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O Quarto Evangelho, um sinótico? Relações entre Mateus, Marcos, Lucas e João

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Academic year: 2021

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O Quarto Evangelho, um “sinótico”? Relações entre Mateus,

Marcos, Lucas e João

Brian Kibuuka Resumo

A chamada “questão sinótica” consiste tradicionalmente na comparação das relações entre os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Porém, os esquemas construídos para explicar as relações entre os três sinóticos e as bases que justificam a condição não-sinótica de João estão sob julgamento. O objetivo deste trabalho é apontar as questões abertas nesse debate e refletir a respeito dos desdobramentos da quebra dos consensos em torno das hipóteses de Griesbach, Wilke, Weisse, Holtzmann e Streeter.

Palavras-chave: Evangelhos, Questão Sinótica, Sinóticos, João

Abstract

The so-called "synoptic question" consists in comparing the relationship between the gospels of Mark, Matthew and Luke. However, the schemes constructed to explain the relationship between the three synoptic and the bases which justify the non-synoptic condition of John are under trial. The objective of this paper is to point out the issues raised in this debate and reflect on the consequences of breaking the consensus on the chances of Griesbach, Wilke, Weisse, Holtzmann and Streeter.

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TEXTO INTEGRAL

O que chamamos desde Tertuliano (De Praescriptione Haereticorum 30.9)1 de Novo Testamento contém, desde a 39ª Carta Festal de Páscoa de Atanásio à Igreja Egípcia (no ano 367), 27 textos de diversos matizes.2 Dentre esses, 4 escritos receberam o nome ‘euangélion’. O termo que designa esse tipo literário foi originalmente utilizado para fazer menção à palavra viva da pregação, sendo alusivo, no primeiro século, à pregação oral de ou sobre Jesus, segundo afirma FRIEDRICH, euangélion. In: KITTEL, G. Theologie Worterbuch in das Neuen Testament, p. 718-734.

Há, no Novo Testamento, em alguma medida, indícios, ainda que tênues, do reconhecimento do tipo de escrito que se está a produzir. Entre tais indícios, o prólogo de Lucas (Lc 1.1-4), que apresenta o projeto redacional do evangelista, é um destaque fundamental que mostra alguma autoconsciência no processo de redação do texto, como se pode ver no que segue:

1 Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que

entre nós se realizaram,

2 conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas

oculares e ministros da palavra,

3 igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde

sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, b uma exposição em ordem,

4 para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído.

O único texto do Novo Testamento, porém, que faz referência explícita ao próprio escrito, chamando-o de evangelho, é Marcos (Mc 1.1 – “princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”). Segundo VIELHAUER, História da literatura cristã primitiva, p. 284, a utilização do termo ‘euangélion’ indica uma compreensão seminal de que o conteúdo do texto é de natureza querigmática e salvífica, natureza relacionada a Jesus e às demandas do anúncio sobre seus ditos e obras, mas também ao tempo salvífico que seu advento representa.

Em Marcos, o princípio do evangelho é a proclamação do Batista (Mc 1.2-8), mas Jesus também assume a tarefa de proclamar (Mc 1.14-15 – “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho”). Os contextos missiológicos em que o Batista e Jesus ‘pregam o evangelho’ em Marcos evidenciam, segundo KERTELGE, A epifania de Jesus no evangelho de Marcos, p. 197, que o termo ‘evangelho’ foi extraído “da linguagem missionária do cristianismo primitivo”. Logo, ouvir a mensagem cristã é “crer no evangelho” (Mc 1.15). Ainda assim, não há em tais textos citados acima a ideia elaborada de um nome corrente para os textos que contém os relatos escritos a respeito da vida e obra de Jesus. A pequena circulação de tais textos, visto a prevalência da transmissão oral, ou a circulação dos textos em ambientes mais restritos, impedem maiores desenvolvimentos a respeito desse tema.

