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Neste 8 de março, inspirar-se no legado das mulheres palestinas

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Neste 8 de março, inspirar-se

no legado das mulheres

palestinas

Soraya Misleh |

As mulheres são invisibilizadas nos processos de luta, e na Palestina a regra não é exceção. Pelo contrário, diante das representações sobre as mulheres árabes, descritas pelo intelectual palestino Edward Said em “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, é lugar comum a ideia de que elas estão distantes das ruas e mantêm-se submissas em seus lares. No caso das palestinas, nessa construção de um “Oriente” atrasado e de bárbaros ante um “Ocidente” civilizado, que serve à dominação imperialista, quando são reconhecidas como participantes da resistência (em exceção a um universo erroneamente considerado homogêneo), são taxadas de “mulheres bomba”, “terroristas”.

As palestinas e árabes em geral não estão confinadas ao espaço privado pela sua natureza, tampouco são terroristas. Enfrentam os mesmos desafios que as mulheres de todo o mundo diante de sociedades patriarcais e conjugam essa luta contra a opressão de gênero à por libertação e justiça. Nessa direção, historicamente, pululam exemplos de sua integração à heroica resistência contra a ocupação, a colonização e o apartheid israelenses.

Enfrentam-se com um feminismo que serve à dominação, ao não enxergar a diversidade do mundo árabe e fundar-se em estereótipos sobre as mulheres árabes. São movimentos de mulheres que baseiam sua “solidariedade internacional” na concepção falsa de que suas congêneres árabes devem ser salvas dos atrasos impostos por uma região de bárbaros, sob a bandeira dos “direitos humanos”. Contra tal caricatura, no

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mundo árabe, ganha espaço o chamado “feminismo anticolonial”. As mulheres na história

Passo importante nessa desconstrução é o reconhecimento da localização das mulheres palestinas na história. Como aponta a feminista egípcia Nawal El Saadawi, em “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe”, foram elas pioneiras nos protestos contra os primeiros assentamentos sionistas ao final do século XIX – a serviço da colonização de terras e conquista do trabalho, que integravam o projeto sionista de limpeza étnica para constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina (Israel). Já em 1903, período que marca o começo da segunda onda de imigração sionista, criaram uma associação de mulheres.

Nos anos 1920, sua atuação se fortaleceu e formaram vários comitês populares para articular protestos e demais ações de desobediência civil, bem como garantir auxílio a feridos em manifestações. Em 1921, Emilia As-Sakakini e Zalikha Ash-Shihabi formaram a primeira União de Mulheres Árabes-Palestinas, que organizou protestos contra o mandato britânico, a colonização sionista e a Declaração Balfour – em que a Inglaterra garantia a constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas. Ativistas famosas na época incluem Maryam Izz-Din Al-Qasam, Nabiha Nasir e Aqilah Al-Budeiri.

Em agosto de 1929, participaram de manifestação reprimida violentamente pela Grã-Bretanha. Entre os 116 participantes mortos, nove eram mulheres. Muitas outras foram feridas, presas ou espancadas. No mesmo ano, aconteceu entre 26 e 29 de outubro o primeiro Congresso de Mulheres Árabes em Jerusalém, com o objetivo central de organizar o movimento de mulheres face à situação política no terreno, com o aumento da colonização sionista. As mais de 300 participantes concordaram em chamar o boicote a produtos britânicos e estabelecer um centro de informação ao mundo sobre o que estava ocorrendo na Palestina, bem como em promover novos protestos. A conferência

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aprovou o envio de uma delegação formada por 14 mulheres para entrega ao Alto Comissariado Britânico de suas demandas: o cancelamento da Declaração Balfour, o impedimento da imigração sionista e a substituição de um procurador-geral judeu por seu conhecido racismo. Após a reunião, as 14 mulheres se somaram a outras 100 em uma carreata pelas ruas de Jerusalém, com parada em frente a embaixadas estrangeiras.

Na década seguinte, a luta se ampliou. Em abril de 1933, mulheres de diversas partes da Palestina marcharam em Jerusalém contra a visita aos lugares sagrados pelo general britânico Edmund Allenby. Na revolução de 1936-1939 contra o mandato britânico e a colonização sionista – cujas causas e análise da derrota estão explicitadas pelo revolucionário Ghassan Kanafani em “A revolta de 1936-1939 na Palestina” –, as mulheres também se destacaram. Em 4 de maio de 1936, 600 estudantes realizaram uma conferência em Jerusalém e protagonizaram uma greve que durou seis meses. Em outras partes da Palestina, organizaram grandes marchas e comitês populares. Além de promoverem protestos, recolhiam fundos para assistência às famílias dos mortos e prisioneiros e auxiliavam no transporte de insumos básicos e armas. Nas aldeias, lutavam lado a lado com os homens para defender suas terras. Uma dessas heroínas é Fatma Ghazal, morta em combate no dia 26 de junho de 1936.

Outro nome que merece destaque na história palestina é o de Fatma Khaskiyyeh Abu Dayyeh. Na revolução de 1936-1939, ela esteve no comando do local de armazenagem das armas dos revolucionários e em 1948, durante a nakba (catástrofe palestina, representada pela criação do Estado de Israel), chefiou um grupo misto de 100 combatentes. Também se formaram no período brigadas exclusivas de mulheres, que se colocaram na linha de frente contra a expropriação de suas terras. Entre elas, “The Sisters of Qassam”, de Haifa; e “Zahrat Al-Uqhuwan” (o crisântemo), um grupo secreto fundado em Yafa em 1947 como uma instituição de caridade para ajudar os

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estudantes palestinos pobres, mas que tornou-se um braço armado depois que uma de suas fundadoras, Moheeba Khorsheed, testemunhou o assassinato de uma criança palestina.

Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, atrelada à Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No início seu papel ainda era, contudo, limitado, reservado à assistência social e aos cuidados com a saúde. Mas a política não foi deixada de lado. Ao final dos anos 1960 e início dos 1970, diversas delas partiram para a ação direta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos humanos e a expansão israelense, que em 1967 resultou na ocupação por parte dessa potência bélica de toda a Palestina histórica. A mais conhecida em todo o mundo é Leila Khaled. Então com apenas 24 anos, participou do sequestro de aviões em troca de prisioneiros políticos e colocou em evidência a causa palestina. Foi detida em uma das ações e saiu após outra operação do gênero.

Nas intifadas (levantes) de 1987-1993 e 2000-2004, novamente as mulheres foram às ruas. Na primeira, as que viviam nas áreas rurais assumiram papel central, mas as que residiam na região urbana também marcaram presença. Para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. O número de mulheres detidas passou de centenas do início da década de 1970 para milhares nos anos 1980.

