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Introdução. etnografia sobre parteiras e o partejar na comunidade quilombola de Itacoã- Mirim (Acará- Pará)

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2017)

ALIK NASCIMENTO DE ARAÚJO

Resumo

Esse artigo visa apresentar os reflexos dos trabalhos desenvolvidos por duas parteiras na assistência em casos de saúde coletiva e obstétrica na comunidade quilombola de Itacoã- Mirim localizada no município paraense do Acará. Tratam-se de relações tecidas no seio familiar que, por quase cinco décadas, estabelecem compromissos comunais e perpassaram por diversas fases das políticas públicas voltadas ao atendimento de comunidades tradicionais. A problematização da pesquisa voltou-se a refletir, quais os espaços sociais ocupados pelos métodos de assistência endógena de saúde em Itacoã-Mirim. Para tal fim, os relatos apreendidos foram analisados epistemologicamente à partir do campo da História Oral dando enfoque ao caráter narrativo com base nas perspectivas de Alberti (2012), considerando tratar-se de mulheres de gerações distintas, levou-se em conta as nuances psicológicas de cada lembrança, tal como nos orienta Bosi (1979), a transfiguração da palavra para o campo do sagrado estabeleceu diálogo com as contribuições de Hampaté Bá (2010) e os cuidados técnicos no momento da análise das narrativas foram vistas à partir do prisma metodológico apresentado por Queiroz (1987).

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Introdução

O presente artigo se constitui em um estudo de caso acerca das práticas endógenas de manutenção de saúde coletiva na comunidade quilombola de Santa Maria do Itacoã- Mirim, promovidas por Maria Julieta Monteiro Belém, 84 anos e Honória Monteiro da Silva, 50 anos, respectivamente mãe e filha que compartilham o ofício de partejar.

Os resultados apresentados fazem parte da pesquisa que desenvolvo na produção da tese de doutoramento em Antropologia voltada a compreender o papel do partejar nas relações de territorialidade que organizam a vida comunal em Itacoã-Mirim1. Nesse processo, tornou-se relevante observar quais os fundamentos ideológicos e identitários que sustenta o caráter geracional dessa prática em Itacoã- Mirim, tendo por destaque a família Monteiro tomando por base os relatos de dona Maria Julieta e sua filha Honória, ou Norita, como prefere ser chamada.

Cabe ressaltar que a atuação dessas mulheres transcende os eventos que envolvem o parto e construíram um espaço de atuação no combate e prevenção de outras doenças e enfermidades. E foi no campo da História oral que encontrei instrumentos que permitiram maior aproximação com os universos epistemológicos das interlocutoras, assim como, através dele, foi possibilitado não me limitar aos dados literais das transcrições técnicas e do relato em si, à medida que, considera aspectos psicológicos, sensíveis a empiria das interconexões da pesquisa, que configura o campo do “indizível” tratado por Queiroz (1987).

Para além do diálogo tácito que a História Oral estabelece entre a História e as Ciências Sociais, ao recorrer a esse campo teórico metodológico minha proposta não está em elegê-lo como o percurso sujeito a dar conta de todas as indagações surtidas ao longo da pesquisa, o interesse se dá por reconhecer a relevância circunstancial da forma como “privilegia a concepção

do vivido conforme concebido por quem viveu” (ALBERTI: 1. 1996)

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Tese em construção, previamente intitulada A Coragem que constrói: uma etnografia sobre parteiras e o partejar na comunidade quilombola de Itacoã- Mirim (Acará- Pará)

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Seguindo este fim, início minha reflexão apresentando um quadro panorâmico das relações entre o sistema público de saúde e os moradores da comunidade quilombola e Itacoã- mirim, ponderando sobre seus avanços e suas limitações e, por fim, apresento uma análise sobre reflexos endógenos de manutenção da saúde coletiva considerando partir dos papeis sociais construídos por essas mulheres em Santa Maria de Itacoã- Mirim.

