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Do livro à tela: Carlo Collodi, Paula Rego e a terra da brincadeira

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 256

DO LIVRO À TELA: CARLO COLLODI,

PAULA REGO E A TERRA DA

BRINCADEIRA

From the book to the canvas:

Carlo Collodi, Paula Rego and the Land of Toys

Alberto Filipe Araújo

Universidade do Minho

Joaquim Machado de Araújo

Universidade Católica Portuguesa

Resumo: N’As Aventuras de Pinóquio, Carlo Collodi conta a

passagem de Pinóquio pela Terra da Brincadeira que é recriada por Paula Rego na tela Island of ligths from Pinocchio (1996), utilizando as imagens da criança e do asno e suas variações.Neste artigo comparamos as perspetivas do autor do texto verbal e da sua leitora-pintora, fazendo uma leitura mítico-simbólica das imagens obsessivas da tela, e mostramos que, pondo em evidência uma interpretação da Terra da Brincadeira como ilha das trevas, sucedâneo do próprio Inferno, Paula Rego fixa na tela a perspetiva dominante do narrador do texto verbal, isto é, a dimensão distópica do sonho infantil do folgar contínuo, enquanto expressão da natureza e não da cultura, onde o seu destino teria que passar pela escola.

Palavras-chave: Utopia. Literatura. Pintura. Simbolismo.

Abstract: In The Adventures of Pinocchio, Carlo Collodi tells the passing through of Pinocchio by the Land of Playing that is drawn by Paula Rego in the painting Island of Lights from Pinocchio (1996), using images of children and of the donkey and respective variations.In this article, the authors compare the perspectives of the verbal text author and of her reader-painter. A mythical and symbolic reading of obsessive images of the canvas is made. Paula Rego puts the stress on the interpretation of the Land of Playing understood as an island of darkness, as hell. This painter stresses on the canvas the dominant perspective of the narrator of the verbal text, i.e. the dystopian dimension of a child’s dream of a continuous rest, seen as an expression of the nature and not of the culture, in which his faith would have to include school attendance.

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Introdução

N’As Aventuras de Pinóquio, Carlo Collodi conta a passagem de Pinóquio pela Terra da Brincadeira, atribuindo-lhe caraterísticas que lhe emprestam o modo utópico (Raymond Ruyer) e um caráter de vertigem (Roger Caillois) que acabam por transformar a personagem em asno, ele mesmo transformado em expressão do lado negativo da utopia.

A tradução portuguesa de 2004 ilustra esta narrativa com a tela Island of ligths from Pinocchio de Paula Rego (1996). O choque emotivo suscitado pelo texto deu lugar, sob um impulso criador, a uma criação fulgurante e mítica em que o tratamento pictural da narrativa não deixa de interpelar o espetador mexendo com o seu imaginário infantil e com a criança que nele habita.

Neste artigo comparamos as perspetivas do autor do texto verbal e da sua leitora-pintora, fazendo uma leitura mítico-simbólica das imagens obsessivas da tela, as imagens da criança e do asno e suas variações, e mostramos que, pondo em evidência uma interpretação da Terra da Brincadeira como ilha das trevas, sucedâneo do próprio Inferno, Paula Rego fixa na tela a perspetiva dominante do narrador do texto verbal, isto é, a dimensão distópica do sonho infantil do folgar contínuo, enquanto expressão da natureza e não da cultura, onde o seu destino teria que passar pela escola.

A “Terra da Brincadeira” como utopia do folgar contínuo

Conta Collodi que Pinóquio deixando a Fada vai passear pela cidade e encontra Palito, o seu amigo predileto que é “o miúdo mais preguiçoso e o mais travesso da escola toda” (2004, p. 146). Este propõe-lhe abraçar um sonho, uma utopia: que fosse morar com ele “na melhor terra deste mundo: uma verdadeira maravilha!” (COLLODI,2004, p. 147) chamada “Terra da Brincadeira” onde a vida é uma permanente festa:

Lá não há escolas, não há professores, não existem livros. Naquela bendita terra nunca se estuda. Ao sábado não há escola, e as semanas lá compõem-se de seis sábados e um domingo. Imagina tu que as férias de Verão começam no primeiro dia de Janeiro e terminam no último de Dezembro. […] [Lá os dias] Passam-se a brincar e a divertir-se de manhã à noite. Quando é noite vai-se para a cama, e na manhã seguinte começa-se a brincar outra vez (COLLODI, 2004, p. 147).

