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A IRONIA MACHADIANA NA TRADUÇÃO DE O CORVO

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Academic year: 2021

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Miriam Piedade Mansur Andrade

Resumo: Este estudo visa analisar a ironia machadiana que jaz na necessidade de garantir a autori-dade do texto original, representado aqui pelo poema de Poe, “The raven”, e simultaneamente supe-rar esse original, traduzindo e escrevendo uma nova criação, como no poema “O corvo”. Ao passo que Machado se insere como escritor do texto traduzido, ele assume a ideia de que traduzir é ao mesmo tempo difundir um patrimônio cultural. Nesse duplo endividamento da tradução, este estu-do também propõe mostrar a sobrevida estu-do texto de Poe e como essa sobrevida, segunestu-do a leitura de Benjamin e Derrida, faz com que a obra não apenas viva mais tempo, mas que ela viva mais e me-lhor.

Palavras-chave: ironia · tradução · sobrevida.

Abstract: The objective of this paper is to analyze the irony of Machado de Assis, which consists of a necessity to guarantee the authority of the original text represented here by Poe’s poem, “The Ra-ven”, and at the same time, to overcome this original, translating and re-writing a new creation, as in the poem “O Corvo”. Once Machado inserts himself as the writer of the translated text, he assumes the idea that to translate is to disseminate a cultural patrimony. In the double debt of translation, this study also proposes to show the presence of Poe’s text in Brazilian literature, and how this pres-ence, according to the critical works of Benjamin and Derrida, makes Poe’s text not only live more, but live longer and better.

Keywords: irony · translation · presence.

O estudo das obras de Machado de Assis muitas vezes aponta para o recorrente uso de fontes e influências estrangeiras. Entre os nomes das literaturas de expressão inglesa e a-mericana, o do escritor Edgar Allan Poe, representa, segundo Jean-Michel Massa em seu livro Machado de Assis: tradutor, um caso particular de fonte e sintonia para/com o escritor brasileiro, pois Poe tem “em comum com Machado de Assis um talento incomparável de contista, um gosto profundo pela fantasia e pela lógica e uma tendência inveterada à

misti-ficação”.1 O talento e estilo correspondentes, bem como as traduções e/ou uso de citações e

textos de outros autores, nesse caso o de Poe, às vezes podem ser confundidos com as no-ções de fonte e influência, problema metodológico da literatura comparada, que tiram o mérito do escritor brasileiro, quando o mesmo é aludido apenas como imitador de tais fon-tes para benefício próprio. As noções de fonte e influência que marcam uma origem e um derivado, um antes e um depois, enfim, as que determinam uma dependência negativa das obras, são as que comumente eram dirigidas a estudos cujos textos recebiam, ou melhor, percebiam a presença de pontos de encontro com o estrangeiro, com outras literaturas. As discussões acerca dessas orientações estrangeiras são tensas e geralmente, quando direcio-nadas apenas aos aspectos de fontes/origens, como textos primeiros, não na concepção de uma distância temporal e geográfica, mas da perspectiva de um texto mais significante, totalizante, e na representação de uma literatura/nação que carrega o poder, reduzem as

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áreas de estudo que poderiam ser mais exploradas, como por exemplo, a de Machado de Assis como tradutor.

Textos críticos-teóricos que elevam o importante talento do Machado tradutor podem ser considerados publicações de caráter mais recente e ainda pouco investigados. Dentro desse universo limitado podem-se ressaltar os livros de Jean-Michel Massa, Machado de

Assis: tradutor, e de Eliane Fernanda Cunha Ferreira, Para traduzir o século XIX: Machado de Assis. Nesses trabalhos, Massa e Eliane Ferreira Cunha discutem principalmente

aspec-tos direcionados não só na composição das traduções, mas também na possível elaboração de uma linha teórica acerca dos estudos da tradução promovidos pelo próprio Machado de Assis. As fontes usadas por Machado de Assis, seja nas traduções seja nas citações, prova-velmente eram constituídas para o estabelecimento de um pecúlio literário que proveria o conhecimento inicial para uma discussão da literatura e da crítica nacional.

