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A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à

medida que para ser ensinada, praticada,

transmitida, construída, ela precisa ser

compartilhada, dividida, multiplicada.

A internacionalização

da capoeira

É certo que existe uma cobrança prévia por parte dos mestres e professores brasileiros e até mesmo dos discípulos em relação aos professores não-brasileiros que, de uma for- ma ou de outra, se sentem com mais responsabilidade em dominar os fundamentos da capoeira. O depoimento de um professor, que ministra aulas na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, ilustra esses dilemas:

Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu te- nho sempre algo mais a provar. Antes de verem- me jogar ou de me verem cantar, pensam que eu vou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar uma capoeira sem qualidade. Eu já andei em alguns sítios que nem sequer me dignaram apresentar como professor, apenas como Arroz Doce, de Portugal. Mas penso que o que diz respeito a mim em relação às outras pessoas, mal começa a roda, esquecem tudo isso. São brasileiros, são europeus. Capoeira é capoeira. Uma roda é uma roda. Eu vibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros. Isso tem uma importância muito grande na minha vida (Professor Arroz Doce, comunicação pessoal, Florianópolis-SC, 26 de novembro de 2003).

Da análise desse intrincado e rico movimento de inter- nacionalização da capoeira, é possível formular três consi- derações fundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimos dez anos, grande densidade, visibilidade e poder simbólico, e transformou-se em um dos principais cartões postais do Brasil no exterior; b) o signifi cado que os sujeitos apreen- dem de suas práticas, emocionalmente compartilhadas, está vinculado com a intensidade das interações e com a plenitude da experiência. Nessas práticas intersecionam as dimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômi- cas da vida em sociedade, e c) a capoeira está sujeita a estratifi cação social própria de uma sociedade dividida em classes, expressando-se em possibilidades diversifi cadas de acordo com as classes sociais onde está inclusa.

Roda de Rua – Carmingnando de Brenta, Itália, julho de 2003 (J. L. C. Falcão) Ministério das Relações Exteriores

Considerações fi nais. A realidade de algumas experiên- cias sistemáticas de capoeira no exterior serve como fonte de inspiração para refl etirmos sobre as possibilidades desse símbolo de brasilidade que vem encantando um número cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, é possível depreender que a capoeira consolidou-se como manifestação interétnica e o seu processo de internaciona- lização, verifi cado a partir da década de 1970, não aniquilou a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas, sim, criou para eles novos desafi os.

Algumas experiências com a capoeira colocadas em prática no exterior vêm confi rmando e ampliando os traços de trans- nacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento, desafi ando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tra- tam como uma prática apropriada a determinadas camadas da população e vinculada a grupos étnicos específi cos.

A complexidade e a dinamicidade da capoeira eviden- ciam-se na intensifi cação do seu processo de internacio- nalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente, pelos trânsitos e fl uxos dos capoeiras em todo o mundo, e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensão na estratifi cada sociedade. Apesar de constatarmos uma sistemática reafi rmação de que ela é “coisa nossa”, o que, em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclu- sividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadas demonstraram que esse discurso se constrói sob a égide do confl ito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coi- sa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada.

A capoeira pode ser interpretada de acordo com valores e regras sociais. Como construção social e como manifesta- ção cultural que permanentemente se constrói, a capoeira é infl uenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas tam- bém edifi cada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos que, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade.

Embora parcela signifi cativa de capoeiras a trate como símbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasilei- ra!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-la como uma manifestação com status de patrimônio cultural da humanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, embora carregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade.

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José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Dou- tor em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

Capoeira A internacionalização da capoeira

Carybé

Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em La- nús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu em Salvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela arte fi gurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mu- latas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de es- tilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido na Argentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que teve sua formação artística e morada defi nitiva. Mudou-se para o Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de Belas Artes entre 1927 e 1929.

Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quando foi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagem sobre o célebre personagem Lampião. Com a falência do periódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil, que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição cole- tiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil se aprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma, de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950, a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybé muda-se defi nitivamente para Bahia, onde auxilia a promover

a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhor desenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu o mérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-se brasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia. Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riqueza da cultura popular baiana.

Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pin- turas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustrações para obras de autores consagrados como Jorge Amado, Ru- bem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Pos- sui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, em que se nota infl uência de Picasso e Rivera. Entre suas obras impressas, destacam-se a Iconografi a dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesqui- sa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambos em parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu gran- de amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga de capoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Ca- rybé com a cultura baiana:

“[...] A paisagem, a poesia

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