A ORDEM DO FlLMICO
elementos Dará urna história menor do cinema
Dissertação
de MestradoDepartamento
deComunicação
Social Faculdade de Ciências Sociais e HumanasUniversidade Nova de Lisboa ***
I
QUESTÕES
DEHISTÓRIA:
DE UM NOVO
PRINCÍPIO
DAS COISAS 9II AS VERDADES DE UMA HISTORIA:
FIXAÇÃO
49III UM CINEMA À MARGEM DA LEI
(Arquivos)
731. Práticas de descontinuidade do um cinema
dito
primitivo
762 . F :wir, S. Porter:
segredos
de um autor 991 . The Life of an American Fireman; da
problemática
orlqem damontagem
paraleia 100
2. O caso Personal; de uma
definição
decontinuidade 111 IV "ORS-CADRE / GENEALOGIAS 120 V
SEQUENCIAS
/ ABERTURA 145 NOTAS 158 BIBLIOGRAFIA 188 FILMOGRAFIA 205 *,* ■ i \ \I
Fotograma
de 0 Passado e o PresenteII
-Fotograma
de The Great Train RobbervIII
-Fotograma
de Bronenosets Potemkin (0Couraçado
Potemkine!IV
•j*
APRESENTAÇÃO
Quando,
a meados de40,
Gilbert Cohen-Séat veiodistinguir,
pela
primeira
vez, "filme" e"cinema",
difícil seria prever a fortuna que talpartilha
viria a ter nas décadasposteriores.
De resto, nem opróprio
filósofo se deve ter dissoapercebido,
já
que ã in subordinada violência dosubstantivo,
preferiu
a maior brandura de umasimples função adjectiva:
"fílmico" e"cinematográfico
"
passavam a
designar,
aqualificar
e arepartir,
à boa maneira de Mareei Mauss, a desmesura e a deformidade desse "facto social total" a que a teoria tinha até então chamado
-quiçá
impropriamen
te -, de cinema. Tratava-se, bem entendido, de "ordenar uma vi
são",
deestilhaçar
umobjecto
complexo
numamultiplicidade
deobjectos
maissimples,
deregionalizar,
à sombra dadisciplina
e dométodo,
uma reflexãobem-pensante,
higiénica
e, passe o ter-mo, "científica". Pela mão da
Filmologia
- tal era o nome dado a essa nova ordem da visão -, o cinema passava asagrada
porta
doscolégios
universitários,
para se instalar nas cadeiras dos mestres (e não dos menores: Francastel, Souriau, Friedmann, mais tarde, Morin) , nos currículos dospupilos
e em meticulosos e ríte de
mãos,
de rostos e até de voz;quanto
à famosadistinção,
conhecia, parajá,
um bem parco futuro: disseminada por um ou outro texto,jamais chegou
a definircompletamente
umprincí
-pio
teórico que tantoajudara
a estabilizar. Foipreciso
che-gar ao início dos anos 70, para que Christian Metz (e Roland Bar
thes,
como veremos) a viesse de novo remexer, e aindaaí,
curió sãmente, no contexto deemergência
de uma novadisciplina
uni-versitãria: a
semiologia
do cinema.O
princípio
de releitura deCohen-Séat
por Christian Metz é simpies
e-julgo
- razoavelmente conhecido:enquanto
paraCohen--Séat,
o"cinematográfico"
definia o campo dainstituição,
dodispositivo
deprodução
ecirculação
dos filmes, e o"fílmico"
o
produto
significante,
propriamente
dito, que apelícula
mate rializa e o ecrãrevela,
para Christian Metz, o cinema não é só o total dos factores que, exteriormente aofilme,
configuram
operfil
de uma certainstituição
social, nem apenas (o que éjã
uma novidade) o total dos filmes, mas
também,
esobretudo,
o total dos traços que, no interior do
próprio
filme, "sesupõe
se remcaracterísticos
de uma certalinguagem
pressentida".
A reversão
éinteligente,
afortunada e, por essas duasrazões,
in-fluenciou todo um vasto programa de trabalho a que se convencio nou chamar de lâ
semiologia
(deinspiração
hjelmsleviana,
por razoes facilmente
reconhecíveis)
; se o facto fílmico épensãvel
no interior do cinema, não é menos verdade que o cinema estápresente
no interior de todos e de cada factofílmico,
porque e ledesigna,
justamente,
oconjunto
de traços que fazem de um filme um
filme,
querdizer,
uma certa estrutura designificação
po tencialmente comum a todos os filmes. E para esteobjecto,
para a sua indestrutívelsedução
epositividade,
confluíram os esfor ços de Metz e dos seus mais imediatosseguidores
noprojecto
defundação
de umasemiologia
que é ainda-e pour cause - uma se
-miologia
do cinema.Ora c exactamente por esta altura que Roland Barthes
publica
nosCahiers du Cinema um famoso ensaio que, no entanto,
permanecerá,
a meu ver,
incompreendido
(pelo
menos, até Bonitzer) : "Letroi-sième sens: notes de recherche sur
quelques photogrammes
d'Ei-senstein" . Neste ensaio, Barthes identifica e
designa,
nada mais,nada menos, que uma forma de discurso
irredutível
àlinguagem
e aos processos designificação:
ofílmico,
como o queestá,
paradoxalmente,
fora do cinema, querdizer,
para além de um cinema reconhecível enquantoobjecto
de umasemiologia
docódigo
e dalinguagem
como espaçoslegítimos
deprodução
ecirculação
do sen tido, denunciando uma outraprática
(estética)
dosigno fílmico,
num outro
lugar
(u-tópico)
que não é mais o dalinguagem,
mas odo
ecrã,
queé,
justamente,
e antes dequalquer
outracoisa,
como dizia Bresson, uma
superfície
a cobrir(e
talvez por isso anoção
de enunciadofílmico,
que tantoaplicaremos
neste traba-lho, permaneça uma
noção
problemática,
insuficiente ou,até,
paradoxal)
.0 texto que
aqui
apresentamos
é um modesto herdeiro destaproble
mática e,particularmente,
destaperspectiva;
nele defendemos apressuposição
de quealgo
no cinema escapa a uma ordem dalíngua
gem, de que nele (e por ele) um saber mais remoto (e menos antropológico)
nos vem tocar o corpo e os afectos ou, para o dizer comSchefer,
vem tocar em nós o que denós
não pensamos ou não ousa mos sequer pensar e que nãoé
ahistória
de outros(personagens,
objectos,
mundos) mas a nossa história:caligramática/dramãti
-ca, num texto que apenas a memória
pode
decifrar,
decif rando-se. E se esteobjecto
existe - eprocuraremos identificá-lo
pela
mediação
de outrasexperiências
docinema,
nasquais,
cada um denós,
ã sua maneira, se reverá -, dele deverá serpossível
contaruma outra
história,
nele deverá serpossível
descobrir-no se
-gredo
das formas - oque nele sempre esteve escondido e, no en
-tanto, tão luminoso e, talvez por isso,
indizível
.Cada um de nós terá no seu
arquivo,
na suaexperiência
dos fil-mes/do
cinema,
mistérios quejamais
se revelaram, porque para e-les nãochega
o que temos para os contar.Contentámo-nos
assim,facilmente,
com uma história que disse o que erapossível
ser dito e,
chamámos-lhe,
pomposamente, do cinema. Este trabalho come ça e acaba na parte deresponsabilidade
que a todos nos toca de nessa história não ter sido ditotudo,
de não ter sido o essen-ciai,
de não ter sido dito quase nada.Dir-se-á,
finalmente,
que talambição
dificilmente seapiedará
de tantaimperfeição.
