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Da falência do sistema prisional: a justiça restaurativa como meio alternativo e eficaz de desencarceramento e reintegração

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO

DA FALÊNCIA DO SISTEMA PRISIONAL: A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO ALTERNATIVO E EFICAZ DE DESENCARCERAMENTO E

REINTEGRAÇÃO

PEDRO CATALDO CALABRIA

Niterói 2019

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PEDRO CATALDO CALABRIA

DA FALÊNCIA DO SISTEMA PRISIONAL: A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO ALTERNATIVO E EFICAZ DE DESENCARCERAMENTO E

REINTEGRAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para conclusão do curso.

Niterói 2019

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PEDRO CATALDO CALABRIA

DA FALÊNCIA DO SISTEMA PRISIONAL: A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO ALTERNATIVO E EFICAZ DE DESENCARCERAMENTO E

REINTEGRAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para conclusão do curso.

Aprovado em 19 de julho de 2019.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Dr. Prof.André Luiz Nicolitt (Orientador)

_____________________________________________ Professora Erli Sá dos Santos

_____________________________________________ Veneranda Nicolitt Roza

Niterói 2019

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus familiares pelo apoio incessante e caloroso, aos meus amigos de coração e de alma que sempre me motivam, e seguem assim fazendo, a desempenhar o meu máximo em todos os aspectos da vida.

Agradeço ao meu orientador, Prof. André Nicolitt, pelos ensinamentos, paciência e tempo destinado a mim, serei eternamente grato. E também, não posso esquecer, do meu coorientador, Fernando Henrique Cardoso, pelas indicações literárias e pela ajuda nessa fase da vida de um estudante tão complicada, geralmente adentrando a parte adulta da vida.

Por fim, agradeço a instituição, a Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, por ter me proporcionado aventuras, descobrimentos pessoais e ter despertado em mim a pessoa que sou hoje. Carregarei em meu coração toda a experiência e bagagem durante esses 5 anos de graduação com muito orgulho e ternura. E, que possa, ao fim de minha vida, olhar para trás e lembrar desses anos com um sorriso grato em meu rosto.

Muito obrigado a todos que estiveram comigo nessa jornada. Que venham os próximos desafios!

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Destino indica a correria de um homem; alternativa, pra criança aprender, basta quem ensina Essa é a verdade: criança aprende cedo a ter caráter A distinguir sua classe, estude, marque Seja um mártir, às vezes um Luther King, um Sabotage...

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RESUMO

O presente estudo apresenta uma análise sócio histórica do surgimento das penas, apontando seu desenvolvimento ao longo dos séculos até o surgimento da pena privativa de liberdade, como forma de compreensão do fenômeno punitivo e sua importância no âmbito social como instrumento de coerção das massas. A finalidade do presente trabalho busca demonstrar que a busca pela humanização das penas não atingiu níveis satisfatórios, tendo em vista que as penitenciarias tiveram seus alicerces construídos sob uma cultura racista, segregadora e estimulada pelo capital. De forma que a ressocialização do preso passou para o segundo plano, em detrimento dos interesses externos e do sofrimento aplicado dentro dessas instituições como forma de retribuição social. Nesse sentido, seriam necessárias formas modernas e revolucionárias de lidar com esse contingente cada vez maior de sujeitos que cometem ilícitos penais. O modelo em que dedicamos nossos estudos é o da justiça restaurativa, não como punição alternativa, mas sim como alternativa a punição. Para isso, revisitaremos a literatura de diversos autores nacionais e estrangeiros que, em sua maioria, são críticos do sistema penal tradicional e defendem o desencarceramento cada um à sua maneira, seja da forma mais branda à mais radical, tal como o abolicionismo penal. O tema em questão será abordado através de referências teóricas e bibliográficas, corroboradas por um estudo de caso detalhado, ao fim, referente ao modelo de justiça restaurativa realizado em São Caetano do Sul, onde obteve resultados interessantes do ponto de vista social, humano e jurídico.

Palavras-chave: Origem das Penas, Prisão Privativa de Liberdade, Surgimento das Penitenciárias, Medidas Alternativas à Punição, Justiça Restaurativa.

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ABSTRACT

The present study introduces a socio-historical analysis of the appearance of criminal sentences, pointing to its development over the centuries until the emergence of the custodial sentences, as a way of understanding the punitive phenomenon and its importance in the social sphere as an instrument of coercion of the masses. The purpose of the work is to demonstrate that the search for humanization of the penalties did not reach satisfactory levels, considering that the penitentiaries had their foundations built under a racist, segregated and capital-stimulated culture. So that the re-socialization of the prisoner went to the second plane, to the detriment of external interests and the suffering applied within these institutions as a form of social retribution. In that sense, modern and revolutionary ways of dealing with this growing contingent of individuals who commit criminal offenses would be necessary. The model in which we dedicate our studies is the restorative justice, not as an alternative punishment, but as an alternative to punishment. For this, we will revisit the literature of several national and foreign authors who, for the most part, are critics of the traditional penal system and defend the political policy of releasing prisoners of the penitentiaries each in its own way, from the mildest to the most radical, such as penal abolitionism. The subject will be approached through theoretical and bibliographical references, corroborated by a detailed case study, in the end, referring to the model of restorative justice carried out in São Caetano do Sul, in São Paulo, Brazil, where it obtained interesting results from a social, human and legal point of view. Keywords: Origin of the Penal Sentences, Custodial Sentences, Emergence of Penitentiaries, Alternative Measures to Punishment, Restorative Punishment.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO... 10

2. BREVE INTRODUÇÃO HISTÓRICA ACERCA DA ORIGEM DAS PENAS... 12

3. DAS PENITENCIÁRIAS COMO CONHECEMOS HOJE... 17

4. DAS PENAS ALTERNATIVAS PREEXISTENTES E SUA RELAÇÃO COM DESENCARCERAMENTO... 26

5. DA JUSTIÇA RESTAURATIVA... 30

5.1 AUTORES E SUAS CONSIDERAÇÕES... 30

5.2 O MODELO DE SÃO CAETANO DO SUL... 36

6. CONCLUSÃO... 43

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10 1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como principal escopo compreender o fenômeno punitivo, como forma de regular os atos humanos, partindo de seu pressuposto basilar: as penas privativas de liberdade. E adentrar no campo das penas alternativas, chegando a justiça restaurativa, como método de ressocialização do condenado em detrimento ao encarceramento em massa.

Para isso, revisitaremos a criação das penitenciárias, os motivos de sua criação, como funcionavam e elaborar um paralelo com os dias atuais, especialmente no que tange as populações carcerárias do ponto de vista étnico. Falaremos também no crescente números de presos nos países incentivadores do encarceramento e os reflexos causados por estas medidas públicas na sociedade e na coletividade como um todo.

O estudo busca demonstrar que o sistema carcerário não apresenta sinais efetividade, quando falamos a respeito de reincidência criminal, pois este foi fundado em um sistema racista e punitivo, que não se preocupa com a verdadeira reintegração do apenado à sociedade, mas sim, como mero instrumento de sofrimento.

De fato, a Lei nº 7.210/1984, conhecida como Lei de Execuções Penais, em seu artigo 1º, afirma que a finalidade das penas é ‘’proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado’’. A reinserção se faz através de um projeto de política penitenciária que tenha como finalidade recuperar os indivíduos apenados para que estes possam, quando saírem da penitenciária, serem reintegrados ao convívio social. Na prática, no entanto, resta claro que as penitenciárias no Brasil se encontram num estado degradante, onde faltam muitas vezes as condições mínimas existenciais para que sua finalidade seja cumprida, inclusive em desconformidade com princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e muitos outros preceitos fundamentais.