É na Igreja Antiga, entre o final do século primeiro e o fim do século dois, que o evangelho se torna, em uma acepção geral, a boa nova escrita da salvação. Não é certo de que o termo euangélion designe na Didaquê um nome dado para um escrito contendo a vida e a obra de Jesus – p. ex. Did 15.3: “Corrija uns aos outros, não com ódio, mas com paz, como você tem no Evangelho. E ninguém fale com alguém que tenha ofendido o próximo; que essa pessoa não escute

1 Tertuliano, De Praescriptione Haereticorum 30.9: Si enim Marcion nouum testamentum a uetere separauit, posterior est eo quod separauit quia separare non posset nisi quod unitum fuit.

2 O cânon foi confirmado pelo papa Dâmaso, após consulta a Jerônimo, em um Concílio em Roma, no ano de 382; e pelo Concílio realizado em Cartago em 397.

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uma só palavra sua até que tenha se arrependido”. Porém, já é possível encontrar em 2 Clemente a alusão direta ao escrito, bem como a identificação do mesmo com o que Jesus disse. Em 2 Clem 8.5, há um testemunho precioso sobre isso: “Eis o que o Senhor diz no Evangelho: ‘Se não guardastes o que era pequeno, quem vos dará o que é grande? Pois eu vos digo: o que é fiel no pouco, é fiel também no muito’”.

Logo, o termo ‘evangelho’, designativo de um gênero literário, é aquele texto reconhecido por ter uma característica básica: conservar os ditos e as obras de Jesus. É provável que o próprio Jesus não tenha utilizado o termo, mesmo no sentido corrente nos evangelhos – o ‘nome’ dado ao conjunto de assuntos relacionados a sua vida - visto serem redacionais as passagens em que tal vocábulo é por ele utilizado – Mc 8.35 [Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á], 10.29 [Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, q ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho], 13.10 [Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações.], 14.9 [Em verdade vos digo: onde for pregado em todo o mundo o evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua – aparente reminiscência do termo bessorah utilizado em Is 53.1],16.5) – como atestam VAN DODEWAARD, ‘Jesus s’est il servi Lui même du mot ‘evangile’?, Bib 35 (1954), 160-173; M BLACK, Die Muttersprache Jesu, 1982, p. 250-251.

Antes, porém, de aprofundar a análise sobre a categoria ‘evangelho’, urge definir o que se considera nesta conferência ‘gênero literário’. Apropriamo-nos aqui da concepção de Jean-Marie SCHAEFFER, em Qu’est-ce qu’un Genre Littéraire?. O autor considera que um texto que assume uma forma, um comportamento próprio de sua linguagem, com características próprias devido às suas convenções constitutivas e reguladoras, pode sofrer classificação – porém, sob os limites propostos por N. Frye. O primeiro limite é que o gênero não constitui categorias mutuamente excludentes de classes literárias, mas apenas atesta relações entre obras distintas, porém aparentadas devido aos indícios comuns de situações genéricas e modos de comunicar conteúdos, indícios observáveis e claramente indicativos de uma relação entre obras. Os textos aparentados exemplificam os traços comuns entre si, mas também carregam em seu bojo a transformação, particularizando os textos, ao mesmo tempo em que em tais, os componentes arquitextuais estão presentes.

Logo, para além de considerar o gênero ‘evangelho’ como um texto contendo os ditos e obras de Jesus, o que se depreende desses textos é uma complexa tessitura narrativa com diversos matizes. Segundo Rossi (ROSSI, L. E., I Generi Litterari e Le Loro Leggi Scritte e non Scritte Nelle Letterature Classiche, p.69-94), os elementi de uma obra literária da Antiguidade são, para além da estrutura geral e dos temas, a estrutura, a linguagem, o metro, a música, entre outros, os quais dependem fundamentalmente da relação entre o autor e a audiência, dos contextos sociais e da situação histórica, mais do que dependem das leis que governavam os gêneros literários.

Os evangelhos disponíveis à leitura e investigação podem ser divididos em classes ou subgêneros conforme o aspecto geral de sua narração, que pode ser percebido mais facilmente a partir do tratamento do material advindo da experiência humana de Jesus, do conjunto de ações executadas por Jesus e que refletem nos textos. Um grupo de evangelhos privilegiam os ditos, sendo aqueles que, segundo CROSSAN em El Nascimiento del Cristianismo, p. 67, “enfatizam a palavra, não a ação”. Tanto ‘Q’ quanto o Evangelho de Tomé apresentam majoritariamente ditos, sem narrar praticamente nenhum milagre, nem um relato de nascimento, nem o relato da paixão. Tais, ainda assim, são considerados evangelhos por conta do aspecto comum – conservar as palavras de Jesus.

