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A ordem do fílmico : elementos para uma história menor do cinema

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(1)

A ORDEM DO FlLMICO

elementos Dará urna história menor do cinema

Dissertação

de Mestrado

Departamento

de

Comunicação

Social Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa ***

(2)

I

QUESTÕES

DE

HISTÓRIA:

DE UM NOVO

PRINCÍPIO

DAS COISAS 9

II AS VERDADES DE UMA HISTORIA:

FIXAÇÃO

49

III UM CINEMA À MARGEM DA LEI

(Arquivos)

73

1. Práticas de descontinuidade do um cinema

dito

primitivo

76

2 . F :wir, S. Porter:

segredos

de um autor 99

1 . The Life of an American Fireman; da

problemática

orlqem da

montagem

para

leia 100

2. O caso Personal; de uma

definição

de

continuidade 111 IV "ORS-CADRE / GENEALOGIAS 120 V

SEQUENCIAS

/ ABERTURA 145 NOTAS 158 BIBLIOGRAFIA 188 FILMOGRAFIA 205 *,* ■ i \ \

(3)

I

Fotograma

de 0 Passado e o Presente

II

-Fotograma

de The Great Train Robberv

III

-Fotograma

de Bronenosets Potemkin (0

Couraçado

Potemkine!

IV

(4)
(5)
(6)

•j*

(7)

APRESENTAÇÃO

Quando,

a meados de

40,

Gilbert Cohen-Séat veio

distinguir,

pela

primeira

vez, "filme" e

"cinema",

difícil seria prever a fortuna que tal

partilha

viria a ter nas décadas

posteriores.

De resto, nem o

próprio

filósofo se deve ter disso

apercebido,

que ã in subordinada violência do

substantivo,

preferiu

a maior brandura de uma

simples função adjectiva:

"fílmico" e

"cinematográfico

"

passavam a

designar,

a

qualificar

e a

repartir,

à boa maneira de Mareei Mauss, a desmesura e a deformidade desse "facto social to

tal" a que a teoria tinha até então chamado

-quiçá

impropriamen

te -, de cinema. Tratava-se, bem entendido, de "ordenar uma vi

são",

de

estilhaçar

um

objecto

complexo

numa

multiplicidade

de

objectos

mais

simples,

de

regionalizar,

à sombra da

disciplina

e do

método,

uma reflexão

bem-pensante,

higiénica

e, passe o ter

-mo, "científica". Pela mão da

Filmologia

- tal era o nome dado a essa nova ordem da visão -, o cinema passava a

sagrada

porta

dos

colégios

universitários,

para se instalar nas cadeiras dos mestres (e não dos menores: Francastel, Souriau, Friedmann, mais tarde, Morin) , nos currículos dos

pupilos

e em meticulosos e rí

(8)

te de

mãos,

de rostos e até de voz;

quanto

à famosa

distinção,

conhecia, para

já,

um bem parco futuro: disseminada por um ou outro texto,

jamais chegou

a definir

completamente

um

princí

-pio

teórico que tanto

ajudara

a estabilizar. Foi

preciso

che

-gar ao início dos anos 70, para que Christian Metz (e Roland Bar

thes,

como veremos) a viesse de novo remexer, e ainda

aí,

curió sãmente, no contexto de

emergência

de uma nova

disciplina

uni

-versitãria: a

semiologia

do cinema.

O

princípio

de releitura de

Cohen-Séat

por Christian Metz é sim

pies

e

-julgo

- razoavelmente conhecido:

enquanto

para

Cohen--Séat,

o

"cinematográfico"

definia o campo da

instituição,

do

dispositivo

de

produção

e

circulação

dos filmes, e o

"fílmico"

o

produto

significante,

propriamente

dito, que a

película

mate rializa e o ecrã

revela,

para Christian Metz, o cinema não é só o total dos factores que, exteriormente ao

filme,

configuram

o

perfil

de uma certa

instituição

social, nem apenas (o que é

uma novidade) o total dos filmes, mas

também,

e

sobretudo,

o to

tal dos traços que, no interior do

próprio

filme, "se

supõe

se rem

característicos

de uma certa

linguagem

pressentida".

A re

versão

é

inteligente,

afortunada e, por essas duas

razões,

in

-fluenciou todo um vasto programa de trabalho a que se convencio nou chamar de lâ

semiologia

(de

inspiração

h

jelmsleviana,

por ra

zoes facilmente

reconhecíveis)

; se o facto fílmico é

pensãvel

no interior do cinema, não é menos verdade que o cinema está

presente

no interior de todos e de cada facto

fílmico,

porque e le

designa,

justamente,

o

conjunto

de traços que fazem de um fil

(9)

me um

filme,

quer

dizer,

uma certa estrutura de

significação

po tencialmente comum a todos os filmes. E para este

objecto,

para a sua indestrutível

sedução

e

positividade,

confluíram os esfor ços de Metz e dos seus mais imediatos

seguidores

no

projecto

de

fundação

de uma

semiologia

que é ainda

-e pour cause - uma se

-miologia

do cinema.

Ora c exactamente por esta altura que Roland Barthes

publica

nos

Cahiers du Cinema um famoso ensaio que, no entanto,

permanecerá,

a meu ver,

incompreendido

(pelo

menos, até Bonitzer) : "Le

troi-sième sens: notes de recherche sur

quelques photogrammes

d'Ei

-senstein" . Neste ensaio, Barthes identifica e

designa,

nada mais,

nada menos, que uma forma de discurso

irredutível

à

linguagem

e aos processos de

significação:

o

fílmico,

como o que

está,

para

doxalmente,

fora do cinema, quer

dizer,

para além de um cinema reconhecível enquanto

objecto

de uma

semiologia

do

código

e da

linguagem

como espaços

legítimos

de

produção

e

circulação

do sen tido, denunciando uma outra

prática

(estética)

do

signo fílmico,

num outro

lugar

(u-tópico)

que não é mais o da

linguagem,

mas o

do

ecrã,

que

é,

justamente,

e antes de

qualquer

outra

coisa,

co

mo dizia Bresson, uma

superfície

a cobrir

(e

talvez por isso a

noção

de enunciado

fílmico,

que tanto

aplicaremos

neste traba

-lho, permaneça uma

noção

problemática,

insuficiente ou,

até,

pa

radoxal)

.