A readaptação do condenado ao meio social, cada vez mais, fica em segundo plano, de forma que o Estado brasileiro age e instaura políticas públicas com ideais de justiça retributiva, qual seja, buscando trazer sofrimento ao condenado. E, de fato, grande parte da sociedade compreende da mesma forma. Vivemos tempos em que a cultura punitiva cega grande parte das pessoas, atrasando avanços sociais e travando medidas modernas e garantistas que prezem por uma reflexão individualista do preso. As políticas públicas da atualidade não procuram dar orientação humanista a pessoa que delinquiu.

Nesse diapasão, caberia ao Estado prover condições educacionais, de capacitação profissional e, principalmente, buscar a conscientização psicológica e social do preso, nos moldes do que veremos a seguir ao longo do trabalho, o que se chama de justiça restaurativa. Esse conjunto de fatores seria capaz de trazer ao apenado uma segunda chance, ao passo que

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enjaulá-lo somente não alcançaria o objetivo ressocializador presente no artigo 1º da Lei de Execuções Penais. Na mesma linha de pensamento, o jurista Mirabete afirma que:

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior (...). A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação1.

Para falarmos a respeito das estruturas penitenciárias e seu instrumento de dominação, é necessário primeiro que visitemos os conceitos de pena e sua evolução histórica até o surgimento da penitenciária como novo sistema de punição nos Estados Unidos da América. Até chegar a este estágio, a humanidade enfrentou diversas formas de punição.

Considerando que as penas são, acima de tudo, uma forma de controlar as condutas sociais dos indivíduos, a humanidade sempre se debruçou sobre o tema. Filósofos, sociólogos e agentes públicos, ao longo das eras, foram responsáveis por reinventar formas de punição compreendidas por eles como mais avançadas e atuais. Sendo assim, no primeiro tópico deste Trabalho de Conclusão de Curso, analisaremos a evolução das penas e sua importância como instrumento de coerção social.

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12 2. BREVE INTRODUÇÃO HISTÓRICA ACERCA DA ORIGEM DAS PENAS

A palavra pena deriva do latim ‘’poena’’ e do grego ‘’poiné’’ e tem o significado de inflição de dor física ou moral. Nas palavras de São Tomás de Aquino: “Pena es la privación de um bien, impuesta por alguna autoridad de acuerdo com la ley y contra la voluntad de una persona, em razón y proporcionada con su culpa anterior y com el fin de procurar la paz social”2. Através de seu caráter aflitivo e legal, a pena busca a correção do indivíduo, a proteção e a intimidação da sociedade.

O processo de persecução penal hoje conhecido é muito diferente do praticado em tempos antigos. Atualmente, o ordenamento jurídico nos impõe uma série de restrições e garantias processuais e materiais responsáveis por limitar o poder estatal. A República Federativa do Brasil é, afinal de contas, um Estado Democrático de Direito. Se acusado, um indivíduo passa pela fase de investigação e, se comprovado o mínimo de autoria e materialidade, este é denunciado e levado à juízo para responder perante o Estado. De forma que lhe é dada oportunidade de se defender das acusações e comprovar a veracidade de sua versão, comprovando sua inocência.

As penas sempre estiverem presentes na trajetória da humanidade como forma de instrumento de coerção social, mas não de forma regulamentada como no descrito acima. Os grupos de humanos ainda não haviam chegado ao nível de segurança jurídica dos dias atuais, fazendo com que as penas fossem pautadas pela discricionariedade e pelo arbítrio. Se seguidas as leis, as condutas estariam limitadas e a sociedade viveria em completa ordem e a harmonia. De fato:

[...] a primeira pena a ser aplicada na história da humanidade ocorreu ainda no paraíso, quando, após ser induzida pela serpente, Eva, além de comer o fruto proibido, fez também com que Adão comesse, razão pela qual, além de serem aplicadas outras sanções, foram expulsos do Jardim do Éden.3

A forma de privação de liberdade dos dias atuais ainda não existia ao surgimento das penas. Eram meros instrumentos de espera para a verdadeira execução, em muitos casos castigos corporais ou vexatórios. Durante séculos, a prisões foram utilizadas com a finalidade de custódia, na medida em que o preso permanecia durante este período sob condições subumanas. Era meio comum usado pelos credores de obter o pagamento forçado por parte de devedores.

2 CODESIDO, Eduardo A. El concepto de pena y sus inplicancias jurídicas en Santo Tomás de Aquino. Buenos Aires: Universitas, 2005. p. 76.

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O direito dos povos antigos nos permite descobrir uma série de sistemas jurídicos e sociais uns mais fascinantes do que o outro. Esses grupos sociais possuíam normas regidas majoritariamente pelo costume, possuindo forte influência religiosa. Estudiosos afirmam que estas sociedades tinham suas bases estabelecidas desde já em instrumentos coercitivos que se enraizavam através do medo de reprovação e, sobretudo, por medo de sanções divinas. ‘’As penas mais comuns nesse período eram: “[...] a morte, as penas corporais, as sanções sobrenaturais; ou ainda uma das sanções mais graves nas sociedades arcaicas, o banimento, ou seja, a expulsão fora do grupo, que para o expulsado leva à perda da proteção do grupo”4. De

forma que o medo iminente de ser punido fazia com que obedecessem e seguissem o padrão de comportamento determinado pelo costume.

A complexidade das relações humanas e potencialização de nossas cidades permitiu um crescimento exponencial na quantidade de condutas desaprovadas pela sociedade e pelas leis. A humanidade, em busca de frear as liberdades no contexto social, entra no período histórico conhecido como Período da Vingança. Cabia ao infrator a responsabilidade pelo dano causado. Tão logo, a cada regra de conduta violada, fazia-se necessária a aplicação de alguma sanção como medida punitiva. Na China, por exemplo, as penas para homicídio e estupro eram pena de morte e castração, respectivamente. Na Índia, por sua vez, pessoas hierarquicamente superiores (castas superiores) tinham tratamento diferenciado. Suas condutas, por mais que incompatibilizadas com as regras ordenamento jurídico, geravam apenas multas. Enquanto, no Egito, a revelação de um segredo podia significar ter sua língua amputada.5 O período da vingança pode ser dividido em três: vingança privada, divina e pública.

O primeiro período corresponde à fase em que o controle social era baseado na regra do mais forte, a partir da autotutela ou da submissão. Era a mais simples e pura retribuição a alguém pelo mal praticado. A execução da pena era de cunho pessoal, ou seja, aquele que tinha seu bem jurídico lesado era responsável por reestabelecer o equilíbrio perdido. Neste período, foi concebido o Código de Hamurabi, onde está contida a famosa ‘’Lei do Tabelião’’, que tinha como principal norte a máxima da ‘’justiça espelhada’’, origem da célebre frase ‘’olho por olho, dente por dente’’. Tal obra foi responsável por compilar uma série de normas que buscavam um simulacro do que chamamos hoje de princípio da proporcionalidade, mesmo que insipiente. A fase da vingança divina se caracterizou pela manutenção de um status quo por parte da sociedade sacerdotal à época com intuito de legitimar a cooperação de todos mediante argumentos baseados em divindades e crenças. Por muito tempo, a religião manteve um

4 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 2º Ed. 1995., p 37.

5 CALDEIRA, Felipe Machado. A evolução histórica, filosófica e teórica da pena. Revista da EMRJ, v. 12, n. 45, p. 255-272, 2009.

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domínio absoluto sobre as coisas humanas por ver-se enraizada na consciência popular. Os sacerdotes possuíam o monopólio dos conhecimentos jurídicos, cabendo a eles julgar o agressor por ter despertado a ira dos deuses ao desacatar suas leis sobrenaturais. O Direito Hindu, ainda nos dias atuais, é um exemplo atual do direito religioso. Suas noções jurídicas envolvem o dharma (dever), que determina o conjunto de normas que regulam as obrigações dos homens. ‘’As regras que os homens devem seguir foram reveladas pelas divindades’’6.