As virtudes mágicas de uma Terra tão maravilhosa lembram-nos o País das Maravilhas de Alice. Ao ouvir Palito tão entusiasmado a falar destas virtudes, Pinóquio não só foi retardando a sua volta a casa da Fada como foi amolecendo a recusa de acompanhar o seu amigo: “É uma vida

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 258 que eu também faria de boa vontade!” (COLLODI, 2004, p. 147); “- Que beleza de terra! Eu nunca lá estive mas imagino como é!” (COLLODI,2004, p. 149); “Que beleza de terra!... que beleza de terra!... oh! Mas que beleza de terra!” (COLLODI, 2004, p. 150). A Terra da Brincadeira e o fascínio que ela exerce sobre quem ouve o que lá se passa e o modo como lá se vive cruza-se com uma das caraterísticas centrais das utopias: “Um dos processos utópicos mais fáceis e mais elementares, que joga frequentemente quase só nas utopias mais primitivas, e que de facto nunca falta, é a inversão pura e simples da realidade. É evidentemente a experiência mental mais fácil” (RUYER, 1988, p. 49). O sucesso da apresentação do “novo” mundo como a cópia invertida do mundo em que o utopista vive e do qual aspira sair não advém, contudo, apenas da sua simplicidade, mas também porque

corresponde ao ressentimento oculto sob o desejo de poder do utopista, e ao negativismo do intelectual e do especulativo. (…) Face às imperfeições da realidade, a reflexão menos cansativa para a inteligência, e aquela que consola melhor o sentimento, é dizer-se que tudo iria melhor se se pusesse tudo ao contrário (RUYER, 1988, p. 50).

Outra característica utópica é o eudemonismo coletivo, visto que as crianças passam os dias na Terra da Brincadeira “a brincar e a divertir-se de manhã à noite. Quando é noite vai-se para a cama, e na manhã seguinte começa-se a brincar outra vez” (Collodi, 2004: 147). O apelo à felicidade é permanente e intenso: “Vem daí connosco e viveremos todos felizes! (…) Ninguém podia estar mais feliz e contente do que eles”, como apelam Palito e as vozes dos passageiros da carruagem que os conduz para o mundo da utopia (COLLODI, 2004: 152-153, 156). Na verdade, a moral do utopista “apela ao que de mais elevado há na natureza humana”, sem apelar a uma moral heroica ou a uma moral religiosa de salvação (mais própria dos profetas, dos fanáticos, dos apaixonados), e sonha apenas com a felicidade: “um mundo utópico, com instituições perfeitas, não tem necessidade nem do heroísmo na sua moral, nem do salvador na sua religião” (RUYER, 1988, p. 52).

A terceira característica da Terra da Brincadeira é a de que nela não há limitação da liberdade de brincar: “Vamos para uma terra onde ninguém nos impedirá de brincar de manhã à noite”. Este é, de facto, o argumento mais convincente para Pinóquio: “Façam lugar para mim; também quero ir” (COLLODI, 2004, p. 153). O fascínio que Pinóquio tem pela brincadeira é superior à sua consciência do dever de estudar, de ser bom aluno à semelhança de qualquer rapaz bem-comportado, enfim, da promessa que fez à Fada, pois o fascínio lúdico mora dentro de nós e apela à transgressão das regras e da conformidade, apela à rutura com o profano na linha do célebre imperativo que Gargântua estabelecera na Abadia de Thelemapara os seus habitantes de

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 259 elite: Fais ce que vous voudra, “Faz o que quiseres”. Com a certeza de que cada um apenas dirá: “Joguemos” e todos jogam; ou “Brinquemos” e todos brincam (RABELAIS, 1987, p. 215).

A Terra da Brincadeira insere-se mais naquelas utopias que, ao contrário das utopias minuciosas, quase que dispensam as instituições (RUYER, 1988, p. 76) ou, no mínimo, faz dos jogos, dos divertimentos e das brincadeiras as próprias instituições utópicas. Sendo uma terra que “não se parecia com nenhuma outra terra do mundo” (COLLODI, 2004, p. 155), era uma grande e imensa ludoteca, uma brincolândia só habitada por miúdos entre os 8 e os 14 anos alegres, barulhentos:

[Uns] jogavam às pedrinhas, outros à malha e outros à bola; alguns andavam de bicicleta e outros num cavalinho de madeira; havia quem jogasse à cabra-cega e também a apanha, enquanto outros, vestidos de palhaços, comiam fogo; alguns representavam, outros cantavam e outros davam saltos mortais e outros ainda divertiam-se a andar com as mãos no chão e as pernas para o ar; enquanto uns jogavam ao arco, outros passeavam vestidos de generais com um elmo de lata e uma espada de papelão; ria-se, gritava-se, chamava-se, batia-se palmas, assobiava-se, imitava-se o cacarejar das galinhas quando acabam de pôr o ovo (COLLODI, 2004, p.155-156).

