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Os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul: os conflitos de terra e as marcas do SPI

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Academic year: 2021

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os conflitos de terra e as marcas do SPI

Eranir Martins de Siqueira1 Orientador: Antônio Jacó Brand.2

Introdução.

O presente trabalho centra-se na análise de questões referentes ás terras ocupadas e reivindicadas pelos Kaiowá e Guarani, localizados no cone sul do Estado de Mato Grosso do Sul. Os Kaiowá e Guarani constituem hoje uma população estimada em 32.000 pessoas, ocupando 27 áreas. Historicamente confinados em pequenas reservas de terras demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios, eles vêm buscando, nas últimas duas décadas, quebrar esse confinamento recuperando áreas de terras ocupadas pelas diversas frentes de colonização que adentraram em seu território. Enfrentam inúmeros conflitos relacionados à posse de terras consideradas, pelos índios, como sendo de ocupação tradicional. Embora já identificadas pela FUNAI, muitas dessas terras seguem em mãos de terceiros, considerados ocupantes de boa fé.

Apoiado em pesquisa bibliográfica e documental, o artigo demonstra como as argumentações de proprietários e órgãos públicos, contra o direito indígena á terra encontram sua lógica nas concepções construídas pelo SPI e seguidas pelo órgão indigenista no processo de demarcação, entre os anos de 1915 e 1928, de oito reservas de terras, legalmente destinadas à posse dos Kaiowá e Guarani. Ignorando os padrões indígenas de relacionamento com o território e recursos naturais e, principalmente, a sua organização social, o órgão indigenista firmou compreensão equivocada sobre terras de ocupação tradicional.

O SPI e a demarcação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul

Em 1910 foi criado, por meio do Decreto nº 8.072, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão subordinado ao Ministério da Agricultura. Os objetivos que

1 Acadêmica do curso de História – UCDB, bolsista CNPq – Programa Kaiowá/Guarani – NEPPI. Campo

Grande – MS, eranirsiqueira@hotmail.com

2 Doutor em História, professor na Universidade Católica Dom Bosco e coordenador do Programa

Kaiowá/Guarani, um programa de pesquisa que conta com o apoio do CNPq. Campo Grande – MS, brand@ucdb.

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nortearam a criação deste órgão, da administração pública federal, foi colocar as populações indígenas sob a égide do Estado, por meio do instituto da tutela, prometendo assegurar-lhes assistência e proteção, tornando efetiva e segura a expansão capitalista nas áreas onde havia conflito entre índios e fazendeiros. Uma administração regional do SPI instalou-se em Campo Grande, MS, para atender os índios localizados no sul do então estado de Mato Grosso e São Paulo.

No ano de 1915, o SPI inicia suas atividades junto aos Kaiowá e Guarani no sul de Mato Grosso, com a demarcação oficial das reservas destinadas a essa população indígena. Os Kaiowá e Guarani viviam espalhados por uma ampla região em ambos os lados da fronteira entre o Brasil e Paraguai, reunidos, fundamentalmente, em grupos macrofamiliares. Coincidentemente, seu território era, também, área de forte presença da erva-mate. Sua exploração constitui-se no período pós-guerra do Paraguai em importante atividade econômica, sendo praticamente todo o território tradicional dos Kaiowá e Guarani arrendado à Companhia Matte Larangeira.

Os critérios utilizados pelo SPI na demarcação das reservas de terras a serem destinada aos Kaiowá e Guarani foram de três ordens. Um primeiro dizia respeito à significativa concentração de índios, o que em muitos casos estava relacionada às atividades de coleta da erva-mate e, portanto, ao trabalho dos índios na colheita da erva. Um segundo aspecto diz respeito á disponibilidade da terra, ou seja, a inexistência de outros pretendentes para o espaço naquele momento ocupado pelos índios.E, finalmente, a qualidade da terra, ou seja, a busca de terras mais aptas para a agricultura (BRAND, 1997). Portanto, como se percebe, em nenhum momento houve a preocupação deste órgão, em procurar saber realmente onde se localizavam as terras de ocupação tradicional destes índios e muito menos se as demarcações respeitavam a organização social dos mesmos.