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Ainda assim, a aceitação dos mesmos foi dificultada pela percepção da importância crescente da paixão, dos milagres e/ou até mesmo das costuras redacionais que concedem à narrativa a aparência de ritmo e encadeamento cronológico. A presença (Mc 1.14-15 [Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho], Mt 4.17 [Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.], 9.35 [E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades]), as palavras (Mc 4.1-34, Mt 4.23, 9.35) e as ações de Jesus (Mt 11.3-5, Lc 7.18-22, Jo 20.30-31, 21.25).

Há ainda evangelhos que são análogos às biografias judaico-helenísticas da época, sem, contudo, repetir seu esquema geral. À tal classe pertencem os evangelhos presentes no cânon neotestamentário, que se apropriam de características da farta literatura popular e circulante da época, conservando aspectos de seu matiz literário: ausência de rigidez formal, sendo caracterizadas como parte de “um gênero muito flexível, e seu interesse no pano-de-fundo histórico é apenas uma das variáveis consideradas” (PELLING, C. B. R., Plutarch and Roman Politics, p. 159). A partir do exemplo de Plutarco, é possível concluir que as biografias se concentravam nos detalhes do caráter do seu protagonista, contendo uma narrativa histórica apenas abreviada, tendo caráter moral e protréptico e grande diversidade de padrões literários. Segundo BERGER, Klaus, As formas literárias do Novo Testamento, p. 314-315), os elementos que fazem parte das biografias helenísticas, e que são retomados sem maior rigidez nos evangelhos biográficos canônicos são o genetlíaco, as história de infância políticas, as progymnásmata, as narrativas sobre prodígios pessoais, a descrição da extraordinária e precoce sabedoria do protagonista, a ultima verba e a síncrise.

Há evangelhos ainda que são chamados de discursivos por CROSSAN, El Nascimiento del Cristianismo, p. 68. São aqueles que, à semelhança do Evangelho Apócrifo de Tiago ou Sabedoria de Jesus Cristo, tratam de fatos posteriores à paixão. A síntese entre os evangelhos de natureza biográfica e os evangelhos discursivos formam o último grupo, os evangelhos biográficos discursivos. Entre esses últimos, Epistula Apostolorum ou Pregação Evangélica de João.

A classificação acima, porém, se dá mediante a análise da natureza do conteúdo (narrativas ou seção de ditos), intercambiado com a extensão temporal da narrativa (antes, durante ou depois da paixão). A percepção da importância de ambos os critérios é do leitor de hoje. Segundo H. FRANKEMOLLE, em Jesus als deuterojesajanischer Freudenbote? Zur Rezaption von Jes 52.7 und 61.1 im Neuen Testament, durch Jesus und in den Targumin, In: FRANKEMOLLE & KERTELGE (orgs), Vom Urchristentum zu Jesus, 1989, critérios de intertextualidade, de relevância religioso-comunitária de determinados episódios, ou mesmo a relevância querigmático-catequética dos materiais concedem forma aos conteúdos conhecidos a partir da tradição. Sendo assim, há, por parte dos autores dos evangelhos canônicos, uma concepção que transpassa os interesses narrativos particulares e alcança novas dimensões. Emerge então a importância dos leitores, entendidos como comunidade leitora – uma vez que os evangelhos, até mesmo o que tem como destinatário Teófilo (a saber, Lucas), atendem às demandas comunitárias, coletivas, que são conformações a partir das quais os autores constroem seu discurso.

Os evangelhos, então, podem – e contém – relações literárias entre si, desde o gênero, até os conteúdos assumidos nos discursos sobre Jesus, especialmente, no nosso caso, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Dos tais, os três primeiros são textualmente semelhantes, o que conduz à conclusão da existência de dependência literária entre eles. O nome dado para destacar

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tal semelhança é “sinótico”, mas urge então compreender o que se entende por semelhança/gênero, qual o nível de dependência/independência literária entre os evangelhos e quais os limites da observação dos evangelhos em conjunto. Fundamentalmente, o que se objetiva aqui é discutir não apenas a questão das similaridades ou diferenças entre os textos, mas os limites de como a questão hoje é posta em debate.