Nos últimos 45 anos, foram 10 mil presas políticas. Em 2011, houve troca de prisioneiros e passaram a nove. A partir de outubro último, com o início da nova intifada, 106 foram detidas – um incremento de 70% em relação a 2013 – e hoje permanecem nos cárceres israelenses 60 delas, as quais têm se somado às constantes greves de fome contra as más condições a que são submetidas, assim como os 7 mil palestinos detidos ilegalmente pelas forças de ocupação. Na intifada em curso, as mulheres, em sua maioria jovens, são 40%.

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Ao longo de toda essa trajetória, elas se destacaram também em outras trincheiras de luta, como no campo das palavras. No âmbito cultural, entre as que merecem ser lembradas encontra-se Fadwa Touqan, que nasceu em 1917 na cidade de Nablus, na Cisjordânia, e faleceu em 2003. Nas palavras de Moshe Dayan, chefe do exército israelense em 1967, seus versos eram mais subversivos do que dez atentados.

Muitas heroínas

As mulheres são as que mais sofrem em situações de emergência humanitária, conflitos armados e frente à ocupação da Palestina. Mas não se intimidam. Representando quase metade da população total de 3,9 milhões nos territórios palestinos ocupados militarmente em 1967 (1,8 milhão), estão reunidas em diversas organizações, por educação, saúde, trabalho, contra a ocupação e o sexismo. Ali, assim como nos campos de refugiados, em que são milhares, na diáspora ou onde hoje é Israel, sempre se fizeram e fazem ouvir e notar, desafiando o projeto sionista.

Em visita à Palestina, a voz feminina é decisiva: “Antes saíamos de nossa terra, porque achávamos que voltaríamos em breve. Hoje podem destruir nossas casas, roubar nossas oliveiras, nos agredir, não vamos embora. Nem que tivermos que morar numa tenda, aqui é nossa terra.”

A história palestina de resistência é repleta de nomes de heroínas, que se recusaram e se recusam a permanecer em silêncio e inertes até que a Palestina seja livre. Para além dos nomes registrados na história, há milhares anônimas. Nawal El-Saadawi, em “A face oculta de Eva”, conclui: “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo. Seus feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações.” Neste 8 de março – Dia Internacional da Mulher –, lembrá-las é o mínimo. É papel de cada uma que acredita em um mundo justo inspirar-se em seu legado.

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O jovem Trotsky: entre

menchevismo e bolchevismo

Gustavo Henrique Lopes Machado |

O pensamento e, sobretudo, as posições políticas de Leon Trotsky no período que antecede a Revolução Russa foram, desde muito cedo, objeto de grandes debates e polêmicas. E isto não se deu sem motivo. Gozando de grande prestígio pela sua atuação na revolução de 1917 e na direção do Exército Vermelho, Trotsky foi o alvo prioritário da burocracia stalinista quando se tornou o porta-voz de sua oposição. Nesse cenário, as polêmicas e disputas entre Lenin e Trotsky, que se seguiram desde pelo menos o segundo congresso da Social-democracia russa – 1903, quando se deu o seu fracionamento entre Bolcheviques e Mencheviques–, foram largamente difundidas. Com particular intensidade as duras críticas de Lenin à Trotsky realizadas no período entre 1909 e 1912. Não é preciso remontar aqui o que já fora dito e redito um sem-número de vezes. É suficiente mencionar que, com auxílio dessas antigas polêmicas, Trotsky fora convertido em menchevique e em inimigo número um do bolchevismo.

Não sem razão, os trotskistas e o próprio Trotsky se dedicaram, desde então, a mostrar o outro lado da moeda. Particularmente, a mútua admiração que sempre existira entre os dois principais dirigentes da revolução de 1917, a confirmação histórica da teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky desde o início do século, seu papel de destaque na revolução de 1905, suas críticas precoces e certeiras a visão estapista da história dos mencheviques e assim por diante. Por outro lado, as diferenças com Lenin foram, regra geral, expostas do seguinte modo: a revolução de

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1917 marcou a aproximação de Lenin da teoria da revolução permanente de Trotsky e a adesão desse último à concepção de partido sustentada pelo principal dirigente do partido Bolchevique, reconciliando-os.

Apesar desta conclusão não ser, em suas linhas mais gerais, falsa, distante está de dar conta do cerne das diferenças entre os dois. Em verdade, Lenin raríssimas vezes abordou o tema da teoria da Revolução Permanente. Trotsky, inclusive, sustenta, anos depois, que Lenin sequer havia lido seus escritos sobre o tema. Por outro lado, exceto por um antigo ensaio denominado Nossas Diferenças Políticas, a questão da concepção de partido em Lenin encontra-se praticamente ausente nos escritos conhecidos de Trotsky até a revolução. Qual seria, então, o motivo central do embate entre Trotsky e Lenin no período entre a cisão da social-democracia russa e a revolução de 1917?

Em função das calúnias a que foi sistematicamente submetido, da identificação caricatural do stalinismo com o leninismo, o próprio Trotsky não deixou de nuançar a real natureza de suas divergências com Lenin no período anterior a sua adesão ao bolchevismo. Tratava-se do conciliacionismo ou do centrismo de Trotsky que, em todo período precedente, batalhou pela unidade entre bolcheviques e mencheviques, entre revolucionários e reformistas. Não foi casual que somente em seu último e inacabado escrito, a biografia de Stalin, Trotsky dedicou um espaço considerável a este tema. Por isso, nesse artigo, nos centramos exclusivamente nesse texto, tendo em vista esclarecer o conteúdo central da polêmica de então. Sobretudo, hoje, passados 25 anos do sepultamento definitivo do aparato stalinista no leste europeu, já é chegada a hora de reexaminarmos a questão sem a interpenetração das caricaturas do passado, para dela retirarmos as devidas lições.

O conciliacionismo de Trotsky

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de que somente o proletariado russo poderia assumir o papel dirigente em uma futura revolução nesse país. Mais ainda. Tal revolução, em função da posição social do proletariado, assumiria tarefas imediatamente socialistas. Sua concepção se opunha tanto a visão etapista menchevique-plekanoviana da necessidade de uma longa etapa liberal burguesa na Rússia, assim como a teoria do próprio Lenin que acenava, ainda que temporariamente, na direção de um governo operário-camponês nos marcos de uma República burguesa. Trotsky poderia, nesse caminho, ainda que grosseiramente, ser caracterizado como à esquerda dos Bolcheviques. Como explicar, portanto, o fato de ter batalhado tão persistentemente pela reconciliação entre bolcheviques e mecheviques?(1).