Esses critérios que orientaram, efetivamente, as demarcações das reservas indígenas destinadas aos Kaiowá e Guarani no atual Mato grosso do Sul deram margem a vários equívocos, sendo o principal deles, e que persiste até hoje, perpassando as polêmicas em torno das atuais disputas pela retomada de terras por parte dos índios, o de caracterizar como terras indígenas apenas aquelas demarcadas como reservas e não as de ocupação tradicional, tal como são definidos nos textos constitucionais, especialmente os de 1988.

Entre os anos de 1915 a 1928 são demarcadas, oitos reservas de terras destinadas aos Kaiowá e Guarani. São criadas as reservas de Amambaí (Benjamin Constant), de Dourados (Francisco Horta) e de Caarapó, todas inicialmente com 3.600 ha cada uma. Vem a seguir a demarcação das reservas de Ramada ou Sassoró, Porto Lindo ou Jacare’y, Pirajuí e Taquapery, todas com 2.000 ha.

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No entanto, a reserva de Amambaí, antes mesmo da sua demarcação física, perde mil hectares, que são vendidas para um particular. Para compensar essa perda, o Governo demarca, aleatoriamente, uma pequena reserva 900 ha, Limão Verde, localizado no mesmo município de Amabaí (BRAND, 1997). A preocupação exclusiva do órgão oficial é a demarcação de terras.

O SPI, ao demarcar estas oito reservas, oficializou a política de aldeamento, confinando estas populações a pequenos lotes de terras. Cabe perguntar as razões que levaram o SPI a garantir aos índios extensões de terras tão reduzidas se o Estado, neste período, possuía muitas terras devolutas. A resposta a essa questão deve ser buscada nos objetivos da ação do SPI que era a de integrar os índios na economia regional. Porém, cabe destacar que mesmo que a intenção da “proteção oficial” era “transformar os índios em pequenos produtores rurais capazes de auto-sustentarem”, mesmo assim as reservas eram muito pequenas (LIMA, 1992:159).

A ação do SPI e do Governo do Estado, ao demarcar essas reservas, sinaliza e oficializa o processo de confinamento compulsório, dos Kaiowá e Guarani, sedimentando a compreensão que as terras por direto de posse indígena eram exclusivamente as reservas demarcadas. E essa compreensão de que terra indígena restringe-se às reservas demarcadas pelo SPI, generaliza-se entre a população regional, apesar dos textos constitucionais afirmarem, a partir de 1934, compreensão contrária.

Para os Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul, as reservas significaram o seu confinamento, que desrespeitou a sua organização social ao juntar numa mesma área famílias extensas diversas, ou seja, reunir numa mesma reserva diversas aldeias, antes autônomas. Desconsiderando as lideranças religiosas, os tekohauvicha (líderes religioso), o SPI introduziu a figura do “capitão” como líder máximo em cada reserva, atribuindo-lhe o papel de interlocutor exclusivo entre o Estado e a comunidade indígena. Eram escolhidos, pelo órgão oficial, como capitães exatamente aqueles índios já mais próximos e integrados no contexto regional. Ao demarcar as reservas, o Governo liberou o restante da terra para a colonização, ou, segundo (Lima,1992:125), o governo criou “espaços livres para a empresa privada”. O Governo, ao considerar como terras indígenas apenas essas reservas demarcadas até 1928, liberou o restante da terra indígenas que passa a ser transferida a particulares, por meio de títulos de propriedades.

A quebra do confinamento – os conflitos de terra.

