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Fé, corpo e liberdade: Esboços de Teologia Fundamental

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Academic year: 2021

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Fé, corpo e liberdade: Esboços de Teologia Fundamental

Em sua virada antropológica, a Teologia Fundamental de João Batista Libânio não parte de um Deus separado da existência humana ou, de forma um tanto contrária, de um “homem” abstraído do ser humano em sua experiência da história e da graça.

Libânio reclama como lugar de reflexão o ser humano “concreto, consciente de seu autovalor, de sua liberdade, de sua autonomia”. Ser humano que “se sente violentado por imposições de verdades extrínsecas e vindas de fora, em nome de alguma autoridade” (LIBÂNIO, 1992. p. 82).

A constituição dessa experiência no pensamento do teólogo latino-americano, – experiência que o homem faz da liberdade, que é o centro de seu autovalor – tem raízes na intuição de Karl Rahner em torno da experiência transcendental da liberdade.

Para Rahner, quando o homem descobre-se livre, em um estado permanente de abertura total, descobre-se também responsável por si. Não há ninguém que a possa assumir ou conduzir por ele, essa abertura total.

Essa liberdade realiza-se no tempo: envolve uma sucessão de ações e pensamentos mais ou menos livres -- que vão constituindo a biografia do sujeito. Por isso, a salvação, que depende da liberdade, não prescinde dessa temporalidade, constitutiva do ser humano, nem de sua historicidade, que lhe é adjunta.

Na modernidade/ contemporaneidade em que vivemos, impôs-se como evidente que essa história, e o ser humano que dela participa e que a constrói, não se realiza sem o corpo e sem a história do corpo. A nossa pesquisa pretende trazer a contribuição do antropólogo francês David Le Breton, um pensamento sobre a corporeidade, para somar-se ao percurso de João Batista Libânio, e engendrar para nós uma visão teórica do que pode ser uma experiência de fé do corpo.

Descobrindo-me em estado de abertura total, como horizonte de possibilidades infinitas através de sua finitude, o homem descobre-se também responsável por si; não há ninguém que a possa assumir ou conduzir por ele, essa abertura total. O eu é responsável, pois se descobre como abertura total também quando age, não só quando conhece – aí se percebe livre.

Essa é a verdadeira prova da liberdade, de modo transcendental. Não se apresenta mais satisfatória a prova da psicologia escolástica tradicional, que tenta descobrir a liberdade imediatamente na experiência empírica do dia-a-dia, como dado

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concreto à consciência. Não poderíamos obtê-la a partir da experiência do espaço e tempo (e demais categorias), ainda mais que, desse modo, em nossas vivências, percebemo-nos ora livres, ora não livres, de acordo com a situação vivida. Antes, ao me perceber assim ou de outro modo, questionar-me se sou livre ou não, ao agir desse modo ou de outro, experimento-me como um “eu” entregue a si mesmo, ou seja, um “eu” que tem total responsabilidade sobre si e que só pode ser conhecido por si mesmo, pela reflexão sobre si mesmo (sem interferência externa). Essa é a nossa experiência transcendental a priorística de nossa liberdade, isto é, uma experiência que se funda no conhecimento da liberdade por ela mesma, à medida que esta ultrapassa as situações vividas, e, ao mesmo tempo, permeia-as como um a priori, como uma condição que sempre antecede e enforma cada ato de conhecimento e de ação, sem deixar, contudo, de apontar a infinitas possibilidades. Em outras palavras, quando nos descobrimos e descobrimos a nossa liberdade, descobrimos também a transcendência, como um ato sempre presente, e o transcendente, como uma dimensão que nos ultrapassa.

No entanto, essa liberdade transcendental que é assim compreendida, de forma tão rica e espiritual, não se opõe como alheia à liberdade vivida empiricamente; melhor, integra-se a ela formando uma unidade inseparável de dois momentos distintos, até porque oculta-se sob esta sua variante empírica, que é a sua objetivação categorial (manifestação de si enquanto dado na vivência, interpretado sob as categorias de conhecimento). Em função desta unidade entre uma liberdade em suas origens e uma liberdade inserida no mundo, acessível apenas ao sujeito, é que não é fácil analisar se uma pessoa, em determinada ação cotidiana, foi verdadeiramente livre, ou seja, de acordo com a liberdade em sua fonte (sendo plenamente responsável por suas decisões e auto-realização); ou parcialmente livre, condicionada pelas circunstâncias, de acordo com a liberdade em encarnação no mundo (não conseguindo ser plenamente responsável por suas escolhas e por sua auto-realização). Esta, diga-se de passagem, é uma conclusão de amplas repercussões à Filosofia e Teologia Moral, disciplinas que, muitas vezes, apresentavam-se por demais rígidas em suas análises, não fazendo a distinção entre um modelo ideal e a situação real.