O debate sinótico hoje é pautado majoritariamente, segundo PATRICIA WALTERS, The Synoptic Problem In: AUNE, D. E. The Blackwell Companion to the New Testament, p. 236, em duas questões: a busca pelo evangelho mais antigo, que hipoteticamente serviria de fundamento para os demais; e a necessidade de se explicar de forma convincente a dependência literária entre os evangelhos. A primeira iniciativa para resolução da questão, observada desde o segundo século, se deu por Pápias de Hierápolis, cuja obra é perdida, mas subsiste em fragmentos na História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, 3.39.14-16. Pápias teoriza a independência entre os evangelhos ao citar apenas Marcos, evangelho escrito mediante o testemunho de Pedro; e Mateus, cuja origem atribuída por Pápias são os lógiai de Jesus existentes em Hebreídi dialéktō.

Taciano, aluno de Justino, ofereceu uma importante contribuição. Ao observar as semelhanças entre os evangelhos, predispôs os mesmos às margens da harmonia que concebeu. A importância da contribuição de Taciano foi a de observar e destacar as semelhanças entre os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, explicitando-as, caminho seminal, porém fundamental até hoje para as sinopses feitas hoje.

Eusébio de Cesareia, de modo ainda mais relevante, propôs um código para a numeração das seções dos evangelhos, com a distinção em 10 tábuas dos paralelos nos quatro evangelhos (1 tábua), paralelos entre 3 evangelhos (3 tábuas), paralelos entre dois evangelhos (5 tábuas) e nenhum paralelo (1 tábua).

OS desenvolvimentos tornaram necessário explicar tamanho nível de semelhança. Agostinho, na obra De Consensus Evangelistarum, escrita no quinto século, propôs ser Mateus o evangelho-fonte, sendo esse consultado pelos demais evangelistas. O comentário de Agostinho visava resguardar a ordem canônica – Mateus => Marcos => Lucas => João. Não se baseava, no entanto, nas observações advindas das colunas do Diatessarão de Taciano, nem mesmo nas tábuas de Eusébio. Seu objetivo era o de explanar a respeito das discrepâncias entre os evangelhos, inclusive quanto ao conteúdo, arranjo e estilo, reconciliando a verdade literal e espiritual dos evangelhos mediante uma explicação que harmonizasse os textos.

Apenas com o advento do criticismo histórico na Alemanha é que foi possível desvencilhar a análise dos evangelhos das pressuposições teológicas, especialmente de Agostinho, repetidas durante séculos sem muita reflexão. Johann Salomo SEMLER, na obra Abhandlung von freier Untersuchung des Canon (1771-1775), tratou da origem histórica do cânon do Novo Testamento e estabeleceu a distinção em seus argumentos prévios entre a Sagrada Escritura e a Palavra de Deus, permitindo um tratamento do texto bíblico, especialmente do Novo Testamento, a partir de critérios críticos. A análise científica dos manuscritos fará vir à luz a crítica textual. A análise do trabalho de cada autor a partir das tradições orais dará origem à crítica das formas. A atividade editorial dos autores fará vir à lume a crítica da redação. E, no que cabe a essa conferência, a investigação sobre as fontes que serviram de base ao Novo Testamento em geral, e aos evangelhos em particular, fará surgir a crítica das fontes.

O impulso dado por Semler para a investigação do cânon despertou a atenção para a necessidade de uma mudança nos antigos consensos a respeito da origem dos textos neotestamentários, em

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especial, dos evangelhos. Johann Jakob GRIESBACH, na obra Synopsis Evangeliorum Matthaei Marci et Luccae, publicada entre 1774 e 1776, retomou a antiga disposição de comparar os evangelhos, estabelecendo, porém, três colunas, nos quais procurou ordenar os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas em ordem cronológica, deixando evidentes os paralelos entre eles. E foi GRIESBACH que cunhou os termos synopsis ao denominar seu trabalho a partir da ideia de que os evangelhos compartilham visões análogas dos mesmos eventos. Também foi Griesbach que deslocou João do seu trabalho, relegando-o a um lugar distinto dos demais evangelhos canônicos. A partir de então, analisa-se Mateus, Marcos e Lucas e, raramente, João é incluído nas análises, visto ser, de fato, um evangelho com um plano e um programa muito distinto dos demais.