Mas, escreveu-o um diaDreyer,
só naimperfeição
ospossíveis
conti -nuam a serpossíveis.
Para o
arquivista,
animado da vontade dejuntar
uma nova peça aofundo do
arquivo,
na ânsia de lhepreencher
opacífico
contorno,
e na
expectativa
de que nada lhe venhaperturbar
aregularida
de de um
perímetro,
previamente
demarcado, o cinema oferece umterreno
particularmente
favorável,
porquenele,
tanto a finitude relativa da matéria como o sistemático percurso porpalmilhadas
certezas, funcionam como agarantia
de uma certa estabilidade ,que muito tem contribuído para a
prosperidade
dos mais laborio-sos, dedicados e anónimos tarefeiros.
Jogada
no emaranhado do alfabeto ou, na melhor dashipóteses,
napobreza
do alinhamentocronológico,
a nova peça vemassim,
quase sempre, confirmar e conformar ahigiénica
organização
do edifí-cio. Medida
pela
linha defuga
das estantes, a cegaperspectiva
do
arquivista
encontra ametodologia
do assembleur , que vê oseu
prestígio
outorgado pela
dimensão de um trabalho em extensão (e quase nunca em in/tensão ) , que uma novageração
se encarregará
depois
deprosseguir.
Torna-se assim
possível
afirmar, no entendimento de todo o radicalismo
subjacente
àperspectiva
de Michel Foucault, que o cinema facilita e promove o sistema de
práticas
do velhoarquivo,
submetido,
como se sabe, àordenação
linear e quase indiferente do documento, e àprodução
de umacartografia
lisa,
monótona e desUm outro horizonte vem anunciando, no entanto, e desde há
algum
tempo, umaprometedora agitação
desta paz, mais árida quesatis_
feita. Se bem que no decorrer destecapítulo,
tenhamos ocasião de a ela nos referirmos em pormenor,importa
já
dizer que talconjuntura
resulta, em boa parte, de um entendimento, ainda experimental,
entre, por umlado,
o trabalho derevelação
de no-vos fundos do
arquivo
(na maior parte dos casosgerada
por no
-vas
distribuições
de materiaisdispersos
e de outro modo conheeidos) e, por outro, a
intuição
de umaproblemática
dahistória
que, declinando a (fraca)responsabilidade
depoder
vir a ali
-mentar uma
longínqua
pulsão
teórica,
se pensa, cada vezmais.co
mo a instânciaprópria
deprodução
desse discurso.A
questão
passará,
decisivamente, poraquilo
queRodowick,
nasequência
deFoucault,
chamou deintelegibilidade,
enquanto
condição
essencial para aconstituição
doobjecto
do conhecimen to histórico: "theobject
of historicalknowing
is theintele-gibility
of eventsthrough
time"(Rodowick,
1984:2). Entende--se
aqui
porintelegibilidade
, simultaneamente, apressuposição
da existência de uma
ampla
zona de non-savoirs ou de saberescontraditórios,
nopróprio
momento e acto de conhecimento e atraduetibilidade (1) imediata de todo o conhecimento em formas
ou actos de discurso
e/ou
perfis
ou "visibilidades" (2).Resumidamente, deve então diaer-se que esta
posição,
nas suas dimensõesontológica
eepistemológica,
implica
pelo
menos duasno método e no
objecto.
Emprimeiro
lugar,
entende-se que o co nhecimento histórico doobjecto
fílmicoobriga
àconstituição
de um percursotransversal,
interdisciplinar
e, passe aexpressão,
indisciplinado,
quer dizer,subtraído
às leis doregime
disci
-plinar,
afirmando-se antes por um trabalho residual, insinua-do por uma
découpage produzida
ao nível dointerstício
(3),
emsegundo
lugar,
pressupõe-se
que acondição
dopróprio
objecto
se torna
inseparável
das suascondições
depossibilidade
enquanto
objecto
de um discurso,sujeito
,portanto
, apráticas
de ex
-clusão ou de
repartição
(Foucault,
1971a: 11-12) .Não se trata, como veremos, de subscrever o
projecto
de uma fal sapragmática
comprometida
apenas com a análise dos sistemas de contraintessocic-históricas
, ou de satisfazer asexigências
de
uma teoria da
enunciação
que, revertendo oparadigma
dalinguís
ticasaussuriana,
se atém ao trabalho de detectar os valores depresença/ausência
dosujeito
enunciador narealização
do enun-ciado de que é o imediato agente de
produção.