Inspirado nessa rica meditação de Rahner, Libânio ausculta que a liberdade, em função de sua unidade entre os seus dois polos (transcendental e empírico), está presente em todos os atos do sujeito, acontecida ou por acontecer – aguardando que ele se abra, ou não, para a sua infinita incompreensibilidade e a acolha. Quando ele o evita, fá-lo procurando justificar o seu não assentimento à liberdade com alguma justificativa de

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cunho determinista, baseada em teorias que veem o homem como produto do meio, e não livre. Contudo, até para escolher uma dessas justificativas e teorias, ele é um “eu” que unicamente pode escolher por si e por isto se responsabilizar, e não outro.

Se o homem é um sujeito livre, que responde por si mesmo, e é, ao mesmo tempo, o objeto (alvo) de suas ações (pois as consequências de seus atos refletem sobre si), e só ele, entregue a si mesmo, o pode fazer – pois experimenta uma liberdade que é una em suas origens e afeta toda a sua existência, enquanto que ainda conservando esta em suas origens, além de toda e qualquer categoria – faz bastante sentido falar de uma salvação ao homem. Por quê? Porque, em uma correta compreensão do cristianismo, a salvação não é um dom caído dos céus como uma adição invisível e externa à natureza do homem. É sobretudo um dom conquistado progressivamente pelo homem, através de uma larga abertura à liberdade em suas origens, e de sua consequente autopossessão e auto-realização. Dom o qual, ainda que teoricamente distinto e divino, corresponde a um aperfeiçoamento visível e interno -- até então presente em potência -- da natureza do homem. Em outros termos, a natureza do homem permite a possibilidade da salvação, uma vez que lhe pode ser permeável ou não, através de sua liberdade ambivalente, a qual pode ser ou não um horizonte de infinda autopossessão e auto-realização. E, ademais, a eternidade, onde ocorreria a definitiva salvação, não é um anti-tempo, mas a consumação do próprio tempo, surgindo a partir de seu interior. Tempo no qual o homem vive, do qual não pode prescindir, e que lhe revela uma de suas marcas características e constitutivas, a temporalidade – não à toa locus de salvação (que visa assumir o humano; não sobrepujá-lo).

Como a salvação não prescinde da temporalidade, constitutiva do ser humano, também não prescinde de sua historicidade, uma vez que também está condicionado à marcha da história e por ela é influenciado de forma irremediável. Antes, a temporalidade e a historicidade são as condições transcendentais de possibilidade do conhecimento e da ação; se de um lado limitam o homem, de outro, descortinam-lhe um horizonte infindo de possibilidades a ser conquistado. Sem esquecer que a própria história, mais do que mera sucessão de fatos, é também já o movimento de autocompreensão do homem realizando-se à medida que este se reflete sobre si mesmo, e age também de forma refletida. Desse modo, se a salvação realiza-se no homem e, assim, na história, a própria história da salvação realiza-se na história, e é história.

Neste caminhar, em que o homem experimenta a transcendência, oceano infinito de possibilidades e, ao mesmo tempo, impossibilidade de dar a si uma resposta

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definitiva sobre si mesmo, ele carrega e suporta com serenidade este mistério de indisponibilidade (ocultamento) de sua própria realidade, pois não lhe foi interdita por força alguma, mas justamente oculta por sua própria estrutura de transcendentalidade, a qual, por sua vez, sabe ter sido disposta por outrem, e enraizada nele (do contrário não haveria horizonte além).

Para David Le Breton, vivemos em um mundo, numa sociedade de indivíduos que se diferenciam pelo corpo. O que nos torna diferentes, de indivíduos para indivíduos, é o nosso corpo. Estamos fechados e abertos também no nosso corpo: ele é a prova de nossa singularidade. Então, nessa sociedade de indivíduos, o corpo se torna matéria-prima da presença no mundo e a fabricação de uma identidade (pelo olhar do outro e pelo meu olhar).