O próprio Trotsky nos explica: em sua antiga acepção, com o irromper de uma “nova Revolução, sob pressão das massas trabalhadoras, as duas frações iriam de qualquer maneira ser compelidas a assumir uma posição idêntica, como o haviam feito em 1905” (TROTSKY, 2012, 354). Em outro lugar, assinala o que s e r i a “ c a l c a n h a r d e A q u i l e s ’ d o ` t r o t s k i s m o ’ : “ o conciliacionismo, associado à esperança de uma reencarnação revolucionária do menchevismo” (TROTSKY, 2012, 376). Qual seria o pressuposto teórico dessa visão conciliacionista propugnada por Trotsky? Em que se baseava sua crença de que o menchevismo se envergaria para posições revolucionárias sob o influxo de um processo revolucionário?

Em outra passagem, o revolucionário russo esclarece seus pressupostos: a “política de conciliação crescia nas esperança de que o próprio curso dos acontecimentos pudesse proporcionar a tática necessária” (TROTSKY, 2012, 354). Ou seja, na acepção do jovem Trotsky, as táticas são “proporcionadas” pelo movimento, pelos acontecimentos e não em função do objetivo final, já que este último é engendrado espontaneamente pelo primeiro. Tratava-se unicamente de fomentar um bloco à esquerda e, feito isto, a realidade mesma se encarregaria do resto. Tática e estratégia, meios e fins são separados por um

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abismo. Tanto é assim que logo em seguida complementa:

“o otimismo fatalista significa, na prática, não apenas repúdio a luta fracional, mas da própria ideia de um partido, porque, se ‘o curso dos acontecimentos’ é capaz de, diretamente, ditar às massas a política correta, qual a utilidade de qualquer unificação especial da vanguarda proletária, da elaboração de um programa, da escolha de dirigentes, do prepara no espírito da disciplina?” (TROTSKY, 2012, 355).

O raciocínio empírico oculto sobre tal equívoco não é difícil de deduzir. Com a reação que se abateu a partir de 1909 na Rússia, a tendência à unidade a todo custo se acirrou nas fileiras da social-democracia. Como explica Trotsky: a “contínua fragmentação do Partido em pequenos grupos, que travam batalhas implacáveis no vácuo, despertou, em muitas frações, o desejo de acordo, de conciliação, de unidade a qualquer preço” (TROTSKY, 2012, 354). Parafraseando Bernstein, c o m o o m o v i m e n t o é t u d o e o o b j e t i v o f i n a l b r o t a espontaneamente desse movimento, a força das posições revolucionarias são medidas em função da dimensão quantitativa do bloco que se contrapõem à classe dominante, independente de seu programa específico. No entanto, a autocrítica de Trotsky foi completa. Destaca que certos “críticos do bolchevismo […] encaram o meu velho conciliacionismo como expressão de sabedoria. Contudo, o seu erro profundo já foi há muito demonstrado tanto na teoria como na prática” (TROTSKY, 2012, 354-355). Tal erro profundo consiste basicamente no seguinte:

Uma simples conciliação de frações só é possível ao longo de uma espécie de linha ‘média’. Mas onde há garantia de que esta diagonal possa coincidir com as necessidades do desenvolvimento objetivo? A tarefa da política científica é deduzir um programa e uma tática de uma análise da luta de classes, não do paralelogramo [sempre instável] de forças secundárias e transitórias, como frações partidárias. Na

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verdade, a posição da reação era tal que apertava a atividade política de todo Partido dentro de limites extremamente estreitos. A esse tempo, poderia parecer que as divergências não tinham importância e eram, artificialmente, inflamadas pelos dirigentes emigrados. Contudo, precisamente durante o período da reação, o partido revolucionário não poderia forjar os seus quadros sem perspectivas mais amplas” (TROTSKY, 2012, 354-355).

Como se vê, para o Trotsky pós-1917, a elaboração teórica de uma política não se baseia na somatória ou justaposição de partidos ou frações, não se funda em uma linha média tacejada na somatória de várias organizações de esquerda, mas nas “necessidades do movimento objetivo”. Por isso se deduz “um programa e uma tática de uma análise da luta de classes”. É interessante notar que, segundo Trotsky, é justamente em um período de reação que um partido precisa forjar seus quadros em perspectivas mais amplas, isto é, com uma delimitação programática clara e diferenciação permanente, no presente caso, com o menchevismo. Evidentemente, a pressão em sentido oposto foi muito grande. Tanto que, ao tratar da permanência de Stálin no partido Bolchevique naquele período de vacas magras, assinala que, durante os anos de reação, Stalin “não foi um entre as dezenas de milhares que desertaram do Partido, mas um entre as poucas centenas que, apesar de tudo, lhe continuaram fiéis” (TROTSKY, 2012, 357). Nessa altura, o partido Bolchevique que poucos anos antes organizava dezenas de milhares, se viu reduzido a algumas centenas, talvez menos. Isto tornou a posição de Trotsky mais razoável? A unidade com os mencheviques em função do reduzido número de integrantes do partido Bolchevique que, segundo a metáfora de Lenin, a época se assemelhava a uma “criança coberta de abscessos”?

Lenin pensava exatamente o oposto. Conforme nos explica Trotsky, o dirigente bolchevique escreveu em 1911 que, naquele período, numerosos social-democratas “mergulharam no conciliacionismo, partindo dos motivos mais diversos. Mais

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consistente que todos era o conciliacionismo expresso por Trotsky, por isso, foi o único a procurar uma ‘base teórica’ para essa política”. Isto fez Lenin ver em Trotsky “a maior ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário” (TROTSKY, 2012, 355-356). Como se nota, Lenin não apenas combateu as posições de Trotsky, como viu nela a principal ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário. Mais até que as posições explicitamente reformistas dos mencheviques. Em que se baseava um juízo tão severo?

Em seguida, Trotsky explica a posição de Lenin. “‘Aprendemos na época da Revolução’, escreveu Lenin, em julho de 1909, ‘a falar francês’, isto é, a despertar a energia e o ímpeto direto da luta de massa”. No entanto, o que fazer quando a revolução não está na ordem do dia? Lenin prossegue: “agora precisamos, na fase de estagnação, de reação, de desagregação, aprender a falar alemão, isto é, a trabalhar lentamente… conquistando o terreno polegada por polegada” (TROTSKY, 2012, 356). Seria este ‘falar alemão’, este trabalhar lentamente, a política do conciliacionismo de Trotsky? Da unidade com os mencheviques no intento de fortalecer o bloco político anti-czarista e de colher as migalhas do menchevismo? Absolutamente não. Esta era, na verdade, a posição de Martov, o principal dirigente Menchevique à época. Para Martov, continua Trotsky, “ ‘falar alemão’ significava a adaptação ao semi-absolutismo russo, na esperança de que, gradualmente, se ‘europeizasse’”. Por outro lado, para “Lenin, a mesma expressão queria dizer: a utilização, com ajuda de um partido ilegal, de todas as magras possibilidades legais, no trabalho de preparo de uma nova Revolução” (TROTSKY, 2012, 356-357).