Trata-se, maisfundamentalmente, de assumir a materialidade de um enunciado
possível
e raro, porque às suaspossibilidades
deemergência
presidiu um sistema de escolhas e
prescrições,
querdizer,
uma certa
posição
no campo deprodução
ecirculação
da matéria discur siva .A aposta deste
projecto
reside assim naprobabilidade
de suces so de um deslocamento temático emetodológico
que, a vários níforme traditionnelle,
entreprenait
de 'mémoriser' monumentsdu
passe,
de les transformer en documents et de faireparler
des tracesqui
, par elles-mêmes , souvent ne sontpoint
verba
-les, ou disent en silence autre chose que ce
qu'elles
disent ;de nos
jours,
1'histoire, c'est cequi
transforme les documentsen monuments, et
qui,
là ou on déchiffrait des traceslaissées
par les hommes, là oú on
essayait
de reconnaitre en creux cequ'ils
avaient été ,déploie
une masse d'élémentsqu'il
s'agit
d'isoler,
de grouper, de rendrepertinents
, de mettre enrela-tions,
de constituer en ensembles"(Foucault,
1969:14-15).Nesta
perspectiva,
a nossahipótese
departida
procurará
re construir otrajecto
do enunciadofílmico,
noperíodo
crucialque medeia entre a sua
emergência
e a suaestabilização
(4),
fo calizando a nossaatenção,
emparticular
sobrealguns
dos (ra ros) "documentos"susceptíveis
de esclarecerem oconjunto
deprescrições
que se foram instalando no seio dainstituição
cinematográfica.
Um texto basilar e, a vários
níveis,
fundador, marca-nos, indelevelmente,
o percurso: A obra de arte na era da suareproduç
tibilidade técnica(Benjamin,
1935),
cujo
principal
efeitoé,
justamente,
ademarcação
do quepoderemos
chamar,
nasequência
de Jean Mottet
(Mottet,
1984 : 94) de um campomarginal
à arte , em que aspráticas
dereprodução,
maiormente empreguespela instituição
cinematográfica
(5),
contribuem para a anulação
datradição
como elemento estruturante da cultura e dos seus processes de transmissão : "Mêmeconsiderée
sous sa forme laplus
positive,
etprécisément
sous cette forme, on ne peutsaisir la
signif
icat ion sociale du cinema si 1 'on
néglige
son aspectdestruetif,
son aspectesthétique:
laliquidation
de l'élément traditionnel dansl'héritage
culturel"(Benjamin
,1935
::93).
0 alcance da
intervenção
deBenjamin
no debate sobre uma esté tica daimagem
moderna é suficientementeconhecido,
e não será este olugar
de mais uma vez o virexplicitar.
Permita-se-nos,contudo,
o exame de umconjunto
deimportantes
implicações
que o texto em causa nãopode
deixar desugerir.
E emprimeiro
lu gar surge esse frutuoso conceito-charneira que atravessa toda a reflexão benjaminiana
: a aura, oaqui
e o agora da obra de arte que faz a unicidade da sua presença:"l'unique
appari
tion d'un lointain si
proche qu'elle
puisse
être"(Benjamin,
1935 : :96-96n) (6).É
precisamente
em torno destanoção,
tãoprofícua
como nebulosa, que
Benjamin
organiza
toda uma conhecidaargumentação
tendente a clarificar a
clivagem
estética instituídapela
moderni^
de artefactos técnicos voltados não para a
produção
imediata esingular
doobjecto
estético,
mas para a suareprodução
ilimita da e diferida, no espaço e no tempo. Sacrificando, a um esfor ço desíntese,
ariqueza
e acomplexidade
imanentesao texto
julgo
não trair o essencial da suaperspectiva
se disser que oprocesso de
desagregação
da aura da obra de arte (da suaauten
ticidade) se deve, fundamentalmente, a um novo estado de
equi
-líbrio entre os seus valores de culto e de
exposição
(7). Independentemente
de toda aestratégia conceptual
eargumentativa
,parece ser este o
ponto
crucial para aresolução
do diferendomaterialista que se
pressente
a cada passo do ensaio (não é de resto inocente queseja
também
este o momento escolhido porBenjamin
para um confronto directo com a "estética idealista" :"l'esthétique
idéaliste ne peut faire droit à cettepolarité
,car son concept de la
beauté
ne l'admet parpríncipe
qu'indivi-sée (et 1'exclut donc commmedivisée)"
(Benjamin,
1935:98n).0 interesse desta dicotomia não reside, unicamente, numa varia
ção quantitativa,
ligada
àproliferação
das ocasiões de desvela mento da obra de arte mas, sobretudo, na dimensãoqualitativa
desta
transformação,
que afecta, de forma directa, a estrita definição
ontológica
doobjecto
estético:"Originairement
la prepondérance
absolue de la valeur cultuelle avait fait avant toutun instrument
magique
de cette oeuvre d'art,qui
ne devait ê-tre,jusqu'à
un certainpoint,
reconnue comme telle queplus
tard, de mêmeaujourd'hui
laprepondérance
absolue de sa valeurd-exposition
luiassigne
des fonctions tout à fait neuves ,par-que nele se
perfila,
perigosamente,
um sentido da rupturaimpos
sível de submeter inteiramente ao
pacifismo
de uma visão teleológica
ou sequerepocal.
