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Concepções do tempo e do real em the Great Gatsby e the Catcher in the Rye

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Luísa Maria Duarte de Pinho

Concepções do Tempo e do Real

em The Great Gatsby e The Catcher in the Rye

Porto

1997

(2)

Luísa Maria Duarte de Pinho

Concepções do Tempo e do Real

em The Great Gatsby e The Catcher in the Rye

040^

Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos (Literatura Americana) apresentado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

UNIVERSIDADE DO PORTO

Faculdade de Letras

Pata âO I QJQ./ 19 <ty

(3)

Ao Luís,

(4)

I

Introdução

(5)

"Time affects every aspect of fiction: the theme, the form and the medium - language. " A. A. Mendilow, in Time and the Novel1

A literatura americana do século XX tem reflectido uma crescente consciência da alienação do indivíduo. São raros os heróis de valor e qualidades irrepreensíveis, e mesmo os mais fortes (como os heróis de Hemingway, por exemplo) saem, de uma maneira geral, derrotados do confronto com o mundo. A maioria dos protagonistas são agora vítimas. Daqui decorre o compreensível aparecimento cíclico de obras que reavaliam, retomam ou recusam o "sonho americano", ou porque reflectem nostalgicamente sobre o passado pastoril, ou porque espelham a decadência do presente urbano. Em The Great Gatsby e The Catcher in the Rye, Fitzgerald e Salinger reavaliam a questão do sonho (ou pesadelo) americano, nomeadamente em termos da sua actualização na sociedade americana no início e em meados do século XX.

F. Scott Fitzgerald parecia pressentir o reverso do sonho já nas décadas de 20/30. A decadência do próprio escritor após a fama, a sua ascensão ao sucesso e queda no final de uma vida tragicamente curta, estão representadas na personagem central de The

Great Gatsby, que morre por alimentar um sonho desfasado da realidade, após ter obtido

tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Gatsby é somente um exemplo de uma tendência entre vários autores americanos, entre os quais Ralph Waldo Emerson, Walt Whitman, Henry James, William Dean Howells e o próprio F. Scott Fitzgerald, para criarem personagens que são "attempts to present a self that relates a sense of its own autonomy and individuality to the mutability of reality."2

Esta concepção de um Eu americano poderoso e autónomo, capaz de enfrentar o mundo nos seus próprios termos, dá origem a um idealismo não-conformista, que, segundo Sam Girgus, em The Law of the Heart, se acentua no século XX, sobretudo

1 A. A. Mendilow, Time and the Novel (New York: Humanities Press, 1972), p. 31.

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após os anos 50, que o tomaram "a genuine tradition of the modern American thought."3

Depois da depressão dos anos 30 e da II Guerra Mundial, que inaugura, por assim dizer, a era atómica, a tendência acentua-se. É, pois, natural que também o protagonista de The Catcher in the Rye, de J. D. Salinger, seja um não-conformista e que a sua visão apareça como ainda mais pessimista do que a de Fitzgerald.

O tema da busca por parte de um "innocent outsider" de um ideal num mundo socialmente hostil é um dos temas recorrentes na literatura americana. Gatsby e Holden são continuadores do Ahab de Melville - a encarnação da consciência nacional que luta pelo sonho -, transformando-se a sua história numa história arquetípica. O sonho de Gatsby é o do próprio continente americano. O renascer de James Gatz como Jay Gatsby é comparável ao renascimento da América após a Revolução: a América esquece o passado colonial e renasce para uma nova história.4 Em última análise, também o ideal de

inocência de Holden é tão velho como a nação: a ideia da inocência original está na base do mito da América.

Gatsby e Holden são também herdeiros de Poor Richard, Natty Bumppo, Ishmael e Huck Finn, comungando da sua inocência e da sua adopção de códigos de conduta puramente individuais. Os sistemas de valores destes heróis da literatura americana têm origem num ideal pastoril já desaparecido no século XX. É assim que Poor Richard elege como metas a auto-disciplina e moderação; Natty Bumppo é o bom selvagem, um sonhador que acredita nas leis da natureza e de Deus; Ishmael procura o sentido da vida no mar; finalmente, Huck Finn segue o seu "sound heart" e ajuda o negro Jim a fugir, repudiando as indicações da "deformed conscience", deformada pelas regras de bem agir e bem pensar de que Miss Watson é fiel depositária. A memória de uma América mítica como o novo paraíso, como um porto para os que buscam liberdade num país onde essa liberdade é associada a um sonho pastoril ou natural está presente em The Great Gatsby.

