), não se pode pensar no papel do Brasil a partir de uma ótica essencialista. Ou seja, afi rmar a brasilidade da nossa arte pobrasilidade ser importante, mas não é mais sufi -ciente para garantir ao Brasil papel de destaque no mundo contemporâneo da capoeira.

O protagonismo do Brasil no universo atual da capoeira só pode se justifi car a partir de um conjunto de ações que, de fato, valorizem a cultura da capoeira como tradição e como fazer cotidiano, incorporado às diversas instâncias da socie-dade brasileira. Apenas assim, para além de ter o privilégio de sediar os mitos de origem e de ser o cenário em que ocor-reram os feitos dos grandes capoeiras do passado, o Brasil seguirá sendo reconhecido, em todo o mundo, como a fonte da memória histórica e de novas experiências relacionadas ao jogo, à musicalidade e ao ensino da capoeira.

Luiz Renato Vieira. Doutor em Sociologia da Cultura. Consultor Legislativo do Senado Federal na área de assistên-cia soassistên-cial e minorias. Mestre de Capoeira do Grupo Beriba-zu e coordenador do Projeto Capoeira Comunitária da UnB. Membro do Conselho de Mestres do Projeto Capoeira Viva (MinC). Autor do livro “O Jogo da Capoeira: Corpo e Cultura Popular no Brasil” (Rio de Janeiro: Sprint, 1998).

E-mail: luizrenatovieira@uol.com.br

Matthias Röhrig Assunção. Doutor em História. Profes-sor do Departamento de História da Universidade de Essex (Inglaterra) e professor visitante no Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Autor do livro “Capoeira. The History of an Afro-Brazilian Martial Art” (London:Routledge, 2005)

E-mail: matthias_capoeira@yahoo.com.br

Foto: Alexandre Gomes

Capoeira Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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As metamorfoses da capoeira:

contribuição para uma história da

capoeira

O PRESENTE ARTIGO DEDISE A UMA RECONSTITUIÇÃO DA TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA

CA-POEIRA E PROCURA IDENTIFICAR MOMENTOS DECISIVOS A PARTIR DOS QUAIS A CACA-POEIRA E O

CAPOEIRA ASSUMEM DISTINTOS PAPÉIS NA REALIDADE E NO IMAGINÁRIO SOCIAL. COMO

PON-TO DE PARTIDA, A INVESTIGAÇÃO REQUER A FIXAÇÃO DO CONCEIPON-TO DE CAPOEIRA, OU SEJA,

DEVE-SE CARACTERIZAR O QUE VEM A SER A PRÁTICA QUE É HOJE CONHECIDA COMO “JOGO DA

CAPOEIRA”. CONSISTE NUMA ATIVIDADE PRATICADA EM CLUBES, “ACADEMIAS” OU NA RUA, QUE

ENVOLVE TREINAMENTO FÍSICO COM VISTAS AO JOGO NA “RODA DE CAPOEIRA”. ESSE JOGO NÃO

TEM REGRAS FIXAS; OBEDECE, CONTUDO, A UM PROTOCOLO CARACTERÍSTICO, COM MÚSICA

PRÓPRIA, NO QUAL O INSTRUMENTO MUSICAL QUE COMANDA O DESENVOLVIMENTO DO JOGO

E DA RODA É O BERIMBAU. SE, POR UM LADO, A MÚSICA PÕE EM EVIDÊNCIA SEU CARÁTER

LÚ-DICO – TALVEZ O ASPECTO MAIS PERMANENTE ATRAVÉS DA HISTÓRIA – , POR OUTRO, EXPRIME

UM FORTE COMPONENTE DE DANÇA, QUE, NO ENTANTO, ENCONTRA-SE SUBORDINADO AO

PA-PEL DE ELUDIR E ENVOLVER O OPONENTE/PARCEIRO. ESSA FUNÇÃO, POR SUA VEZ, EVIDENCIA

O COMPONENTE DE LUTA, QUE IMPLICA CONTATO CORPORAL, MAS NÃO NECESSARIAMENTE

VENCEDOR E VENCIDO. ASSIM, INCORPORANDO ELEMENTOS DESPORTIVOS, MUSICAIS, DE

DAN-ÇA, DE ARTE MARCIAL E DE DIVERTIMENTO ENTRE AMIGOS, A CAPOEIRA CONSTITUI UMA DAS

MAIS RICAS MANIFESTAÇÕES DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA.