A organização das sociedades do ponto de vista político, levou as comunidades a era da vingança pública. A pena perderia seu caráter privado passando a ser uma sanção executada por autoridade pública, como síntese da vontade geral da sociedade. Já não era mais o ofendido, nem mesmo os sacerdotes que aplicavam o castigo como forma de reparação a alguma infração. O soberano, dotado dos poderes conferidos por Deus, pregava sua autoridade. A evolução da pena permitiu que esta ultrapassasse a figura da vítima e do réu, se tornando um espetáculo punitivo e ostentoso, executado em público para satisfação da população. Foucault dizia que “o suplício judiciário deve ser compreendido também como ritual político”7, pois através dos

espetáculos realizados em praça pública, o Judiciário aterrorizava os presentes e manifestava seu poder.

A chegada da Idade Média com presença colossal da Igreja Católica no continente Europeu trouxe à tona o direito canônico. Junto a ele, mais precisamente no séc. XII, na França, surge o Tribunal do Santo Ofício, formado com a finalidade de punir os hereges e perpetuar a fé cristã. Sendo retomada e adquirindo sua expressão máxima no final da Idade Média e início do Renascimento como uma forma de resposta à Reforma Protestante, ocorrida pouco tempo antes em diversos países. Práticas cruéis e criativas eram usadas como métodos de obter a confissão dos acusados. A famosa obra de Dias Gomes, o Santo Inquérito, em uma de suas passagens, demonstra a busca incessante e banal por confissões arrancadas através da dor de castigos físicos:

VISITADOR: Augusto Coutinho, sabe que está ameaçado de excomunhão? AUGUSTO: Sei.

VISITADOR: Como cristão, isso não o apavora?

AUGUSTO: Apavora mais não ter a fibra dos primeiros cristãos. VISITADOR: Para que desejaria ter a fibra dos primeiros cristãos? AUGUSTO: Para resistir às torturas.

VISITADOR: Ordenei a tortura pela sua obstinação em esconder a verdade. AUGUSTO: E vão acabar obtendo de mim a mentira. Isto é o que me apavora, mais do que a excomunhão8.

6 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 2. Ed. 1995., p 105.

7 FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, 24º ed. Petrópolis, 2001, editora Vozes, p. 41

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GOMES, Dias. O Santo Inquérito. págs. 113-114. Disponível em: http://escoladacrianca.com.br/ws/wp-content/uploads/2017/03/dias-gomes-o-santo-inquerito.pdf/. Acesso em: 14.05.2019

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Nesse período surgiriam as primeiras noções de privação de liberdade como forma de punição. Nesse sentido, ‘’Começando a ser aplicada aos religiosos que cometiam algum pecado, a privação da liberdade era uma oportunidade dada pela Igreja para que o pecador, no silêncio da reclusão, meditasse sobre sua culpa e se arrependesse dos seus pecados”9. As prisões,

surgidas à época funcionavam como ferramenta de punição e intimidação, mantendo-se isenta de qualquer noção de proporção ou dignidade humana.

A força da Contrarreforma aos poucos se esvaziava no continente Europeu, chegando a fase da humanização da pena e do período iluminista. Período marcado por um abrandamento no ato de se punir, pela aplicação de penais mais suaves e pela busca das diminuições dos sofrimentos. Em convergência a esse movimento, aos poucos os espetáculos punitivos sumiam e davam lugar a uma ideia negativa quanto a isso, colocando-se muitas vezes o estado no papel de vilão. A sociedade reconheceu a falência da pena capital como método de prevenção de crimes. Neste período, no séc. XVIII, pensadores como Cesare Beccaria começaram a exercer sua influência. Em seu livro ‘’ Dos Delitos e das Penas’’, o autor criticou as penas demasiadamente cruéis para crimes de pouco valor econômico ou jurídico, passando a defender ideais de proporcionalidade, tomou a utilidade social como base do direito de punir, ressaltando a necessidade da publicidade e da presteza das penas. Além disso, adentrou na discussão da reintegração do condenado. Para ele, a prisão não deveria servir como sanção, mas também como meio ressocializador. Dessa forma, ‘’o fim, pois é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo”10. A aplicação da pena

passa a ser um procedimento burocrático e reformador, que buscava corrigir e reeducar o delinquente. O italiano tocou pela primeira vez em discussões sobre legalidade das penas, no que tange a sua fixação, sobre conceitos referentes a finalidade da pena, sobre a abolição de penas cruéis, sobre clareza das leis e sobre igualdade de todos perante a lei penal, sendo considerado por muitos um revolucionário, à frente de seu tempo.

Pouco a pouco a sociedade como um todo entendeu que a pena privativa de liberdade era um avanço humanístico. Na ‘’segunda metade do século XVI, na Inglaterra – houses of correction e bridewells – e na Holanda – Rasphuis para os homens e Spinhuis para as mulheres’’11, já mostravam-se como percursores das chamadas penitenciárias. Pretendia-se

deixar de lado o período de horror marcado por castigos macabros, desarrazoados e desproporcionais.

9 CALDEIRA, Felipe Machado. A evolução histórica, filosófica e teórica da pena. Revista da EMRJ, v. 12, n. 45, p. 264, 2009.

10 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hunter Books, 2012. pg. 62.

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De certa forma, tal visão pode ser considerada irônica, tendo em vista que o surgimento ‘’da prisão tenha sido um produto dos esforços coordenados de reformadores no sentido de criar um melhor sistema de punição’’12. As consequências desse agir dos reformadores, fez com que

a pena restritiva de liberdade alcançasse o estágio de principal método punitivo ocidental, logo após o período da Revolução Americana, também como ‘’resistência ao poder britânico’’13. É

uma grande verdade que, se comparadas as penas corporais e castigos físicos utilizados anteriormente, de fato, as penas privativas de liberdade se revelaram como um avanço do ponto de vista da proteção à vida e de outros direitos fundamentais. Entretanto, não podemos deixar de lado a faceta desumanizada dessas prisões, em que muitos réus permaneceram tendo seus direitos básicos mais importantes violados.

Esses estabelecimentos surgiram já imersos de contestações. Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, afirma que:

[...] devemos lembrar que o movimento para reformar as prisões, para controlar seu funcionamento, não é um fenômeno tardio. Não parece nem mesmo ter se originado de um reconhecimento de fracasso. A ‘’reforma’’ prisional é mais ou menos contemporânea a própria prisão: constitui, por assim dizer, seu programa.14

Essas penitenciárias como conhecemos hoje surgiram apenas após a Revolução Americana e desde sua criação instrumentalizam a dominação social das camadas mais pobres em prol dos interesse das elites. Este tema é objeto do próximo capítulo do trabalho.

12 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? 1ª edição. Rio de Janeiro, 2018. Editora Difel, pag. 43. 13 Idem.

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17 3. DAS PENITENCIÁRIAS COMO CONHECEMOS HOJE

Nós, sujeitos do séc. XXI, consideramos as prisões algo natural. Um aspecto inerente e permanente de nossas vidas, de forma que dificilmente nos imaginamos sem este instituto. As pessoas ficam surpresas ao saber que ‘’o movimento pela abolição das prisões também tem uma longa história, que remonta ao surgimento histórico das prisões como a principal forma de punição’’15. Nossa relação com as prisões de forma romantizada, ao longo do tempo, e em

função dos diversos meios de comunicação e de entretenimento trouxe a ideia de familiaridade. Cada vez é mais comum encontrarmos documentários, filmes ou livros que retratem a vida nesses ambientes, como exemplo podemos citar o aclamado seriado da HBO, Oz, e o filme Fuga de Alcatraz. Além de muitas outras representações literárias, como Conde de Monte Cristo. Assim, a prisão se tornou ‘’uma das características mais importantes do nosso ambiente imagético’’16. No contexto de naturalização das prisões, ao mesmo tempo, a sociedade se

permite negar o que ocorre dentro dos muros das penitenciárias com certo distanciamento, fazendo com que contestações e ações reformadores, e até mesmo abolicionistas, sejam discutidas com clareza e certidão.