No caso direto de análise sobre a tradução machadiana de “O corvo”, outros textos são de caráter relevante. John Gledson em seu ensaio “De Lamartine a La Fontaine: as tradu-ções poéticas de Machado de Assis”, atenta para as possíveis razões das escolhas das obras que Machado de Assis traduziu. Para Gledson, dentre as escolhas de outros autores, a de

Poe foi selecionada por representar “alguma coisa mais humilde e próxima à sátira”.2 Outro

texto que lida diretamente com a tradução machadiana, mais especificamente a do poema ‘The raven”, é o de Sérgio Bellei, “The Raven, by Machado de Assis”. Bellei retoma em seu

texto a discussão sobre a tradução como uma forma de apropriação da tradição estrangeira.3

A problemática relação de dependência literária de textos fonte é trazida à luz por Bellei e no-vamente sugere a tensão maior do comparativismo literário: a questão de fonte e influência.

Para a literatura comparada, os estudos sobre tradução conferem um novo ponto de vista em relação às noções de fonte e influência. Segundo Tânia Franco Carvalhal, o

comparativismo pôde reformular antigas noções, como as de “fontes” e de “influências”, re-tomando-as em novas bases. [...] a noção teórica de intertextualidade ajudou a retomar as-pectos essenciais das relações interliterárias, redimensionando o tratamento antes dado a es-sas noções e subtraindo delas os traços de dependência, antecipação ou originalidade. [...] A contribuição do conceito para os estudos de Literatura Comparada foi decisiva, pois modifi-cou as leituras dos modos de apropriação, das absorções e das transformações textuais [...].4

Relações antes consideradas de pura dependência são hoje em dia reavaliadas e estão sendo estudadas nas premissas da intertextualidade. De acordo com Eliane Ferreira Cunha, Carvalhal ressalta a importância dos estudos da tradução para a literatura comparada como gerenciadores de novas perspectivas teóricas, na medida em que possibilitam “uma abertura ao Outro, reconhecido em sua diferença”, já que, na operação tradutora, “o texto do Outro se converte, no outro do texto”. Assim “a abertura ao outro” dava-se pelos empréstimos literá-rios ocorridos a partir das leituras em tradução ou não que Machado fazia.5

Essa operação tradutora de “abertura ao outro”, sugerida por Carvalhal, pode ser lida como uma tarefa do próprio ato da tradução, como no ensaio de Walter Benjamin “A tarefa re-núncia do tradutor”. A tarefa do tradutor, proposta por Benjamin, está baseada em uma “relação de vida” entre o original e a tradução. A relação de vida pode ser entendida da

2 GLEDSON. De Lamartine a La Fontaine. As traduções poéticas de Machado de Assis, p. 7-10. 3 BELLEI. The Raven, by Machado de Assis.

4 CARVALHAL. A literatura comparada na confluência dos séculos, p. 12-13.

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mesma forma que uma abertura ao outro e nesse ponto de encontro, “a ideia da vida e da

continuação da vida das obras de arte”,6 através da tradução, deve ser vista como uma via

de mão dupla para ambos os escritores, autor e tradutor. Tal relação de vida é mais elabo-rada por Jacques Derrida, que reforça a noção da sobrevida das obras proposta por

Benja-mim.7 Segundo Derrida, a obra traduzida concede ao original uma sobrevida, pois o

origi-nal é aberto a outras leituras, em línguas diferentes, e essa abertura garante a presença da obra em contextos distintos do qual ela foi criada.

Sob essa perspectiva, este estudo visa a analisar a ironia machadiana que jaz na neces-sidade de garantir a presença do texto original, representado aqui pelo poema de Poe, “The raven”, mas em uma tentativa de compor com esse original uma nova cena, traduzindo e escrevendo uma nova criação, como no poema “O corvo”. Ao passo que Machado se insere como escritor do texto traduzido, ele assume a ideia de que traduzir é ao mesmo tempo difundir um patrimônio cultural e, assim, ele promove uma abertura para a leitura de Poe na literatura brasileira. Essa abertura proposta nesse duplo endividamento da tradução, também busca demonstrar a sobrevida do texto de Poe e como essa sobrevida, segundo a leitura de Benjamin e Derrida, faz com que a obra não apenas viva mais tempo, mas que ela viva mais e melhor.