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As metamorfoses da capoeira:

contribuição para uma história

da capoeira

Deve-se reconhecer, entretanto, que a defi nição acima é historicamente defi nida. Sua aplicação indiscriminada – como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticado nos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identifi -cação das metamorfoses da capoeira e das transformações na forma de sua inserção na sociedade constitui o tema que, a seguir, se explora.

1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830). Há quem fale na prática da capoeira desde os tempos do Quilombo dos Palmares.1 A associação da capoei-ra com a história da resistência negcapoei-ra à esccapoei-ravidão é, com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo, por meio do qual os escravos se esqueciam momenta-neamente das agruras de sua condição, mas também um instrumento de luta para a conquista da liberda-de. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, não permite identificar a prática do jogo da capoeira entre quilombolas.2 Pode-se, no máximo, encontrar referên-cias que remontam à segunda metade do século XVIII, e num ambiente urbano.

O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dos tempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma fi gu-ra soturna, aventureigu-ra e astuciosa, que, no entanto, não deixava de reverenciar as imagens sacras dos oratórios públicos, então muito presentes na paisagem urbana da capital da colônia.3

Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia na antiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menos literário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Ma-cedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre:

Já no tempo do Marquês de Lavradio, em 1770, existia na pessoa de um ofi cial de milícias, o Tenen-te João Moreira, por alcunha “o amotinado”, que, dotado de prodigiosa força, de ânimo infl amado, talvez fosse o mais antigo capoeira do Rio de Ja-neiro, porque, jogando perfeitamente a espada, a faca e o pau, dava preferência à cabeçada e aos golpes com os pés.

Esta informação sugere que “o amotinado” teria sido um antecessor do célebre major Vidigal, homem de con-fiança do primeiro intendente de Polícia do Brasil, Con-selheiro Paulo Fernandes Viana, que fora nomeado pelo Príncipe Regente Dom João. Vidigal ficou imortalizado

(1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornal Movimento em 13.09.1976, citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira, p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, no fi lme

Quilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpes

de capoeira.

(2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988. (3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d.

(4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831, Primeira parte, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56.

A interpretação da obra dos cronistas

viajantes estrangeiros – que passaram a

nos visitar com maior freqüência a partir

da chegada da família real portuguesa

em 1808 – muito tem contribuído para a

reconstituição dos costumes e da sociedade

brasileira do período. Nesse sentido, parece

ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)

a primeira descrição da capoeira (1835).

Ministério das Relações Exteriores

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São Salvador

J. M. Rugendas, 1802 - 1858

como personagem das Memórias de um Sargento de

Milícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua

dis-cricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigal teve origem no seu infatigável combate aos quilombos, candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temida sessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6 reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavam a vida carioca.

Apesar de a primeira codifi cação criminal brasileira – o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especi-fi car os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoria de “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Ca-pítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identifi cado como integrante de grupos de bandidos, sem ocupação defi nida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguar de que forma esse estigma social de marginalidade se con-ciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravos e de negros.

A interpretação da obra dos cronistas viajantes estran-geiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, pare-ce ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira descrição da capoeira (1835):

(...) Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do ad-versário que desejam derrubar. Evita-se o ata-que com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro dege-nere em briga e que as facas entrem em jogo

ensangüentando-as.8

Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gra-vuras que retratam a prática da capoeira e que constituem, com razoável probabilidade, os mais antigos documentos iconográfi cos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada

São Salvador, a capital soteropolitana - vista de algum

pon-(5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28.

(6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfi co, Editora Itapuã, Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183.

(7) Cf. Rego, op. cit., p. 291

(8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940, p. 197.

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As metamorfoses da capoeira:

contribuição para uma história

da capoeira

to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfi m – ocupa o fundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo de três negros e quatro negras assiste à contenda de dois ou-tros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posi-ções dos contendores e da platéia. É de notar não só a presença de mulheres, como também o assédio de um dos assistentes sobre uma delas.

Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-se um grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírcu-lo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros. Aqui está representado o atabaque e um dos assistentes bate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo de comer para um ancião, todos parecem hipnotizados pelo ritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive uma que traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhe permite inferir que o cenário é urbano.

Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras apa-rece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese de que esse instrumento não estava, naquele momento, associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico, do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.