No meio de tantos divertimentos e de tantos folguedos, e à medida que o tempo voava, os dois amigos mergulharam num eterno presente lúdico (um tempo sagrado, diria Mircea Eliade) e, nessa espécie de espaço sagrado, os dois amigos como que renasciam para uma nova existência que eles iriam viver num estado de plenitude. Chegados à Terra da Brincadeira felizes e em êxtase, “meteram-se logo no meio da balbúrdia, e em poucos minutos, como é fácil de imaginar, tornaram-se amigos de todos. Ninguém podia estar mais feliz e contente do que eles”

(COLLODI, 2004, p. 156). Era a felicidade total: “Entre contínuos folguedos e divertimentos

vários, as horas, os dias e as semanas passavam sem se dar por isso” (COLLODI, 2004, p. 156). E,assim, durante cinco meses foi “aquela maravilha de brincarem e se divertirem os dias inteiros, sem verem à sua frente nem um livro, nem uma escola [nem um professor]” (COLLODI, 2004, p. 157), nem o pai, nem a mãe, … nem qualquer um que pusesse entraves ao contínuo folgar e à felicidade total.

O asno como expressão do lado negativo da utopia

Como diz Roger Caillois, “a perturbação provocada pela vertigem é procurada como fim em si mesma, muito frequentemente” (1990, p. 43) e, deste modo, no quadro lúdico descrito, em que já passavam cinco meses, a brincadeira assumia um fim em si mesma, desfazendo a realidade

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 260 escolar com tudo aquilo que a mesma acarretava de obrigação, de perda de tempo, de constrangimento, de sacrifício, de sofrimento, de cumprimento das normas: “viva a bincadera!”, “acabaram-se as xecolas”, “abaixo arinte mética” – lia-se nas paredes das casas (COLLODI, 2004, p. 156). Este ambiente frenético (algazarra, agitação e risada) e pleno de alegria no qual vivia toda esta sociedade infantil era animado por uma das categorias fundamentais do jogo que Roger Caillois designou de “ilinx” (vertigem, turbilhão):

Um último tipo de jogos associa aqueles que assentam na busca da vertigem e que consistem numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da perceção e infligir à consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico. Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão (CAILLOIS, 1990, p. 43).

O ambiente era de exaltação permanente e “o pandemónio, o chilreio e a algazarra endiabrada” eram de tal ordem “que era preciso meter algodão nos ouvidos para não ficar surdo” (COLLODI, 2004, p. 156). A maior parte das brincadeiras, especialmente aquelas que implicam movimentos mais ou mesmos acelerados, exprimem normalmente um desejo pela desordem e pela destruição; bem como a atração pela velocidade e pelas acrobacias geradoras de um prazer que inebria voluptuosamente quer a criança, quer o adulto deixando-as num estado eufórico.

Contudo, depois de cinco meses passados na Terra da Brincadeira (qual Jardim das Delícias!), mergulhado num dolce fare niente (o princípio de prazer freudiano), Pinóquio experiencia o lado negativo da utopia sonhada. Ele sente que lhe nasce “um magnífico par de orelhas de burro” (COLLODI, 2004, p. 159) e confronta-se agora com a dramática realidade de metamorfosear-se lentamente num asno: num primeiro momento, crescem-lhe as orelhase, de seguida, passa a ser um burrinho autêntico (COLLODI, 2004, p. 159-166).

Quando uma manhã ao acordar Pinóquio teve, como se costuma dizer, uma má surpresa que o deixou mesmo de mau humor. (…) Deu-se conta, com o maior dos espantos, de que as orelhas lhe tinham crescido mais de um palmo. (…) Portanto, imaginem como ele ficou quando sentiu que as orelhas durante a noite lhe tinham crescido tanto que até pareciam dois abanos. (…) e mirando-se nela [na bacia do lavatório] viu aquilo que desejaria nunca ter visto: ou seja, viu a sua imagem enfeitada com um magnífico par de orelhas de burro (COLLODI, 2004, p. 159).

As “orelhas de burro” de Pinóquio são, desde logo, o primeiro sinal da sua transformação em asno pelo facto de ele ter desobedecido à Fada (símbolo dos poderes paranormais do espírito, encarna os princípios benéficos da imaginação e da ação e do próprio Apolo) e ter cedido ao convite de Palito (simbolizando a inconsciência, o devaneio, a Sombra diria Jung os instintos arrebatados e do próprio deus Pã) para o acompanhar na sua viagem para a Terra da Brincadeira

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 261 que era a “melhor terra deste mundo: uma verdadeira maravilha! (COLLODI, 2004, p. 147). E assim, estava dado o sinal de partida para que Pinóquio, recusando a oportunidade que a Fada lhe dava de transformar-se num “rapaz bem-comportado” e “como deve ser”, se viesse a metamorfosear, à semelhança de Lucius de Apuleio, num asno:

Daqui a duas ou três horas passarás a ser um burrinho de verdade, como aqueles que puxam as carroças e levam as couves e as alfaces para o mercado. (…). Palito de repente ficou imóvel e, cambaleando e mudando de cor, disse ao amigo: Acode-me, Pinóquio, acode-me! O que tens? Ai de mim, não consigo aguentar-me das pernas. Também eu não consigo – gritou Pinóquio, chorando e cambaleando. E enquanto assim diziam, inclinaram-se os dois para o chão e, apoiando-se nos pés e nas mãos, começaram a dar voltas e a correr pela casa. E enquanto corriam os braços transformaram-se em patas, os rostos alongaram-se e transformaram-se em focinhos, e as costas cobriram-se de uma pelagem acinzentada com manchas pretas. Mas o momento mais penoso para os dois desgraçados, sabem qual foi? O momento mais penoso e mais humilhante foi quando sentiram que lhes estava a nascer a cauda. Vencidos pela vergonha e pelo desgosto, começaram a chorar e a lamentar-se do seu destino (COLLODI, 2004, p. 160 e 166).

A Terra da Brincadeira como ilha das trevas

O capítulo da obra de Carlo Collodi funcionou como uma espécie de estimulante particularmente fecundo para que Paula Rego o lesse e traduzisse à luz do seu estilo imagético, fixando a sua visão e interpretação da Terra da Brincadeira na tela Island of lights from Pinocchio.

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 262 As imagens obsessivas patentes nesta tela são as do asno e da criança nas suas diferentes variações. Estas imagens merecem uma interpretação mítico-simbólica, pois só esta interpretação nos pode oferecer o sentido de fundo complexo que a tela oferece latentemente, sabendo que “a pintura de Paula Rego é um vórtice, um carrossel que a cada volta mostra um rosto mais deformado que o precedente…” (PETRI, 2004, p. 161).

Assim, nesta secção, sintetizamos primeiro a simbólica das imagens do asno e da criança e, de seguida, debruçamo-nos, somente a título de exemplo, nas quatro imagens presentes mais expressivas dos pontos de vista mítico e simbólico: a imagem da meia criança, meio cavalo (centauro que figura ao centro da tela); as imagens da criança com orelhas de burro que muito se assemelha à do lobisomem (parte esquerda da tela) e da criança com cabeça de burro (parte esquerda da tela); e a imagem que representa um asno erguendo uma criança aparentemente inanimada (parte central da tela ao fundo).

- A imagem do asno

De acordo com a classificação isotópica das imagens de Gilbert Durand, o asno pertence ao regime noturno com as suas estruturas místicas – é um símbolo das trevas (FERRÃO, 2000, p.163-173) –, mas também pertence, devido à sua relação isomórfica com o cavalo, ao regime diurno com as suas estruturas heroicas – é um símbolo da luz (2000: 174-177). O asno aparece na tela no seu sentido mais material, não se vislumbrando o menor aspeto espiritual que a tradição cristã medieval lhe atribuiu, e cuja significação é a seguinte: “o sexo, a libido, o elemento instintivo do homem, uma vida que se desenvolve toda no plano terreno e sensual. (…) Infelicidade, o prazer da carne volúpias medíocres, escravidão das mãos do azar cego, (…) procura de seduções sensíveis” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1994, p.133).

O asno representa as forças ctónicas por oposição às solares e celestiais e é destruidor do tempo da vida; simboliza a inércia e o deboche, a curiosidade, a lascívia e a obstinação (é um dos animais de Dioniso), além da sombra junguiana: “A uma certa ideia de asno, símbolo da humildade e da doçura, opõe-se uma conceção contrária que o encara a imagem da imbecilidade, da preguiça, da obstinação, da luxúria sem limites” (BIEDERMAN, 1996, p. 31). Marie-Louise von Franz salienta que o asno na Antiguidade não era interpretado como um símbolo propriamente dito, mas como uma simples alegoria à lascívia, e acrescenta: “O asno fazia parte do cortejo de Dioniso e era associado à extasia dionisíaca, à sexualidade e à bebedeira. (…) o asno

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 263 era uma das representações do deus Seth, o assassino de Osíris” (FRANZ, 2014, p. 85).

Ser transformado em asno implica ser dominado pela condição animal, ter caído sob o impulso de um complexo específico que impõe um comportamento bizarro, porque dissociado, na medida em que Pinóquio sente-se como um ser humano sem contudo poder falar. Ele apenas zurra:

- Ó minha Fadazinha! Ó minha Fadazinha! Mas, em vez destas palavras, saiu-lhe da garganta um zurro tão sonoro e prolongado que fez rir todos os espetadores e, principalmente, todos os miúdos que estavam no circo. (…)os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a chorar copiosamente (COLLODI, 2004, p. 177-178).

Pinóquio estava, sem disso ter consciência, vivendo o drama de Lúcio-Apuleio que na pele de um asno ou jumento ainda se sente como um ser humano: “Ele é tratado como um animal, mas, internamente, no seu mundo subjetivo, ele não o é. De modo simbólico, isso significa que externamente ele vive num mundo inferior ao que sua personalidade interna assim o permitiria” (FRANZ, 2014, p. 91).