A condição humana é uma condição corporal. Tudo o que existe no mundo passa pelo corpo, é traduzido pelo corpo. O corpo é um fator social, cultural. Isto é, é ele mesmo uma construção da sociedade e de seus modos de ser. O corpo é formado, educado pela cultura. A nossa vida é uma interpretação permanente do mundo através do corpo.

Nessa narrativa que se constitui pela leitura do corpo, a sexualidade desempenha um papel muito importante. Segundo Libânio, a dimensão sexual de cada pessoa é fundamental para a sua felicidade. Mas, ao contrário do que parece, e do que a revolução sexual dos anos 60 sugeriu, a sua realização e bem-estar plenos não advêm do número de experiências sexuais usufruídas, muito menos da variedade de parceiros(as). A dimensão da sexualidade é muito mais que a junção de corpos e o prazer daí obtido; envolve a afetividade, a expressão de nossos sentimentos, e, mais ainda, a integralidade da pessoa, a sua personalidade, a sua psicologia e a sua auto-realização. É certo que é uma potência fortíssima e impetuosa, muitas vezes difícil de ser domada e controlada. E isso conduz a pessoa a não raro se perder em experiências que estão aquém de suas expectativas, aquém de sua dignidade. Logicamente, busca-se mais que uma sensação bioquímica de gozo fugaz. Busca-se sentido, busca-se felicidade, algo que nos tire do tédio de cada dia. “Aventuras” podem até quebrar o ritmo modorrento da passagem dos dias. Mas logo se percebe que não trazem resposta aos momentos de solidão e de inquietude existencial. E o que traria? A mera presença de uma outra pessoa ao lado? Bem sabemos que casamentos podem também não ser felizes. E, mesmo que sempre o fossem, o que diríamos para as pessoas solteiras, cuja busca por alguém pode não ser

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tão breve, e para as pessoas viúvas, que decidem, não por vezes sem dificuldade, manter a sua entrega total ao cônjuge ou parceiro já falecido?

De acordo com a psicologia, a energia sexual-afetiva está ligada ao desejo, e o desejo se expressa de diversas maneiras, mesmo que em relação a coisas aparentemente “inocentes”. O desejo é a força da vida, que nos move de uma realização à outra. O desejo é investido em cada ação que visa um objetivo. Por mais que não se possua um companheiro, é preciso ver com muito cuidado como se lida com essa energia sexual, energia de vida – especialmente quanto aos adolescentes. Um sadio investimento do desejo e uma sadia vivência da sexualidade-afetividade estão relacionadas a que tipo de projeto de vida se é concebido, na dimensão mais profunda de nosso ser, e ao modo como esse projeto é levado a termo, em cada ação ou pensamento do cotidiano. Mas aqui não é preciso recuperar os velhos escrúpulos da Moral para preservar a necessidade de uma educação dos afetos (constante na vida do ser humano) e a busca pela aquisição de uma personalidade saudável, que, ao afinal, parecia ser o objetivo desse sistema que nos foi legado. Não pouco(a)s casado(a)s, solteiro(a)s, viúvo(a)s e clérigos (inclusive, bispos) são imaturos afetivamente.

Como bem pontua Libânio, o Concílio Vaticano II recuperou o conceito de consciência dentro de sua fecundidade e originalidade, e superou, assim, o intelectualismo que o caracterizava desde a primeira Escolástica. A “teologia”, como conhecimento do Mistério, e com relação com Deus, com o outro, com a comunidade e com o mundo, em seu sentido mais profundo, vivencial e holístico, volta a contribuir com a noção de consciência moral.

Para o Concílio, a consciência fundamental é o ponto de partida para se avaliar e renovar as ações e o projeto pessoal de cada pessoa em relação ao plano salvífico de Deus. Refere-se à comunicação e à relação mais diretas e mais profundas do indivíduo para com Deus e Seu mistério. É um horizonte transcendental que, ao mesmo tempo que exige o bem (ama), e evita o mal, oferece à pessoa uma dimensão de abertura infinita a novas possibilidades e novos sentidos, pela própria dinâmica moral, que se constrói na história e com a comunidade. É um nível de auto-reflexão e auto-experiência que permite que a pessoa, que se descobre amada por Deus, criada à Sua imagem e redimida por Cristo, se comprometa profundamente, de forma total, em seu “coração”, na busca por Deus e pela verdade moral, como expressão de sua natureza e de sua dignidade, ainda que não consiga cumprir com os seus projetos e com a ordem moral objetivo de modo perfeito ou permanente, em todos os momentos.