0 texto que

aqui

apresentamos

é um modesto herdeiro desta

proble

mática e,

particularmente,

desta

perspectiva;

nele defendemos a

(10)

pressuposição

de que

algo

no cinema escapa a uma ordem da

língua

gem, de que nele (e por ele) um saber mais remoto (e menos antro

pológico)

nos vem tocar o corpo e os afectos ou, para o dizer com

Schefer,

vem tocar em nós o que de

nós

não pensamos ou não ousa mos sequer pensar e que não

é

a

história

de outros

(personagens,

objectos,

mundos) mas a nossa história:

caligramática/dramãti

-ca, num texto que apenas a memória

pode

decifrar,

decif rando-se. E se este

objecto

existe - e

procuraremos identificá-lo

pela

me

diação

de outras

experiências

do

cinema,

nas

quais,

cada um de

nós,

ã sua maneira, se reverá -, dele deverá ser

possível

contar

uma outra

história,

nele deverá ser

possível

descobrir

-no se

-gredo

das formas - o

que nele sempre esteve escondido e, no en

-tanto, tão luminoso e, talvez por isso,

indizível

.

Cada um de nós terá no seu

arquivo,

na sua

experiência

dos fil

-mes/do

cinema,

mistérios que

jamais

se revelaram, porque para e-les não

chega

o que temos para os contar.

Contentámo-nos

assim,

facilmente,

com uma história que disse o que era

possível

ser di

to e,

chamámos-lhe,

pomposamente, do cinema. Este trabalho come ça e acaba na parte de

responsabilidade

que a todos nos toca de nessa história não ter sido dito

tudo,

de não ter sido o essen

-ciai,

de não ter sido dito quase nada.

Dir-se-á,

finalmente,

que tal

ambição

dificilmente se

apiedará

de tanta

imperfeição.

Mas, escreveu-o um dia

Dreyer,

só na

imperfeição

os

possíveis

conti -nuam a ser

possíveis.

(11)
(12)

Para o

arquivista,

animado da vontade de

juntar

uma nova peça ao

fundo do

arquivo,

na ânsia de lhe

preencher

o

pacífico

contorno,

e na

expectativa

de que nada lhe venha

perturbar

a

regularida

de de um

perímetro,

previamente

demarcado, o cinema oferece um

terreno

particularmente

favorável,

porque

nele,

tanto a finitude relativa da matéria como o sistemático percurso por

palmilhadas

certezas, funcionam como a

garantia

de uma certa estabilidade ,

que muito tem contribuído para a

prosperidade

dos mais laborio

-sos, dedicados e anónimos tarefeiros.

Jogada

no emaranhado do alfabeto ou, na melhor das

hipóteses,

na

pobreza

do alinhamento

cronológico,

a nova peça vem

assim,

quase sempre, confirmar e conformar a

higiénica

organização

do edifí

-cio. Medida

pela

linha de

fuga

das estantes, a cega

perspectiva

do

arquivista

encontra a

metodologia

do assembleur , que vê o

seu

prestígio

outorgado pela

dimensão de um trabalho em extensão (e quase nunca em in/tensão ) , que uma nova

geração

se encarrega

depois

de

prosseguir.

Torna-se assim

possível

afirmar, no entendimento de todo o radi

calismo

subjacente

à

perspectiva

de Michel Foucault, que o cine

ma facilita e promove o sistema de

práticas

do velho

arquivo,

sub

metido,

como se sabe, à

ordenação

linear e quase indiferente do documento, e à

produção

de uma

cartografia

lisa,

monótona e des

(13)

Um outro horizonte vem anunciando, no entanto, e desde há

algum

tempo, uma

prometedora agitação

desta paz, mais árida que

satis_

feita. Se bem que no decorrer deste

capítulo,

tenhamos ocasião de a ela nos referirmos em pormenor,

importa

dizer que tal

conjuntura

resulta, em boa parte, de um entendimento, ainda ex

perimental,

entre, por um

lado,

o trabalho de

revelação

de no

-vos fundos do

arquivo

(na maior parte dos casos

gerada

por no

-vas

distribuições

de materiais

dispersos

e de outro modo conhe

eidos) e, por outro, a

intuição

de uma

problemática

da

história

que, declinando a (fraca)

responsabilidade

de

poder

vir a ali

-mentar uma

longínqua

pulsão

teórica,

se pensa, cada vez

mais.co

mo a instância

própria

de

produção

desse discurso.

A

questão

passará,

decisivamente, por

aquilo

que

Rodowick,

na

sequência

de

Foucault,

chamou de

intelegibilidade,

enquanto

con

dição

essencial para a

constituição

do

objecto

do conhecimen to histórico: "the

object

of historical

knowing

is the

intele-gibility

of events

through

time"

(Rodowick,

1984:2). Entende

--se

aqui

por

intelegibilidade

, simultaneamente, a

pressuposição

da existência de uma

ampla

zona de non-savoirs ou de saberes

contraditórios,

no

próprio

momento e acto de conhecimento e a

traduetibilidade (1) imediata de todo o conhecimento em formas

ou actos de discurso

e/ou

perfis

ou "visibilidades" (2).

Resumidamente, deve então diaer-se que esta

posição,

nas suas dimensões

ontológica

e

epistemológica,

implica

pelo

menos duas

(14)

no método e no

objecto.

Em

primeiro

lugar,

entende-se que o co nhecimento histórico do

objecto

fílmico

obriga

à

constituição

de um percurso

transversal,

interdisciplinar

e, passe a

expressão,

indisciplinado,

quer dizer,

subtraído

às leis do

regime

disci

-plinar,

afirmando-se antes por um trabalho residual, insinua

-do por uma

découpage produzida

ao nível do

interstício

(3),

em

segundo

lugar,

pressupõe-se

que a

condição

do

próprio

objecto

se torna

inseparável

das suas

condições

de

possibilidade

enquan

to

objecto

de um discurso,

sujeito

,

portanto

, a

práticas

de ex

-clusão ou de

repartição

(Foucault,

1971a: 11-12) .

Não se trata, como veremos, de subscrever o

projecto

de uma fal sa

pragmática

comprometida

apenas com a análise dos sistemas de contraintes

socic-históricas

, ou de satisfazer as

exigências

de

uma teoria da

enunciação

que, revertendo o

paradigma

da

linguís

tica

saussuriana,

se atém ao trabalho de detectar os valores de

presença/ausência

do

sujeito

enunciador na

realização

do enun

-ciado de que é o imediato agente de

produção.