- A imagem da criança

De acordo com a classificação isotópica das imagens de Gilbert Durand, a criança pertence ao regime noturno com as suas estruturas místicas e, como todo o símbolo, possui um feixe de sentidos. A criança tradicionalmente aparece conotada com a inocência, com o estado edénico (inocência e graça), com a simplicidade natural e espontaneidade, com os poderes da imaginação: segundo Jung, a criança é abandonada, invencível, hermafrodita, representa o futuro e é considerada como um ser inicial e final (JUNG, 1993, p. 126-141).

No entanto, as imagens das crianças representadas na tela da Paula Rego, sugerindo en

passant a tela de Diego Vélásquez “As Meninas” de 1656, parecem negar essa simbólica benéfica

da infância. A representação das crianças na tela, em que as suas imagens se confundem com as dos asnos representados, parece fazer parte da distopia da própria Terra da Brincadeira onde as crianças gozavam de “boa vida” e não sentiam o próprio tempo passar (a fixidez ou a imobilidade temporal é também uma das caraterísticas do modo utópico):

O País da Brincadeira digerirá os seus meninos, primeiro os engolirá na escuridão e depois fará deles carne moída (…). Quem consegue ser tão louco ao ponto de acreditar numa símile ilusão? (…) Sou preguiçoso, indolente, ocioso? Tudo bem, sê-lo-ei para sempre, mas por isso devo pagar um preço… (PETRI, 2004, p. 169, 168).

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 264 seu caráter perverso-polimórfico, senão mesmo daquilo que Erich Neumann designou de estágio “fálico-ctónico”: “Sua forma vegetativa e animal é ainda, em alto grau, passiva e dirigida. (…) O estágio fálico-ctónico do ego é ainda matriarcal: está correlacionado com a Grande Mãe enquanto Self” (1999, p. 113). As crianças aparecem na tela sem expressarem o menor sorriso, como se estivessem apáticas, alheias quer à sua sorte, quer às suas brincadeiras. O contentamento no quadro não é visível como seria expectável, apenas a dor e a tristeza parece suceder-se:

E ali, onde um burro chorava, agora existe um que está já morto, pronto a ser vendido, a sua pele a pressentir já o futuro tambor com o qual brincará um menino destinado a não se transformar em burro… […] É o preço a pagar por aqueles que pensavam ter vindo ao mundo apenas para se divertir (PETRI, 2004, p. 165, 169).

- A imagem da meia criança, meio cavalo

De acordo com a classificação isotópica das imagens de Gilbert Durand, a imagem do centauro (do grego Κένταυρος, Kentauros, "matador de touros") pertence ao regime diurno com as suas estruturas heroicas(devido à sua relação isomórfica com o cavalo). O centauro é uma divindade do vento rápido e de um ser mitológico de aparência monstruosa, uma parte homem e outra parte cavalo, simbolizando a bestialidade do homem, a concupiscência carnal, a violência bruta, o instinto selvagem incontrolado e imagem de uma certa dimensão do inconsciente – aquela que abole a luta interior: “É por esta razão que a simbólica os considera como as personificações da animalidade, da força selvagem e das pulsões, porque a parte humana não é suficientemente forte para dominar a sua natureza animal” (BIEDERMANN, 1996, p. 109).

A imagem de centauro é uma etapa da transformação de Pinóquio em burrinho: “E enquanto corriam [Pinóquio e Palito] os braços transformaram-se em patas, os rostos alongaram-se e transformaram-alongaram-se em focinhos e as costas cobriram-alongaram-se de uma pelagem acinzentada com manchas pretas” (COLLODI, 2004, p. 166).

- As imagens da criança com “orelhas de burro” e com cabeça de burro

A imagem da criança com “orelhas de burro” muito se assemelha à do lobisomem quando está a voltar à sua forma humana. O lobisomem ou licantropo (do grego, λύκος, lykos, "lobo" e άνθρωπος, anthrōpos, "homem") é uma figura complexa e sinistra, com origem na mitologia grega, em que um homem se pode transformar em lobo nas noites de lua cheia, só voltando à forma humana ao amanhecer. Aquilo que nela surpreende, mais até do que as orelhas de burro, é a posição da criança, que identificamos com o Pinóquio.

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 265 Como dizemos acima, as “orelhas de burro” são conotadas tradicionalmente com a ignorância, com a preguiça, com a indolência e com a ociosidade, provocando sempre sentimentos de vergonha, de desgosto e de desespero. Elas significam o embrutecimento saído da perversão dos desejos. É uma imagem que choca porque transmite toda uma sensação de dor atroz, uma dor tão grande que parece que ouvimos o grito dessa mesma dor:

Portanto, imaginem como ele [Pinóquio] ficou quando sentiu as orelhas durante a noite lhe tinham crescido tanto que até pareciam dois abanos. (…) ou seja, viu a sua imagem enfeitada com um magnífico par de orelhas de burro. (…) Começou a chorar, a berrar, a bater com a cabeça na parede; mas quanto mais se desesperava mais as orelhas cresciam, cresciam, cresciam e tornavam-se peludas nas extremidades” (COLLODI, 2004, p. 159-160).