As prisões surgiram como forma de aprisionar indivíduos enquanto estes aguardavam suas penas. O cárcere era local de custódia para aqueles que seriam submetidos ao suplicio moral e físico, comum à época. A natureza e a finalidade destas instituições foram modificadas a partir do século XVIII quando então as prisões tornaram-se a essência do modelo punitivo, assumindo um caráter de estabelecimento público de privação de liberdade. As práticas, na teoria, não tinham mais o intuito de trazer justiça ao particular, cujo teve seus direitos lesados, assim ‘’o direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade"17.

Os EUA foram os responsáveis pela criação das penitenciárias com a finalidade única de aprisionamento, em detrimento de castigos corporais, empregados pelos colonizadores ingleses. No período após a Guerra Civil americana, que possuiu contornos econômicos e sociais, a escravidão foi declarada ilegal em todo o território americano. A 13ª Emenda da Constituição Norte-Americana, responsável pela emancipação dos negros, teve papel crucial na construção do sistema prisional moderno.

Ocorre que as elites brancas continuaram desempenhando seu papel de supremacia perante os negros muito despois do banimento da escravidão, de forma que na época era corriqueiro ocorrerem linchamentos e perseguições, assim como assassinatos dessa população

15 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 09. 16 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 20.

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recém alforriada. O governo, as corporações e a mídia dominante da época tentaram ‘’apresentar o racismo como uma lamentável aberração do passado relegada ao jazigo da história’’18. Entretanto, é visível que continua influenciando profundamente as estruturas,

atitudes e os comportamentos da sociedade contemporânea.

A escravidão guarda relação íntima com o surgimento das punições privativas de liberdade e das penitenciárias. Explorar essas conexões pode ser crucial para a definição de uma possível reforma prisional e de políticas públicas de combate à miséria e encarceramento, tendo em vista que a as penitenciárias são instituições racistas desde sua idealização.

É inegável que, de fato, as penitenciarias representaram um enorme avanço em relação a outros meios de punição cruéis. A ideia de que os prisioneiros se regenerariam se tivessem oportunidade de refletir e trabalhar na solidão do cárcere desconsiderou, entretanto, ‘’o impacto de regimes autoritários de vida e trabalho’’19 na sociedade. Uma análise histórica dessas prisões apresenta muitas semelhanças com a escravidão. Nesse contexto o historiador Adam Jay Hirsch fez suas considerações:

Ambas as instituições subordinavam seus sujeitos à vontade de outras pessoas. Como os escravos do Sul, os detentos nas prisões seguiam uma rotina diária especificada pelos seus superiores. Ambas as instituições reduziam seus sujeitos à dependência de outras pessoas para o fornecimento de serviços humanos básicos como comida e abrigo. Ambas isolavam seus sujeitos da população em geral ao confiná-los em um habitat fixo. E ambas com frequência obrigavam seus sujeitos a trabalhar, muitas vezes por longos períodos e por compensações menores do que as dos trabalhadores livres.20

Angela Davis, no mesmo sentido afirma que: ‘’conforme o sistema penal foi se tornando um sistema de servidão penal, as punições associadas à escravidão foram ainda mais incorporadas ao sistema penal.’’21. Dessa forma, as chibatadas, emblema da escravidão, foram

anexadas aos castigos físicos dentro dos muros dos presídios. Além disso, os regulamentos internos desses estabelecimentos eram muito próximos dos Códigos Negros, responsáveis por perpetuar o regime segregacionista em território americano, mesmo após a abolição da escravatura.

A raça passou a desempenhar um papel central nas noções de presunção de criminalidade. Os Códigos Negros citados acima, que nada mais eram do que os Código Escravagistas com algumas alterações, visavam regular o comportamento de negros livres.

18 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? 1ª edição. Rio de Janeiro, 2018. Editora Difel, pag. 25. 19 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 28.

20 HIRSCH, Adam Jay. The Rise of the Penitentiary: Prisons and Punishment in Early America. New Haven/London: Yale University Press, 1992, pag. 71.

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Eram responsáveis por proibir uma série de condutas ‘’como vadiagem, ausência no emprego, quebra de contrato de trabalho, porte de arma de fogo e gesto ou atos ofensivos’’22. Tais condutas eram criminalizadas apenas quando o sujeito ativo era negro. A aprovação da 13ª Emenda à Constituição vedou escravidão e servidão involuntária, com uma exceção crucial: era permitida como forma de punição por crime. Dessa forma, os Código Negros destinavam uma série de crimes nos quais apenas negros poderiam ser sentenciados. Assim, principalmente nos estados do sul dos EUA, ex-escravos, que tinham acabado de ser libertados de uma condição de trabalho forçada, podiam ser legalmente condenados à servidão penal.

O arrendamento de condenados praticados pelos estados americanos tinha como fundamento legal os Códigos Negros. Muitos deles tinham como principal escopo punir condutas cotidianas de forma grave e rígida quando seu autor fosse afro-americano. Dessa forma, ficar embriagado, faltar o ao trabalho, usar dinheiro de maneira negligente e muitas outras condutas menos graves eram materializadas como criminosas aos olhos dos legisladores elitistas americanos. Mary Ellen Curtin realizou estudos sobre detentos na região do Alabama e relatou que, antes da abolição da escravatura, 99% dos presos do estado eram brancos. Depois a abolição, e da implementação dos Códigos Negros, a esmagadora maioria era de negros23.

Na época era comum que se imputasse crime à cor. Diversos casos em que se desconhecia materialidade, autoria ou qualquer outro vestígio que apontasse a resolução das investigações eram atribuídos a negros. Além disso, criminosos brancos regularmente passavam-se como negros, pintando seus rostos com tinta preta, para escapar de sanções punitivas estatais. Segundo a estudiosa do Direito, Cheryl Harris, isso se dava, pelo fato de uma série de direitos básicos ser garantidos apenas a pessoas brancas, enquanto os negros tinham os mesmos direitos negados24. A racialização do crime, tendência de se atribuir crime a alguém

em razão de sua etnia, não se alterou ao longo do tempo. No Brasil, é comum que agentes do policiamento ostensivo estatal busquem um perfil racial para justificar ações destinadas às camadas pobres da sociedade, majoritariamente negras. As políticas públicas dos estados sulistas à época, concentravam-se com mais intensidade em negros, do que em brancos, representando a justiça criminal sulista, essencialmente, como maneira de controlar a força de trabalho negra.

Fato é que em muitos casos os escravos tinham tratamento melhor do que esses trabalhadores arrendados. Isso se dava pelo fato de serem mercadoria. Seus mestres não tinham

22 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 30.

23 CURTIN, Mary Ann. Black Prisioners amd Their World. Alabama, 1865-1900. Charlottesville, University Press of Virginia, 2000, pag. 6.

24 HARRIS, Cheryl. Whiteness as Property, in Kimberlé Crenshaw, Neil Gotanda, Gary Peller e Kendall Thomas,

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o interesse de matar, ou deixá-los incapacitados, pois foram comprados para integrar a propriedade e trazer lucros, seja lá qual fosse sua labuta eram considerados um investimento. Os condenados, por sua vez, eram obrigados a trabalhar até não suportarem mais, pois eram arrendados e a perspectiva sob a qual eram submetidos era grupal e não individual. Sendo assim, esses trabalhadores eram facilmente substituíveis25. Veja bem, que não afirmo que as condições de trabalho dos escravos eram dignas. Isso seria um equívoco. A diferença de tratamento entre os dois se estabeleceu em decorrência da possibilidade de arrumar mão de obra com facilidade nos sistemas de arrendamento, tendo em vista que o condenado não tinha relação direta com os donos dos empreendimentos interessados, mas cumpria punição estatal por cometimento de crime. Caso os trabalhadores ficassem impossibilitados de trabalhar, bastava que trouxessem outro, como um sistema sem fim. Ao passo que a impossibilidade de trabalhar de algum escravo significava prejuízo ao seu mestre, pois este teria que comprar outro para substituí-lo. O sistema de punição pós-Guerra Civil foi ‘’de formas muito literais a continuação de um sistema escravagista que não era mais legal’’26.