Esta nova ideia da obra de arte arrastaconsigo,
provavelmente,
umaredefinição
e umreenquadramento
mui_
to mais radicais da estética que, no marxismo mais exacerbado deum
Brecht,
porexemplo,
encontra outraspossibilidades
de umaformalização
explícita
(8): "Dès que l'oeuvre d'artdevient mar-chandise on ne peutplus
luiappliquer
la notion d'oeuvre d'art; aussi devons-nous alors avecprudence
etprécaution,
mais sanscrainte,
renoncer à la notion d'oeuvred'art,
si nous voulons conserver sa fonction à la chose même que nous entendons
designer
" (cit. porBenjamin,
1935:100n).Toma assim
algum
sentido e consistência apressuposição
de um de senvolvimento relativamentedesregulado,
apartir
dos meados doséculo XIX, de uma
imagerie
centrada naconstituição
e autonomia de um campomarginal
à arte,caracterizado,
nos termos de Marc Le Bot, por dois factores solidários: a actualidade imediata e a efemeridade dainformação
transmitida ( Le Bot, 1973:83 (9). An tes que se assista àirrupção
de umprojecto generalizado
de reunificação
desta massa designos
"flutuantes" eresiduais,
querune
création,
mais 'enbriques',
avec dessurvivances,
desdéca-lages,
des réactivations d ' anciens élémentsqui
subsistent sousdes nouvelles
régies"
(Deleuze,
1986:30).* * * *
Trabalharemos assim no ponto de encontro (inconfortável ou,
até,
mirífico) de umaperspectiva
arqueológica
e de umaaspiração
genealógica,
querdizer,
entre uma análise estrita do discurso e u ma leitura doscondicionamentos,
limites e formas de institucionalização
dasformações
discursivas(Dreyfusse
Rabinow, 1984:155).Trata-se,
afinal,
de conduzir o cinema ao estado áeobjecto
de u ma"prática historiográfica
autónoma"(Bruno,
1984:42),
projecto
sópossível
no seio deimportantes
deslocamentos teóricos e metodológicos
, decujo
horizonte passaremos, emseguida,
a dar con
-ta.
** **
Dois
grandes
mitosforam,
desde sempre, postos aoserviço
dahi£
toriografia
do cinema: emprimeiro lugar,
afigura
do autor, emmuitos casos
apoiada
no nevoeiro doempirismo
crítico que nem sempre a soube colocar comjusteza
ouoportunidade,
e que seto£
nou numaespécie
degrande
princípio
deexplicação
e declassifi_
cação
dasprincipais
transformações
do enunciadofílmico,
desde1895 até
hoje;
emsegundo
lugar,
e com maisperigosas
implica
cri-ticado por Comolli
(Comolli,
1971:66 e sg . ) ,responsável
pela
canalização
do trabalhohistoriográfico
para a busca incessante deuma
origem
para cada uma dasfiguras
fílmicas,
acreditando que nessa obscurapenumbra
do tempo se encontraria umprincípio
decompreensão
de umaposteridade
mais ou menos remota mas semprepróxima
namorfologia.
Deste
modo,
a cena da história do cinema quehoje
se oferece emherança
parece imbuída de uma filosofia dahistória,
cujo quadro
de referência será tudo menos inocente: ele éduplamente
marcado,
não só por um fenómeno deirradiação
enunciativa que faz pas sar uma pretensa história do enunciado por uma história da enunciação,
mastambém,
esobretudo,
por umateleologia
dos modos deconstituição
dodispositivo
fílmico que,preocupada
com o encan-deamento linear dadispersão original
do factortécnico/estéti
-co,
projecta,
no devir doobjecto
e da formafílmica,
o fantasma de uma cenacontemporânea
que,invariavelmente,
acaba por fazeralinhar/alisar,
numalógica
do progresso técnico e daevolução
estética,
o feixe demultiplicidades
e o sistema de escolhas que arealização
de cada descoberta anunciam.Ao
propor
umprojecto
balizado, na teoria e nométodo,
por um re ferentearqueológico/genealógico,
procuramos subtrair a leitura do acontecimento histórico a esteregime
do saber. Emrigor,
e numaóptica
claramente foucaultiana , trata-se de instalar uma nova
grelha
depercepção
dahistória,
entendida não como a narrativa de um progresso linear e
contínuo,
ou areconstituição
de umasérie
de encadeamentos, suturando o vazio entre acontecimentos descontínuos (as
categorias
de"idade",
"época",
"século",
etc.),mas
um olhar novo sobre os fenómenos de ruptura
onde,
como diz Fou-cault,
(Foucault,
1968:13),
é aprópria
noção
de descontinuidade que muda de estatuto, deixando de ser um elemento de dispersao
temporal
asuprimir
para passar a ser um conceitooperatório
a utilizar. "L'histoire effective" se
distingue
de celle des historiens,
en cequ'elle
nes'appuie
sur aucune constance (...) Toutce à
quoi
on s'adosse pour se retourner vers I'histoire et lasai_
sir dans sa
totalité,
tout cequi
permet de la retracer comine unpatient
mouvement continu,
-tout cela il
s'agit
systématique
ment de le briser.Savoir,
même dans 1 ' ordrehistorique,
nesignifie
pas retrouver, et surtout pas 'nous retrouver'. L'his
-toire sera"ef fective" dans la mesure ou elle introduira le dis
-continu dans notre être même" (Foucault, 1971b:160).
O que se esboça na
perspectiva
desta "história efectiva',' que Fou cault faz derivar.precisamente,
dopressentimento
nietzschiano deum sentido
histórico,
é assim umamudança
epistemológica
radicalna
concepção
e nos usos da história. A uma históriaglobal,
pri
mordialmente interessada na "visageif icação"
de umaépoca,
o queequivale
adizer,
preocupada
com aconstrução
e oagrupamento
dasgrandes homogeneidades
, sópossíveis
apartir
dadeterminação
de
um centro único para um olhar sobre-humano e
supra-histórico
(recaótica e activa das
diferenças),
vemopôr-se
oprojecto
de umahistória
geral
interessada,
pelo contrário,
naapreensão
dosdesníveis,
doslimites,
dassobreposições,
dos fenómenos de re-manência e deactividade,
em resumo, naprodução
daimagem
de u madispersão
factual,
irreversível econflituosa,
onde o começo é coisa inumerável e inoneável. Como escreve Gilles Deleuze no seu Foucault"(...)
ilimporte
fort peuqu'une
émission sefas-se pour la
première
fois,
ou bien soit unereprise,
une repro-ducion. Ce
qui
compte est larágularité
de l'énoncé: non pas une moyenne mais une courbe"(Deleuze,
1986:14).Tornada
impertinente
a velhaaporia
dabanalidade/originalidade,
a
topologia
foucaultiana não é nunca umatopologia
dacriaçãomas
daregularidade,
istoé,
do que faz do enunciado coisapresente,
visível,
material erepetível.