Trata-se, mais

fundamentalmente, de assumir a materialidade de um enunciado

possível

e raro, porque às suas

possibilidades

de

emergência

pre

sidiu um sistema de escolhas e

prescrições,

quer

dizer,

uma cer

ta

posição

no campo de

produção

e

circulação

da matéria discur siva .

A aposta deste

projecto

reside assim na

probabilidade

de suces so de um deslocamento temático e

metodológico

que, a vários ní

(15)

forme traditionnelle,

entreprenait

de 'mémoriser' monuments

du

passe,

de les transformer en documents et de faire

parler

des traces

qui

, par elles-mêmes , souvent ne sont

point

verba

-les, ou disent en silence autre chose que ce

qu'elles

disent ;

de nos

jours,

1'histoire, c'est ce

qui

transforme les documents

en monuments, et

qui,

là ou on déchiffrait des traces

laissées

par les hommes, là oú on

essayait

de reconnaitre en creux ce

qu'ils

avaient été ,

déploie

une masse d'éléments

qu'il

s'agit

d'isoler,

de grouper, de rendre

pertinents

, de mettre en

rela-tions,

de constituer en ensembles"

(Foucault,

1969:14-15).

Nesta

perspectiva,

a nossa

hipótese

de

partida

procurará

re construir o

trajecto

do enunciado

fílmico,

no

período

crucial

que medeia entre a sua

emergência

e a sua

estabilização

(4),

fo calizando a nossa

atenção,

em

particular

sobre

alguns

dos (ra ros) "documentos"

susceptíveis

de esclarecerem o

conjunto

de

prescrições

que se foram instalando no seio da

instituição

ci

nematográfica.

Um texto basilar e, a vários

níveis,

fundador, marca-nos, inde

levelmente,

o percurso: A obra de arte na era da sua

reproduç

tibilidade técnica

(Benjamin,

1935),

cujo

principal

efeito

é,

(16)

justamente,

a

demarcação

do que

poderemos

chamar,

na

sequência

de Jean Mottet

(Mottet,

1984 : 94) de um campo

marginal

à arte , em que as

práticas

de

reprodução,

maiormente empregues

pela instituição

cinematográfica

(5),

contribuem para a anula

ção

da

tradição

como elemento estruturante da cultura e dos seus processes de transmissão : "Même

considerée

sous sa forme la

plus

positive,

et

précisément

sous cette forme, on ne peut

saisir la

signif

icat ion sociale du cinema si 1 '

on

néglige

son aspect

destruetif,

son aspect

esthétique:

la

liquidation

de l'élément traditionnel dans

l'héritage

culturel"

(Benjamin

,1935

:

:93).

0 alcance da

intervenção

de

Benjamin

no debate sobre uma esté tica da

imagem

moderna é suficientemente

conhecido,

e não será este o

lugar

de mais uma vez o vir

explicitar.

Permita-se-nos,

contudo,

o exame de um

conjunto

de

importantes

implicações

que o texto em causa não

pode

deixar de

sugerir.

E em

primeiro

lu gar surge esse frutuoso conceito-charneira que atravessa toda a reflexão ben

jaminiana

: a aura, o

aqui

e o agora da obra de arte que faz a unicidade da sua presença:

"l'unique

appari

tion d'un lointain si

proche qu'elle

puisse

être"

(Benjamin,

1935 : :96-96n) (6).

É

precisamente

em torno desta

noção,

tão

profícua

como nebulo

sa, que

Benjamin

organiza

toda uma conhecida

argumentação

ten

dente a clarificar a

clivagem

estética instituída

pela

moderni^

(17)

de artefactos técnicos voltados não para a

produção

imediata e

singular

do

objecto

estético,

mas para a sua

reprodução

ilimita da e diferida, no espaço e no tempo. Sacrificando, a um esfor ço de

síntese,

a

riqueza

e a

complexidade

imanentes

ao texto

julgo

não trair o essencial da sua

perspectiva

se disser que o

processo de

desagregação

da aura da obra de arte (da sua

auten

ticidade) se deve, fundamentalmente, a um novo estado de

equi

-líbrio entre os seus valores de culto e de

exposição

(7). Inde

pendentemente

de toda a

estratégia conceptual

e

argumentativa

,

parece ser este o

ponto

crucial para a

resolução

do diferendo

materialista que se

pressente

a cada passo do ensaio (não é de resto inocente que

seja

também

este o momento escolhido por

Benjamin

para um confronto directo com a "estética idealista" :

"l'esthétique

idéaliste ne peut faire droit à cette

polarité

,

car son concept de la

beauté

ne l'admet par

príncipe

qu'indivi-sée (et 1'exclut donc commme

divisée)"

(Benjamin,

1935:98n).

0 interesse desta dicotomia não reside, unicamente, numa varia

ção quantitativa,

ligada

à

proliferação

das ocasiões de desvela mento da obra de arte mas, sobretudo, na dimensão

qualitativa

desta

transformação,

que afecta, de forma directa, a estrita de

finição

ontológica

do

objecto

estético:

"Originairement

la pre

pondérance

absolue de la valeur cultuelle avait fait avant tout

un instrument

magique

de cette oeuvre d'art,

qui

ne devait ê-tre,

jusqu'à

un certain

point,

reconnue comme telle que

plus

tard, de même

aujourd'hui

la

prepondérance

absolue de sa valeur

d-exposition

lui

assigne

des fonctions tout à fait neuves ,

(18)

par-que nele se

perfila,

perigosamente,

um sentido da ruptura

impos

sível de submeter inteiramente ao

pacifismo

de uma visão teleoló

gica

ou sequer

epocal.

Esta nova ideia da obra de arte arrasta

consigo,

provavelmente,

uma

redefinição

e um

reenquadramento

mui_

to mais radicais da estética que, no marxismo mais exacerbado de

um

Brecht,

por

exemplo,

encontra outras

possibilidades

de uma

formalização

explícita

(8): "Dès que l'oeuvre d'artdevient mar-chandise on ne peut

plus

lui

appliquer

la notion d'oeuvre d'art; aussi devons-nous alors avec

prudence

et

précaution,

mais sans

crainte,

renoncer à la notion d'oeuvre

d'art,

si nous voulons con

server sa fonction à la chose même que nous entendons

designer

" (cit. por

Benjamin,

1935:100n).