GRIESBACH, porém, continuou as suas pesquisas e apresentou a obra Commentatio qua Marci Evangelium totum e Matthaei et Lucae commentariis decerptum esse monstratur, de 1779, no qual apresenta sua perspectiva analítica para a hipótese de Agostinho da atribuição da prioridade a Mateus e dependência de Lucas em relação a esse evangelho, sendo Marcos um resumo de ambos, de forma que Marcos concorda com ambos onde Mateus e Lucas concordam, mas concorda com um ou com outro onde ambos discordam.

A hipótese de GRIESBACH foi alvo de crítica no século XIX. Christian Gottlob WILKE e Christian Hermann WEISSE estabeleceram, em oposição às ideias correntes, a hipótese de que Marcos, e não Mateus, seria o evangelho mais antigo. Após isso, Heinrich Julius HOLTZMANN não apenas reafirmou a prioridade de Marcos, como analisou 230 versículos comuns entre Mateus e Lucas, porém ausentes em Marcos, como advindos de uma fonte comum, hipotética. As teorias de WILKE-WEISSE-HOLTZMANN são conhecidas como “teoria das duas fontes”. Estabeleceu-se, portanto, dois focos de observação: a análise da tripla tradição, que aproxima Mateus e Lucas de Marcos; e a análise da dupla tradição, composta pelos 230 versos que aproximam Mateus e Lucas de uma fonte hipotética, chamada em alemão de logionquelle ou Quelle. Porém, observa-se que, distintamente da ordem de Marcos, seguida de forma próxima em Mateus e Lucas, o material comum apenas a Mateus e Lucas (e ausente em Marcos) tem uma distribuição irregular e uma proximidade não tão significativa, não obstante ser possível identificar os temas comuns e relativa aproximação vocabular. Excluiu-se praticamente do debate o evangelho de João. Ao mesmo tempo em que textos estão próximos, como Mateus 9.15b/Mc 2.20/Lc 5.35 e Mt 13.12/Mc 4.25/Lc 8.18b, os textos de dupla tradição apresentam distanciamentos, como Mt 7.12 e Lc 6.31; ou Mt 5.25-26 e Lc 12.58-59. Tal situação torna o consenso em torno da hipótese das duas fontes difícil –e, segundo FITZMYER, The Gospel According Luke (I-IX), 1981, p. 63, “o problema sinótico é um problema que falhou ao buscar uma solução totalmente satisfatória”.

O desenvolvimento da pesquisa no século XX se deu com a publicação, em 1924, da obra The Four Gospels: A Study of Origins, de Burnett Hillman Streeter. A partir da análise das conclusões de Holtzmann, Streeter levantou 5 argumentos favoráveis à prioridade de Marcos: a concordância vocabular de 90% de Mateus e 50% de Lucas nas seções em que ambos seguem Marcos; o uso idêntico de Marcos pelos dois evangelistas; a percepção de que onde Mateus diverge com Marcos, Lucas concorda e vice-versa; a observação da primitividade do grego de Marcos; e a observação de que o material particular de Mateus, chamado de M (Mt 13.24-30 [joio e trigo], 18.23-35 [perdão], 20.1-16 [vinhateiros], e de Lucas, chamado de L (Lc 10.29-37 [bom samaritano], 15.11-32 [bom samaritano] e 16.1-13 [administrador infiel]) é antigo. Emerge, portanto, outra teoria com Streeter: a teoria das quatro fontes.

Os problemas da teoria das quatro fontes foram apontados fundamentalmente por Frans Neirynck na obra The Minir Agreements of Matthew and Luke Against Mark, with a Cumulative List, 1974.