0 que faz a história do enuncia do não é a suainscrição
numa narrativaexterior,
quesupõe
a sua mais-valia de verdade nas pregas de umalógica
interior e se creta, mas,justamente,
a falha que o isola esingulariza,
num espaço dedispersão
e deheterogeneidade
múltiplas,
onde a identidade se
constrói
pela
diferença
e ahistória,
longe
de serco_i
sa feita é sempre um tempo e jm ritmo a construir.Mas ao lado desta
descontinuidade,
entidade deslizante que pas-sa, continuamente, do devir do
objecto
ao discurso do historianão sendo uma
empreinte
, natemporalidade,
de um contínuo maisfundamental e subterrâneo (aí radica a visão clássica da histó
-ria) se assume,
justamente,
como um domínio muito maiscomplexo,
noqual,
sob umaaparência
factual einstantânea,
se esconde umcomplexo
jogo
deforças
(realizadas e empotência)
que o tornampossível
de uma certa forma e não de outra, num certo momento e não em outro. 0 acontecimento não é nem oprincípio,
nem a emergência
de uma continuidade mais escondida ou de um devir maisgrandioso;
ele é asingularidade,
aconcentração,
num campo deforças
disperso
epulverizado,
onde arealização
da história não passapelo
encadeamento virtual dastransformações,
maspela
des_
contínua aspereza das ocorrências e dos acasos.Ora o mais
importante
desenvolvimento deste modelo(pelo
menos o maisprodutivo,
em termos de umahipotética
descendênciaoperató
ria) encontra-se exposto numa passagem decisiva daArchéologie
du savoir.Depois
de se confrontar com apositividade
desta cartografia,
que faz,aliás,
derivar, directamente, doimportante
con ceito deformação
discursiva(14),
Foucault revela a dimensão histórica dessa
positividade
no que,precisamente,
aconstitui,
i.e., no
conjunto
de regras que caracterizam umaprática
discursi_
va: "(...) cet apriori
(daspositividades
)n'échappe
pas à1 '
historicité : il ne constitue pas, au-dessus des événements , et
dans un ciei
qui
nebougerait
pas, une structureintemporelle;
il se définit comme 1'ensemble desrégies
qui
caractérisent une pratique
discursive: or cesrégies
ne s 'imposent
pas de l'extérieur aux élémentsqu'elles
mettent enrelation;
elles sontengagées
dans cela même
qu'elles
relient; et si elles ne se modifient pas avec le moindre d 'entre eux , elles lesmodifient,
et setransforment avec eux en certains seuils décisifs. L'a
priori
des
positivités
n'est pas seulement lesystème
d'unedisper
-sion
temporelle;
il est lui-même un ensemble transformable "(Foucault, 1969:168).
Sem
pretender
descrever até à exaustão asimplicações
do mode lo,importa
no entanto,explicitar
umconjunto
denoções
que estefragmento
indirectamente convoca, nomeadamente, as quepermitem
empreender,
a partirdele,
um delicado trabalho deligação
entre umaarqueologia,
entendida como uma análise dasformas e dos sistemas de
exclusão,
delimitação
e deapropria
ção
de discurso, que tornampossível
arealização
efectiva de um determinado enunciado em detrimento de outros, e uma genealogia,
entendida como uma análise dos processos deformação
dodiscurso,
formação
essa, comojá
sedisse,
descontínua e regu lar (Foucault, 1971a:62 e sg . ) . Assim, e deste corpo de no
-ções,
destacaria,
emprimeiro
lugar,
o parregularidade
doe-nunciado/regra
deformação
do discurso,já
que, sobre ele as senta, emgrande
parte, a dimensão"positiva"
do modelo.* * * *
Já atrás se referiu a
pertinência
daquestão
daregularidade,
face à
aporia
daoriginalidade
do discurso. A materialida
ele é
já
repetição
(Deleuze,
1986:22),
porque o seu comporta mento não lhe advém de um contexto ou de um "sentido" mas deum interior, quer
dizer,
daquilo
que o faz coisasingular
e única,
sem semelhança ouequivalência
(Deleuze,
1972:7). A descrição
arqueológica
não toma porobjecto
ainvenção,
nem olha o campo do acontecimento enunciativo como umplano
fendido porum
qualquer
meridiano dasorigens,
repartido,
portanto, entre os enunciados que estariam do lado dacriação
e os que esta-riam do lado da
imitação
(Foucault,
1969:189). Toda aorigem.
éjá
imitação
de"qualquer
coisa" como toda aimitação
insere vejá
em si mesma aorigem
de umasingularidade,
de uma "voz"particular;
aperspectiva
arqueológica
da história éinsepa
rável de um
pensamento
da série , ou de uma formaserial,
comodistribuição
earranjo
do discurso.Infere-se deste
conjunto
deproposições
que aregularidade
deque fala
Foucault,
e que elepróprio
propõe
comoobjecto
de u maarqueologia,
não diz directamenterespeito
à natureza doenunciado,
à sua diferença ou desvio emrelação
a uma norma interorizadapela
trama histórica oupelo
campo deutilização
no
qual
circula, mas,pelo
contrário,
tem que ver com as cir cunstâncias quepossibilitam
eexigem
a suaaparição
em cer
-tos pontos
singulares
dasuperfície
enunciativa, atravessan-do,
diagonalmente,
a espessura das diferentesformações
dis
-cursivas.