Como se vê, para Lenin, mesmo em um período de reação, as tarefas legais e ilegais são hierarquizadas pelo “trabalho de preparo de uma nova Revolução” e não em um acumular forças de modo indeterminado. Para melhor alçarmos o sentido desse ‘falar alemão’ de Lenin, assim como seu rechaço a toda e qualquer conciliação, é esclarecedor as palavras de Trotsky a

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respeito da tática de Lenin frente as eleições da DUMA, particularmente no que diz respeito a relação entre partido Bolchevique e Mechevique nesse processo. Feito isso, podemos distinguir com clareza o abismo entre a concepção que procura extrair as táticas dos acontecimentos do dia que passa e àquela que, sem desconsiderá-los, deduz um “programa e uma tática de uma análise da luta de classes”, isto é, das “necessidades do desenvolvimento objetivo”.

A posição de Lenin diante das eleições da DUMA

Se Lenin rejeitava a unidade entre bolcheviques e mencheviques tal como defendera Trotsky, qual seria sua posição diante do processo eleitoral da DUMA? Nesse caso, seria ele adepto do bloco eleitoral em função da fragmentação do movimento revolucionário russo e, particularmente, da drástica redução numérica do partido Bolchevique? Assim Trotsky resume a plataforma eleitoral Bolchevique:

Os bolcheviques empenharam-se na luta eleitoral separados dos liquidadores[mencheviques], e contra eles. Os operários deviam reunir-se sob a bandeira das três principais palavras de ordem da revolução democrática: a república, a jornada de oito horas e a confiscação dos domínios territoriais. Libertar os pequenos burgueses democratas da influência dos liberais, arrastar os camponeses para o lado dos operários – tais eram as principais ideias da plataforma eleitoral de Lenin. (TROTSKY, 2012, 396)

Mesmo no processo eleitoral, em meio a uma ditadura autocrática, os bolcheviques não apenas marchavam separados dos mencheviques, mas contra eles. “Energicamente, combateu os liquidadores durante a campanha a fim de ter os seus próprios deputados: tratava-se de assegurar um importante ponto de apoio” (TROTSKY, 2012, 399). Teria Lenin lutado tão energicamente contra os mencheviques a fim de conseguir mais deputados? Sem dúvida, os deputados bolcheviques seriam “um

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importante ponto de apoio”, no entanto, “toda a sua política orientava-se para a educação revolucionária das massas. A luta da campanha eleitoral nada representava para ele se, após, os deputados social-democratas, na Duma, permanecessem unidos” (TROTSKY, 2012, 399). Ou seja, o critério fundamental não era a eleição de deputados, tampouco a quantidade total de votos, mas a educação revolucionária das massas, o que apenas pode ter como centro a clara distinção das posições dos mencheviques. Em resumo: “procurava proporcionar aos operários todas ‘as oportunidades – a cada passo, com cada ato – para convencerem-se de que nas questões fundamentais os bolcheviques distinguiam-se nitidamente de todos os demais grupos políticos’ “. (TROTSKY, 2012, 399-400).

Mas existe ainda outro aspecto fundamental, largamente explorado por Trotsky em sua autocrítica das posições de juventude em favor das posições bolcheviques. Além de ter sustentado uma posição conciliacionista, ao pressupor que a luta conduz por si mesma à posições revolucionárias, Trotsky não deu o peso devido a base social dos respectivos partidos. Diz ele que o “bolchevismo contava com a vanguarda revolucionária do proletariado e ensinou-lhe como arrastar atrás de si o camponês pobre. O menchevismo contava com a aristocracia operária e inclinava-se para a burguesia liberal” (TROTSKY, 2012, 376-377). Muito embora não exista um vínculo necessário e individualizado entre a composição social e o programa político, este fator produz inclinações em conformidade com as próprias características dos setores sociais envolvidos. Não sem razão, para Lenin, o processo eleitoral era tratado prioritariamente em função de seu trabalho na classe operária. Era nesse setor social que os bolcheviques escolhiam os seus candidatos e avaliavam sua influência. Tanto é assim que, após a eleição da quarta DUMA, os “sete mencheviques, quase todos intelectuais, procuravam colocar os seis bolcheviques, operários com pequena experiência política, sob seu controle”. Diante disso, a posição de Lenin foi a seguinte: se “todos os nossos seis são

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oriundos dos distritos operários, não devem se submeter em silêncio a um grupo de siberianos” (TROTSKY, 2012, 398). Os siberianos se tratavam, como é sabido, predominantemente de intelectuais.

Por fim, a autocrítica das posições do jovem Trotsky e a síntese das lições extraídas da atuação dos bolcheviques naqueles anos entre 1909 à 1912, em que o partido passara de um restrito agrupamento de militantes a uma forte inserção na classe operária, é assim resumida:

“Todos grupos hostis ao bolchevismo – os liquidadores, os renuncistas, todas as matizes de conciliadores – mostraram-se absolutamente incapazes de lançar raízes na classe operária. Daí Lenin tirou a sua conclusão: ‘Unicamente no curso da luta contra tais grupos pode o verdadeiro Partido Social-Democrata dos operários constituir-se na Rússia’‘ (TROTSKY, 2012, 425)

Considerações finais

Como se vê, apeser do jovem Trotsky estar, desde o começo e em nossa opinião, correto a respeito do caráter e sujeito social da revolução russa, apesar de ter escrito uma das mais brilhantes análises particulares de um processo revolucionário – A revolução de 1905 –, apesar de ter se revelado muito precocemente um grande orador de massas, assim como propagandista; sua posição política se situa entre o menchevismo e o bolchevismo. Independente da maior ou menor justeza de várias de suas posições, mesmo em relação aos bolcheviques, de nada valeriam se, na sua efetividade, se apresentassem mescladas em uma linha média de um agrupamento político que congrega em seu seio revolucionários e reformistas.

É evidente que os bolcheviques tiveram êxito porque conseguiram corrigir a tempo os limites de um programa que acenava unicamente na direção de uma república democrática. No

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entanto, não teriam sequer a chance de se corrigir, se não estivessem fortemente enraizados na classe operária, com uma organização autônoma e programaticamente independente. Não apenas separados dos mencheviques, mas, sobretudo, “contra eles”.