O texto de Benjamin tenta desmistificar a tarefa primeira do tradutor, antes considerada uma relação de servilidade e de débito com o texto original. Segundo Haroldo de Campos, em Deus e o diabo no Fausto de Goethe, Benjamin anuncia para a tradução uma “função angelical, de portadora e de mensageira”, o que sugere um novo ‘“modo de re-produção’

(Darstellungmodus) que é a tradução, uma ‘afinidade eletiva’”.8 A função angelical de

por-tadora e de mensageira como um modo de re-produção propõe a abertura do texto original para a sua expressão na outra língua. A função angelical da tradução como portadora, pode ser lida como a própria definição que o termo sugere, como portador, aquele texto que con-duz e que traz consigo ou em si, o texto original, sem ser essa uma condução servil e, muito menos, debilitada. Já a função de mensageira pode ser interpretada como aquela que leva e traz e a que anuncia a mensagem. No anúncio, no conduzir, enfim no modo de re-produção, a tradução é uma afinidade eletiva, ou seja, a eleição de textos para reprodução que indiquem não só a presença da língua original, mas também propõe a expressão de outra língua na obra re-produzida.

A função angelical marcada pela afinidade eletiva de Benjamin pode ser aplicada à me-táfora machadiana utilizada por Eliane Cunha Ferreira para o estudo da tradução do pró-prio Machado, como criação de um “pecúlio cultural”. “Para Machado, o patrimônio literá-rio de uma nação só aumentaria se houvesse um intercâmbio cultural entre os antigos e os

modernos com vistas a constituir um ‘pecúlio comum’, isto é, universal”.9 Sob essa óptica,

o tradutor como promotor desse intercâmbio cultural torna-se também criador. A função de criador encontra nessa promoção a afinidade entre o local e o universal, entre o original e o outro, enfim, entre a expressão de um patrimônio literário para a produção de outrem e

6 BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 193. 7 DERRIDA. Jacques. Torres de Babel.

8 CAMPOS. Deus e o diabo no Fausto de Goethe, p. 179.

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assim “pensar no tradutor como mediador desse intercâmbio é atribuir-lhe a condição de

tradutor cultural”.10 Machado de Assis foi um tradutor cultural e, como tradutor cultural,

foi também um criador, que percebeu a força da tradição e tratou de conhecê-la intimamen-te, para daí garantir uma iniciação à produção cultural brasileira.

Ainda segundo Eliane Cunha Ferreira e de acordo com o conceito de Weltliteratur, de Goethe, “a tradução seria o meio, por excelência, para promover a dialética, para interagir as culturas nacionais e locais” e dessa forma a tradução seria a responsável por transmitir o “legado cultural na medida em que ‘as obras intelectuais de uma nação tornam-se

proprie-dade comum de todas’”.11 Legado cultural como propriedade comum é exatamente um ato

de apropriação. Ato esse que Machado de Assis, assim como outros grandes nomes da lite-ratura mundial, exerceu nas suas traduções, “uma apropriação do texto-modelo transfor-mado em um outro texto ‘original’ de autoria do tradutor-apropriador/assimilador, visto

como um transformador de textos alheios”.12 Essa apropriação pode ser considerada a

pri-meira ironia machadiana proposta por este estudo na tradução de “O corvo”.

Ao preparar-se para a tradução do texto-modelo, no caso específico do poema de Poe, “The raven”, Machado de Assis usa outro texto-modelo. Jean-Michel Massa, no estudo da tradução de “O corvo”, fez, com a sua equipe de trabalho, um confronto entre o texto origi-nal, o de Poe, as traduções francesas e a versão brasileira. O “poema de Machado de Assis

possui com a versão de Baudelaire algumas afinidades”,13 afinidades essas que ressaltam

inclusive erros que Baudelaire cometeu ou se distanciaram do texto de Poe. O poema de Poe traduzido por Machado torna-se um texto duplamente transformado e Machado assu-me o papel de transformador de textos alheios. As presenças de textos priassu-meiros e segun-dos para elaboração de uma tradução, como o caso de Machado de Assis lendo Poe através de Baudelaire, sugere uma infidelidade à fonte proposta pelo próprio Machado, momento esse significante de um deslocamento. Arthur Nestrovski, em Ironias da modernidade, a-tenta para o fato de ser a ironia “um perpétuo deslocamento que define a própria linguagem

da arte”.14 Tradução como arte, como re-escrita, como transformação e ou criação,

movi-mentos da linguagem que foram exercidos pelo Machado tradutor-escritor.