A comunidade quilombola de Itacoã- Mirim e o Sistema Público de Saúde

Localizada à cerca de treze quilômetros da capital Belém, a comunidade quilombola de Itacoã- Mirim pertence a jurisdição do município paraense do Acará. Sua trajetória histórica foi palco de um longo processo de domínio senhorial paralelo à renomados movimentos sociais que levantavam ideais de liberdade e questionamento das regras estabelecidas pelo governo central, tais como a Cabanagem (1835-1845) (ACEVEDO MARIM. 2003) 2

Santa Maria de Itacoã- Mirim foi reconhecida como Comunidade Remanescente de Quilombo pelo Instituto de Terras do Pará (ITERPA) no dia 20 de novembro de 2003 e, nesta mesma data, a Associação dos moradores recebeu o título de posse coletiva de um território que abrange 9.689.932 hectares (BRASIL. 2003). Na época da titulação foi registrado um total de 96 famílias, dentre as quais 82 famílias obtinham suas rendas, sobretudo, através do comércio de gêneros de produção e coleta local, em destaque o carvão e frutas silvestres (SCOLES. 2005: 172).

Nesse contexto a Unidade Pública de Saúde coletiva mais próxima de Itacoã- Mirim ficava em Belém, especificamente no bairro da Condor ou o Posto de saúde no bairro do Guamá, que por se tratarem de espaços para o atendimento

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Para estudos mais aprofundados sobre o Movimento da Cabanagem e suas várias vertentes (1835-1840) ver: RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. In.: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 11, p. 15-40, 2006 e PINHEIRO, Luis Balkar Sa Peixoto. A Revolta Popular Revisitada: apontamentos para uma história e historiografia da Cabanagem. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v. 19, 1999, pp. 227-241.

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de situações de baixa complexidade, não oferecem espaços para internação e, nem sempre, conseguiam leitos em outras instituições públicas de atendimento de saúde.

Na época, esse trajeto ocorria, quase que exclusivamente, através do rio Guarapiranga, em uma viagem de aproximadamente duas horas. Tratava-se de um contexto no qual os barcos à motor não eram tão populares e os casos de emergência muitos moradores faziam uso de canoas e pequenas embarcações que seguiam ao Porto da Palha. Esse espaço representa, até os dias atuais, o principal ponto de acesso dos moradores de Itacoã à Belém. O Porto da Palha não se restringe a um espaço para o transporte de mercadorias, trata-se de um multiverso transpassado de várias existências e, dependendo do horário, ele se transfigura em novas realidades, tais como, área de boêmia, centro comercial, moradia residencial, depósito de madeiras, todos eles convivendo com cenas cotidianas de criminalidade.3

A outra opção seria o acesso pela estrada, no caso a Alça Viária, rodovia PA – 483, inaugurada no ano de 2002 entrando em um ramal de estrada de chão, localizado no quilômetro 24 de sua extensão com relatos de vários assaltos e de péssimas condições, que à época faziam que os moradores de Itacoã tivessem pouca preferência por esta rota. A exemplo dos reflexos advindos dessa logística cara e exaustiva para os moradores de Itacoã, está o caso de Ana Maria Leal Telles, 44 anos, dona de casa, mãe de quatro filhos, descreve as inúmeras situações de violência sofridas em busca do acesso à um atendimento de saúde na rede pública.

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A partir das 4 horas da manhã até ao meio dia, aquele Porto se assemelha à um grande organismo vivo. Uma multidão de pessoas de vários gêneros e condições e práticas sociais. Pela parte da tarde habitava certa calmaria, no entanto, o movimento é contínuo. Os bares mantêm o seu funcionamento aos arredores, mas dentro do porto se concentra um ambiente de certa seguridade, à medida que estão concentrados o dono do bar principal, um trafego continuo de ribeirinhos, estudantes e turistas junto à vários barqueiros e fretadores de embarcações de pessoas e produtos para as diversas ilhas e comunidades do outro lado do rio Guamá. Á noite, principalmente dia de segunda feira, aquele espaço ganha novos tons: luzes, leds, brilhos. É a festa dos barqueiros que trabalharam nos fretes turísticos durante o fim de semana. O ambiente recebe grandes aparelhagens, rabetas e voadeiras com pessoas arrumadas de todos os cantos e ilhas se reúnem para o tradicional lazer que rompe a madrugada.