Os tribunais tinham papel fundamental na perpetuação dessas práticas racistas. O mundo livre não admitia mais a escravidão, após sua abolição. Dessa forma, magistrados buscavam legitimar a existência dessa nova ordem de trabalhadores forçados. É verdade que os escravos, ao receberem sua alforria, foram responsáveis por uma série de crimes. Entretanto, isso se dava pelo fato dos negros chegarem ao ‘’mundo livre’’ sem qualquer condição de sustento; de sobreviver. Dessa forma, a criminalização gravosa de condutas como furto ‘’também serviam de subterfúgio para vinganças políticas. Depois da emancipação, os tribunais se tornaram o lugar ideal para exercer a retaliação racial’’27. O arrendamento de condenados como força de

trabalho não foi um acaso, uma regressão irracional. Era motivado por interesses capitalistas de produção e visavam, sobretudo, utilizar estratégias racionais para realizar rapidamente a industrialização do sul dos Estados Unidos28. Os juízes desempenhavam o projeto

discriminatório da supremacia branca como preço da modernidade., e quem pagava era o povo negro, recém alforriado.

A criação das prisões trouxe uma nova dimensão para o mercado. Além de fornecer mão de obra barata e desvinculada para as grandes empresas que arrendavam esses trabalhadores, o setor privado tinha seus interesses atendidos no que diz respeito ao abastecimento das prisões com bens básicos, como comidas, roupas, camas e todo tipo de objeto de integre o

25 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 34. 26 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 35.

27 CURTIN, Mary Ann. Black Prisioners and Their World, Alabama, 1865-1900. Charlottesville, University Press of Virginia, 2000, pag. 44.

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estabelecimento prisional. Dessa forma, a indústria de bens e serviços encontrou um nicho estável de mercado. No Brasil, nos dias atuais, empresas terceirizadas disputam na modalidade de ampla concorrência quem ficará com a licitação para abastecer os presídios. Para essas empresas não é interessante a diminuição da massa carcerária. Justamente o contrário, quanto mais encarceramento, mais necessidade e, consequentemente, mais demanda, gerando lucros para o setor privado.

No século XIX, o sistema de arrendamento guardava fortes semelhanças com as privatizações das cadeias do séc. XXI, se fizermos um paralelo. Estes empreendimentos privados representam mais ainda os interesses capitalistas no encarceramento de camadas periféricas da população. O mesmo raciocínio dos setores terceirizados se aplica a questão, de forma que a pauta prisional, cada vez mais, se torna um negócio. Atualmente, o arrendamento da força de trabalho dos condenados foi abolido, as privatizações, no entanto, representam um novo capítulo na história de exploração. De maneira geral, a ampla corporativização da punição produziu o surgimento de um complexo industrial-prisional29.

Desse modo, todo um setor econômico, industrial e jurídico foi voltado para o abastecimento e para a legitimação dessas instituições. Mary Ann Curtin, nesse sentido:

[...] no fim do séc. XIX, as mineradoras de carvão desejavam manter seus funcionários detentos qualificados pelo máximo de tempo possível, o que levou à negação de ‘’penas mínimas”. Hoje, um incentivo econômico ligeiramente diferente pode levar a consequências similares. A CCA (Corporação de Correção da América) recebe por prisioneiro. Se o suprimento acaba ou prisioneiros demais são liberados cedo demais, seu lucro é afetado.30

Ficando demonstrado que o envolvimento com a questão prisional de empresas cujo principal escopo seja o lucro, acarreta na promoção de encarceramento.

Em janeiro de 2013, assistimos ao anúncio da inauguração da “primeira penitenciária privada do país”, em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi construída através de PPP (parceria público-privada, o que pode envolver desde sua licitação ao projeto). No Brasil, no entanto, já existiam em pelo menos outras 22 localidades prisões ‘’terceirizadas’’, basicamente eram unidades públicas que em algum momento passaram para as mãos de uma administração privada, recaindo sobre suas atribuições a gestão ou determinados serviços terceirizados de saúde, alimentação e etc.

29 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 40.

30 CURTIN, Mary Ann. Black Prisioners amd Their World, Alabama, 1865-1900. Charlottesville, University Press of Virginia, 2000, pag. 213-214.

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Nossa Constituição não permite presídios inteiramente privados, nos moldes daqueles idealizados na década de 1980 nos EUA (principal incentivador) e na Inglaterra, com Margaret Thatcher, já que o poder punitivo do Estado é indelegável, devendo este manter o monopólio da violência. O estudioso, Laurindo Dias Minhoto, afirma que:

a implementação das prisões privadas tem despertado polêmica, especialmente no que respeita à promessa da eficiência e da redução dos custos e à constitucionalidade da delegação do poder de execução da pena às empresas. De um lado, o experimento concreto norteamericano e britânico tem demonstrado que as prisões privadas não vêm prestando serviços necessariamente mais baratos nem tampouco mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessam o sistema penitenciário público tradicional.31

O slogan do complexo penitenciário de Ribeirão das Neves é “menor custo e maior eficiência”, mas especialistas questionam sobretudo o que é tido como eficiência. A redução de custos, de acordo com Laurindo são insignificantes. ‘’De modo geral pode-se dizer que tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha as prisões privadas têm operado em níveis muito aquém dos alardeados por seus defensores’’32. Além disso, segundo o pesquisador, não há qualquer indício

de melhora ‘’no que se refere aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, como a diminuição da superpopulação e a reabilitação dos detentos”33. Logo, é crucial que analisemos os objetivos até então alcançados pelos países percursores das prisões privada para que não venhamos a cometer os mesmos erros, tendo em vista que um mercado no qual o produto é o próprio homem trará uma série de injustiças e incentivos ao aprisionamento.

A discussão acerca da falência do sistema prisional se faz cada vez mais necessária, tendo em vista o crescente número de indivíduos de comunidades negras e marginalizados que entram no sistema prisional. De forma que essas pessoas se encontram, atualmente ‘’mais propensas a ir a prisão do que a ter uma educação decente’’34.

O Estado Brasileiro, do ponto de vista organizacional, não é percursor na criação das prisões. Foi instituto importado e aplicado pela primeira vez no Rio de Janeiro. Em 1769 a Carta Régia do Brasil determinou a construção da primeira prisão brasileira, a Casa de Correção do Rio de Janeiro, hoje conhecida como Complexo Frei Caneca, tendo sido destinada à execução da pena de prisão com trabalho dentro do respectivo recinto35. Chegou ao Brasil, entretanto, já

31 MINHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Revista Lua Nova, 2002, n.55-56, p 140. 32 MINHOTO, Laurindo Dias. Ibidem. p 141.

33 Idem.

34 DAVIS, Angela. Ibidem. pag. 10.

35 BRASIL. Decreto n. 8.386, de 14 de janeiro de 1882. Dá novo Regulamento para a Casa de Correção da Corte., arts. 1º e 2º. Disponível em: <https://goo.gl/Q4qUJD>. Acesso em: 24 de maio de 2019.

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permeada pelos ideais racistas e higienizadores das elites brancas da época do Império Brasileiro e, assim como no resto do mundo, foi responsável por encarcerarem em massa populações marginalizadas e miseráveis, assumindo aqui contornos de descaso e indiferença por parte dos governantes brasileiros.