Este deslocamento abre caminho para a outra ironia que pode ser investigada na leitu-ra/escrita deste texto. Para chegar até este recorte é preciso um desvio primeiro, e novamen-te o novamen-texto de Nestrovski será evocado para a explicação desse desvio. Em Ironias da

moder-nidade, Nestrovski discorre um capítulo inteiro acerca da influência. Nos parágrafos

inici-ais deste estudo, a referência a Carvalhal aponta para as abordagens da tradução como no-vos gerenciadores teóricos sobre as noções de empréstimos literários. Assim como também temos a sua reflexão sobre a importância da intertextualidade para um novo direcionamto sobre as antigas concepções de fonte e influência. A influência de Nestrovski vai ao en-contro do texto de Harold Bloom, A angústia da influência, que de uma forma ou de outra, também se encontra com o pensamento crítico de Carvalhal. Os encontros aqui não são

10 FERREIRA. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, p. 64-65. 11 FERREIRA. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, p. 66. 12 FERREIRA. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, p. 82. 13 MASSA. Machado de Assis: tradutor, p. 55.

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marcados por ideias similares ou complacentes, mas mais por (des)encontros acerca da necessidade de por em cheque a noção de influência. O questionamento sobre as noções de fonte e influência tão presente na crítica da literatura comparada teve uma abertura maior em Bloom e segue então até os dias de hoje, principalmente no contexto literário brasileiro, com o recolhimento de textos e com a prática exercida por Carvalhal. Nestrovski, em seu texto, relata os termos que Harold Bloom propõe para a análise sobre a influência. Os ter-mos compõem “os seis estágios mais ou menos arbitrariamente definidos da relação entre

um poeta e seu antecessor”.15 Dos seis termos, chamo a atenção para um apenas que servirá

de base para este estudo, o clinamen. “Clinamen é a desleitura propriamente dita, a

descri-ção mais geral do desvio de um poeta em reladescri-ção à obra de seu precursor”.16 É necessário

ressaltar que a leitura de Bloom é direcionada para aspectos diretamente ligados à influên-cia, mas na perspectiva deste estudo, o clinamen será usado também para a operação tradu-tória. É interessante neste momento a análise feita por Paul de Man sobre os termos de Blo-om que é relatada por Nestrovski. Ironicamente, Paul de Man nBlo-omeia cada estágio cBlo-om a premissa de um tropo, para o qual o clinamen de Bloom, torna-se a dicotomia

clina-men/ironia de Paul de Man. O clinamen de Bloom e o clinaclina-men/ironia de Paul de Man

se-rão os caminhos para o desvio machadiano da tradução de “O corvo”.

Saindo desse desvio primeiro retornamos agora para uma análise mais direta da versão brasileira de “O corvo”, como o exemplo de um desvio na tradução de Machado de Assis. Como mencionado anteriormente, a tradução machadiana de “O corvo” assemelha-se mais à versão de Baudelaire do que à de Poe propriamente dita. Massa faz um levantamento pre-ciso dessa tradução machadiana, principalmente em pontos claros de variação. Na tentati-va de ser fiel à forma, a tradução de Machado distancia-se do fundo do original. As dezoito estrofes de Poe estão representadas, pelo menos no quesito forma, nas dezoito estrofes de Baudelaire e de Machado de Assis. Porém, ainda a respeito da forma, a versão de Baudelai-re não segue um padrão nas rimas, ao passo que o texto machadiano sim. As rimas propos-tas por Machado não são exatamente as rimas usadas por Poe, mas, existe um aparente es-forço de Machado para compor uma simetria de rimas com a obra de Poe. De acordo com Massa, “é preciso não esquecer que Machado de Assis se impôs a canga severa das rimas e de um metro rigoroso, obrigando-se a infidelidades. Preferindo o respeito à forma à fideli-dade ao fundo do original, ele optou por uma recriação, em língua portuguesa, escrita

se-gundo sua estética pessoal”.17 Desse ponto de vista, Machado de Assis perfaz a sua

des-leitura da obra de Poe, negando o sentido do original. A ironia reside nesse esforço em bus-car a forma e na infidelidade ao conteúdo. Mesmo com o pano de fundo da ironia, o respei-to machadiano à forma do texrespei-to primeiro, desviando assim do texrespei-to segundo – o de Baude-laire – vem de encontro com a tarefa do tradutor benjaminiana.