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Foi no nascimento do meu segundo filho, o Roni, tadinho, aqui nossa casa era coberta com saca e pano. Meu marido e eu novo. Só tinha minha filha mais velha que ainda era muito gita professora. Aqui em casa a gente vivia do trabalho de roça. Às vezes lavava roupa pra fora. E as partera daqui tinha medo de me pegar. Sabiam que só tinha parto difícil, da primeira quase morro ai tinha que ir pra Belém, mas com que dinheiro? (LEAL.2019)

A negação das parteiras em fazer o atendimento de Ana Leal se dava devido uma experiência de quase morte que teve durante o parto da primeira filha, que quase comprometeria a imagem de duas parteiras tradicionais de Itacoã. Dessa forma, a negação do atendimento do parto seguia de uma forte recomendação para que fosse à Belém em busca de melhores estruturas de atendimento.

Dados do Censo de 2008 apontam que cerca de 58,5% das famílias de Itacoã Mirim viviam com um salário mínimo. Sua subsistência, em grande medida, advém da manutenção das roças e da venda da farinha e açaí, produzidos na propriedade coletiva. (OLIVEIRA, 2012).

Tratava-se de uma logística exaustiva e cara para esses moradores que em, grande medida, contavam com o auxílio coletivo para manter tratamentos em Belém, ou até, conseguir uma casa de parente ou conhecido de um morador da comunidade, que pudesse oferecer acolhimento provisório, durante o E o que se conclui é que peculiaridades listadas abrangem fatores geográficos e sociais que levam esses quilombolas à dispor de uma estrutura logística e financeira que compromete parte significativa da renda familiar, a fim de obter atendimento de médicos das redes públicas do SUS, o que afeta a regularidade nos tratamentos e consultas médicas, geralmente condicionada pelas dinâmicas das marés e pelo acesso ao transporte pago, portanto, nem sempre é possível mantê-la.

Atualmente o Centro de Referência em Assistência Social ( CRAS) destinado ao atendimento dessa e de outras núcleos da Meso região do Baixo Acará, atende cerca 185 famílias de Itacoã, enfatizando que esse número não constitui a totalidade dos núcleos familiares existente nessa comunidade.

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Maria Julieta Monteiro Belém, 84 anos, nascida em 30 de julho de 1936, viúva, também aposentada como agricultora foi casada por mais de 60 anos com o Sr. Raimundo Belém, falecido em 2010, após anos enfrentando as sequelas de um Acidente Vascular Cerebral. Raimundo Belém era neto da parteira Tomásia e irmão da parteira Adriana.

Maria Julieta se casou aos 16 anos e dessa união teve 8 filhos vivos e um falecido, sendo que de um deles ela realizou o próprio parto.

Mostra orgulhosa em ressaltar que seu corpo nunca foi cortado, fazendo referência a todos os partos tidos de forma natural (BELÉM, M; 2018) Atualmente vive com sua filha, Maria Lucia Belém (40 anos) e quatro netos. Devido à catarata, não executa mais trabalhos de roça, deixando o lote da família sobre a responsabilidade dos filhos e netos, mas em recente consulta pelos Sistema Único de Saúde (SUS), foi avaliada como uma mulher saudável. Alega que uma de suas estratégias para manter a saúde é pelo fato de nunca ter comido pimenta. Diz que tem essa prática desde sua infância, pois se seus pais a pegasse com pimenta, eram capazes de “me dá uma péia e de joga fora o pirão. (BELÉM, M; 2018)