A figura da criança com “orelhas de burro” prolonga-se na figura da criança com cabeça de burro, dando conta da transformação de Pinóquio em asno ou burro. O que significa, que, com a cabeça de burro ele já não é mais o boneco que era. Na sequência de ter desobedecido à Fada azul e de se ter deixado influenciar pelo amigo Palito, Pinóquio traçou o seu infausto destino – o de transformar-se num burrinho e não na criança que ele tanto desejava ser. Trata-se, na verdade, de uma imagem menos assustadora, menos chocante que a anterior, mas deve ser interpretada na linha da metamorfose iniciática de Pinóquio que culmina na sua transformação de um “rapazinho como deve ser!” (COLLODI, 2004, p. 208). A transformação de Pinóquio em asno é uma das provações, entre outras, que ele experiencia e, por sinal, uma das mais emblemáticas ao longo do seu percurso iniciático a par da cena dele ter sido engolido pelo tubarão: “Acolá, onde um outro menino gritava de dor pela sua transformação, existe agora apenas um burro que chora” (PETRI, 2004, p. 165).

- A imagem de um asno erguendo uma criança aparentemente

inanimada

Esta imagem, situada na parte central da tela, bem no alto) simboliza que as forças instintivas (pathos), inferiores, as trevas dominam tudo aquilo que a criança representa de positivo e que o seu arquétipo condensa (invencível, hermafrodita, representa o futuro e é considerada como um ser inicial e final). A criança aparece aqui como abandonada à sua própria sorte (a condição de abandonado é uma das caraterísticas do arquétipo da criança). Aliás, vê-se que ela é figurada como se estivesse desmaiada, sem sentidos, ou seja, está completamente à mercê das potências masculinas obscuras brutais e ctónicas que o asno também simboliza: “o abandono, a exposição, posta em perigo, etc., pertencem, por um lado, ao desenvolvimento ulterior do início insignificante, por outro ao nascimento misterioso e miraculoso” (JUNG, 1993, p. 126).

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 266 Do conjunto das imagens selecionadas e da sua interpretação mítico-simbólica compreende-se que a Islands of ligths from Pinocchio de Paula Rego é mais uma ilha das trevas, um espaço dominado pela simbologia do asno com todas as suas implicações culturais – representando a estupidez, a humilhação, um baixo intelecto, preguiça, imbecilidade, teimosia, etc… – e simbólicas – a rendição sensual (a sexualidade), o elemento instintivo do homem, lubricidade, a curiosidade desmedida, a obstinação, fecundidade, as potências ctónicas, luxúria, etc… – e, do ponto da receção da obra criada, provoca um efeito angustiante àqueles que observam ou recebem a tela.

Não podemos deixar de realçar o grotesco das várias personagens representadas na tela que nos causam uma sensação também de estranheza, de absurdo e de alguma inquietação: “o grotesco é o mundo alheado (tornado estranho)” (KAYSER, 2003, p. 162). Há como que uma sensação sinistra em que a vida revela-se e afirma-se como ausente, os corpos afiguram-se mesmo como enrijecidos e sem expressão: o olhar não existe, parece que todos, ou a grande maioria, padece de cegueira, de alienação do mundo e da própria vida. Neste contexto, as imagens da tela que nos ocupa têm um não sei o quê de demencial, algo de sinistro reforçando ainda mais o sentimentos de estranheza e de angústia: “O encontro com a loucura é uma das percepções primigênias do grotesco que a vida nos impinge” (KAYSER, 2003, p. 162). Angústia, demência e loucura configuram uma ameaça fantasmal que não só nos entorpece como igualmente nos castra a esperança face à vida.As personagens aparecem-nos como vazias de simesmas prolongando a sensação aguda de estranheza e de angústia mesmo de um certo nonsense (STEINER, 1982, p. 163).

A visão da tela Island of lights from Pinocchio contamina o observador não do medo da morte, mas antes de angústia perante vida. O observador não pode deixar de experienciar uma angústia dilacerante que sacode as suas entranhas ao limite do inimaginável. A tela inspira no observador um terror misterioso e fascinante, deixando-o, portanto, sem fôlego, mas hipnotizado. E assim é legítimo perguntar sena tela (e por extensão na obra da pintora Paula Rego) não se esconderáuma “tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo [itálico no texto]” (KAYSER, 2003, p. 167).