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Tal teologia bebe do Novo Testamento, que propõe uma síntese inovadora das concepções de consciência, racional grega e vitalista semítica, através de São Paulo. A consciência não seria apenas relacionada ao saber intelectual, a um conhecimento objetivo ou à reflexão avaliativa ou judicial, mas, colhendo as intuições vétero-testamentárias, relacionada ao saber do vivido, a um conhecimento pelos sentidos, pela experiência e pela religiosidade, de índole subjetiva (embora não relativista). Mais ainda, a consciência, de forma inovadora para Paulo, corresponde à fé, a uma nova situação ontológica e vivencial da pessoa como obediente/ ouvinte e também como crente em Cristo, pois remete à integralidade da pessoa, a seu “coração”, que se posiciona de maneira profunda e total em relação ao acontecimento salvífico de Cristo.

Talvez o foco da liberdade não seja tanto no “o quê”, mas no “a partir de quê” e no “para quê”. Não poderia nos trazer ganhos, em uma primeira etapa, deslocar a nossa atenção do ato sexual em si, para a motivação anterior, gerada por uma consciência pré-posta, bem formada ou não que alimentou a ação, e para a finalidade que visava, em inter-relação ao projeto de vida e ao desenvolvimento da personalidade? Se a consciência dessa pessoa receber bons princípios de julgamento e escolha ética e, assim, amadurece de modo a levar sua portadora a um sadio florescimento de suas potências, em um espírito de responsabilidade, não teremos alcançado a nossa intenção inicial, qual seja, o bem-estar do ser humano em questão e da comunidade que lhe envolve?

O Concílio Vaticano II desenvolve o conceito de responsabilidade, em relação à fidelidade e à liberdade criativas, como expressão da autoconsciência do homem de ser criador e autor da cultura a que pertence, como parte de sua comunidade respectiva, e como expressão da solidariedade e empatia que sente, a partir do aprofundamento de sua vivência cultural e ontológica, em direção aos irmãos e no pulsar do mundo e da história. Especialmente na Gaudium et spes, destaca que o homem se sente responsável por todo o gênero humano e pela tarefa de promover e a paz no planeta, à medida que ausculta os sinais dos tempos, escutando livre e fielmente a voz de sua consciência. Sensível às necessidades do momento histórico e do Outro, em sintonia com a vocação que descobre em seu íntimo, exerce a sua liberdade criativa, como co-criador, pois se empenha, através de todas as suas habilidades e produções, por sua auto-realização de acordo com a dignidade que carrega, pelo bem comum e pelo congraçar-se da comunidade humana.

Esse descobrir-se uno na humanidade e esse descobrir-se a si mesmo brota sobretudo, segundo à GS, do seguimento vivo de Cristo, de um agir, de uma ética, que

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se faz pelo diálogo e pela vivência em conjunto. Corpo e mente se integram para abraçar o mundo e levá-lo à perfeição pela graça espiritual que tudo assume e renova. Perfeição que se traduz pela promoção da paz e justiça, e pela multiplicação dos diversos dons e talentos, em nosso contexto, em vista da expansão do Reino, que “fermenta” lenta e concretamente em nosso dia a dia.

Com essa reflexão moral e teológica sobre a sexualidade, de modo integral e não moralista, vimos como não se podem impor regras a todo custo, mas também como não se pode, por outro lado, no outro extremo, defender um total permissivismo, que prescinda da responsabilidade, como dimensão fundamental e libertadora.

Tal caminho de pensamento acerca da experiência corpórea da pessoa evidencia a tensão presente na vivência da liberdade. Como esperamos ter demonstrado, a partir de Karl Rahner e de João Batista Libânio, o ser humano pode se beneficiar de novos horizontes de compreensão e de ação quando bem experimenta os limites e as potencialidades – que, por meio deles, se revelam – de sua intrigante capacidade de ser livre.

Referências

1 – LIBÂNIO, João Batista. Introdução à teologia fundamental, São Paulo: Paulus, 2014

2 - ___________. Teologia da Revelação a partir da modernidade, Coleção Fé e Realidade – 31, São Paulo: Loyola, 4a ed. 2000

3 - RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. SP: Paulinas, 1989

4- LE BRETON, David. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petropólis, RJ: Vozes, 2011

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