Em Itacoã sempre foi recorrente a circulação de crianças através do Sistema de Crias4, caracterizado pela entrega dos filhos, pelos pais, para morarem em Belém, na casa de parentes que iriam “criá-los” e possibilitar que tenham acesso à melhores condições de estudo e mercado de trabalho. (MOTTA-MAUÉS, 2008: 158-159) Ainda assim, Maria Julieta se orgulha em ter criado todos os seus filhos na comunidade sem precisar doá-los. Todos vivendo dos trabalhos de roça e a maioria construindo suas casas próximas à sua morada. Hoje, apenas uma filha tem residência fora da comunidade, todos os demais a visitam diariamente levando os netos e bisnetos para conversar, tomar um café e ouvir seus sábios conselhos. (BELÉM, M; 2018)

A antiga parteira também relata ter sido responsável por 48 partos, todos bem sucedidos. Ainda que também tenha herdado o dom de partejar de Tomásia,

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Sobre esse sistema, Motta- Maués inclui a contrapartida da cria que fica responsável por “ajudar” em trabalhos que envolve inúmeras atividades dentre as quais destaca o costume de “reparar”

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diferentemente de Adriana, alega que suas técnicas foram adquiridas mais por sua experiência do que por orientações diretas. Durante muitos anos trabalhou como servente na escola da comunidade situada na antiga Casa Grande de Antonio Maciel, ainda pela década de 1960 à 1970. Nesse contexto Itacoã recebeu uma série missionárias estrangeiras que trouxeram cursos sobre manipulação de ervas medicinais e Maria Julieta foi chamada para participar do evento que em muito colaborou para os seus conhecimentos.

Quando jovem, em caso de dúvidas, sempre recorria ás colegas da mesma geração que também exerciam as práticas de curas, rezas, bênçãos e partos, com as quais também compartilhava seus conhecimentos, criando uma rede de saberes à partir de suas experiências Eram elas: Adriana, Jozina, Olgarina e Raimunda de Belém Martins, com as quais ainda manteve laços de afeto e solidariedade. (BELÉM, M; 2017)

Apesar da idade já avançada, Maria Julieta faz o percurso da “beira” de Itacoã, aonde mora, até a região denominada por centro. A primeira rota é destinada a casa de sua filha Honória, também parteira e o segundo percurso destina-se a visitar a amiga e colega de ofício Raimunda de Belém Martins, a Preta, como gosta de chamar. Atualmente Tia Preta encontra-se impossibilitada de realizar partos, devido ter ficado cega há dois anos por conta das complicações com o Diabets e pressão alta e passa grande parte de seu dia deitada aos cuidados dos netos e netas. No entanto, sempre está conversando com Maria Julieta acerca de tratamentos de saúde e orienta várias pessoas da comunidade sobre chás, remédios para reverter efeitos de AVC, dentre outras endemias.

A mais nova parteira de Itacoã é Honória Monteiro da Silva, a Norita, filha de Maria Julieta Belém, que realizou o seu primeiro parto há 5 anos. Casada com Veríssimo Silva (50 anos) é mãe de 5 filhos, dentre as quais 4 mulheres. Alega ter uma vida tranquila e feliz, executa todo dia seus trabalhos roça junto a seu marido, enquanto os serviços domésticos ficam a cargo da filha e que vem ajudá-la trazendo seus dois filhos pequenos. É preocupada com a educação formal dos filhos e investe para que estudem em Belém ou em Boa Vista na perspectiva de alcançarem melhores oportunidades de emprego. Apresenta postura de liderança política nas reuniões da Associação quilombola

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de Itacoã-Mirim. Faz parte do grupo de “Melhor Idade”, fazendo palestras sobre saúde e qualidade de vida, está sempre envolvida com assembleias e projetos para arregimentar melhoras para a comunidade.