A Terra da Brincadeira como distopia

A transformação de Pinóquio em asno parece simbolizar que a “Idade de Ouro”, um tempo eterno do dolce far niente tão prometido pela Terra da Brincadeira, abre para um mundo

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 267 radicalmente diferente daquele anteriormente vivido (e reside aqui uma das característica da utopia: um outro lugar e um outro tempo) por Pinóquio e aqui encontramo-nos com a dimensão utópica subjacente à própria Terra da Brincadeira: “Compete, então, à utopia projetar a imaginação para fora do real, para um algures que é também um nenhures. (…) A utopia é um exercício da imaginação para pensar um ‘modo diferente de ser’ do social” (RICOEUR, s. d., p. 381). Mas este mundo outro dourado e colorido pode, na verdade, também esconder o seu inverso e transformar-se num pesadelo trágico, a quem à ilusão vã se entrega e por ela é devorado. Por outras palavras, na Terra da Brincadeira a um tempo de felicidade, necessariamente breve, sucedeu-se um tempo de dor, de desilusão e de desespero crescente: “Deixo à vossa imaginação o desgosto, a vergonha e o desespero do infeliz Pinóquio”, diz o narrador n’As Aventuras de Pinóquio face à “imagem enfeitada [de Pinóquio] enfeitada com um magnífico par de orelhas de burro” (COLLODI, 2004, p. 159). Por esta transformação, que interrompe abruptamente aquele tempo maravilhoso de brincadeiras diárias livre de livros, de escola e de professor, entra-se no lado mais negro da utopia que é precisamente a sua dimensão patológica (o utopismo) em que o sujeito deixa-se apanhar pela miragem do speculum e da ficção-simulacro, enfim de uma promessa de felicidade eterna que ela própria se transforma num desespero infernal: “Esta fobia do real, das suas diferenças e das suas mudanças, conduz o utopista a sonhar com uma felicidade controlada pela obrigação e isolado numa reclusão autística” (WUNENBURGER, 2002, p. 225, 1979, p. 169-187). Este modo utópico simboliza não só uma regressão,mas também uma “desconfiança relativamente a todas as formas de vida e de vitalidade” (2002: 227), o que implica já toda a tentativa de escapar às desordens do tempo e do espaço históricos numa tentativa de preservar um ideal perfeccionista de difícil realização ou de difícil conservação como é o caso da Terra da Brincadeira.

Este lado negro da utopia, a que Jean-Jacques Wunenburger designa por “uma sociedade sem sonhos nem razões (2002a, p. 118-137), é o lado e o tempo das vítimas que, ao optarem ingenuamente pela promessa de um “paraíso na terra”, de uma “golden age” terrestre, acabam, mais tarde ou mais cedo, por desposar o infortúnio, ou seja, o próprio inferno, por pagar um preço ôntico e ético que compromete toda a sua existência futura, ainda que menos perfeita e menos livre. Do contentamento e do sorriso de Pinóquio, que durou cinco meses, passa-se para um Pinóquio vergado pela sua própria dor e por um choro desesperado: “Começou a chorar, a berrar, a bater com a cabeça na parede” (COLLODI, 2004, p. 159).

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 268 A Terra da Brincadeira torna-se, assim, um sucedâneo do próprio inferno que digere as crianças que para ela acorrem na esperança que a felicidade será sempre delas e que prolongar-se-á numa espécie de “presente eterno”, enfim uma ilusão que arrastarprolongar-se-á aa crianças para grandes penas e sofrimentos, que os arrastará inexoravelmente para uma terra escura (lembrando o episódio em Pinóquio é devorado pelo terrível tubarão: “Para quem acreditava poder fugir ao comum destino [o da Escola por exemplo] existe um destino pior, o da velocidade de uma trituradora que do corpo e dos seus pensamentos até a memória destrói” (COLLODI, 2004, p. 169). Estes pontos dedicados a uma fase da vida de Pinóquio são esclarecedores na desmontagem que o narrador faz acerca da possibilidade de uma vida utópica: o “bem viver” tão querido por Pinóquio acaba, no final de contas, por transformar-se num inferno simbolizado pela sua metamorfose em asno com todas as consequências que essa mesma transformação implicou no presente e no futuro da sua vida.

De igual modo, de modo mais ou menos voluntário, Paula Rego interpreta a utopia da Terra da Brincadeira como uma terra escura, de sofrimento e de desencantos: “Da brincadeira, portanto, passa-se ao lançar-se a si próprio no Inferno, naquela boca de fornalha sempre esfomeada” (PETRI, 2004, p. 169). Não deixa, aliás, de ser sintomático o título que ela dá à sua tela, porquanto aquilo que nela se vê, e pela sua própria simbologia, vai mais no sentido das trevas e não das luzes. E por aqui se vê que o asno, ou o burro, como símbolo das trevas (FERRÃO, 2000, p. 163-173), faz ainda mais ressaltar não somente o sentido negativo da utopia que a Terra da Brincadeira representa (fazendo dela uma espécie de distopia patológica e polimórfica), mas também o lado abandonado, fragilizado da criança. Pinóquio que julgava abraçar para sempre o maravilhoso e o prazer acabou, pela sua transformação em asno, por desposar o infortúnio: “Para quem acreditava poder fugir ao comum destino, existe um destino pior” (PETRI, 2004, p. 169), o destino de ficar prisioneiro da sua sombra (sob forma de asno) sentindo-se ainda humano.