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Nessa obra, Neirynck levantou 700 concordâncias menores entre Mateus e Lucas, classificando-as em positivclassificando-as – aquelclassificando-as em que Mateus e Lucclassificando-as estão próximos - e negativclassificando-as – aquelclassificando-as em que há ausência idêntica de material de Marcos, como por exemplo Mc 14.65 / Mt 26.67-68 / Lc 22.63-65. A expressão idêntica a Mateus e Lucas, “Quem é que te bateu?” falta a Marcos. O mesmo ocorre em Mc 5.27 / Mt 9.20 / Lc 8.44, em que Mateus e Lucas não apresentam a cláusula de Marcos “tendo ouvido a fama de Jesus”, ao mesmo tempo em que há um particípio “subindo” em Mt e Lc, particípio ausente em Marcos. O termo que designa o toque da mulher é diferente em Marcos, mas concordam em Lucas e Mateus. Isso levou a se teorizar a existência de um proto-Marcos em BURKETT, Rethinking the Gospel Sources: From Proto-Mark to Mark, 2004; ou de um deutero-Marcos em SANDERS & DAVIES, Studying the Synoptical Gospels, 1989, que serviria de fonte para o próprio evangelho de Marcos, para Mateus e Lucas (no caso do proto-Marcos), ou seria um evangelho de Marcos em uma nova edição, porém perdido, mas que serviu de fonte para Mateus e Lucas (no caso do deutero-Marcos).

O fato é que o tema foi proposto desde o início como uma questão de dependência literária, ou de busca das origens de evangelhos em particular, concentrada entre os evangelhos com maiores proximidades textuais – Mateus, Marcos e Lucas. Porém, a busca de semelhanças textuais para aferir dependências literárias acabou por deixar escapar a questão fundamental do gênero e da funcionalidade de um discurso no interior de um texto. Passagens análogas podem funcionar de forma bem distinta em textos diferentes, porque mais determinante do que a repetição do texto é a repetição do discurso.

Um discurso, repetido em um novo contexto, não apresenta a mesma funcionalidade discursiva, o mesmo sentido, mesmo que sejam utilizados os mesmos vocábulos, ainda que a narração seja a mesma.

Outra questão diz respeito à tessitura narrativa: a reorganização de um texto em outra tessitura narrativa modifica o sentido das narrativas, pois o discurso é construído a partir de seus relacionantes e condicionantes externos, mas fundamentalmente está ligado à tessitura narrativa que adquire quando tal narrativa é aproximada de outras, é antecedida de outras e é sucedida de outras que lhe modifiquem o sentido a ponto da mesma ser reapropriada e se torne parte de um novo discurso.

Outra questão é: até que ponto João não é sinótico? É óbvio que a construção do discurso joanino se pauta em outras bases, porém a exclusão de João das influências ou contato com Marcos, Q ou mesmo Mateus e Lucas deixa uma lacuna na pesquisa. Ou seja: até que ponto João, ainda que se distancie gramatical e vocabularmente dos sinóticos, é sinótico.

A última questão diz respeito ao ponto de observação: vê-se que a análise estatística, vocabular, estilística, se mostrou inconclusiva para fornecer uma solução parcial satisfatória para uma crítica das fontes. A ideia de uma fonte, de uma origem que desencadeia a trama discursiva, é um dado que ignora que o redator que lança mão da fonte o faz porque a respeita, mas também o faz porque dela discorda, porque a acha insuficiente para comunicar em um novo contexto, ou mesmo o faz porque observa que tal deve ser desconstruída. A desconstrução discursiva resultante do uso de uma fonte, intencional ou não, é uma crítica da fonte encetada pelo que a manipulou e a fez dizer o que ela já dizia com um novo tom. A compreensão de que, no cristianismo primitivo, era necessário escrever para dar ciência a respeito de Jesus é reducionista: certamente, em vários círculos, já se conhecia bem a tradição a respeito de Jesus. Não era necessário renarrar o que todos já sabiam. Era mais necessário modificar o que todos sabiam. Nada melhor para isso do que lançar

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mão das fontes disponíveis para mudar, mudando a fonte. Então, descobrir a fonte original não nos aproxima do conteúdo mais antigo a respeito de Jesus do que nos torna aptos a vislumbrar a renovação desses conteúdos, ação igualmente válida e tão importante quanto descobrir os matizes do cristianismo mais antigo.

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