Diz ter tido coragem somente após de ter tido todos os seus filhos. Na infância sempre foi curiosa e corajosa. Quando chamavam sua mãe para um parto ela ia “ajudar” nos preparativos, mas demorou a tomar a frente de todo o processo. Isso só foi possível no parto da jovem Girleny Barros do Nascimento, neta da parteira Olgarina e que na época tinha 27 anos, que não conseguiu embarcação para ir a Belém e já sentia as dores para o nascimento antes do previsto. Na ocasião de emergência Norita colocou em prática todos os conhecimentos que observara das campanhas junto a sua mãe e de sua própria experiência. (SILVA, H; 2016)

Considerando as condições de sua mãe e das outras parteiras, que se encontram debilitadas devido as ações de doenças como Diabets e Hipertensão e com as vistas comprometidas pela catarata, Honória Silva assume o cargo de parteira principal de Itacoã. (SILVA, H; 2016)

Ao que percebi o conceito de coragem não se limita aos conhecimentos técnicos e funcionais do corpo humano, seu entendimento não se situa nem em um campo do predomínio humano e tampouco um campo aonde se restrinjam as ações ditas por naturais, seriam elementos híbridos, humanos e não humanos interconectados. O que não significa que as experiências aqui se enquadrem na noção de Pajelança Cabocla apresentada por Maués (1994) que se fundamenta na crença dos encantados. A análise do antropólogo se debruça na medicina popular desenvolvida por uma povoação de pescadores do litoral paraense conhecido por Itapuá, no qual parteiras, benzedeiras, pajés e Xamãs, fundamentam seus ritos na crença dos encantados, que seriam “seres sensíveis que se apresentam durante os rituais incorporados no pajé”. (MAUÉS, 1994, 73)

Tudo está envolvido à um processo de aprendizagem iniciado na infância que compreende uma série de aspectos do cotidiano, desde o contato com os tralhados de roça para, compreender as dinâmicas da paisagem e das transformações da natureza, compreende também o “ajudar” e o “cuidar” em casa até as brincadeiras. Seria através desses espaços e experiências que a

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criança, se “apropriaria de categorias do mundo adulto”. (SANCHES, 2016: 14) O relato das parteiras, também defendem que a passagem do dom estaria ligada ao conhecimento do trabalho de outras parteiras da região. Os comentários sobre os partos mais difíceis, as técnicas implementadas, as habilidades com as plantas, as orações. Tudo se dá no reconhecimento da ancestralidade como detentora de saber. (PRICE, 1983: 05-07)

Tratam-se de linhas sistêmica de saberes que conecta um processo de compreensão técnica, mas sobretudo, simbólico e cosmológico, iniciado, geralmente, na infância, mas que pode alcançar sua autonomia em qualquer fase da vida após a maternidade. O que se demonstra com os casos descritos de Jozina e Maria Raimunda, ambas terem passado por um processo de aprendizagem técnico, a primeira com Tomásia e a última com Olgarina, nenhuma das duas desenvolveu a Coragem para o ofício do partejar e, tampouco tornaram-se especialistas na prática de cura. Essa noção de Coragem, observado à partir dos estudos sobre as histórias e cotidianos dessas mulheres, em muito se relaciona com a noção de Cultura sem aspas apresentado por Manuela Carneiro da Cunha, na qual, consistindo em códigos internos próprios de uma povo e que previamente se conservam, ou seja, uma “cultura em si” (CUNHA. 2009: 305)

Minha reflexão se baseia na definição apresentada por Dona Maria Julieta que diz: “é saber fazer lá as coisas da forma certa só se aprende vendo e ouvindo [de] quem realmente sabe [o que] é vida”. (BELÉM, M. 2018)

Já o “ofício”, por sua vez, consiste na aceitação e execução dos compromissos inerentes aos códigos da coragem que envolvem a comunidade como um todo, o que pode ser pensado à partir do prisma conceitual de família extensa, proposto por Wagley (1977), no qual constrói um círculo de relações que envolve parentes por consanguinidade, compadrio e afetividade, estando todos estão conectados à uma rede de auxílio e solidariedade, caso qualquer membro desse círculo venha necessitar. (WAGLEY; 1977:154).

Pude compreender que em Itacoã, o conceito de Coragem como o de “ofício” como sendo o domínio de técnicas do partejar que incluem em si um conjunto de códigos de conduta, valores e critérios, dentre os quais destacarei as noções relações sistêmicas e de territorialidade.

