PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Justiça de Primeira Instância
Comarca de CORONEL FABRICIANO / 2ª Vara Cível da Comarca de Coronel Fabriciano
PROCESSO Nº 5000883-92.2018.8.13.0194 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7)
ASSUNTO: [Indenização por Dano Moral] AUTOR: _______ RÉU: _______ SENTENÇA I – RELATÓRIO
_______ ajuizou AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS em face de _______.
Afirmou que em 18/05/2017, enquanto estava na fila do guichê da estação rodoviária de Coronel Fabriciano para a compra de uma passagem, foi surpreendido com um ataque verbal do réu, que se aproximou proferindo xingamentos como “crioulo, macaco, safado”, acusando-o de manter um relacionamento amoroso com sua esposa e ameaçando-o de morte, tudo na presença das pessoas que se encontravam na fila e transitando pelo local. Diante da situação constrangedora, tentou evadir-se do local, sendo impedido pelo réu, que o agrediu com socos e pontapés, sendo acionada a Polícia Militar. Em consequência do episódio, sofreu danos psicológicos graves e irreversíveis, sendo necessário o uso contínuo de medicamentos antidepressivos.
Pediu, ao final, a condenação do réu ao pagamento de indenização no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a título de danos morais.
Assistência judiciária gratuita deferida (ID 47185987).
Audiência de conciliação infrutífera (ID 54763451).
O réu contestou (ID 56381696). Preliminarmente, arguiu carência da ação por
impossibilidade jurídica do pedido, aduzindo que os fatos narrados já foram apurados em ação criminal já arquivada. Impugnou a gratuidade da justiça concedida ao autor. No mérito, afirmou que: é concunhado do autor; houve de fato uma discussão entre as partes, mas sem agressão verbal ou física; é o autor quem o agride, o seguindo, rondando sua casa e lhe fazendo ameaças; as alegações autorais carecem de prova; não houve prática de injúria racial, pois o próprio réu se autodeclara negro, assim como toda a sua família; não há nexo de causalidade para que seja configurado o dano moral.
O autor deixou de impugnar a contestação (ID 77458778).
Proferida decisão saneadora, afastando a preliminar arguida em contestação (ID 78946102).
Em AIJ, foi colhido o depoimento pessoal do autor e ouvida uma testemunha da parte autora, sendo deferidas as contraditas em relação às duas testemunhas da parte ré, que foram dispensadas (ID 108774704).
Alegações finais apresentadas pelas partes (ID 117193824 e ID 122758674).
Autos conclusos para julgamento.
É o relatório, em síntese.
Passo a fundamentar (art. 93, IX, CR/88, e art. 489, §1º, CPC) e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Inicialmente, há questão processual pendente, que passo a apreciar.
Em contestação, o réu impugnou a gratuidade judiciária concedida ao autor.
Sem razão, contudo.
O benefício foi concedido à parte autora (ID 47185987), após intimada para comprovar sua hipossuficiência (ID 41450621), o que foi feito mediante juntada da documentação anexada à petição de ID 44051911.
exclusivamente por pessoa natural (art. 99, §3º, CPC), somente devendo o juiz indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade (art. 99, §2º, CPC).
Portanto, estabelecida a presunção legal em favor da parte – e corroborada por outros documentos –, a negativa do benefício depende de demonstração concreta em sentido diverso pela parte interessada.
No caso, a impugnação ofertada pela parte ré não veio acompanhada de elementos concretos que indicassem a possibilidade de a parte autora arcar com as custas do processo.
Portanto, a parte ré não se desincumbiu do ônus que lhe cabia. Alegações destituídas de comprovação não bastam para derruir a presunção legal.
Assim, rejeito a impugnação.
Ausentes outras questões processuais pendentes, presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, passo ao mérito.
Trata-se de ação indenizatória por danos morais decorrentes da suposta prática de ofensas e xingamentos verbais pelo réu em desfavor do autor, em local público (rodoviária desta cidade), sendo os impropérios relativos, principalmente, à cor e raça da vítima, tais como “crioulo safado” e “macaco”.