Toma assim

algum

sentido e consistência a

pressuposição

de um de senvolvimento relativamente

desregulado,

a

partir

dos meados do

século XIX, de uma

imagerie

centrada na

constituição

e autonomia de um campo

marginal

à arte,

caracterizado,

nos termos de Marc Le Bot, por dois factores solidários: a actualidade imediata e a efemeridade da

informação

transmitida ( Le Bot, 1973:83 (9). An tes que se assista à

irrupção

de um

projecto generalizado

de reu

nificação

desta massa de

signos

"flutuantes" e

residuais,

quer

(19)

une

création,

mais 'en

briques',

avec des

survivances,

des

déca-lages,

des réactivations d ' anciens éléments

qui

subsistent sous

des nouvelles

régies"

(Deleuze,

1986:30).

* * * *

Trabalharemos assim no ponto de encontro (inconfortável ou,

até,

mirífico) de uma

perspectiva

arqueológica

e de uma

aspiração

ge

nealógica,

quer

dizer,

entre uma análise estrita do discurso e u ma leitura dos

condicionamentos,

limites e formas de institucio

nalização

das

formações

discursivas

(Dreyfusse

Rabinow, 1984:155).

Trata-se,

afinal,

de conduzir o cinema ao estado áe

objecto

de u ma

"prática historiográfica

autónoma"

(Bruno,

1984:42),

projecto

possível

no seio de

importantes

deslocamentos teóricos e meto

dológicos

, de

cujo

horizonte passaremos, em

seguida,

a dar con

-ta.

** **

Dois

grandes

mitos

foram,

desde sempre, postos ao

serviço

da

hi£

toriografia

do cinema: em

primeiro lugar,

a

figura

do autor, em

muitos casos

apoiada

no nevoeiro do

empirismo

crítico que nem sempre a soube colocar com

justeza

ou

oportunidade,

e que se

to£

nou numa

espécie

de

grande

princípio

de

explicação

e de

classifi_

cação

das

principais

transformações

do enunciado

fílmico,

desde

1895 até

hoje;

em

segundo

lugar,

e com mais

perigosas

implica

(20)

cri-ticado por Comolli

(Comolli,

1971:66 e sg . ) ,

responsável

pela

ca

nalização

do trabalho

historiográfico

para a busca incessante de

uma

origem

para cada uma das

figuras

fílmicas,

acreditando que nessa obscura

penumbra

do tempo se encontraria um

princípio

de

compreensão

de uma

posteridade

mais ou menos remota mas sempre

próxima

na

morfologia.

Deste

modo,

a cena da história do cinema que

hoje

se oferece em

herança

parece imbuída de uma filosofia da

história,

cujo quadro

de referência será tudo menos inocente: ele é

duplamente

marca

do,

não só por um fenómeno de

irradiação

enunciativa que faz pas sar uma pretensa história do enunciado por uma história da enun

ciação,

mas

também,

e

sobretudo,

por uma

teleologia

dos modos de

constituição

do

dispositivo

fílmico que,

preocupada

com o encan-deamento linear da

dispersão original

do factor

técnico/estéti

-co,

projecta,

no devir do

objecto

e da forma

fílmica,

o fantasma de uma cena

contemporânea

que,

invariavelmente,

acaba por fazer

alinhar/alisar,

numa

lógica

do progresso técnico e da

evolução

es

tética,

o feixe de

multiplicidades

e o sistema de escolhas que a

realização

de cada descoberta anunciam.

Ao

propor

um

projecto

balizado, na teoria e no

método,

por um re ferente

arqueológico/genealógico,

procuramos subtrair a leitura do acontecimento histórico a este

regime

do saber. Em

rigor,

e numa

óptica

claramente foucaultiana , trata-se de instalar uma no

(21)

va

grelha

de

percepção

da

história,

entendida não como a narrati

va de um progresso linear e

contínuo,

ou a

reconstituição

de uma

série

de encadeamentos, suturando o vazio entre acontecimentos des

contínuos (as

categorias

de

"idade",

"época",

"século",

etc.),mas

um olhar novo sobre os fenómenos de ruptura

onde,

como diz Fou

-cault,

(Foucault,

1968:13),

é a

própria

noção

de descontinuidade que muda de estatuto, deixando de ser um elemento de dispersa

o

temporal

a

suprimir

para passar a ser um conceito

operatório

a u

tilizar. "L'histoire effective" se

distingue

de celle des histo

riens,

en ce

qu'elle

ne

s'appuie

sur aucune constance (...) Tout

ce à

quoi

on s'adosse pour se retourner vers I'histoire et la

sai_

sir dans sa

totalité,

tout ce

qui

permet de la retracer comine un

patient

mouvement continu,

-tout cela il

s'agit

systématique

ment de le briser.

Savoir,

même dans 1 ' ordre

historique,

ne

signifie

pas retrouver, et surtout pas 'nous retrouver'. L'his

-toire sera"ef fective" dans la mesure ou elle introduira le dis

-continu dans notre être même" (Foucault, 1971b:160).

O que se esboça na

perspectiva

desta "história efectiva',' que Fou cault faz derivar

.precisamente,

do

pressentimento

nietzschiano de

um sentido

histórico,

é assim uma

mudança

epistemológica

radical

na

concepção

e nos usos da história. A uma história

global,

pri

mordialmente interessada na "

visageif icação"

de uma

época,

o que

equivale

a

dizer,

preocupada

com a

construção

e o

agrupamento

das

grandes homogeneidades

, só

possíveis

a

partir

da

determinação

de

um centro único para um olhar sobre-humano e

supra-histórico

(re

(22)

caótica e activa das

diferenças),

vem

opôr-se

o

projecto

de uma

história

geral

interessada,

pelo contrário,

na

apreensão

dos

desníveis,

dos

limites,

das

sobreposições,

dos fenómenos de re-manência e de

actividade,

em resumo, na

produção

da

imagem

de u ma

dispersão

factual,

irreversível e

conflituosa,

onde o começo é coisa inumerável e inoneável. Como escreve Gilles Deleuze no seu Foucault

"(...)

il

importe

fort peu

qu'une

émission se

fas-se pour la

première

fois,

ou bien soit une

reprise,

une repro

-ducion. Ce

qui

compte est la

rágularité

de l'énoncé: non pas une moyenne mais une courbe"

(Deleuze,

1986:14).

Tornada

impertinente

a velha

aporia

da

banalidade/originalidade,

a

topologia

foucaultiana não é nunca uma

topologia

da

criaçãomas

da

regularidade,

isto

é,

do que faz do enunciado coisa

presente,

visível,

material e

repetível.