NOTAS

Cabe lembrar que, muito embora, formalmente, se tratasse de frações do Partido Operário Social-Democrata Russo, na realidade eram partidos diferentes, com seus núcleos dirigentes e estruturas independentes. Ainda que tenha ocorrido tentativas de reconciliação manifestas na realização de congressos em comum e, mesmo, por um curto período, a criação de um collegium do Comitê Central que congregava membros de ambas as frações.

REFERÊNCIAS

TROTSKY, Leon; COGGIOLA, Oswaldo. Stalin: Biografia – Estudo preliminar de Oswaldo Coggiola. Editora Livraria da Fisica, 2012, São Paulo.

Da frente única a frente

popular: a virada histórica

da Internacional Comunista

sob o estalinismo

Carlos Zacarias de Sena Júnior* |

Na história do movimento comunista, a questão das políticas de frentes (única, popular e nacional) sempre foi um tema por

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demais espinhoso, de maneira que, se para Lenin e para Trotsky, dois dos principais líderes da Revolução Russa, a política da frente única (FU) deveria ser usada com máxima flexibilidade tática desde 1921, para os comunistas conselhistas e a ultraesquerda a FU significava uma espécie capitulação à socialdemocracia e/ou aos seus governos. Não por acaso, Lenin dedicou boa parte do seu livro sobre o esquerdismo, escrito em 1921, para combater aquilo que acreditava ser a doença infantil das correntes comunistas do período.[i] Ainda no interior da Internacional Comunista (IC), nova fratura seria evidenciada desde a ameaça e ascensão de movimentos e ditaduras de tipo fascistas, inicialmente na Itália e posteriormente na Alemanha, quando Trotsky e seus partidários defenderam a frente única com os operários socialdemocratas, contra a política do “terceiro período” do Komintern, cujas correntes stalinistas acusavam a socialdemocracia de ser uma irmã gêmea do fascismo. A virada decisiva viria, no entanto, somente em 1934/1935, ocasião em que o Partido Comunista Francês, com o beneplácito da IC, adotou a política de frente única com a socialdemocracia e, posteriormente, de frente popular com os chamados “radicais” que formavam um partido de coloração pequeno-burguesa na França. Mas em que circunstâncias as políticas frentistas foram adotadas pelo movimento comunista internacional? Onde se encontra a principal divergência que fez com que se bifurcassem as principais heranças do movimento operário da terceira-internacional?

O objetivo deste trabalho é situar a discussão no contexto das primeiras formulações da tática de frente única no interior da Terceira Internacional. Pretende-se que a análise das elaborações originais de Lenin e Trotsky sejam confrontadas com a proposição de frente popular e frente nacional no momento de uma virada histórica ocorrida durante o refluxo da primeira onda revolucionária (1917-1923) e de ascenso da contrarrevolução. O argumento central aqui proposto diz respeito ao fato de que a inflexão tática promovida pela IC

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nos anos 30 significou também uma reformulação estratégica do movimento comunista, já que este definiu como horizonte a defesa da democracia e a realização de alianças cada vez mais amplas com setores da burguesia dita progressista.

Na história do movimento comunista, a trajetória das formulações frentistas remonta aos primeiros anos de funcionamento do Komintern e, em larga medida, foi adotada pelas Seções Nacionais de diversos países e em diversas conjunturas. Fundada em 1919, a Internacional Comunista, ou Terceira Internacional, consagrou a liderança do Partido Bolchevique e da via revolucionária russa no quadro da movimentação operária européia no primeiro quartel do século XX. A vitória dos bolcheviques na Revolução de Outubro de 1917 foi um dos feitos mais extraordinários de toda a história da humanidade. Até então, nenhuma ação planejada, fundada numa organização política conscientemente organizada e centralizada para uma determinada finalidade, havia chegado tão longe nos seus propósitos. Nem mesmo as organizações atuantes na Revolução Francesa de 1789 chegaram perto do que foi o Partido Bolchevique, dirigido por Lenin, e do papel que esta organização cumpriu nos eventos espetaculares daqueles anos que mudaram a história do mundo no século XX. Regidos por uma estrutura que agregava revolucionários profissionais, submetidos ao “centralismo democrático”, o modelo leniniano de partido denotou uma substancial eficácia da sua organização, ao menos no quadro russo das duas primeiras décadas do século passado.

O sucesso da Revolução de Outubro disseminou, portanto, ao longo das décadas seguintes do século XX, o paradigma das revoluções operárias e socialistas que envolveriam imensos contingentes humanos, explorados pelo capital e eventualmente oprimidos por regimes autocráticos, como era o caso do tzarismo na Rússia, da mesma forma que ensejou a criação de uma era de revoluções e de organizações revolucionárias, inspiradas no bolchevismo, que não tardariam a ser

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experimentadas no restante da Europa na primeira vaga revolucionária aberta entre 1917 e 1923. Todavia, as esperanças alimentadas por Lenin e Trotsky de que a revolução mundial não faltaria e viria em auxílio da Rússia dos sovietes, foram frustradas pelas derrotas das revoluções húngara (1919), italiana (1920) e, principalmente, da revolução alemã de 1919/1921. Caberia, então, à Internacional Comunista fazer o balanço destas primeiras derrotas e buscar as respostas e proposições táticas de acordo com cada circunstância e cada nova conjuntura.

Foi somente no seu III Congresso, em 1921, que o Komintern pôde avaliar os aspectos das derrotas que parcialmente se iam abatendo sobre a classe operária em diversos países europeus. Ainda no bojo da situação revolucionária inaugurada com o fim da Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa de 1917, a Terceira Internacional e suas principais lideranças puderam produzir as primeiras formulações com base no balanço das revoluções que se processavam na Europa. Foi, sobretudo, através do documento “Tese sobre a situação mundial e a tarefa da Internacional Comunista”, cuja redação ficou sob a responsabilidade de Trotsky, que a IC entreviu que, apesar da permanência da situação revolucionária no plano internacional, a “poderosa onda” não conseguia, entretanto, “derrotar o capitalismo mundial, nem mesmo o capitalismo europeu”.[ii] Ainda que caracterizando as derrotas como parciais, o documento trazia questões fundamentais ao movimento comunista internacional na medida em que indagava, pela primeira vez desde o impulso revolucionário de 1917, até que ponto a burguesia poderia restabelecer o equilíbrio social no pós-guerra, ou, então, se haveria a possibilidade de uma época prolongada de crescimento do capitalismo. O texto concluía a premissa com uma constatação: “Não decorre disso a necessidade de revisar o programa ou a tática da Internacional Comunista?”.[iii]