Para Benjamin, “a tradução é uma forma. Para compreendê-la como tal, é preciso

retor-nar ao original”.18 Machado de Assis parece seguir assim o ato pensado por Benjamin.

15 NESTROVSKI. Ironias da modernidade, p. 111. 16 NESTROVSKI. Ironias da modernidade, p. 111. 17 MASSA. Machado de Assis: tradutor, p. 94. 18 BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 191.

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sar de seu desvio, com o uso da versão de Baudelaire, Machado não perde o original de vista, ou seja, retorna a ele com o intuito de demonstrar o respeito à tradução como forma.

Ainda segundo Massa, o mesmo Machado que retorna ao original, na constituição do conteúdo do texto traduzido, contribui com diversos termos que às vezes resumem o texto, e, por outras vezes, o alonga. Na segunda estrofe Machado recria a sua versão, alongando a frase, ao mesmo tempo em que ele parece explicar a força da dor naquele momento, como a comparação mostra:

“The raven” “O corvo”

II. 10 – Sorrow for the lost Lenore II. 17 – a dor esmagadora

II. 18 – Destas saudades imortais

“Assim, o tradutor brasileiro intercala com freqüência uma expressão, e conta-se umas

quarenta intervenções dessa natureza”.19 As intervenções machadianas podem ser lidas

novamente como uma tentativa irônica da “descrição mais geral do desvio de um poeta em relação à obra de seu precursor” como o clinamen bloomiano, haja vista que as interven-ções promovem um deslocamento no eixo central da leitura do poema original. Contudo, a ironia não afasta a tarefa do tradutor de Benjamin exercido aqui por Machado. De acordo com Benjamin, “liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação – essa é a tarefa

do tradutor”.20 Machado de Assis libera a expressão dessas linhas de um cativeiro, pois ele

demonstra em sua tradução a ênfase a uma dor de perda, aquela dor profunda, esmagadora da saudade da amada perdida. É importante chamar atenção para o uso da palavra “sauda-de” que não é um termo comum em outros idiomas. Em outras línguas a ausência, a falta, a perda são termos emprestados de outros significados que tentam exprimir a dor da nossa “saudade”, ao passo que esse termo tem uso único no português. Machado de Assis além de promover uma recriação do texto de Poe, traz também o poema original para o contexto do idioma do tradutor e, assim, abre a relação de vida/sobrevida da tradução no contexto da literatura de língua portuguesa.

Por outro lado, Machado de Assis é o tradutor que estabelece em sua versão cortes que chegam inclusive a modificar o poema de Poe.

Numa ordem de idéias diferente, pode-se notar um número importante de cortes que modifi-cam profundamente o texto de Poe: cortes parciais, substituição de palavras, contração de palavras. Em “O Corvo” não há sinal de truly (IV), dared (V), here (VII), chamber (VII), ebony (VIII), living; beast (IX), as my Hopes (X), and bust and door (XII), fiery; into my bosom’s core (XIII), grew; wretch; by these angels (XVI).21

De todos os termos cortados investigados por Massa é necessário ressaltar a falta da pa-lavra “chamber” na versão machadiana. No texto de Poe, a papa-lavra “chamber” aparece 11 vezes. Em vários estudos sobre “The raven”, a palavra “chamber” simboliza o cenário do poema, como uma câmara ou aposento que reflete o isolamento do homem e ajuda a transmitir o tom melancólico do mesmo. Na versão de Baudelaire em francês, curiosamen-te, a palavra “chambre”, também câmara, aparece 11 vezes. Já na tradução de Machado, há duas referências ao “quarto” e apenas uma menção a um “casto abrigo”. Ora Machado