A ausência de objetivos voltados para correção do sujeito e sua reintegração social, somados a manutenção de uma estrutura prisional repleta de falhas físicas, operacionais, sociais e raciais trouxe ao mundo um dos cenários punitivistas mais desesperadores do novo século. Em busca de humanização das penas, a sociedade corroborou para a desumanização das condições de vida em ambiente fechado para seres humanos considerados delinquentes e, por assim dizer, os trancafiou em celas e ‘’sumiu’’ com a chave. Atualmente, os índices de crescimento populacional prisional aumentam significativamente em resposta a miséria que assola o Brasil e suas comunidades, que desde a época da alforria lutam pela sobrevivência e superam as desigualdades no dia a dia. Pesquisa feita pelo CNJ afirma que, em 2014, tínhamos em regime fechado 336.700 presos, enquanto presos provisórios eram 245.84636. Números assustadores que referenciam a política de encarceramento do estado brasileiro, ao passo que o número de presos provisórios é quase o mesmo de presos em definitivo.

As políticas das elites brancas se fizeram presentes com muita força no Brasil. De fato, diferente dos Estados Unidos, não tivemos um sistema legal de preconceito a negros livres, como as Leis Jim Crow, em contrapartida, no final do séc. XIX ainda tínhamos escravos em nosso país e em grandes proporções. ‘’Em 1887, o Ministério da Agricultura, em seu relatório anual, contabilizava a existência de 723.419 escravos no País”37. A Lei Áurea, sinal de avanço humanitário, adveio pela simples razão de formação de mercado consumidor em resposta a industrialização que ocorria no mundo. Os negros alforriados, no entanto, não tinham condições de consumir produtos. Nesse sentido Gilberto Maringoni: ‘’Várias causas podem ser arroladas como decisivas para a Abolição, algumas episódicas e outras definidoras. É possível concentrar todas numa ideia-mestra: o que inviabilizou o escravismo brasileiro foi o avanço do capitalismo no País.’’38. Os negros alcançaram a liberdade, mas o Estado brasileiro em nenhum momento

dedicou esforços para que estes tivessem chances de sobreviver sem cometer pequenos desvios de conduta.

Na mesma linha de pensamento, Maringoni afirma que:

36 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Geopresídios. Relatório Mensal do Cadastro Nacional de

Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP). Poder Judiciário, 2014. Disponível em: <

http://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php>. Acesso em: 24 de maio de 2019.

37 MARINGONI, Gilberto. História - O destino dos negros após a Abolição. Edição 70, Ano 8. São Paulo, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/1h7aC71>

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24 A campanha que culminou com a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, foi a primeira manifestação coletiva a mobilizar pessoas e a encontrar adeptos em todas as camadas sociais brasileiras. No entanto, após a assinatura da Lei Áurea, não houve uma orientação destinada a integrar os negros às novas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado.39

A Abolição não era apenas a busca por maior justiça social, mas uma necessidade da inserção do Brasil na economia mundial, que já abandonara em favor do trabalho assalariado, mais barato e eficiente. Os mesmos negros foram obrigados a permanecer na miséria e nas periferias, sem auto sustento. Dessa vez, uma miséria gerada pelo capitalismo que perdura até os dias atuais.

Segundo Maringoni, ‘’Isso faz com que parte da oligarquia agrária se transforme numa florescente burguesia, estabelecendo novas relações sociais e mudando desde as características do mercado de trabalho até o funcionamento do Estado”40. Dessa forma, a nova burguesia

brasileira foi responsável por denegar direitos inerentes a esse povo recém alforriado através de criminalização de condutas propriamente de origem negras e cominação de penas cada vez mais rígidas. Nesse ponto, há diversos exemplos de políticas públicas responsáveis por estimular a segregação espacial entre periféricos e as elites brancas. Maringoni afirma que ’’após a Lei Áurea, os negros libertos foram buscar moradia em regiões precárias e afastadas dos bairros centrais das cidades. Uma grande reforma urbana no Rio de Janeiro, em 1904, expulsou as populações pobres para os morros’’ 41.

O processo de encarceramento da massa empobrecida na transição do capitalismo industrial, os sistemas penitenciários atuais com privatizações (e seu complexo industrial-prisional) e RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), disciplinado na Lei de Execuções Penais, e outras formas punitivas que o Estado assume para adentrar na vida pessoal dos seus indivíduos e trazer-lhe sofrimento, nos faz questionar uma série de situações práticas. Até que ponto a miséria seria responsável pelo grande número de negros encarcerados? A discussão se a pobreza é ou não causa do cometimento de crimes se torna rasa, quando o que ocorre é justamente o contrário: ‘’o crime que procura os pobres.’’42

A análise feita no presente capítulo demonstra as falhas do sistema prisional desde seu surgimento nos EUA, passando pela criminalização de condutas de forma racista pelos Códigos

39 MARINGONI, Gilberto. História - O destino dos negros após a Abolição. Edição 70, Ano 8. São Paulo, 2011. Disponível em: < https://bit.ly/1h7aC71>. Acesso em: 30 de maio de 2019.)

40 Idem. 41 Idem.

42 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Editora Revan - Rio de Janeiro, 2011., pag. 10.

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Negros e no controle da força de trabalho negra com intuito de abastecimento de um complexo industrial-prisional, até chegar ao Brasil, ainda como fenômeno pautado pelo racismo. Falamos, ainda, dos dias atuais e a tendência incompreensível em aumentar o número de encarceramentos como forma de trazer lucros a essas grandes corporações, como é nos casos das privatizações das penitenciárias. Apesar disso, a sociedade ainda não encontrou formas de resolver a questão criminal, aliando métodos punitivos, reintegração de condenados e diminuição das populações prisionais. Durante muito tempo acreditou-se ser papel de métodos alternativos de punição, é o que abordaremos no próximo capitulo, em especial no Brasil.

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26 4. DAS PENAS ALTERNATIVAS PREEXISTENTES E SUA RELAÇÃO COM

DESENCARCERAMENTO

As alternativas penais à prisão são tema polêmico no âmbito jurídico e social. De forma como esmiuçamos em capítulos anteriores, as instituições prisionais estão inseridas nas nossas noções de mundo sendo muito complicado desvencilhar-se destas. Não conseguimos imaginar um mundo sem penitenciarias e isso se dá em razão da grande mídia criar a relação de proximidade com o ambiente prisional, quando na verdade ocorre um distanciamento moral. Ninguém compreende, de fato, o que ocorre dentro dos muros das prisões até vivenciar a experiência, entretanto, criações cinematográficas, musicais e muitas outras buscam nos trazer um sentimento de pertencimento.

A procura por alternativas penais à prisão não pode buscar substitutos semelhantes esta. Ao colocarmos o desencarceramento como estratégia global, ‘’tentaríamos imaginar um

continuum de alternativas ao encarceramento – a desmilitarização das escolas, a revitalização

da educação em todos os níveis, um sistema de saúde que ofereça atendimento físico e mental gratuito para todos e um sistema de justiça baseado na reparação e na reconciliação em vez de na punição e na retaliação’’43.

O título anterior tratou de expor os motivos pelos quais a penitenciária como instituição de repressão falhou em sua missão ressocializadora desde o momento de seu surgimento, pois este foi forjado por interesses econômicos alheios aos dos condenados, visando a satisfação do capital e das necessidades que este impusera, principalmente ao fim da escravidão nos Estados Unidos da América. Vimos exatamente o contrário, a instituição da penitenciária apenas perpetuou e incentivou o crescimento de populações carcerárias no mundo todo.

A humanidade, através de sua busca incessante por novas punições, considerou um avanço natural que outras técnicas fossem aplicadas às sanções criminais. Os métodos alternativos, então, surgem como intenção de diminuir o encarceramento, assim como a reincidência criminal através de meios mais técnicos e menos danosos ao condenado. Dessa forma, neste momento, cabe analisar o surgimento das penas alternativas no Brasil e as consequências, se existiram, no ideal ressocializador esperado e tanto aclamado pelos juristas contemporâneos, e se as expectativas desses doutores foram, de fato, correspondidas.