0 que faz a história do enuncia do não é a sua

inscrição

numa narrativa

exterior,

que

supõe

a sua mais-valia de verdade nas pregas de uma

lógica

interior e se creta, mas,

justamente,

a falha que o isola e

singulariza,

num espaço de

dispersão

e de

heterogeneidade

múltiplas,

onde a iden

tidade se

constrói

pela

diferença

e a

história,

longe

de ser

co_i

sa feita é sempre um tempo e jm ritmo a construir.

Mas ao lado desta

descontinuidade,

entidade deslizante que pas

-sa, continuamente, do devir do

objecto

ao discurso do historia

(23)

não sendo uma

empreinte

, na

temporalidade,

de um contínuo mais

fundamental e subterrâneo (aí radica a visão clássica da histó

-ria) se assume,

justamente,

como um domínio muito mais

complexo,

no

qual,

sob uma

aparência

factual e

instantânea,

se esconde um

complexo

jogo

de

forças

(realizadas e em

potência)

que o tornam

possível

de uma certa forma e não de outra, num certo momento e não em outro. 0 acontecimento não é nem o

princípio,

nem a emer

gência

de uma continuidade mais escondida ou de um devir mais

grandioso;

ele é a

singularidade,

a

concentração,

num campo de

forças

disperso

e

pulverizado,

onde a

realização

da história não passa

pelo

encadeamento virtual das

transformações,

mas

pela

des_

contínua aspereza das ocorrências e dos acasos.

Ora o mais

importante

desenvolvimento deste modelo

(pelo

menos o mais

produtivo,

em termos de uma

hipotética

descendência

operató

ria) encontra-se exposto numa passagem decisiva da

Archéologie

du savoir.

Depois

de se confrontar com a

positividade

desta carto

grafia,

que faz,

aliás,

derivar, directamente, do

importante

con ceito de

formação

discursiva

(14),

Foucault revela a dimensão his

tórica dessa

positividade

no que,

precisamente,

a

constitui,

i.

e., no

conjunto

de regras que caracterizam uma

prática

discursi_

va: "(...) cet a

priori

(das

positividades

)

n'échappe

pas à

1 '

historicité : il ne constitue pas, au-dessus des événements , et

dans un ciei

qui

ne

bougerait

pas, une structure

intemporelle;

il se définit comme 1'ensemble des

régies

qui

caractérisent une pra

tique

discursive: or ces

régies

ne s '

imposent

pas de l'extérieur aux éléments

qu'elles

mettent en

relation;

elles sont

engagées

(24)

dans cela même

qu'elles

relient; et si elles ne se modifient pas avec le moindre d 'entre eux , elles les

modifient,

et se

transforment avec eux en certains seuils décisifs. L'a

priori

des

positivités

n'est pas seulement le

système

d'une

disper

-sion

temporelle;

il est lui-même un ensemble transformable "

(Foucault, 1969:168).

Sem

pretender

descrever até à exaustão as

implicações

do mode lo,

importa

no entanto,

explicitar

um

conjunto

de

noções

que este

fragmento

indirectamente convoca, nomeadamente, as que

permitem

empreender,

a partir

dele,

um delicado trabalho de

ligação

entre uma

arqueologia,

entendida como uma análise das

formas e dos sistemas de

exclusão,

de

limitação

e de

apropria

ção

de discurso, que tornam

possível

a

realização

efectiva de um determinado enunciado em detrimento de outros, e uma genea

logia,

entendida como uma análise dos processos de

formação

do

discurso,

formação

essa, como

se

disse,

descontínua e regu lar (Foucault, 1971a:62 e sg . ) . Assim, e deste corpo de no

-ções,

destacaria,

em

primeiro

lugar,

o par

regularidade

do

e-nunciado/regra

de

formação

do discurso,

que, sobre ele as senta, em

grande

parte, a dimensão

"positiva"

do modelo.

* * * *

Já atrás se referiu a

pertinência

da

questão

da

regularidade,

face à

aporia

da

originalidade

do discurso. A materialida

(25)

ele é

repetição

(Deleuze,

1986:22),

porque o seu comporta mento não lhe advém de um contexto ou de um "sentido" mas de

um interior, quer

dizer,

daquilo

que o faz coisa

singular

e ú

nica,

sem semelhança ou

equivalência

(Deleuze,

1972:7). A des

crição

arqueológica

não toma por

objecto

a

invenção,

nem olha o campo do acontecimento enunciativo como um

plano

fendido por

um

qualquer

meridiano das

origens,

repartido,

portanto, entre os enunciados que estariam do lado da

criação

e os que esta

-riam do lado da

imitação

(Foucault,

1969:189). Toda a

origem.

é

imitação

de

"qualquer

coisa" como toda a

imitação

insere ve

em si mesma a

origem

de uma

singularidade,

de uma "voz"

particular;

a

perspectiva

arqueológica

da história é

insepa

rável de um

pensamento

da série , ou de uma forma

serial,

como

distribuição

e

arranjo

do discurso.

Infere-se deste

conjunto

de

proposições

que a

regularidade

de

que fala

Foucault,

e que ele

próprio

propõe

como

objecto

de u ma

arqueologia,

não diz directamente

respeito

à natureza do

enunciado,

à sua diferença ou desvio em

relação

a uma norma interorizada

pela

trama histórica ou

pelo

campo de

utilização

no

qual

circula, mas,

pelo

contrário,

tem que ver com as cir cunstâncias que

possibilitam

e

exigem

a sua

aparição

em cer

-tos pontos

singulares

da

superfície

enunciativa, atravessan

-do,

diagonalmente,

a espessura das diferentes

formações

dis

-cursivas.

Compreende-se

assim que, ao falar da análise enun

ciativa, Foucault chame continuamente a

atenção

para esta

dis_

sociação

fundamental do enunciado e da

enunciação,

para esta

(26)

leur sommeil actuei por retrouver, en incantant marques core lisibles à leur surface, l'éclair de leur naissance; il

s'agit

au contraire de les suivre au

long

de leur

sommeil,

ou

plutôt

de lever les thèmes

apparantés

du

sommeil,

de

l'oubli,

de

l'origine

perdue

, et de rechercher

quel

mode d'existence

peut caractériser les

énoncés,

indépendarnment

de leur

énoncia_

tion,

dans

l'épaisseur

du temps ou ils

subsistent,

ou ils sont

conserves,

ou ils sont ré"activés et

utilisés,

ou ils sont aus

si,

mais non par une destination

originaire,

oubliés,

éven

tuellement même détruits"

(Foucault,

1969:162).