19 MASSA. Machado de Assis: tradutor, p. 93. 20 BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 211.

21 MASSA. Machado de Assis: tradutor, p. 93. Os números em algarismo romano representam as

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crescenta expressões para recriar e passar de uma forma mais profunda a mensagem da versão do poema traduzido, noutra vez, ele omite um elemento que no original carrega uma simbologia tão pungente ao poema. A omissão pode ser lida como uma lacuna deixada pelo tradutor propositalmente para garantir o desvio de sua mensagem ou de sua re-criação. Novamente pensando na tarefa do tradutor de Benjamin, uma símile usada em seu texto ajuda a entender a ironia da omissão machadiana. Tal símile relata a tradução como a tan-gente que “toca a circunferência de maneira fugidia e em um ponto apenas [...], a tradução toca fugazmente e apenas no ponto infinitamente pequeno do sentido do original, para per-seguir, segundo a lei da fidelidade, sua própria via no interior da liberdade do movimento

da língua”.22 O toque no sentido do original para dali seguir em uma via própria ressalta a

existência de uma falha que marca a descontinuidade de uma via para início de outra. O corte machadiano do termo “chambre” pode ser referido então como um ato de distancia-mento do original rumo ao interior da liberdade do movidistancia-mento da língua.

Para finalizar este estudo, faço uso de mais uma citação do livro de Eliane Ferreira Cunha: O tradutor, em sua autoridade de autor do verso, pode transformá-lo. Nesse sentido, o di-plomata-tradutor libertou-se da servilidade e submissão ao texto primeiro, e, por meio de sua ficção e de crônicas diversas, Machado de Assis desenvolveu uma teoria da tradução, por subtração, de forma oblíqua e enviesada, formando um mosaico teórico de tradução, parale-lamente à sua criação literária, ao entender a importância da tradução, não apenas como um componente de sua formação intelectual, mas como da identidade cultural do país.23

Valho-me da passagem acima para traçar um paralelo com os textos de Benjamin e Derrida e o estudo do Machado tradutor, no caso específico da tradução de “O Corvo”. Machado na tarefa de tradutor tem a autoridade em sua mão para, a partir dela, direcionar o movimento da língua, todavia, em sua tradução a presença do original não fica ofuscada, mas sim, apa-rece ainda mais diante da sua re-criação. É como se Machado de Assis já tivesse percebido a relação de vida de uma obra com a outra. Os termos colocados por Benjamin em “A tarefa do tradutor”, tão bem discutidos por Derrida em Torres de Babel, adiantam para a questão da relação de vida. Ao desviar-se do original sem perdê-lo de vista, ao acrescentar termos, recriando a versão primeira sem desconsiderar a mensagem inicial proposta, ao omitir al-guns elementos do texto anterior e assim deixar aberta uma lacuna para possíveis inclusões e ou discussões, Machado estabelece uma relação íntima com o original, aproximando-se e afastando-se dele sem nunca abandoná-lo e ao mesmo tempo deixando uma abertura para a leitura, releitura e desleitura de ambos os textos, original e tradução, em um contexto geo-gráfico e temporal diferente. O diplomata-tradutor, como sugerido por Eliane Ferreira, é um homem das relações com o outro, sem a expressão de débito entre essas relações e, dessa forma, ele usa a língua para manter tais relações sempre em constante harmonia com os intercâmbios culturais para o bem da própria língua/nação. Machado arma estratégias, su-tis, enviesadas, oblíquas e garante a vitalidade da obra original em outro contexto, demons-trando a sobrevida das obras, original e tradução. Assim, o corvo de Poe vive hoje na obra de Machado de Assis.

22 BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 211.

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EFERÊNCIAS

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DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. FERREIRA, Eliane Fernanda. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis. São Paulo: An-nablume; Rio de Janeiro: ABL, 2004.

GLEDSON, John. De Lamartine a La Fontaine. As traduções poéticas de Machado de Assis. In: _____ (Org.). Machado de Assis & confrades de versos. São Paulo: Minden, 1998. s.p. MASSA, Jean-Michel. Machado de Assis: tradutor. Belo Horizonte: Crisálida, 2008. NESTROVSKI, Arthur. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996.

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Referências

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