O sítio eletrônico institucional do Departamento Penitenciário Nacional traz em seu bojo que as alternativas penais são ‘’mecanismos de intervenção em conflitos e violências, diversos do encarceramento, no âmbito do sistema penal, orientados para a restauração das relações e

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promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade44’’. É o órgão responsável por promover estratégias voltadas ao enfrentamento ao encarceramento em massa no país e à qualificação da execução e gestão das alternativas penais, trazendo como postulados a intervenção penal mínima, desencarceradora e restaurativa; a dignidade, a liberdade e o protagonismo das pessoas em alternativas penais; e ação integrada entre entes federativos, sistema de justiça e comunidade para o desencarceramento.

Atualmente, o Código Penal regula as penas restritivas de direitos em seu artigo 43 e seguintes. São elas: a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a limitação de fim de semana, a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e a interdição temporária de direitos. Além dos institutos encontrados ao longo do Código Penal, como a transação penal e da suspensão condicional do processo, suspensão condicional da pena privativa de liberdade, conciliação, mediação, medidas cautelares diversas da prisão, medidas protetivas de urgência e, claro, técnicas de justiça restaurativa, que serão abordadas posteriormente

Revisando material dogmático da primeira década dos anos 2000, produzido na esfera federal, dedicado a implementação de medidas alternativas, é comum encontrarmos uma série de expressões relativas a reinserção do condenado, como recuperação, reintegração e muitos outras, quando correlacionadas às alternativas à prisão, como podemos ver no Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas, desenvolvido no âmbito do Ministério da Justiça45.

Essa relação entre os institutos e a ressocialização não foi natural. Pelo contrário, foi construída. Falou-se pela primeira vez em medidas alternativas à prisão, no Brasil, na década de 1980, na qual foi editada a reforma da Parte Geral do Código Penal, a Lei nº 7.209/1984. Durante a elaboração e as tratativas, as penas diversas ao encarceramento eram direcionadas àqueles indivíduos considerados sem periculosidade. Para eles, não seria necessário o mesmo ‘’tratamento penal’’ realizado nas prisões46. A reforma do código penal e da LEP tinha como

principal objetivo aperfeiçoar a pena de prisão. Em 1995, as alternativas à prisão foram finalmente vistas como instrumento de obtenção de melhoras significativas no que tange à reeducação do condenado, ficando reservada a prisão o papel de isolamento de certos indivíduos47. As discussões acerca das novas medidas não se tratavam de apoio a todos os

44 BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Diretoria de Políticas Penitenciárias: Alternativas Penais. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgap/ Acesso em: 14.05.2019.

45 BRASIL. Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas. Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas. Brasília: Panfler, 2002, pág. 5.

46 SOUZA, Guilherme Augusto Dornelles de. Punir menos, punir melhor: discursos sobre crime e punição na produção de alternativas à prisão no Brasil. Dissertação de Mestrado. Ciências Criminais, PUCRS, 2014, pag, 90. 47 BRASIL. Diário da Câmara dos Deputados, 20.02.1997, p. 4484-4488.

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sujeitos, mas apenas àqueles considerados ‘’recuperáveis’’, enquanto o resto dos condenados ‘’incuráveis’’ caíam no esquecimento do cárcere.

Em 2008, segundo dados do Ministério da Justiça, tínhamos 588.830 pessoas submetidas a alternativas à prisão pela justiça criminal brasileira e, em 2009, era de 671.079 pessoas48. Números expressivos e crescentes nos fazem nos perguntar se as medidas alternativas no Brasil teriam alcançado eficácia aguardada pelos seus implementadores. É preciso fazer uma serie de considerações acerca do tema para responder a indagação.

A cultura geral e jurídica nos impõe a ideia de impunidade quando falamos acerca de alternativas penais. A sociedade, permeada pelo instituto da prisão, dificilmente se vê sem ela e não admite qualquer tipo de punição que não traga sofrimento visível a vítima. Tal visão se notabiliza como um equívoco. Tal pois está errada, em primeiro lugar, por assumir que penas privativas de liberdade seriam sempre mais rígidas ou graves do que as alternativas penais. Existem evidencias empíricas comprovando o contrário. Uma pesquisa conduzida pelo IPEA indicou a ocorrência de condenados a penas restritivas de direitos que as descumpriam voluntariamente com o intuito de que sejam convertidas em privativas de liberdade em regime aberto, tendo em vista que a fiscalização nesse regime seria mais branda.49.

Essa noção de impunidade pode ser atribuída ao que Álvaro Pires chamou de ‘’racionalidade penal moderna’’50. Ela é responsável por naturalizar uma relação de

necessidade entre uma ação criminalizada e uma imposição de sofrimento como forma de reação, a ponto do valor jurídico a ser protegido ser medido através da punição. O autor afirma que na busca pela legitimação das penas alternativas como forma eficaz de punição, os defensores argumentam que tais penas trazem também sofrimento ao condenado, recaindo na mesma racionalidade penal antes citada. É necessária uma nova estratégia de desnaturalização do binômio crime-sofrimento, mesmo para os defensores de medidas modernas de ressocialização. Estes não devem recair no mesmo erro, e buscar justificar sua implementação através de medidas punitivas.

Essa racionalidade penal moderna, somada aos conceitos de periculosidade de presos, relegou as penas alternativas apenas aos condenados que não representavam perigo a sociedade. Os sujeitos atingidos pelas alternativas penais permanecem sendo aqueles considerados ‘’não perigosos’’. O diagnóstico e níveis de reincidência em dados e pesquisas não demonstraram

48 BARRETO, Fabiana Costa Oliveira. Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas, pág. 17, Brasília: Ministério da Justiça, 2010.

49 BRASIL. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A aplicação das penas e medidas alternativas: relatório de pesquisa – Sumário executivo. 2014, pag. 15.

50 PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, n. 68, mar. 2004, pag 40.

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nenhuma melhora desde a instituição das penas alternativas que, somadas à miséria, não contribuíram em nada para melhora do quadro social atual. Os níveis de encarceramento não sofreram qualquer impacto, isto por quê as penas alternativas foram destinadas a sujeitos que, mesmo que sem elas, não seriam punidos com encarceramento. Os crimes passíveis de medidas alternativas não se confundiam com tipos penais daqueles indivíduos condenados à pena privativa de liberdade em regime fechado. Dessa forma:

A pena alternativa, tal como é prevista no ordenamento brasileiro e aplicada pelo sistema de justiça, não cumpre a função de “esvaziar as prisões”, ou seja, o perfil do indivíduo apenado por pena restritiva de direito, especialmente quanto ao delito cometido, não se identifica com o da população carcerária.51 O quadro que vemos nos dias atuais foi sustentado a partir de escolhas político-legislativas efetuadas ao longo da implementação das medidas alternativas no ordenamento jurídico pátrio e pelo modo como tais práticas punitivas foram pensadas pelos dirigentes do Estado. Os novos discursos devem superar os posicionamentos tradicionais. Noções como sofrimento da pena e periculosidade como forma de cisão de sujeitos, no que tange à política criminal, não cabem mais na hermenêutica jurídica contemporânea que trate de objetivos como a diminuição do encarceramento em massa. Pelo contrário, eles contribuem para a continuidade do encarceramento. Tais políticas alternativas devem ser voltadas para toda uma universalidade de condenados, inclusive àqueles submetidos à prisão privativa de liberdade.

O principal desafio para operadores do direito talvez seja implementar uma cultura jurídico-penal, que consiga desnaturalizar a relação entre crime-castigo. E não só a relação, como os próprios conceitos em si, carregados de semântica estigmatizante. Autores nacionais e estrangeiros debruçaram-se sobre o tema, como poderemos ver no próximo capítulo.