A forma da

regularidade

enunciativa não é assim a de uma cur

va

estatística,

capaz de metronomizar a

frequência

das

apari

ções,

mas a de uma curva-f orça ,

activa,

ligando

entre si cer

tos pontos

singulares

(numa

perspectiva,

porventura

mais

radi^

cal,

poder-se-ia

dizer, com

Deleuze,

que não há enunciado fo

ra da

regularidade,

sendo a forma do enunciado a forma da re

gularidade,

isto

é,

a curva

ligando

os pontos

singulares,

as

emergências,

que não seriam assim mais do que a

vizinhança

i-mediata do enunciado sem,

precisamente,

o serem (Deleuze

,1986:

:85-86) :

"Que tout soit

toujours

dit,

à

chaque

époque"

(Deleuze,

1986:

(27)

cault, talvez também a sua maior

"positividade";

nada há a pro curar porque nada está escondido, todos os enunciados estão

aí,

à

vista,

e só esses, nesse

grande

teatro que é tarefa do

arqueó

logo

descrever. "Derrière le

rideau,

il n'y a rien à

voir",

se

não exactamente o pano, o suporte, o tecido das

relações

onde a ordem do discurso se tece, encontrando na

regularização

do enun ciado o

primeiro

princípio

de

constituição

dos

trajectos

e dos momentos de

dispersão,

de cruzamento, de

ramificação,

de vizi

-nhança

e de

estabilização

das séries e das modalidades enuncia tivas.

Vê-se assim como o conceito de

regularidade

enunciativa

permite

dar conta,

pela

dispersão

do campo

enunciativo,

de um certo nú mero de

correlações,

de co-presenças entre enunciados,

ligados

entre si

pela

transversalidade de uma ordem do discurso, por um

tipo

de

homogeneidade

que não se reduz a uma

simples

analogia

linguística

nem a nenhuma forma de identidade

lógica

ou temáti

ca, mas que agrupa, sob uma mesma

repartição

do discurso, um

campo de

possibilidades estratégicas

materializado num

tipo

de terminado de

relações

discursivas (15). A estas

concentrações

e

nunciativas dará Foucault o nome de

formações

discursivas (Fou cault,

1969:53),

sendo,

justamente,

no seio delas que se tor

-na

possível

detectar um conjunto de regras

-regras de forma

-ção

-gue

correspondem,

precisamente,

às

condições

de existên

-cia e de

coexistência,

de

perenidade

ou de

transformação

de uma

determinada

repartição

do discurso. Às regras da

formação

cum

(28)

dentro de uma mesma

repartição

discursiva,

dos

objectos,

das mo dalidades de

enunciação,

dos conceitos e das escolhas temáticas.

Assumindo assim a

primitividade

da f

unção-enunciado,

como diz De leuze

(Deleuze,

1986:18),

Foucault funda uma nova

pragmática,

pa

ra a

qual

tanto o referente como a

função

e o

sujeito

de enuncia

ção

mais não são do que "derivados" do

enunciado,

no sentido de variáveis intrínsecas (de

posições)

(Deleuze,

1986:16)

e de ne

nhum modo exteriores: "Les

énoncés

de Foucault sont comme des rê ves: chacun a son

objet,

ou s'entoure d'un monde"

(Deleuze,

1986:

:17) .

0 conceito de regra da

formação

reenvia deste modo para a nature za do discurso

enquanto

bem raro e relativamente

estável,

para essa lei de

pobreza

que Foucault refere numa passagem conheci da da

Archéologie

du

savoir,

na

sequência,

aliás,

de uma rude

crítica às analíticas tradicionais do discurso:

"Interprêter

,c'

est

une manière de

reagir

â la

pauvreté

énonciative et de la compen-ser par la

multiplication

du sens; une manière de

parler

à par

tir d'elle et

malgré

elle. Mais

analyser

une formation discursi

ve c'est chercher la loi de cette

pauvreté,

c'est en

prendre

la mesure et en dêterminer la forme

spécifigue.

Cest donc , en un

sens, peser le "volume des énoncés"

(Foucault,

1969:158).

(29)

enunciado dessa lei fundamental de

pobreza,

de raridade que per

corre

páginas

essenciais ca

Archéologie

du savoir e que

organiza

toda a

estratégia

discursiva cesse texto

exemplar

que

é

L'Ordre du discours. Todo o enunciado é

deficitário

em

relação

a um cam

po de

possíveis

que a sua

realização

vem suturar e, de

alguma

ma

neira, obliterar (teremos

ocasião

de ver como, no caso do enun

-ciado

fílmico,

esta lei de

pobreza

assumiu

dimensões

absolutamen

te catastróficas) . Se as regras da

formação, permitem

a

produção

do discurso,

pela

fixação

dos seus

objectos,

dos seus conceitos, das suas modalidades de

enunciação,

das suas

estratégias

enuncia

tivas, elas definem, simultaneamente, o seu isolamento em rela

-ção

a um campo do

dizível

jamais

dito, a sua

territorialização

mais

ou menos

despótica:

"Tout se passe comme si des

interdits,

des

barrages,

des seuils et des limites avaient été

disposés

de roa

-nière que soit

maítrisée,

au moins en

partie,

la

grande

prolifé-ration du discours, de

manière

que sa richesse soit

allegée

de sa

part

la

plus dangereuse

et que son disordre soit

organisée

se

lon des

figures qui esquivent

la

plus

incontrôlable;

tout se pas

se comme si on avait voulu l'effacer

jusqu'au

marques de son

ir-ruption

dans les

jeux

de la

pensée

et de la

langue"

(Foucault, 1971a:52) .

Toda a

prática

discursiva é uma

prática

de cesura, de corte, so

bre um campo

potencial

de

utilização

do discurso; da mesma for ma, ao horizonte de toda a

prática

discursiva

subjaz

um

complexo

jogo

de cache/cadre em que cada enunciado

possível

denuncia a im

possibilidade

de muitos outros. Regra da

formação

é

aqui

um con

(30)

ceito-chave que, ao lado do de

regularidade

enunciativa,

configu

ra e torna

perceptível

os limites e as formas de

estabilização

de uma determinada

formação

discursiva.

En L'Ordre du discours , Foucault enumera e descreve um extenso

catálogo

de oráticas que

permitem

uma

vigilância

social sobre a

produção

do discurso, através de processos de controle, de selec

ção,

de

organização

e de

redistribuição

(Foucault, 1971a : 12-52) .