A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar de não conter de referências explícitas à capoeira, fornece por meio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações, subsídios importantes para a reconstituição histórica da ca-poeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do fi lho

de um rei negro o artista francês escreve:

A procissão é aberta pelo mestre-de-cerimônias. Este sai da casa do defunto fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obs-trui a passagem; erguem-se o negro foguetei-ro, soltando bombas e rojões e três ou quatro negros volteadores, dando saltos mortais ou fa-zendo mil cabriolas para animar a cena.10

(9) Cf. O berimbau-de-barriga e seus toques, Kay Shaffer, MEC/FUNARTE/INF, Monografi as folclóricas, 1981.

Vale a pena frisar que em nenhuma

destas gravuras aparece o berimbau – o

que permite a formulação da hipótese de

que esse instrumento não estava, naquele

momento, associado à capoeiragem.

9

Um

detalhe de cunho técnico, do ponto de vista

da luta, merece, ainda, ser observado: os

punhos cerrados dos capoeiras na segunda

gravura.

Enterro do fi lho de um rei negro J. B. Debret, 1768-1848

Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil

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É interessante constatar a presença num cortejo fú-nebre desses “negros volteadores”, cujos movimentos acrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo da capoeira, seja como “fl oreios”, para eludir o oponente, seja como intimidações, ou, ainda, como demonstrações de ha-bilidade e destreza físicas de apelo turístico.

Na aquarela O negro trovador, Debret representa um ancião cego que toca o urucungo ou berimbau.

Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil em histórias de amor, terminam sempre suas in-gênuas estrofes com algumas palavras lascivas acompanhadas de gestos análogos, meio infalível para fazer gritar de alegria todo o auditório ne-gro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos agudos, contorções e pulos, mas cuja explosão é felizmente momentânea, pois logo fogem para outros lados a fi m de evitar a repressão dos solda-dos da polícia que os perseguem a pauladas.10

Corroborando a hipótese formulada acima, a partir das gravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisó-ria, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelo menos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreen-dente uma vez considerada a visceral relação que prevale-ce entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930.

Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-se conceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas. Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfi ca, como um diver-timento de negros (portanto, de origem africana), praticado a céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução por viajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não se pode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte persegui-ção policial, uma vez que seus praticantes, em geral escra-vos ou negros libertos, eram identifi cados como assaltantes e baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrar crimes e atentar contra a ordem pública.

2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOS POLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguição que sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo da Regência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se so-cialmente. De alguma maneira e em algum momento dei-xou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. É claro que são negros e mulatos os que compõem a maior parte da galeria de capoeiristas famosos do século passado. Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte.

De fato, a incapacidade da repressão para acabar com a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra,

(10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo, 1989, tomo II, p. 164-165.

O negro trovador J. B Debret, 1768 - 1848

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As metamorfoses da capoeira:

contribuição para uma história

da capoeira

(11) Lima Campos, “A Capoeira”, artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apud Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194.

(12) Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX, cf. de Maurício de Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988. (13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,

1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280.

como o candomblé) permitiu sua difusão para outras cama-das da população, ainda durante o Império. No centro des-se contraditório processo de criminalização e alastramento encontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto se referiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase de apogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a

capoei-ra chegou ao auge, foi verdadeicapoei-ramente, aquela época, a do

seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11

Por um lado, o fl orescimento das maltas se relaciona com o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, que foi acompanhado de um forte incremento demográfi co provocado pela imigração, princi-palmente nas camadas mais pobres da população livre.12 Por outro lado, o que explica, em grande parte, a organização das maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamento político para fi ns eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguinte comentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...)

Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos governam, subiram”.13

A julgar pelas informações de Lima Campos e de Melo Morais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma es-trutura disciplinar interna que não dispensava uma rígida hierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Esses agrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bair-ros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como a partir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha).

Em um determinado momento, segundo Lima Campos, ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes “nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse político na preservação das maltas consistia na sua utilização para “serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presença dos capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em ra-zão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações” se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais e os conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se a dissolução de comícios, o roubo ou falsifi cação de urnas elei-torais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoais contra políticos do partido rival. Assim, num esquema político de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas podiam ser considerados “profi ssionais”: o ingresso em uma delas representava alternativa de sustento para os membros da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portan-to, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes de capoeiras que integravam as maltas.

Assim, num esquema político de eleições

fraudulentas, os serviços das maltas

organizadas podiam ser considerados

“profi ssionais”: o ingresso em uma delas

representava alternativa de sustento para os

membros da numerosa classe de homens

livres e pobres. Era, portanto, na ampla

camada de desocupados, vadios e biscateiros

onde se iam buscar, de uma maneira

geral, os contingentes de capoeiras que

integravam as maltas.