51 ILANUD – Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinquente.

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30 5. DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

5.1. AUTORES E SUAS CONSIDERAÇÕES

As medidas alternativas têm como principal escopo posicionar-se contra ‘’à centralidade da lei penal como meio de controle social”52. Dessa forma, haveria estímulo para os agentes de

estado repensarem as ações e motivações do sistema moderno de punição. Atualmente, como foi dito no capítulo anterior, torna-se muito difícil desconciliar crime e castigo. Parece-nos natural que alguém sofra pelo crime cometido. Essa tomada de pensamento é responsável por um sistema inteiro criado para perpetuar uma sociedade injusta, seletiva, estigmatizante e, acima de tudo, violenta.

O capítulo em questão não tem a finalidade de trazer apenas críticas negativas elucidadas pelos pensadores abolicionistas, reformistas, ou entusiastas da justiça restaurativa., mas também aspectos propositivos e construtivos capazes de trazer soluções, imediatas ou não, aos problemas apresentados no sistema penal moderno. De modo que sejam abordadas novas formas de lidar com esses conflitos.

O conceito, ainda incipiente, de justiça restaurativa ganhou seus contornos iniciais nos anos de 1970 e 1980. No Canadá, em 1974, e, posteriormente, em outros países, ocorreram experiências práticas de mediação entre réu-vítima que foram muito representativas pelo fato de ser algo inovador para os padrões da época. Além disso, o terreno era fértil para a formação novas correntes críticas. O período ficou marcado pela fragmentação da criminologia crítica e pela emergência de novas correntes abolicionistas e reformistas a partir da segunda metade dos anos 7053.

Segundo Scheerer54, o sistema penal moderno produz mais problemas que soluções, pois

afasta os envolvidos no conflito e atribui a competência a técnicos jurídicos que, por sua vez, buscam a resposta legal para a situação. A lógica punitiva permanece disseminada, preponderando a ideia do castigo como única resposta ao crime.55

Nesse sentido, muitos autores dedicaram seu trabalho e suas análises a diferentes formas de desconstrução do sistema penal, como, por exemplo, a linguística. Louk Huslman, holandês

52 ACHUTTI, Daniel. Abolicionismo Penal e Justiça Restaurativa: do Idealismo ao Realismo Poítico-Criminal. Revista de Direitos e Garantas Individuais, Vitória, v. 15, n. 1, jan./jun 2014, pagina 34.

53 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008. 54 SCHEERER, Sebastian. Towards Abolitionism. In: Contemporary Crises (título atual: Crime, Law and

Social Change), vol. 10, n. 1. Amsterdam: Elsevier, 1986. pag. 10.

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e professor de Direito Penal na Universidade de Erasmus, Rotterdã, tinha como escopo de trabalho compreender a linguagem que envolvia a ideia do aprisionamento como forma de repressão e trazer novos conceitos para o fenômeno delituoso. Para ele, era importante que as lentes focalizassem no interior do evento. Conceitos como réu, vítima, crime, autor seriam pilares nos quais deveríamos tratar com mais atenção em uma futura reconstrução ou reforma do sistema penal, caso contrário estaríamos fadados a permanecer no mesmo estágio56. O professor Salo de Carvalho, sobre o tema, afirma que “a abertura do procedimento com a ênfase em falas não-tecnocráticas pode contribuir positivamente para a ruptura, a mudança e, quem sabe, a superação da mentalidade inquisitória que configura a lógica do sistema penal”57

O posicionamento radical de Hulsman gerou polêmica no campo da criminologia e sociologia. Este acreditava no abolicionismo penal por completo, incluindo a justiça criminal e o sistema prisional. No entanto, suas considerações são valiosas e o colocam no posto de um dos maiores pensadores a entrar no rol de abolicionistas penais. Em sua concepção, não era racional manter em operação um sistema que era marcado por não alcançar os objetivos para os quais foi projetado e que se apresenta mais como um problema social do que uma solução para a pauta criminal58. Claramente, a abolição do sistema penal estaria mais para uma substituição. O novo cenário seria responsável por abrigar outras formas de controle social ainda não exploradas pela sociedade, através de mecanismos descentralizados de administração de conflitos, que serão melhor detalhados ao longo do presente capítulo.

O modelo jurídico-penal atual, de acordo com o autor, prioriza a perpetuação de uma rígida estrutura burocrática. Não basta, portanto, apenas nomear antigos institutos, mas sim observar o mundo de maneira diferente. Assim, a lógica penal moderna seria, aos poucos, esvaziada. As interpretações pré-concebidas, abstratas e reducionistas seriam substituídas por interpretações livres, oriundas das partes, e de acordo com a reação de casa sujeito59.

Hulsman considerava ponto fulcral que os envolvidos no caso estivessem no centro dos acontecimentos e com voz ativa para determinar soluções reais a problemas reais. Para ele, ‘’não existem crimes nem delitos, mas apenas situações-problemáticas. E sem a participação das pessoas diretamente envolvidas nestas situações, é impossível resolvê-las de forma humana”60. A vítima, no presente sistema, ocupa posição passiva na justiça criminal, meros

56 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Niterói: Luam, 1997., pag. 95.

57 CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. pag. 10.

58 DE FOLTER, Rolf S. On The Methodological Foundation of the Abolitionist Approach to the Criminal Justice System. A comparison of the ideas of Hulsman, Mathiesen and Foucault. In: Contemporary Crises (título atual:

Crime, Law and Social Change), vol. 10, n. 1. Amsterdam: Elsevier, 1986., pagina 42.

59 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Ibidem. pags. 99-100. 60 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Ibidem. pags. 101.

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instrumentos para aplicação da legislação penal. O autor considerava que o réu deveria desempenhar parte ativa no processo e expressar livremente seu ponto de vista sobre o episódio delituoso61.

A ideia do tipo penal ou da categorização de um crime, para Huslman, era equivocada. Segundo ele, sugerir que evento individualizado possa ser agrupado em conjunto de situações pouco semelhantes reforça consideravelmente os estereótipos criminológicos. Nenhuma situação ou ação é idêntica à outra. Com isso, sua intenção era provar que o conceito de crime não é ontológico, mas sim uma construção social, que deve ter seus alicerces e bases igualmente descontruídos62.

O conceito de crime era considerado pelo autor o principal pilar a ser desconstruído no sistema penal tradicional. Para ele, o é taxativo e seria responsável por suscitar uma reação social a ele estimulada pela carga negativa inerente ao termo63. Dessa forma, se buscaria novas formas e novas nomenclaturas capazes de afastar a conotação criminosa dos eventos delituosos, e aproximar as partes de uma solução aplicável para cada um desses conflitos interpessoais. Nesse sentido, caberia ao Estado deixar ‘’na mão dos interessados a possibilidade de escolher o marco de interpretação do acontecimento, assim como a orientação que deve levar a uma possível resposta”64.

As críticas feitas pelo autor holandês demonstram que a racionalidade que permeia o sistema penal não permite que os eventos sejam efetivamente solucionados, pois afasta o polo central – os envolvidos na situação-problemática – das principais discussões ao longo do processo. O Estado desconsidera a opinião das partes e impõe uma resposta jurídico-penal, determinando a separação de um sujeito da sociedade, para que, contraditoriamente, ele aprenda a conviver nela.

Além disso, Hulsman defendia a descriminalização do maior número de condutas possíveis, através de métodos efetivos que solucionassem de fato soluções-problemáticas, como técnicas de prevenção de delitos, de organização da vida social, de investimento focado na diminuição da miséria e de auxílio à necessitados e dependentes químicos, de substituição da lógica da justiça penal por outras formas de controle social (conciliatórios; terapêuticos). Desse modo, desejava eliminar as consequências sociais provocadas pelo sistema penal, como as

61 HULSMAN, Louk. The Abolitionist Case: alternative crime policies. In: Israel Law Review, vol. 25, ns. 3 e 4, 1991.

62 HULSMAN, Louk. Critical Criminology and the Concept of Crime. In: Contemporary Crises, vol. 10, n. 1. Amsterdam: Elsevier, 1986, pag. 66-67.

63 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Ibidem. pags. 45.

64 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. A Aposta por uma Teoria da Abolição do Sistema Penal. In:

Referências

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