Compreende-se
assim que, ao falar da análise enunciativa, Foucault chame continuamente a
atenção
para estadis_
sociação
fundamental do enunciado e daenunciação,
para estaleur sommeil actuei por retrouver, en incantant marques core lisibles à leur surface, l'éclair de leur naissance; il
s'agit
au contraire de les suivre aulong
de leursommeil,
ouplutôt
de lever les thèmesapparantés
dusommeil,
del'oubli,
del'origine
perdue
, et de rechercherquel
mode d'existencepeut caractériser les
énoncés,
indépendarnment
de leurénoncia_
tion,
dansl'épaisseur
du temps ou ilssubsistent,
ou ils sontconserves,
ou ils sont ré"activés etutilisés,
ou ils sont aussi,
mais non par une destinationoriginaire,
oubliés,
éventuellement même détruits"
(Foucault,
1969:162).A forma da
regularidade
enunciativa não é assim a de uma curva
estatística,
capaz de metronomizar afrequência
dasapari
ções,
mas a de uma curva-f orça ,activa,
ligando
entre si certos pontos
singulares
(numaperspectiva,
porventura
maisradi^
cal,
poder-se-ia
dizer, comDeleuze,
que não há enunciado fora da
regularidade,
sendo a forma do enunciado a forma da regularidade,
istoé,
a curvaligando
os pontossingulares,
asemergências,
que não seriam assim mais do que avizinhança
i-mediata do enunciado sem,precisamente,
o serem (Deleuze,1986:
:85-86) :
"Que tout soit
toujours
dit,
àchaque
époque"
(Deleuze,
1986:cault, talvez também a sua maior
"positividade";
nada há a pro curar porque nada está escondido, todos os enunciados estãoaí,
àvista,
e só esses, nessegrande
teatro que é tarefa doarqueó
logo
descrever. "Derrière lerideau,
il n'y a rien àvoir",
senão exactamente o pano, o suporte, o tecido das
relações
onde a ordem do discurso se tece, encontrando naregularização
do enun ciado oprimeiro
princípio
deconstituição
dostrajectos
e dos momentos dedispersão,
de cruzamento, deramificação,
de vizi-nhança
e deestabilização
das séries e das modalidades enuncia tivas.Vê-se assim como o conceito de
regularidade
enunciativapermite
dar conta,
pela
dispersão
do campoenunciativo,
de um certo nú mero decorrelações,
de co-presenças entre enunciados,ligados
entre sipela
transversalidade de uma ordem do discurso, por umtipo
dehomogeneidade
que não se reduz a umasimples
analogia
linguística
nem a nenhuma forma de identidadelógica
ou temática, mas que agrupa, sob uma mesma
repartição
do discurso, umcampo de
possibilidades estratégicas
materializado numtipo
de terminado derelações
discursivas (15). A estasconcentrações
enunciativas dará Foucault o nome de
formações
discursivas (Fou cault,1969:53),
sendo,
justamente,
no seio delas que se tor-na
possível
detectar um conjunto de regras-regras de forma
-ção
-gue
correspondem,
precisamente,
àscondições
de existên
-cia e de
coexistência,
deperenidade
ou detransformação
de umadeterminada
repartição
do discurso. Às regras daformação
cumdentro de uma mesma
repartição
discursiva,
dosobjectos,
das mo dalidades deenunciação,
dos conceitos e das escolhas temáticas.Assumindo assim a
primitividade
da função-enunciado,
como diz De leuze(Deleuze,
1986:18),
Foucault funda uma novapragmática,
para a
qual
tanto o referente como afunção
e osujeito
de enunciação
mais não são do que "derivados" doenunciado,
no sentido de variáveis intrínsecas (deposições)
(Deleuze,
1986:16)
e de nenhum modo exteriores: "Les
énoncés
de Foucault sont comme des rê ves: chacun a sonobjet,
ou s'entoure d'un monde"(Deleuze,
1986::17) .
0 conceito de regra da
formação
reenvia deste modo para a nature za do discursoenquanto
bem raro e relativamenteestável,
para essa lei depobreza
que Foucault refere numa passagem conheci da daArchéologie
dusavoir,
nasequência,
aliás,
de uma rudecrítica às analíticas tradicionais do discurso:
"Interprêter
,c'est
une manière de
reagir
â lapauvreté
énonciative et de la compen-ser par lamultiplication
du sens; une manière deparler
à partir d'elle et
malgré
elle. Maisanalyser
une formation discursive c'est chercher la loi de cette
pauvreté,
c'est enprendre
la mesure et en dêterminer la formespécifigue.
Cest donc , en unsens, peser le "volume des énoncés"
(Foucault,
1969:158).enunciado dessa lei fundamental de
pobreza,
de raridade que percorre
páginas
essenciais caArchéologie
du savoir e queorganiza
toda a
estratégia
discursiva cesse textoexemplar
queé
L'Ordre du discours. Todo o enunciado édeficitário
emrelação
a um campo de
possíveis
que a suarealização
vem suturar e, dealguma
maneira, obliterar (teremos
ocasião
de ver como, no caso do enun-ciado
fílmico,
esta lei depobreza
assumiudimensões
absolutamente catastróficas) . Se as regras da
formação, permitem
aprodução
do discurso,
pela
fixação
dos seusobjectos,
dos seus conceitos, das suas modalidades deenunciação,
das suasestratégias
enunciativas, elas definem, simultaneamente, o seu isolamento em rela
-ção
a um campo dodizível
jamais
dito, a suaterritorialização
maisou menos
despótica:
"Tout se passe comme si desinterdits,
desbarrages,
des seuils et des limites avaient étédisposés
de roa-nière que soit
maítrisée,
au moins enpartie,
lagrande
prolifé-ration du discours, de
manière
que sa richesse soitallegée
de sapart
laplus dangereuse
et que son disordre soitorganisée
selon des
figures qui esquivent
laplus
incontrôlable;
tout se passe comme si on avait voulu l'effacer
jusqu'au
marques de sonir-ruption
dans lesjeux
de lapensée
et de lalangue"
(Foucault, 1971a:52) .Toda a
prática
discursiva é umaprática
de cesura, de corte, sobre um campo
potencial
deutilização
do discurso; da mesma for ma, ao horizonte de toda aprática
discursivasubjaz
umcomplexo
jogo
de cache/cadre em que cada enunciadopossível
denuncia a impossibilidade
de muitos outros. Regra daformação
éaqui
um conceito-chave que, ao lado do de
regularidade
enunciativa,
configu
ra e torna
perceptível
os limites e as formas deestabilização
de uma determinadaformação
discursiva.En L'Ordre du discours , Foucault enumera e descreve um extenso
catálogo
de oráticas quepermitem
umavigilância
social sobre aprodução
do discurso, através de processos de controle, de selecção,
deorganização
e deredistribuição
(Foucault, 1971a : 12-52) .Das
práticas
deexclusão,
rejeição
erepartição
(de que se destacam a
palavra
interdita, oprincípio
deracionalidade,
a vontade deverdade,
a que seopõe
a vontade de saber) aos processos in-ternos de
delimitação
do discurso (ocomentário,
o autor, as disciplinas)
,passando pela
regulamentação
dosseus modos de apro
-priação
(como aeducação
e, de uma forma maisgeral,
todos osprocessos tendentes ã
rarefacção
dossujeitos
falantes como, porexemplo,
amanutenção
de umdomínio
reservado dosegredo
técnico-científico,
etc), toda umagrande
instalação prescritiva
con
-corre para a elisão da realidade do discurso, para a subordina
ção
da sua materialidadeincontrolável
e aleatória aodespotismo
de uma instância dosignificante
que o faz passar (ao discurso ) por umsimples
revestimento dopensamento,
pela
emergência
pon
-tual de um mistério mais
profundo
e obscuro que se acredita ain da ser oenigma
de todo o sentido: "Que ce soit donc dans unephilosophie
dusujet
fondateur, dans unephilosophie
del'expé
diation, le discours n'est rien
plus
qu ' unjeu
d'écriture
dans lepremier
cas, de lecture dans lesecond,
d'échar.ge
dans le troisième,
et cetéchange,
cette lecture, cette écriture r.e mettentjamais
enjeu
que lessignes.