Conclusão

O olhar criativo imagético e pictural de Paula Rego deu corpo visual às palavras escritas de Collodi, originando um contributo muito original no quadro da estética pictural ou figurativa aberta a uma multiplicidade de interpretações como é próprio de uma “obra aberta” (Umberto Eco). A pintura que ela nos oferece é uma pintura parlante, pois ressalta que a pintora deixou-se seduzir pela leitura que fez da Terra da Brincadeira, dando azo à sua interpretação criativa e a

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 269 uma reflexão estética:

No entanto, as incursões dos escritores pelos mundos das imagens e dos tipos visuais de imaginação por vezes deram fruto na sua escrita; as contiguidades entre as artes, em qualquer época, deram forma a cada uma delas através de processos que uma abordagem comparativista pode revelar (HUNT, 1971, p. 10).

Se é verdade que a pintura serve, muitas vezes, de alimento criador para os escritores também é verdade o contrário. Paula Rego soube explorar não somente o sentido da escrita do capítulo de Carlo Collodi, lendo as imagens que essa mesma escrita movimentava, mas sobretudo deu-lhes um sentido figurativo que resulta já de uma tradução plástica frontal e interpelante. Por outras palavras, o texto literário de Collodi serviu de espelho onde a pintora viu as imagens que queria ver, transportando-as para a tela, e fecundouo texto literário collidiano através de um conjunto de imagens poderosamente apelativas:“A pintura é num dado sentido o inverso da escritura, seu duplo real, onde a luz não é dita mas encarnada. E no entanto o gesto de escrever não está afastado do gesto do pintor: nos dois casos, é inscrever, traçar, reencontrar a memória da arcaica pulsão gráfica” (BERGEZ, 2007, p. 6).

Na tela, as imagens fortes (o traço figurado) aparecem como os porta-vozes iconográficos do tema, dos motivos encontrados na narrativa e aqui confrontamo-nos com dois códigos, o verbal e o icónico, que, sendo diferentes, se complementam: “Porque enquanto a imagem nos subjuga ao domínio de uma presença plena e englobante, de uma ostentação imediata, de uma amostração plena e afirmativa, a linguagem enfeuda-nos às leis da articulação, às exigências da abstração, às regras da racionalidade sintática” (CHAZAUD, 2000, p. 11).

A nossa abordagem realça a dialética ou a articulação fecunda entre literatura e pintura, para encontrarmos o “interstício figural”, lembrando a obra de Bernard Vouilloux (1994), dessa mesma relação. Ele uma espécie de lugar intermediário entre a iconologia e a retórica, é o lugar ideal para o sentido se albergar na medida que o sentido simbólico, aquele que faz ver e falar simultaneamente, tende a ultrapassar as meras dimensões da textualidade e da visualidade para nele se situar. O choque emotivo suscitado pelo texto deu lugar, sob um impulso criador de Paula Rego, a uma criação fulgurante e mítica em que o tratamento pictural da narrativa não deixa de interpelar o espetador mexendo com o seu imaginário infantil e com a criança interior que ele em si transporta.

A realidade visual da “verbalização” da Terra da Brincadeira é poderosamente significante e, ao sê-lo, o sentido simbólico torna-se mais patente ou manifesto de captar e de estudá-lo não

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__________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 06, n. 01, jan./-jun, 2015. 270 simplesmente no sentido que se dá à ekphrasis(descrição literário de uma obra de arte), mas num sentido mais de cariz hermenêutico onde a questão do “sentido” da imagem assume papel ou função relevantes (BERGEZ, 2004, p. 42-74). Por outras palavras, aquilo que a qui se levanta é precisamente a questão do “sentido” da imagem (que no caso particular da pintura de Paula Rego, inspirada na “Terra da Brincadeira”, esse sentido simbólico encontra-se configurado na metamorfose de Pinóquio em asno ou burro com todas as consequências que tal metamorfose implica nos planos simbólico, psicológico e existencial.

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Alberto Filipe Araújo

___________________________________________________________

Professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga Portugal) e membro do CIEd – Centro de Investigação em Educação (Braga – Portugal).

E-mail: afaraujo@ie.uminho.pt

Joaquim Machado de Araújo

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Doutorado em Educação pela Universidade do Minho e professor auxiliar convidado da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto – Portugal).E-mail:jmaraujo@porto.ucp.pt

Recebido em 25 de fevereiro de 2015. Aceito em 25 de março de 2015.

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