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combinar o realismo político com a atividade revolucionária nas democracias ocidentais que, sob alguns aspectos, eram c a r a c t e r i z a d a s c o m o d i s t i n t a s d o c a s o r u s s o . [ i v ] Concretamente, na maioria dos países europeus, as organizações comunistas se defrontavam com situações políticas bastante diversas das encontradas pelo Partido Bolchevique ante o Estado autocrático na Rússia, com a classe operária dispondo de amplos e complexos mecanismos de manifestação, o que erguia u m a p o r t e n t o s a c o n c o r r ê n c i a d a s c o r r e n t e s d i t a s revolucionárias com as agremiações da socialdemocracia europeia. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Social Democrata (SPD), além de hegemonizar o movimento operário, chegou a liderar o governo burguês de coalizão na República de Weimar e , e m a l g u n s m o m e n t o s i n c l u s i v e , c o m p o r m a i o r i a parlamentar.[v] Apesar da percepção quanto às diferenças, as resoluções do Komintern não chegaram a indicar um caminho que n e g a s s e a n e c e s s i d a d e d a r u p t u r a r e v o l u c i o n á r i a e privilegiasse a atuação parlamentar, pois o que se procurava era, apenas e tão-somente, incorporar à tática das organizações comunistas, os mecanismos de acumulação de forças nas épocas em que a crise revolucionária não se tivesse aberto.

No III Congresso, portanto, consagrou-se a tática que indicava aos Partidos Comunistas uma política que os levasse a se constituírem em maiorias no seio da classe operária. Sob o dístico de “às massas”, recusava-se todo o sectarismo e o putschismo aventureiro, praticado por algumas das Seções Nacionais da Terceira Internacional e, ao mesmo tempo, procurava-se encaminhar o movimento comunista para dentro dos organismos de massas, os sindicatos principalmente, para a partir dali formarem a necessária frente única que encontrasse o termo da realpolitik e da ação revolucionária almejada. No estrito terreno da classe operária, o essencial de ambas as políticas era o pressuposto de que o Partido Comunista deveria caminhar para se constituir em força hegemônica no seio do proletariado, ganhando a maioria da classe para o seu projeto.

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Os Partidos Comunistas, surgidos do grande ascenso revolucionário do pós-guerra, viram-se, pela primeira, vez na iminência de elaborarem uma tática que não fosse meramente ofensiva, mas uma tática apropriada a um período de relativa estabilização do capitalismo, tática esta que combinasse m e d i d a s d e f e n s i v a s , c o m a p r e p a r a ç ã o d a o f e n s i v a revolucionária pela classe trabalhadora.

Não foi por outro motivo que a tese da frente única operária foi ratificada no IV Congresso do Komintern, em 1922, e posteriormente retomada no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, especialmente depois da constatação dos equívocos contidos na linha política do “terceiro período”, vigente no âmbito internacional desde o VI Congresso da IC, ocorrido em 1928. Depois da ascensão de Hitler na Alemanha, em 1933, a contra-revolução européia marchava a passos largos para o extermínio do movimento operário, mas o Komintern só percebeu isso depois da catástrofe que foi a chegada dos nazistas ao poder e o esmagamento do movimento operário alemão e de suas organizações, apesar dos alertas de Trotsky e de Gramsci que pregavam no deserto, cada um ao seu modo, contra o s d e s a c e r t o s d a l i n h a “ e s q u e r d i s t a ” d o “ t e r c e i r o período”.[vi]

Foi somente em 1935, em seu sétimo Congresso, que a IC pôde, finalmente, reavaliar a rota que apontava a social-democracia como “ala esquerda” do fascismo, ou “social-fascismo”, e restabelecer o caminho da frente única para derrotar o inimigo comum do movimento operário, o nazi-fascismo. Foi o dirigente do Partido Comunista da Bulgária, Jorge Dimitrov, membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC), quem formulou as premissas da nova tática, consubstanciadas no texto “A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo”, apresentado como Relatório ao VII Congresso da IC, em 2 de agosto de 1935.[vii] Pelo texto de Dimitrov, reconhecia-se que o fascismo, ainda que sendo uma expressão da

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contra-revolução e uma característica do capitalismo em sua época de crise, necessitava de uma definição distinta das outras formas de dominação burguesa, tendo em vista que o fascismo, como assegurava o dirigente do CEIC “não é a vulgar substituição de um governo burguês por outro, mas sim a substituição, feita por estadismo [sic], da dominação da classe burguesa – a democracia burguesa – por uma outra forma desta mesma dominação, a ditadura terrorista declarada”.[viii] A partir desta caracterização, o “Relatório” de Dimitrov prosseguia apontando as responsabilidades históricas dos chefes da socialdemocracia que, com sua política de colaboração de classes com a burguesia, desarmavam a classe operária ante a ascensão do inimigo.[ix] Também os Partidos Comunistas foram parcialmente criticados no texto do comunista búlgaro, acima de tudo porque teriam subdimensionado o perigo fascista e desacreditado das suas possibilidades nos países de democracia burguesa clássicas.[x] O corolário da nova situação caracterizada pela Internacional Comunista, a partir do documento de Dimitrov, era a luta pela frente única para a defesa da classe, na condição em que tal política soubesse identificar o momento de sair da defensiva e partir para a ofensiva contra o capital, “orientando-nos rumo à organização da greve política de massas”.[xi]

Se a nova tática emanada da Terceira Internacional recuperava os principais elementos da formulação frentista do III Congresso de 1921, ela não se deteve, entretanto, na indicação de uma política de frente única, entendida pelos seus formuladores originais como uma tática exclusiva para o interior do movimento operário. Ao contrário, a compreensão de Dimitrov era a de que a ascensão do nazi-fascismo, além de representar a vitória da contrarrevolução sobre a vaga revolucionária, significava, também, a derrota de uma parcela da própria burguesia “aterrorizada perante a realização da unidade de luta da classe operária, aterrorizada perante a revolução e já sem a possibilidade de manter a ditadura sobre

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as massas por meio dos velhos métodos da democracia burguesa e do parlamentarismo”.[xii] Neste sentido, os Partidos Comunistas eram instados a criarem “uma vasta frente popular antifascista sobre a base da frente única proletária”, ou seja, seria necessário que as organizações operárias atraíssem para o campo frentista os amplos setores do campesinato e da pequena burguesia urbana, ainda que as organizações representantes desses segmentos se encontrassem sob a influência da burguesia e seus partidos.[xiii]