Le discours s'annuleainsi,
dans saréalité,
en se mettant ã 1 ' ordre dusignifiant"
(Foucault,1971a:51) .
0 controle, a todo o preço, da livre
proliferação
do discurso(dealguma
forma resideaqui
oprincípio
verdadeiramentedemocrático
de Foucault, a sua mais radicalexigência
de liberdade) , arrimando-o a um faldo
logocentrismo
fundador, a essas"maquinas
semió ticas" eme Deleuze e Guatarri descrevem, apropósito
da natureza indirecta de todo o enunciado (Deleuze e Guatarri, 1930:106 esq.),
define para Foucault o fundamento de toda a ordem do dis-curso, a
estabilização
de um corpo de regrasemergentes
da dis-persão própria
ao campo enunciativo, ecuja
naturezaprescritiva
permite,
a cada momento, aselecção
erarefação
de um enuncia
-do
já
nãopossível
mas real e, por isso mesmo,legítimo.
Regularidade
enunciativa e regra daformação
discursiva são as-sim dois dos mais
importantes
conceitosoperatórios
da intervenção
de Foucault sobre odomínio
do saber. Nãoesgotando,
nem respondendo
inteiramente àsexigências
de um modelocuja riqueza
metodolõgica
e filosófica os supera(fazendo,
porisso,
apelo
a um corpo muito mais vasto de conceitos enoções)
elespermitem,
notal,
irredutível,
por isso mesmo, tanto a umaformalização,
como
interrogação
de umnão-dito,
como a umainterpretação,
como teoria de um sobre-dito, uma e outrapráticas
deixando escapar, no intervalo, a realidade de um dito, a suapositividade,
istoé,
o enunciado.Como
já
atrás se disse, e apesar destaaparência diagramática
,jamais
do modelo foucaultiano esteve arredada aquestão
da história,
a historicidade doenunciado,
a suainscrição
positiva
numa história das formas
cuja
temporalidade
nao é a de um devircontínuo e linear mas a de uma descontinuidade abissal onde o tempo se escoa, se cumula e renova. 0
tempo
foucaultiano é umtempo
local,particular,
impossível
de subordinar aos meridia-nos de uma
história
global,
em queregularidade
é sinónimo decontinuidade,
em que o tempo obedece às leis de umacronologia
abstractae externa,perante
aqual
o acontecimento cumpre ape -nas afunção
de evidência material e instantânea de um fundomais desconhecido e determinante. Ê
justamente
em torno de umsegundo
par de conceitos - o deproveniência
/transformação
-que a
estratégia
foucaultiana seorganiza
e incurva, no sentido de transportar para aprática
c para os usos dahistória
ojogo
i-ninterrupto
de uma diferença, ogrão
revolucionário doaconteqi
mento e da
multiplicidade,
oarquivo:
"Entre lalangue,
que défi nit lesystème
de construoticr. desparoles possibles,
et le cor-pus
cui recueillepassivemente
lesparoles prononcées,
1'
archi
-ve définit un niveau
particulier:
celui d'unepratique qui
fait surgir une multiolicitéd'ér.cr.ccs
ccmmeautar.t d'evenements regu-iers, cerme autant de choses offertes au traitenent et ã lamanipulation"
(Fou cault, 1969:171).Se a
questão
daproveniência
parece percorrer toda a obra de Fou cault, r.a sua dimensão maisdeceptiva,
querdizer,
enquanto
oposta ã
noção
deoriginalidade
(e repare-se como ao conceito de originalidade
se vêmcontrapor,
por razõesdistintas,
dois outros con ceitos: o debanalidade,
noplano
de uma ocorrência como vimos ,e o de
proveniência,
noplano
de uma"decorrência",
ceno iremos ver) , é no texto crucial sobre agenealogia
- "Nietzsche, la
gc
-ne"alogie,
1'histoire"-que a
questão
sofre um tratamento maispositivo,
já
cue é também este o texto em que Foucault mais sea-proxima
daelaboração
e doquestionamento
de umameta-cartograf
ia dos começos.Sabe-se como Foucault,na
apropriação
que faz do percurso nietz-schiano,
prefere
os termos deproveniência
(Harkunft) eemergên
cia
(Enstehung)
ao usoimpreciso
do termo de Ursprung, na definição
doobjecto
dagenealogia.