É incontroverso que as partes tiverem um desentendimento no dia dos fatos, mas não houve agressões físicas, conforme admitido pelo próprio autor em audiência.
Cinge-se a controvérsia à aferição da existência e da qualidade das ofensas
supostamente perpetradas pelo réu, bem como de seu potencial para desencadear o dano moral alegadamente sofrido pelo autor.
Pois bem.
A honra e a imagem das pessoas são direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5o, X).
No mesmo sentido, o Código Civil autoriza que o lesado exija judicialmente a cessação da ameaça ou da lesão a direito da sua personalidade (versão privada dos direitos fundamentais individuais), bem como reclame perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (art. 12).
A responsabilidade civil, por sua vez, consiste na obrigação de indenizar o dano causado a outrem em razão de uma conduta, em rega, ilícita (art. 186 e 927, CC).
São, portanto, elementos da responsabilidade civil:
(i) a conduta, que pode ser uma ação (comissiva) ou uma omissão (omissiva);
(iii) o nexo causal, entendido como o vínculo entre a conduta praticada pelo agente e o dano causado a outrem.
Ressalte-se que a culpa constitui elemento acidental – não obrigatório – da
responsabilidade civil, restrita nos casos de responsabilidade subjetiva, e engloba tanto o dolo (culpa em sentido amplo), marcado pela intencionalidade, quanto a culpa em sentido estrito, correspondente à violação de um dever preexistente, nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia.
In casu, trata-se de responsabilidade civil subjetiva, estando, a meu ver, presentes todos os seus elementos.
O fato narrado na inicial chegou a ser alvo de apuração na esfera criminal, culminando com a homologação da transação penal ofertada pelo Ministério Público e aceita pelo réu desta ação (ID 56382784).
Sabe-se que a celebração da transação penal não implica reconhecimento de culpa, do qual decorreria automático dever de indenizar (art. 387, IV, c/c art. 63, CPP), nem gera maus antecedentes ou reincidência do autor do fato (art. 76, §4º, Lei 9.099/95).
Por outro lado, não afastada a existência material do fato pelo Juízo criminal, a questão remanesce aberta para discussão no âmbito cível, em virtude da independência das instâncias (art. 935, CC; art. 66, CPP).
Em audiência de instrução, o autor reiterou as agressões verbais propaladas pelo réu, com xingamentos referentes à sua cor – “crioulo safado”, “macaco” –, por pensar o réu que o autor estava na rodoviária à procura de sua esposa, que lá trabalhava.
Também na audiência, Maria Aparecida Rocha, testemunha ocular dos fatos, afirmou que “chegou a ouvir o diálogo entre as partes; que o réu proferiu xingamentos contra o autor; que ele chamou o autor de ‘crioulo’, ‘macaco’; que ele disse ainda que iria ‘pegar ele’; que ainda proferiu contra o autor outras palavras de baixo calão, como ‘safado’, ‘negro sem vergonha’; que o autor se sentiu constrangido e saiu da fila”.
Nesse contexto, independentemente de classificação penal da conduta do réu, tarefa que não cabe ao Juízo cível, é evidente que as palavras proferidas tiveram o condão de violar os direitos da personalidade do autor, pois destinadas a desqualificar sua honra e sua imagem, utilizando-se de traço marcante da sua identidade e, ao cabo, ofendendo sua própria dignidade como ser humano.
O dano moral relaciona-se a uma ofensa a direitos da personalidade, entendidos como aqueles consectários da dignidade da pessoa humana, previstos exemplificativamente no Código Civil (art. 11 a 20, dentre outros).
O dano decorrente da conduta ilícita do réu é indubitável e, a meu sentir, configura-se mesmo in re ipsa, isto é, de forma inerente ao ato ilícito verificado, por atingir profundamente o sentimento identitário do autor.
A República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CR/88), como um de seus objetivos a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, IV, CR/88), e como um de seus princípios o repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4o, VIII, CR/88).