Com efeito, a política de frente popular que previam alianças amplas com os setores da burguesia tida progressista, passou a ser a tática privilegiada dos Partidos Comunistas na conjuntura de ascensão das ditaduras fascistas ou filo-fascistas pelo mundo nos anos 30. Não por acaso, os exemplos mais evidentes da aplicação de tais políticas, bem como os seus desdobramentos mais importantes naqueles anos, foram os casos francês e espanhol, sob os governos de Leon Blum e de Francisco Largo Caballero, respectivamente. Nestes casos, longe de ser uma política essencialmente defensiva, a Frente Popular significou para os Partidos Comunistas a aceitação da possibilidade de participação em governos de países ocidentais, sem que, entretanto, tivesse havido uma revolução social com a consequente derrota da burguesia, o que veio de fato a ocorrer na Espanha e esteve perto de se concretizar na França, muito embora a FP vicejasse como campo político de apoio ao governo de Blum.[xiv] Nestas circunstâncias, em muitos países, os PCs formavam com outros partidos da socialdemocracia, e mesmo da burguesia, amplas coalizões sob a forma de frentes populares que, ainda assim, não impediam a polarização crescente e a ascensão das massas revolucionárias enfurecidas.[xv] Sendo assim, a instabilidade permanente de tais governos de FP ou apoiados pelos membros destas frentes interclassistas, e mesmo a guerra civil, como foi o caso da E s p a n h a , e n t r e 1 9 3 6 e 1 9 3 9 , c o n s t i t u í r a m o t r a ç o característico mais importante deste período de governos e coalizões frente-populistas.

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As formulações táticas quanto à frente única proletária (FUP ou simplesmente FU), à frente única antifascista (FUA, nos países coloniais e semicoloniais) e à frente popular (FP), adentram o vocabulário e à prática das organizações comunistas internacionais como respostas às diferentes conjunturas que surgiram na Europa e no mundo, desde o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Contudo, somente em 1935 é que passariam a se constituir nos programas fundamentais dos Partidos Comunistas do planeta, nas circunstâncias e nas possibilidades em que a URSS se adiantava em propor a perspectiva de uma “coexistência pacífica” longa e duradoura às democracias ocidentais.

No caso da FU, a conjuntura de alguma estabilização depois das primeiras derrotas da revolução mundial, entre 1919 e 1920, colocou a imperiosa necessidade de conjugação de esforços no interior do movimento operário para que os Partidos Comunistas que surgiam pudessem avançar na construção da hegemonia sobre as massas, na preparação da revolução. Já a FP foi a resposta encontrada pela IC ante o nazi-fascismo vitorioso e o principal instrumento de “antifascismo” da tese do “socialismo num só país”, vigente na Rússia, desde a vitória de Stalin sobre a Oposição de Esquerda em 1926. Foi também uma tática adotada pela direção do movimento operário europeu, ante a incapacidade das burguesias liberais destes países de se constituírem em uma alternativa consistente para as massas na conjuntura de crise aguda do capitalismo e de avanço da onda contrarrevolucionária que sucedeu a revolução derrotada em 1923. De outro lado, foi também um instrumento do movimento comunista dos países ditos atrasados, coloniais ou semicoloniais, para a realização das tarefas de libertação-nacional ante o imperialismo, consubstanciada na fórmula da Frente Única Antifascista, que conjugava elementos das táticas frentistas dos primeiros congressos da IC com elementos da época áurea da teoria do “socialismo num só país”. Neste sentido, a tática de frente popular era ainda mais ampliada e se transformava em frente nacional, que englobava, além dos

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amplos setores da chamada “burguesia progressista”, todos os “democratas sinceros”, fossem liberais, socialistas, republicanos ou monarquistas.[xvi]

Foi ainda no VII Congresso da IC, que o responsável do CEIC para a América do Sul, o holandês Van Min, membro do Conselho Executivo do Komintern, apresentou seu relatório e discutiu as circunstâncias em que, no Brasil, o PC deveria “redobrar os seus esforços no sentido de consolidar a frente única nacional libertadora”. Para o dirigente da IC, no caso do Brasil, seria necessário que se liquidasse “o sectarismo de certos membros do Partido” e se desenvolvesse “sem medo o movimento de massas de choque, sob a bandeira da União Libertadora”, de maneira a “elevar até as formas mais altas de luta pelo poder”.[xvii] De acordo com Van Min:

Um governo da facção Nacional Libertadora ou de outra qualquer União Nacional, se, por motivos políticos que parecem existem, for necessário mudar o nome, para aparentemente aparentar [sic] uma cor mais socialista, o qual possa impulsionar esse movimento, não será ainda uma ditadura revolucionária democrática de operários e camponeses, mas apresentar um governo de caráter e sentimentos anti-imperialistas. Os comunistas brasileiros devem lutar, como estão sabiamente fazendo, pela independência nacional do seu grande país que virá, em futuro próximo, como uma linda pérola a ser engastada no colar das Repúblicas Soviéticas, como atestado de sua alta civilização. […] O trabalho dos camaradas brasileiros representa já uma boa etapa na constituição da frente única e antifascista. Devemos render as nossas homenagens ao camarada Prestes e aos dignos Delegados do Brasil ao Sétimo Congresso Internacional Comunista.[xviii]

Todavia, a União (ou frente) Nacional, não ganhou os contornos precisos de uma nova tática, nem sequer foi formulada nos termos em que o Komintern consagrou a frente única ou mesmo a

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frente popular como instrumento principal das organizações comunistas. Pelo contrário, a União Nacional foi, antes de tudo, o resultado da ampliação das táticas de frente única antifascista (por vezes chamada pelos comunistas de frente popular antifascista) e de frente popular, surgida nas circunstâncias e nos países em que a luta antifascista envolvia amplos setores da sociedade, desde os agrupamentos “conservadores patriotas”, não identificados com o nazi-fascismo, aos “revolucionários sociais” de toda espécie.[xix] Como insistia Dimitrov: “O Partido Comunista deve apoiar todo o movimento político e de qualquer cor que vise o combate ao fascismo”.[xx]

E, se nos termos da tática de frente única, a posição de hegemonia caberia sempre ao proletariado e suas organizações no caso de virem a formar uma frente com a pequena burguesia e o campesinato, na linha de frente popular, especialmente em algumas situações, admitia-se a possibilidade da hegemonia ser exercida pelo setor dito “progressista” da burguesia. Este foi o caso do PC brasileiro que a partir de 1936, quando da inflexão da linha insurrecional de 1935, que na verdade tinha engendrado o putsch, promoveu uma significativa virada tática com a aplicação da política de frente nacional, que teve profundas implicações estratégicas que significavam a defesa da democracia em abstrato e uma permanente aliança com a burguesia e com os países capitalistas.[xxi]