Das

práticas

de

exclusão,

rejeição

e

repartição

(de que se desta

cam a

palavra

interdita, o

princípio

de

racionalidade,

a vontade de

verdade,

a que se

opõe

a vontade de saber) aos processos in

-ternos de

delimitação

do discurso (o

comentário,

o autor, as dis

ciplinas)

,

passando pela

regulamentação

dos

seus modos de apro

-priação

(como a

educação

e, de uma forma mais

geral,

todos os

processos tendentes ã

rarefacção

dos

sujeitos

falantes como, por

exemplo,

a

manutenção

de um

domínio

reservado do

segredo

técnico

-científico,

etc), toda uma

grande

instalação prescritiva

con

-corre para a elisão da realidade do discurso, para a subordina

ção

da sua materialidade

incontrolável

e aleatória ao

despotismo

de uma instância do

significante

que o faz passar (ao discurso ) por um

simples

revestimento do

pensamento,

pela

emergência

pon

-tual de um mistério mais

profundo

e obscuro que se acredita ain da ser o

enigma

de todo o sentido: "Que ce soit donc dans une

philosophie

du

sujet

fondateur, dans une

philosophie

de

l'expé

(31)

diation, le discours n'est rien

plus

qu ' un

jeu

d'écriture

dans le

premier

cas, de lecture dans le

second,

d'échar.ge

dans le troi

sième,

et cet

échange,

cette lecture, cette écriture r.e mettent

jamais

en

jeu

que les

signes.

Le discours s'annule

ainsi,

dans sa

réalité,

en se mettant ã 1 ' ordre du

signifiant"

(Foucault,

1971a:51) .

0 controle, a todo o preço, da livre

proliferação

do discurso(de

alguma

forma reside

aqui

o

princípio

verdadeiramente

democrático

de Foucault, a sua mais radical

exigência

de liberdade) , arriman

do-o a um faldo

logocentrismo

fundador, a essas

"maquinas

semió ticas" eme Deleuze e Guatarri descrevem, a

propósito

da natureza indirecta de todo o enunciado (Deleuze e Guatarri, 1930:106 e

sq.),

define para Foucault o fundamento de toda a ordem do dis

-curso, a

estabilização

de um corpo de regras

emergentes

da dis

-persão própria

ao campo enunciativo, e

cuja

natureza

prescritiva

permite,

a cada momento, a

selecção

e

rarefação

de um enuncia

-do

não

possível

mas real e, por isso mesmo,

legítimo.

Regularidade

enunciativa e regra da

formação

discursiva são as

-sim dois dos mais

importantes

conceitos

operatórios

da interven

ção

de Foucault sobre o

domínio

do saber. Não

esgotando,

nem res

pondendo

inteiramente às

exigências

de um modelo

cuja riqueza

me

todolõgica

e filosófica os supera

(fazendo,

por

isso,

apelo

a um corpo muito mais vasto de conceitos e

noções)

eles

permitem,

no

(32)

tal,

irredutível,

por isso mesmo, tanto a uma

formalização,

co

mo

interrogação

de um

não-dito,

como a uma

interpretação,

como teoria de um sobre-dito, uma e outra

práticas

deixando escapar, no intervalo, a realidade de um dito, a sua

positividade,

isto

é,

o enunciado.

Como

atrás se disse, e apesar desta

aparência diagramática

,

jamais

do modelo foucaultiano esteve arredada a

questão

da his

tória,

a historicidade do

enunciado,

a sua

inscrição

positiva

numa história das formas

cuja

temporalidade

nao é a de um devir

contínuo e linear mas a de uma descontinuidade abissal onde o tempo se escoa, se cumula e renova. 0

tempo

foucaultiano é um

tempo

local,

particular,

impossível

de subordinar aos meridia

-nos de uma

história

global,

em que

regularidade

é sinónimo de

continuidade,

em que o tempo obedece às leis de uma

cronologia

abstractae externa,

perante

a

qual

o acontecimento cumpre ape -nas a

função

de evidência material e instantânea de um fundo

mais desconhecido e determinante. Ê

justamente

em torno de um

segundo

par de conceitos - o de

proveniência

/transformação

-que a

estratégia

foucaultiana se

organiza

e incurva, no sentido de transportar para a

prática

c para os usos da

história

o

jogo

i-ninterrupto

de uma diferença, o

grão

revolucionário do

aconteqi

(33)

mento e da

multiplicidade,

o

arquivo:

"Entre la

langue,

que défi nit le

système

de construoticr. des

paroles possibles,

et le cor

-pus

cui recueille

passivemente

les

paroles prononcées,

1

'

archi

-ve définit un niveau

particulier:

celui d'une

pratique qui

fait surgir une mu

ltiolicitéd'ér.cr.ccs

ccmmeautar.t d'evenements regu-iers, cerme autant de choses offertes au traitenent et ã la

manipulation"

(Fou cault, 1969:171).

Se a

questão

da

proveniência

parece percorrer toda a obra de Fou cault, r.a sua dimensão mais

deceptiva,

quer

dizer,

enquanto

opos

ta ã

noção

de

originalidade

(e repare-se como ao conceito de ori

ginalidade

se vêm

contrapor,

por razões

distintas,

dois outros con ceitos: o de

banalidade,

no

plano

de uma ocorrência como vimos ,

e o de

proveniência,

no

plano

de uma

"decorrência",

ceno iremos ver) , é no texto crucial sobre a

genealogia

- "Nietzsche, la

gc

-ne"alogie,

1'histoire"

-que a

questão

sofre um tratamento mais

positivo,

cue é também este o texto em que Foucault mais se

a-proxima

da

elaboração

e do

questionamento

de uma

meta-cartograf

ia dos começos.

Sabe-se como Foucault,na

apropriação

que faz do percurso nietz

-schiano,

prefere

os termos de

proveniência

(Harkunft) e

emergên

cia

(Enstehung)

ao uso

impreciso

do termo de Ursprung, na defini

ção

do

objecto

da

genealogia.

São várias as razões e, por isso, estão exaustivamente

expostas

no

artigo

(Foucault, 1971b:45-150) ;

(34)

des

linhagens

teleológicas

cu à

reconstrução

de um

grande

para

digma

das

significações

escondidas

pelo

tempo, em suma, à

reifi-cação

da identidade de um

sujeito

que fala a história

pelo

fil

-tro de um

"presentisme"

historiográfico

"qui

ne sort pas de sa si tuation

herméneutique

initiale et

qui

ne vise

qu'à

garantir,

par soin de

stabilité,

une

identité

depuis longtemps

éclatée" (Haber mas, 1985:79).