Considerada, ainda, a realidade social do país, bem como o fato de as ofensas terem sido perpetradas em local público, tenho que o abalo psíquico decorrente da discriminação por motivo étnico-racial é evidente, presumido, sendo desnecessária a comprovação de que o autor esteja tomando medicamentos antidepressivos.
Noutro giro, não prospera a alegação do réu no sentido de que, por também se autodeclarar negro, não seria possível ser ele autor das ofensas em questão.
Não é crível – além de carecer de verificação objetiva na realidade fática – a afirmação de que somente pessoas brancas possam cometer ataques étnico-raciais a pessoas negras. In existe monopólio ou vinculação necessária de tais práticas a determinado grupo social. Ao contrário, o racismo (lato sensu) pode ser, e infelizmente é, praticado por qualquer pessoa.
A ideia de que alguma categoria de pessoas possua uma espécie de privilégio ou imunidade para cometer práticas discriminatórias é ilógica, insensata e anti-isonômica.
Ademais, independentemente da eventual classificação criminal da conduta como racismo, injúria racial ou o que quer que seja – tarefa que, como dito, não cabe a este Juízo –, é inegável que as ofensas dirigidas ao autor configuram ilícito civil grave, por violar seus direitos da personalidade.
Portanto, comprovada a conduta deliberada e ilícita do réu, o dano moral causado ao autor e o nexo causal entre ambos, cabe fixar o valor da indenização.
O quantum indenizatório deve ser medido pela extensão do dano (art. 944, CC).
A jurisprudência tem primado pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no seu arbitramento, que deve ser feito de forma equitativa.
Cabe ao julgador, diante do caso concreto, sopesar a gravidade do ato, a culpabilidade e a capacidade econômica do responsável pelo ilícito, bem como o sofrimento suportado e a condição social da vítima.
O valor deve ser suficiente para compensar o dano moral sofrido, sem, contudo, alcançar valor excessivo a ponto de ensejar enriquecimento sem causa do lesado.
Por outro lado, também não pode ser tão módico a ponto de ser ineficaz para cumprir a função pedagógica de desestimular a repetição de condutas danosas aos direitos da personalidade.
No caso, trata-se de conduta altamente reprovável, que atinge a esfera íntima da vítima, sua honra subjetiva e sua identidade, desqualificada exclusivamente em razão da cor de sua pele, o que certamente causou-lhe abalo moral cuja reparação é inestimável.
Ponderando tais critérios, considerando a natureza e a extensão da lesão provocada, a gravidade da conduta ilícita praticada, bem como a natureza inibitório-punitiva da indenização, entendo que o valor de R$ 10.000,00 é suficiente e adequado para compensar o dano moral sofrido.
III - DISPOSITIVO
Ante o exposto, resolvo o feito com apreciação do mérito (art. 487, I, CPC) e julgo
PROCEDENTE a pretensão autoral, para condenar _______ a pagar a _______ indenização por
danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), corrigidos monetariamente, conforme tabela da CGJ/MG, desde o arbitramento (publicação desta sentença – súmula 362/STJ), e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês a partir do evento danoso
(súmula 54/STJ).
Condeno a parte ré ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios que fixo em 15% do valor da condenação (art. 85, §2º, CPC), suspensa a exigibilidade por força do art. 98, §3º, CPC, eis que lhe defiro a assistência judiciária gratuita.
Havendo recurso de quaisquer das partes: (I) intime-se o apelado, para, em quinze dias, apresentar contrarrazões (art. 1.010, §3º, CPC); (II) apresentadas tão somente contrarrazões pelo apelado ou decorrido in albis o prazo do item I, remetam-se os autos ao TJMG; (III) caso o apelado interponha, também, apelação adesiva, intime-se a parte contrária, para, em quinze dias, apresentar contrarrazões (art. 1.010, §2º, CPC); (IV) apresentadas contrarrazões à apelação adesiva ou decorrido in albis o prazo do item III, remetam-se os autos ao TJMG.
Tudo feito e nada mais sendo requerido pelas partes, arquivem-se os autos com baixa, adotando-se as cautelas de estilo.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se.
Coronel Fabriciano, 23 de julho de 2020.