Com efeito, nos países em que o movimento operário, o campesinato, a pequena burguesia urbana e os setores marginais da burguesia, por suas debilidades, não conseguiam representar uma efetiva alternativa de poder e nem sequer conseguiam manter uma conseqüente política defensiva, a União Nacional adveio como tática principal. Ao mesmo tempo, tal política vicejou mais plenamente nas regiões periféricas do planeta, pois encontrou largo espaço em segmentos da população que passaram a ser mobilizados pelo movimento comunista que apresentava, como alternativa de saída da crise, a ampla

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coalizão de classes, em defesa da pátria, contra a agressão externa, que incorporaria, além dos componentes tradicionais da FP, a “burguesia nacional” e os “grandes proprietários agrários”, desde que estes fossem entendidos como cumpridores de um papel “progressista” na luta antifascista.

Enquanto uma vaga nacionalista alcançou amplos setores das massas urbanas em diversos países, a bandeira do patriotismo, de certa maneira estranha às correntes oriundas do bolchevismo, a despeito de ser cada vez mais adotada na própria URSS, passou a ser defendida pelos Partidos Comunistas e pelos movimentos revolucionários de diversas partes do mundo.[xxii] Isto porque o caráter do nacionalismo vigente, quando das lutas antifascistas, implicava uma forma de internacionalismo que, muito embora instrumental, já que submetido à tese do “socialismo num só país”, não deixava de se referir ao primado do inimigo comum de toda a civilização. Contribuía, enfim, para a ampliação da tática frente-populista, no caso dos países “coloniais”, ou “semicoloniais”, como o Brasil, a visão etapista e a compreensão quanto às tarefas da revolução, que pressupunham uma necessária antecedência da etapa nacional-libertadora em relação à etapa socialista, o que significava a concepção de que caberia à burguesia nacional a missão histórica de liderar a fase burguesa e democrática da transição, e cumpriria ao proletariado hegemonizar a etapa socialista, projetada para um futuro não enunciado.

Não teriam sido outros os motivos que levaram as organizações comunistas pelo mundo a adotarem, sistematicamente, no plano interno, a política de Frente Popular ampliada, que era a União Nacional, na conjuntura da guerra, especialmente quando a IC lutava para superar os equívocos de sua linha esquerdista do “terceiro período”. A crença no potencial revolucionário da burguesia nacional, acrescentada de fatores específicos vistos nos países periféricos, como o debilitamento do movimento comunista ante as ditaduras de tipo fascista e filo-fascista e

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a postura de oposição ao regime de uma parcela da burguesia de alguns países, reforçaram o sentimento dos comunistas de que, a partir de uma crise de grandes proporções, poder-se-ia abrir uma nova etapa da revolução, porquanto, com o avançar das correntes progressistas, se complementariam as tarefas “democráticas” da revolução, com a “libertação nacional” e a superação dos “vestígios feudais”, “semicoloniais” e da “submissão imperialista” vigentes nesses países.

Dessa forma, os Partidos Comunistas pelo mundo buscaram localizar-se junto a esses movimentos antifascistas, como a primeira corrente a empunhar com veemência a bandeira da “Frente Nacional Antifascista”, que tinha a democracia como o tema principal, nem que para isto fosse necessária uma aliança com os principais representantes das burguesias desses países. Deste momento em diante, uma fratura substancial foi aberta entre as correntes que reivindicavam o legado da Terceira Internacional, pois enquanto um setor permaneceu construindo, a unidade com o que seria um campo da democracia contra o imperialismo e a reação, outro permaneceu acreditando que os trabalhadores só podem contar com suas próprias forças, não devendo confiar nunca no inimigo de classe, e talvez este seja o principal impasse da nossa época.

* Texto originalmente publicado nos Anais do V Colóquio Marx e Engels da Unicamp em 2007 com o título “Frente única, Frente Popular e Frente Nacional: anotações históricas sobre um debate presente”.

[i] LENIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. 5 ed. São Paulo: Global, 1981, passim.

[ii] Cf. III Internacional Comunista. Manifestos, teses e Resoluções do 3.º Congresso. São Paulo: Brasil Debates, 1989, v. 3, p. 53 (Introdução de GOLIN, Tau).

[iii] Id., ibid., p. 54. [iv] Id., ibid., p. 54-59.

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[v] HOBSBAWM, Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 74-75.

[vi] Cf. TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução. Lisboa, Porto, Luanda: Centro do Livro Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, v. 3, p. 259-279. [vii] DIMITROV, Jorge. A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo. Relatório apresentado no VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, em 2 de agosto de 1935. In: Obras escolhidas. Lisboa: Estampa, 1976, v. 3, p. 9-90.

[viii] Cf. DIMITROV, A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista…, p. 12.

[ix] Id., ibid., p. 19-20. No texto de Dimitrov, não se avaliam as responsabilidades históricas da IC quanto à linha do “terceiro período” e do social-fascismo, apenas se apontam alguns erros sectários presentes na política da Internacional. [x] Id., ibid., p. 21-22.

[xi] DIMITROV, A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional…, in: Obras escolhidas, Op. cit., p. 35 (grifos no original).

[xii] Id. ibid., p. 10.

[xiii] Id., ibid., p. 38 (grifos no original).

[xiv] Cf. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 150. [xv] Cf. Id., ibid., p. 148-161.

[xvi] Em alguns países, como Portugal por exemplo, a luta contra o fascismo implicou no chamamento de uma aliança com os

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monarquistas.

[xvii] “Trecho principal do discurso proferido no VII Congresso Internacional Comunista pelo Delegado holandês Van Min, Membro do Conselho Executivo do Komintern e Relator dos assuntos referentes a América do Sul”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), GVc. 1935.07.25.

[xviii] “Id., ibid., p. 2-3.

[xix] Cf. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 162.

[xx] “Relatório de Dimitroff” (sic). CPDOC/FGV, GVc. 1935.07.25, p. 15-16.

[xxi] Cf. SENA JR., Carlos Zacarias F. Os impasses da estratégia: os comunistas e os dilemas da União Nacional na revolução (im)possível. 1936-1948. CEFICH/UFPE, Tese de Doutorado, 2007.

[xxii] HOBSBAWM fala de um patriotismo de esquerda sintetizado nas frentes nacionais que “abrangiam todo o espectro político, excluindo apenas os fascistas e seus colaboradores”. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 138.

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