Uma das características destacadas na bibliografia existente sobre os Kaiowá e Guarani é sua índole dócil e pacífica, adotando como estratégia, historicamente, o

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distanciamento dos colonizadores. Essa era a forma de seguirem vivendo segundo o seu modo de ser, para o qual a violência física é sinal de desequilíbrio. Com a implantação dos projetos agropecuários, buscaram localizar suas aldeias nos fundos de algumas propriedades, onde procuraram resistir enquanto possível à transferência para dentro das reservas demarcadas pelo SPI. Aos fazendeiros interessava a presença dos índios nos fundos de suas fazendas enquanto necessários como mão de obra barata e fácil, pois os índios faziam o desmatamento. Quando não fosse mais do interesse dos fazendeiros a sua presença, estes eram transferidos, muitas vezes, pelo próprio SPI para dentro das reservas.

Porém, com o apoio de organizações não-governamentais e Igrejas, os índios não só passam a oferecer maior resistência à sua transferência para dentro das reservas, como, também, buscam reocupar áreas perdidas no decorrer do processo de confinamento. Segundo Hamilton Lopes, líder indígena da aldeia Pirakuá “Não pediram licença para tirarem nossa terra, não pedimo licença para recuperar nossa área, nosso povo precisa da terra pra vive a terra é nosso mãe e nois vamo retomá ela”.

Dessa forma, especialmente a partir da década de 1980, os Kaiowá e Guarani, apoiados na legislação em vigor e com apoio de setores da sociedade civil, iniciam um amplo processo de recuperação de terras perdidas.No decorrer do processo de colonização, os índios foram obrigados pelo próprio SPI a abandonar suas terras sob o argumento que eles teriam direito apenas às terras abrangidas pelas reservas demarcadas até o ano de 1928. De 1980 até a presente data os Kaiowá e Guarani recuperaram 10 novas áreas, perfazendo um total de 21.211 ha, hoje já devidamente demarcadas e de posse dos índios. E, de outra parte, outras 10 áreas seguem em processo de reocupação, sendo que os índios, em alguns casos, ocupam pequenas parcelas da terra pretendida (BRAND, 2003). Os conflitos entre fazendeiros e índios aumentam. Inúmeros processos tramitam em diversas instâncias da Justiça.

Analisando os argumentos mais recorrentes utilizados pelos proprietários rurais para contestar as demandas indígenas de recuperação de territórios tradicionais dos quais foram retirados, em muitos casos pelo próprio SPI, e a partir de 1967, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada após a extinção do primeiro, percebe-se que esses seguem amplamente apoiados na argumentação construída pelo SPI, no bojo das teses integracionistas que sustentavam sua ação.

Em entrevista concedida ao Jornal Correio do Estado, publicada no dia 25 de janeiro de 2004, o produtor rural, Ricardo Bacha, afirma que “O funcionamento da FUNAI, transformou num reduto corporativista que se desvinculou completamente dos objetivos para os quais foram criados”. Para Bacha, “o conflito envolvendo índios e

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fazendeiros no Estado, faz parte de uma estratégia que visa transformar cerca de 20% do território estadual em reservas indígenas, algo que inviabilizaria economicamente Mato Grosso do Sul, visto o refluxo produtivo que provocaria”.

Na mesma entrevista, quando perguntado se a ampliação das áreas indígenas não significaria abrir perspectivas melhores na condição de vida para os índios. Respondeu afirmando que:

Do jeito que está posto, os índios terão apenas mais área. Isso não resolve. O que se quer saber – e até agora nem a Funai, nem o Cimi, as ONGs responderam a essa pergunta – é o seguinte: mais área para os índios para quê? Ou seja, nós vamos tirar da terra alguém que está produzindo, passar a área para o Governo federal, para deixar de produzir, para ela servir a quê? Qual é o caráter social dessa ação? Os índios têm que convencer a sociedade brasileira de que a ampliação da reserva que pretendem é melhor para o país.

Centram-se esses argumentos na contestação da ocupação tradicional, explicitado no texto constitucional de 1988, buscando destituir as demandas indígenas por terra de seu conteúdo mais profundo, explicitado pelo conceito de território indígena. Além de desconsiderar o caráter ilegal, arbitrário e violento que caracterizou o processo de confinamento dos índios, não atenta para outras formas de uso ou outras formas de relacionamentos com a terra, reduzindo as demandas indígenas por terras aquelas eventualmente necessárias para o cultivo. Ou, ainda, argumentando que ao invés de mais terras a solução seria a garantia de emprego e maior assistência por parte do Estado.