São várias as razões e, por isso, estão exaustivamenteexpostas
noartigo
(Foucault, 1971b:45-150) ;des
linhagens
teleológicas
cu àreconstrução
de umgrande
paradigma
dassignificações
escondidaspelo
tempo, em suma, àreifi-cação
da identidade de umsujeito
que fala a históriapelo
fil-tro de um
"presentisme"
historiográfico
"qui
ne sort pas de sa si tuationherméneutique
initiale etqui
ne visequ'à
garantir,
par soin destabilité,
uneidentité
depuis longtemps
éclatée" (Haber mas, 1985:79).Ao
milagre
de umaorigem
esquecida,
sobre aqual
assenta a espe rança de restabelecimento de uma continuidade da história e de reconstrução
de uma coerênciaperdida,
opõe
ogenealogista
a realidade de um começo
problemático
einstável,
que não conheceoutra lei se não a do acidente e do acaso: "Cequ'on
trouve au commence-ment
historique
des choses, ce n'est pas 1'
identité
encorepré
-servée de leur
origine,
- c'est le discordre des autres chosee ,c'est le
disparate"
(Foucault, 1971b:148).Proveniência e
emergência
permitem justamente rejeitar
ametafí
sica de uma presençaoriginal
distante doplano
das coisas(17)
,um limbo de onde tudo vem e para onde tudo
inapelavelmente
tor nará. Nolugar
destaorigem
misteriosa e única vem colocar --se uma multidão de começos, umadispersão
inumerável
de traços, de pequenos egrandes
acidentes, erros,contradições.
Designan
do estaheterogeinidade
essencial, o conceito deproveniência
vemsubstituir,
ao mitoretrospectivo
de uma unidadeperdida,
a ima gem de um espaço inicial fendido por umapluralidade
de dissen-soes e
antagonismos,
uma trama de onde apenasé
possível
detec-tar a presença de certos grupos, de certas famílias ou
clãs, cuja
consistência advém de uma maior estabilidade de certos traçosque, no seu cruzamento com outros, dão
origem
aurasujeito,
a umdiscurso,
profundamente
atravessado por correntes das mais dis-tantes
proveniências.
Como sevê,
proveniência
designa
aqui
amestiçagem
de toda aorigem,
emoposição,
portanto,
ã brancura de um acto decriação
absoluto, único e indivisível: "Lav~eche£
che de la provenance ne íonde pas, tout au contraire: elle inquiete
ccqu'on
percevait
immobile,
ellefragmente
cequ'ont
pen sait uni; elle montre 1 'heterogeinité
de ce qu ' onimaginait
con forme à soi-même"(Foucault,
1971b:153). Se absoluto há na his tória dascoisas,
esse absoluto é o de umarelação,
de uma combi.natória,
de umequilíbrio
deforças
que sesobrepõem,
no seio de umaheterogeinidade
mais fundamental e determinante; é a última característica daproveniência,
na sua dimensão porventura maisfísica e
material,
que toma o corpo comolugar
da suarealização
einscrição:
"Le corps, surface d'
inscription
des événements (a lors que lelangage
le marque et les idées le dissolve ) ,lieu de dissociation du Moi
(auquel
essaie deprêter
la chimère d'une unité substantielle) , volume enperpetuei
éffritement" (Foucault, 1971b:154). Enquanto análise da
proveniência,
agenealo
gia
nãopode
então deixar de articular o corpo e ahistória,
de mostrar, como diz Foucault, um corpointegralmente impresso
pela
história,
arruinado por ela. Se o conceito deproveniência
def_i
ne assim a
multiplicidade
deforças
em presença, os seus pontos de cruzamento e deequilíbrio,
a precar idade dassobreposições,
o conceito deemergência
designa
asingularidade
de umaapari
-ção,
a eclosão intersticial de umaforça,
"l'entrée em scène des forces; leurirrupcion"
(Foucault,
1971b:156),
o ponto de visibilidade improvável
de um afrontamento sem outrolugar
que não odo
diagrama
e daabstracção.
A análise da
emergência
e daproveniência
responde
assim,
intei ramente, aoprojecto
genealógico
dedesestruturação
daspráticas
e dos saberes da história tradicional. Onde esta
imaginou
a e-xistência de umprincípio
deverdade,
de coerência e de unidade,na demanda de uma
origem
encobertapelos
sedimentos dotempo,
vêaquela
aproliferação,
cada vezmaior,
dos erros e das dissensões e, em todo o caso, aimpossibilidade
dereconstituição
dequal
-quer gesto criador de onde as coisas teriam
germinado
na sua pureza e
inequívoca
identidade. Onde a históriapressupôs
umprin
cípio
geral
de racionalidade,presidindo
ao ordenamento linear dosfenómenos,
vem agenealogia
descobrir um mundo de pequenas verdades, uma infindávelpopulação
deobjectos,
depoeiras
até aíinvisíveis,
cujo
aparecimento
edistribuição
se devem menos aum
projecto
decoerência,
do que à violência dos acasos, afinal a maisprovável
de todas as razões.Finalmente,
onde a história tradicional procura, por um trabalho emprofundidade,
chegar
aoseu momento de
insuspeita inocência,
vê agenealogia,
nos efeitos de
superfície,
a única verdade dascoisas,
que é a de per-tencerem a um espaço
contaminado,
onde apenas as famílias e asredes
permiter.
aformação
de certosagrupamentos,
dosquais
qual
quer
significação
mais exterior ou interior se encontrairredu-tivelmente arredada.
A
ruptura
genealógica
é
umaruptura
com amemória,
em tudo o que nesta manifesta um obscurodesejo
dereconhecimento,
no espelho atemporal
dahistória,
de uma identidade há muitoperdi
-da. A esta memória das coisas, substitui a
genealogia
a acuida de de um olhar maispreciso,
quer dizer, menosmíope,
capaz de ver as coisas mais deperto
e de lhessuportar
a infinita divisibilidade,
a obscenafragmentação
que apenas umgesto
depudor
(ia dizer
poder)
ainda esconde."L'histoire,
généalogiquement
dirigée,
n'a pas pour fin de retrouver les racines de notre i-dentité , mais de s'acharner au contraire à la
dissiper;
ellen'entreprend
pas derépérer
lofoyer unique
d'
cu nous venons ,
cette
première
patrie
oú lesmétaphysiciens
nouspromettent
que nous ferons retour, elleentreprend
de faire apparaitre tou tes lesdiscontinuités
qui
nous traversent" (Foucault, 1971b) :: 169) .
* * * *
Um último mas decisivo conceito para a dinâmica do modelo é o de