Detalhe

Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil

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(14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores de 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso

se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco”, apud Magalhães Júnior, op.cit.,

p. 185.

(15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376; vol. 2, 63-64, 183, 228.

(16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografi a de Christiano Jr., Paulo Cesar de Azevedo e Maurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, fi gura 71.

(17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228, apud Rego, op.cit., p.280-281.

Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capo-eira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões gra-ças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras. Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, men-ciona “vultos eminentes na política, no professorado, no

Exército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos da

capoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14 A conivência das autoridades com as atividades das maltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação da Guarda Negra, que era uma espécie de associação secre-ta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa

Isa-bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governo de João Alfredo e atuou como força paramilitar contrária às mobilizações do ascendente movimento republicano. Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados pelo fi m da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seus membros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de or-ganização e mobilização devia-se à estrutura interna das maltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros, que transitavam socialmente entre a criminalidade e a or-dem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idea-lizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável pela dissolução de vários comícios e reuniões dos republicanos e representava uma alternativa desesperada do governo para salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos que culminaram com a proclamação da República, a denúncia de que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria se-ria atacado pela Guarda Negra tese-ria servido como pretexto para o início da insubordinação militar.15

Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode deixar de fazer uma referência especial a uma fotografi a de Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que re-produz em estúdio o que seria uma lição particular de capoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro na capoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentos da “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão da técnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, alguma espécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/ discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interior das maltas, caso confi rmada, poderia contribuir para fun-damentar essa hipótese.

Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupa-vam um lugar ambíguo no imaginário social da época: ao mesmo tempo em que aterrorizavam a população com as badernas e pancadarias que promoviam, eram admirados pelas façanhas realizadas contra os represen-tantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre esta discussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônica de Machado de Assis:

(...) que estou em desacordo com os meus con-temporâneos, relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e valor, opinião unânime e respeitada como dogma. Ninguém vê que é simplesmente absurda.17

Lição particular de capoeira

Capoeira As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

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As metamorfoses da capoeira:

contribuição para uma história

da capoeira

(18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar, Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda., Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138.

(19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografi a da Cia. Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional, tese de Mestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991.

Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, com nostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidade moral uma vez que não usava navalha (sic), não batia em homem caído e, caso defendesse causas nobres, como o abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercená-rio (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Neto relata o terror que produziam na própria polícia.18

3. ANOS DE REPRESSÃO E ESQUECIMENTO (C. 1890-1930). A constante freqüência dos capoeiras na crônica policial das últimas décadas do Império levou a que recebessem um tratamento diferenciado por parte da le-gislação penal brasileira. Com efeito, o Código Penal da Re-pública dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, estabelecia em seu Capítulo XIII:

Dos Vadios e Capoeiras / Artigo 402: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denomina-ção de capoeiragem; andar em correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou de-sordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: / Pena: de prisão celular de dois a seis meses. / Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças se imporá a pena em dobro (...).19

Tem-se, assim, juridicamente tipifi cada, a criminalização da capoeira – uma capoeira intimamente ligada à margina-lidade e que estava caracterizada tanto como uma técnica de luta corporal quanto pelo manuseio de armas como na-valhas, facas e porretes.

Ainda antes da entrada em vigor, por decreto, do Có-digo Penal, a capoeira seria alvo de ferrenha perseguição ofi cial. Na atmosfera de instabilidade política que marcava os primeiros momentos da República, o Marechal Deodo-ro da Fonseca nomeou para a chefi a de Polícia o Doutor Sampaio Ferraz, que exercera o cargo de promotor públi-co e fora, públi-como jornalista, violento opositor da Monarquia. Ao entregar-lhe o cargo, o Presidente conferiu-lhe amplos poderes para erradicar da capital todos os desordeiros, a começar pelos bandos de capoeiras.

Assim, Sampaio Ferraz deu início a formidável campa-nha contra as maltas de capoeira. Para que a cidade efeti-vamente se livrasse daqueles bandos, a pena aplicada foi a da deportação. Segundo José Murilo de Carvalho, esta prá-tica fora iniciada no fi nal do Império, com a deportação de

A constante freqüência dos capoeiras

na crônica policial das últimas décadas

do Império levou a que recebessem um

tratamento diferenciado por parte da

legislação penal brasileira.

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