Ao

milagre

de uma

origem

esquecida,

sobre a

qual

assenta a espe rança de restabelecimento de uma continuidade da história e de re

construção

de uma coerência

perdida,

opõe

o

genealogista

a reali

dade de um começo

problemático

e

instável,

que não conheceoutra lei se não a do acidente e do acaso: "Ce

qu'on

trouve au commence

-ment

historique

des choses, ce n'est pas 1

'

identité

encore

pré

-servée de leur

origine,

- c'est le discordre des autres chosee ,

c'est le

disparate"

(Foucault, 1971b:148).

Proveniência e

emergência

permitem justamente rejeitar

a

metafí

sica de uma presença

original

distante do

plano

das coisas

(17)

,

um limbo de onde tudo vem e para onde tudo

inapelavelmente

tor nará. No

lugar

desta

origem

misteriosa e única vem colocar --se uma multidão de começos, uma

dispersão

inumerável

de traços, de pequenos e

grandes

acidentes, erros,

contradições.

Designan

do esta

heterogeinidade

essencial, o conceito de

proveniência

vem

(35)

substituir,

ao mito

retrospectivo

de uma unidade

perdida,

a ima gem de um espaço inicial fendido por uma

pluralidade

de dissen

-soes e

antagonismos,

uma trama de onde apenas

é

possível

detec

-tar a presença de certos grupos, de certas famílias ou

clãs, cuja

consistência advém de uma maior estabilidade de certos traços

que, no seu cruzamento com outros, dão

origem

aura

sujeito,

a um

discurso,

profundamente

atravessado por correntes das mais dis

-tantes

proveniências.

Como se

vê,

proveniência

designa

aqui

a

mestiçagem

de toda a

origem,

em

oposição,

portanto,

ã brancura de um acto de

criação

absoluto, único e indivisível: "La

v~eche£

che de la provenance ne íonde pas, tout au contraire: elle in

quiete

cc

qu'on

percevait

immobile,

elle

fragmente

ce

qu'ont

pen sait uni; elle montre 1 '

heterogeinité

de ce qu ' on

imaginait

con forme à soi-même"

(Foucault,

1971b:153). Se absoluto há na his tória das

coisas,

esse absoluto é o de uma

relação,

de uma combi.

natória,

de um

equilíbrio

de

forças

que se

sobrepõem,

no seio de uma

heterogeinidade

mais fundamental e determinante; é a última característica da

proveniência,

na sua dimensão porventura mais

física e

material,

que toma o corpo como

lugar

da sua

realização

e

inscrição:

"Le corps, surface d

'

inscription

des événements (a lors que le

langage

le marque et les idées le dissolve ) ,

lieu de dissociation du Moi

(auquel

essaie de

prêter

la chimère d'une unité substantielle) , volume en

perpetuei

éffritement" (Fou

cault, 1971b:154). Enquanto análise da

proveniência,

a

genealo

gia

não

pode

então deixar de articular o corpo e a

história,

de mostrar, como diz Foucault, um corpo

integralmente impresso

pela

história,

arruinado por ela. Se o conceito de

proveniência

def_i

(36)

ne assim a

multiplicidade

de

forças

em presença, os seus pontos de cruzamento e de

equilíbrio,

a precar idade das

sobreposições,

o conceito de

emergência

designa

a

singularidade

de uma

apari

-ção,

a eclosão intersticial de uma

força,

"l'entrée em scène des forces; leur

irrupcion"

(Foucault,

1971b:156),

o ponto de visi

bilidade improvável

de um afrontamento sem outro

lugar

que não o

do

diagrama

e da

abstracção.

A análise da

emergência

e da

proveniência

responde

assim,

intei ramente, ao

projecto

genealógico

de

desestruturação

das

práticas

e dos saberes da história tradicional. Onde esta

imaginou

a e-xistência de um

princípio

de

verdade,

de coerência e de unidade,

na demanda de uma

origem

encoberta

pelos

sedimentos do

tempo,

aquela

a

proliferação,

cada vez

maior,

dos erros e das dissensões e, em todo o caso, a

impossibilidade

de

reconstituição

de

qual

-quer gesto criador de onde as coisas teriam

germinado

na sua pu

reza e

inequívoca

identidade. Onde a história

pressupôs

um

prin

cípio

geral

de racionalidade,

presidindo

ao ordenamento linear dos

fenómenos,

vem a

genealogia

descobrir um mundo de pequenas verdades, uma infindável

população

de

objectos,

de

poeiras

até aí

invisíveis,

cujo

aparecimento

e

distribuição

se devem menos a

um

projecto

de

coerência,

do que à violência dos acasos, afinal a mais

provável

de todas as razões.

Finalmente,

onde a história tradicional procura, por um trabalho em

profundidade,

chegar

ao

(37)

seu momento de

insuspeita inocência,

vê a

genealogia,

nos efei

tos de

superfície,

a única verdade das

coisas,

que é a de per

-tencerem a um espaço

contaminado,

onde apenas as famílias e as

redes

permiter.

a

formação

de certos

agrupamentos,

dos

quais

qual

quer

significação

mais exterior ou interior se encontra

irredu-tivelmente arredada.

A

ruptura

genealógica

é

uma

ruptura

com a

memória,

em tudo o que nesta manifesta um obscuro

desejo

de

reconhecimento,

no es

pelho atemporal

da

história,

de uma identidade há muito

perdi

-da. A esta memória das coisas, substitui a

genealogia

a acuida de de um olhar mais

preciso,

quer dizer, menos

míope,

capaz de ver as coisas mais de

perto

e de lhes

suportar

a infinita divi

sibilidade,

a obscena

fragmentação

que apenas um

gesto

de

pudor

(ia dizer

poder)

ainda esconde.

"L'histoire,

généalogiquement

dirigée,

n'a pas pour fin de retrouver les racines de notre i

-dentité , mais de s'acharner au contraire à la

dissiper;

elle

n'entreprend

pas de

répérer

lo

foyer unique

d

'

cu nous venons ,

cette

première

patrie

oú les

métaphysiciens

nous

promettent

que nous ferons retour, elle

entreprend

de faire apparaitre tou tes les

discontinuités

qui

nous traversent" (Foucault, 1971b) :

: 169) .

* * * *

Um último mas decisivo conceito para a dinâmica do modelo é o de

transformação

e, correlativamente, o de

ruptura,

que Fou

Referências

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