É exatamente essa concepção de terra que norteou toda a ação do SPI, e posteriormente da FUNAI, no que se refere à garantia das terras indígenas para os Kaiowá e Guarani até a Constituição de 1988. E, nesse sentido, os proprietários de terra sempre puderam contar com a presença do órgão de proteção aos índios na liberação das terras fora das reservas demarcadas. O SPI firmou entendimento de que todos os índios fora das reservas eram “índios desaldeados”, atribuindo-se a si a tarefa de aldeá-los, ou seja, transferi-los para dentro das reservas demarcadas.

É o que afirma Brand (1997:104).

O deslocamento para dentro das Reservas de famílias e aldeias indígenas ainda residentes em fazendas da região

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seguiu constante durante a década de 1980, como atestam os informes e relatórios dos diversos funcionários da FUNAI. Estes mesmos relatórios confirmam, também, que o envolvimento do órgão oficial na política de confinamento dentro das Reservas, das comunidades localizadas fora das mesmas continuava (1997, p.104).

Ou seja, até a década de 1980, o órgão indigenista oficial seguiu posisionando-se do lado dos proprietários de terras nos conflitos envolvendo demandas indígenas voltadas à recuperação de terras de ocupação tradicional. Seguia confirmando o entendimento de que terras indígenas eram apenas as oito reservas reconhecidas pelo SPI até 1928, contribuindo para sedimentar uma compreensão equivocada e que hoje sustenta as teses dos pretensos donos.

Na mesma linha segue Relatório apresentado em 9 de junho de 2004, pelo Relator da Comissão Especial do Senado Delcídio do Amaral Gomes, de Mato Grosso do Sul, que estuda os conflitos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Segundo notícias divulgadas pela assessoria do senador (Correio do Estado de 9/06/2004), este propõe em seu Relatório, entre outras medidas, que não sejam demarcadas como terras indígenas aquelas terras legalmente tituladas em nome de terceiros não-índios. Ora todas as terras das quais os índios Kaiowá e Guarani foram historicamente, despejados de forma arbitrária estão hoje tituladas em nome de terceiros.

Essas são algumas das marcas nas lutas dos Kaiowá e Guarani pela recuperação de parcelas de seu território tradicional deixadas pela longa ação do SPI. A dificuldade de amplos setores da opinião pública e do poder executivo em admitir o conceito de ocupação tradicional está ancorada nessa longa trajetória histórica de uma política indigenista, voltada para integração e que ignorou a concepção indígena de território e ocupação tradicional.

Referências

BRAND, Antônio. O confinamento e seu impacto sobre os Pãi/Kaiowá. Porto Alegre, 1993. Dissertação (Mestrado em História) - PUC-RS.

______. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difíceis caminhos da palavra. Porto Alegre, 1997. Tese (Doutorado em História) - PUC-RS. ______. Os Kaiowá/ Guarani no Mato Grosso do Sul e o processo de confinamento-a “entrada de nossos contrários” In Conflitos de direitos sobre as terras guarani

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Correio do Estado. O Conflito indígena inviabiliza o Estado. Campo Grande,

p.5ª.janeiro/2004.

CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESP/ Companhia das Letras/SMC: 1992

GRESSLER, Lori A.; SWENSSON, Lauro J. Aspectos históricos do povoamento e

da colonização do Estado de Mato Grosso do Sul. Dourados: Dag: l988.

LIMA, Antônio C. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

PAULETTI, Maucir et al. Povo guarani e kaiowá: uma história de luta pela terra no Estado de Mato Grosso do Sul. In Conflitos de direitos sobre as terras guarani

kaiowá no Estado de Mato Grosso do Sul. São Paulo: Palas Athena, 2000.

SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: Pedagógica/USP, l974.

Referências

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