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Quando me refiro a uma relação sistêmica, não me limito às conexões entre humanos. A permanência coragem e do “ofício” implica nas “nas linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas” nas quais as parteiras estabelecem entre suas visões de mundo e seus comportamentos. Isso demanda uma conectividade sistêmica com as plantas, ervas, animais e entes do sagrado, não no sentido de dominação, mas de conexões que permitem crescimento e movimento (INGOLD, 2012: 27). Essa perspectiva já demonstra a necessidade da antropologia de transcender as clássicas do domínio humano pela natureza, assim como propõem Latour em seu conceito de Antropoceno (2014).

A fala torna-se o elemento crucial que permite a circulação e/ ou ato restrição desse conhecimento. Nesse sentido, os ensinamentos passados pela oralidade tomam corpo de testemunhos que, por sua vez, entram no campo da sacralidade, garantindo na sociedade a legitimidade desses saberes, tal como argumenta Hampaté Bá (2010):

O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte. A fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. (HAMPATÉ BÁ, 2010, p. 168).

É no caráter do reconhecimento da Coragem, enquanto uma cultura que não cabe à todos, mas está partilhada pelo coletivo e no papel que ofício de partejar exerce sobre os moradores da comunidade que também vislumbro a noção de

Tenho a ciência de que, não trago a definição em si das parteiras sobre

Coragem ou “ofício”, mas compreendo que aqui se estabelece uma relação de

“discursos” entre observador e observado. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004: 113) Porém, no que tange às questões de saúde em Itacoã, é notório o reconhecimento coletivo dado à autoridade das parteiras. Nas entrevistas livres e direcionadas realizadas e com base nos dados adquiridos através da participação em eventos específicos e situações cotidianas, pude perceber que entre uma forte relação de respeito e admiração dos moradores da comunidade em relação às parteiras de Itacoã.

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Outro aspecto que aponta tais relações de poder, está na liberdade de circulação das parteiras pelos quintais de Itacoã, que incide sobre o debate acerca de territorialidade.

A legislação brasileira define Quilombos como grupos étnicos raciais, ligados historicamente a resistência e a marginalidade sofrida por sua ancestralidade negra e que se constituíram por múltiplas formações históricas e relações territoriais. (BRASIL, 2003) Em grande medida, essas relações territoriais, são baseadas na coletividade, e envolvem fortes laços de parentesco e de herança familiar. Em 2013, Itacoã passou pelo processo de titularização como território quilombolas. Com base nessas normas os moradores de Itacoã tem áreas determinadas para o plantio de suas roças e moradias, o que não significa que detenham a posse privada dessas terras, pois trata-se de uma propriedade coletiva obedecendo as determinações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que diz: “Pela prática do sistema de uso comum de suas terras, concebidos por elas como um espaço coletivo e indivisível que é ocupado e explorado por meio de regras consensuais aos diversos grupos familiares que compõem as comunidades, cujas relações são orientadas pela solidariedade e ajuda mútua”. (BRASIL. 2011)

Devido o quilombo ser uma categoria jurídica específica, e por observação à essas determinações legais, as famílias em Itacoã não detém a posse das terras, entretanto, os mesmos apreendem lógicas internas de gerência desse território, estabelecendo um sistema do Lugar que também compreendem questões cosmológicas.

Não existem cercas, porém cada família tem um espaço destinado para a moradia e roça e quintais separados por rios, igarapés, estradas, árvores e demais elementos da natureza. Também existem espaços destinados à uso comum, tal como o porto os campos de futebol, barracão da Associação e o caminho central, sendo que este último, por ser repletos dos resquícios do antiga Casa Grande de Antonio Maciel e dos restos do cemitério que existia nessa propriedade, não pode ser ocupado e os moradores evitam circular por lá por horas avançadas da noite e, como se percebe, a organização desse espaço envolve múltiplos elementos, as questões jurídicas, fatores históricos e a valorização da memória. (GODOI, 1998) A miscelânea desses elementos, carregado de símbolos e

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significados, transforma o espaço em lugar, que passa a constituir elemento de referência ao grupo, voltado tanto para suas atividades de reprodução social, quanto para a construção de identidades culturais (ALENCAR, 2007:97).

O acesso aos quintais de Itacoã, compreende normas específicas da vivência nessa comunidade. O primeiro ponto, ainda que não existam cercas ou outras estruturas físicas que separem as áreas os quintais de cada família, os gêneros, ervas, madeira, e animais que ali estão não podem ser retirados sem a devida permissão de alguém do núcleo familiar responsável pela área, chegando a ocupar cerca de 4 hectares de terra, como no caso da família Barros. (BARROS, R. 2018)

É evidente a existência de uma forte rede de solidariedade entre esses quilombolas, sendo comum que uma pessoa doe uma planta ou erva para que outro morador plante para que depois ambas as famílias possam compartilhar de seus benefícios como por exemplo, a arruda, muito utilizada para banhos e pastas destinados ao tratamento de sequelas de derrame, a mesma é descrita por grande parte dos entrevistados como uma planta muito “melindrosa” e que deve se ter muito cuidado no plantio, sendo necessária a utilização de palavras específicas para que a planta não morra de imediato. Ainda assim, existem tabus específicos quanto para a circularização nos quintais e a informação e coleta dos gênero disponíveis em cada uma dessas áreas, tendo em vista que, seus moradores têm a ciência de que neles encontram-se também plantas que podem levar à morte ou hábeis para a prática do aborto, como no caso da “Salva de Marajó” e, por isso, muitas das vezes não divulga os gêneros que têm e limita, à medida do possível, o acesso de pessoas estranhas em seus quintais.

No entanto, quando se trata das parteiras, essas restrições são retiradas. E um aspecto interessante está na cartografa que essas mulheres exercem desses gêneros úteis à prática de cura. Por mais que sejam, em grande medida, senhoras de avançada idade e com dificuldades de locomoção, são capazes de identificar a localidade aonde o referido gênero se encontra e o responsável pelo quintal. Essa conectividade está relacionada ao fato de sua moradia ser tida como local de grande circulação dos moradores de Itacoã solicitando atendimento. Com isso as parteiras conversam com os pacientes e através disso se informam enquanto a localidade de ervas e demais gêneros. E muitas vezes ela recorre à uma planta

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que ouviu falar que estava em um determinado quintal em anos passados e ainda consegue os recursos necessários para suas atividades. Nesse sentido, a memória se torna um elemento fundamental à manutenção desse mapeamento que cotidianamente se atualiza e dinamiza a possibilidade da parteira de ter acesso aos recursos para tratamentos de enfermidades.

Outra estratégia para atualização dessa cartografia, foi relatada por Maria Julieta, que utiliza suas caminhadas cotidianas para observar os novos gêneros disponíveis nos terrenos dos moradores, estabelecer redes de informação com aqueles que não tem frequentado sua casa e, ao mesmo tempo, atualiza sua colega de ofício, Tia Preta, sobre a disponibilidade desses gêneros.

As mesmas caminhadas servem como mecanismo para diagnosticar os vizinhos mais próximos e iniciar sessões de tratamento de alívio e cura. ÉR comum chamar dona Julieta para a cura de uma garganta, ou para a recomendação de uma doença ou enfermidade aparente.

Sua relação com os moradores é respeitosa, sempre solicitando a entrada para os quintais, que nunca lhe é negada. E a notoriedade de sua palavra também permite esse acesso, o que pude perceber ao entrevistar outros moradores de Itacoã, que relataram que quando precisam de algum remédio ou tratamento de saúde, recorrem as parteiras que, quando não tem os gêneros necessários para o preparo em seus quintais, indica para o paciente o quintal aonde pode adquiri-los e permite o uso do seu nome para que o responsável pelo quintal permita que seu paciente tenha acesso ao gênero, ou muitas vezes a própria parteira vai em busca desse recurso.

Referências bibliográficas

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Bacharel e licenciada em História( UFPA), Mestre em História Social da Amazônia (UFPA), Doutoranda em Antropologia (PPGSA-UFPA), Docente em FIBRA Centro Universitário, Docente SEMED- Acará e Docente SEDUC- PARÁ

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