3 Ibidem, p. 10.

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O protagonista representa "America itself, o poder e o sonho que sempre foram conotados com a ideia da América.5

São inúmeros os estudiosos que estabelecem o mesmo tipo de comparação entre Holden Caulfield e Huck Finn, e declaram aquele herdeiro deste. Com efeito, não é só a questão da coloquialidade da linguagem que os aproxima, mas também a sua luta individual, que retoma a de Ahab, Hester e Gatsby: o Eu contra o mundo. Holden acaba por ser uma versão moderna de Huck Finn, como afirma Edgar Branch, mas também, em nossa opinião, uma versão moderna de Gatsby.6 Ele partilha do isolamento do herói

americano tradicional: no romance de Salinger a sociedade americana é vista como uma anti-comunidade que continua a trair o ideal pelo comércio. Um dos exemplos dessa traição é D. B., o irmão de Holden: "He just got a Jaguar. One of those little English jobs that can do around two hundred miles an hour. It cost him damn near four thousand bucks. He's got a lot of dough now. He didn't use to. He used to be just a regular writer, when he was home. [...] Now he's out in Hollywood, D.B., prostituting himself"7

Ao contrário do irmão, Holden é uma figura da inocência, inocência essa que está na base da experiência americana, como R.W.B. Lewis e Leslie Fiedler demonstram.8

Embora sofrendo alterações ao longo do século XX, ela é um dos grandes temas da literatura americana: "The idea of innocence has traditionally had overtones of American optimism, but in the novel of the 50s it became tied to pessimism about the possibilities of adult life. J. D. Salinger's Catcher effected the most uncompromising equation

5 Lionel Trilling, "F. Scott Fitzgerald", in F. Scott Fitzgerald: Critical Assessments. IV, ed. Henry

Claridge (Mountfield, East Sussex, GB: Helm Information, 1991), p. 60.

6 "The Catcher in the Rye, in fact, is a kind of Huckleberry Finn in modern dress." Edgar Branch,

"Mark Twain and J. D. Salinger: A Study in Literary Continuity", in Salinger: A Critical and Personal Portrait, ed. Henry Anatole Grunwald (New York/Evanston: Harper & Row, 1962), p. 206.

7 J. D. Salinger, The Catcher in the Rye (Harmondsworth: Penguin Books, 1951), p. 5. Futuras

referências ao romance serão indicadas através da abreviatura CR, seguida do número da página.

8 R. W. B. Lewis, The American Adam: Innocence. Tragedy and Tradition in the Nineteenth Century

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between 'evil' and adulthood."9 Richard Ruland e Malcolm Bradbury corroboram esta

afirmação ao defenderem que o romance de Salinger se tornou o grande clássico de uma era em que o próprio acto de crescer parecia levar à corrupção e não à experiência.10

Nos textos de Salinger o herói é normalmente um marginal que experimenta pecado e culpa. Seymour e Franny Glass ou Holden Caulfield são resistentes sociais que, como outros na literatura americana, não abdicam da sua visão da autenticidade numa sociedade degradada.

Jonathan Baumbach vai ainda mais longe ao afirmar que o romance de Salinger não é só sobre a inocência, mas por ela. Salinger tenta encontrar uma linguagem da inocência que vença as pressões sociais, optando por uma visão da realidade dos adultos através dos olhos das crianças e adolescentes.11 A verdade é que a obra de Salinger em

geral, e o romance em particular, levantam questões fulcrais no pós-Segunda Guerra Mundial: será possível reconciliar o Eu com a sociedade? Ainda é possível separar o autêntico do falso? O que aconteceu ao sonho na era atómica?

Em The American Adam, Lewis desenvolve a noção do Adão americano ligado à inocência pastoril, procurando as suas ocorrências na ficção do século XIX e apontando para a sua presença em alguma da ficção do nosso século. Para além de Gatsby, Lewis refere os heróis do Invisible Man, de Ralph Ellison, The Adventures o/Augie March, de Saul Bellow, e The Catcher in the Rye, de Salinger: "[T]hey share in their common aloneness that odd aura of moral priority over the waiting world which was a central ingredient in the Adamic fictional tradition."12 A ideia da inocência é um elemento-chave

na tragédia americana de que Lewis fala em The American Adam. Ela provém da crença

9 Daniel Hoffinan, ed, Harvard Guide to Contemporary American Writing (Cambridge, Mass.: Harvard

University Press, 1982), p. 269.

10 Richard Ruland and Malcolm Bradbury, From Puritanism to Postmodernism: A History of American

Literature (London/New York: Routledge, 1991), p. 311.

11 Jonathan Baumbach, The Landscape of Nightmare: Studies in the Contemporary American Novel

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numa consciência sem pecado herdada do passado, mas manchada por esse mesmo pecado no presente - e é aqui que deparamos com a tragédia: "It was the tragedy inherent in [Adam's] innocence and newness, and it established the pattern for American fiction."13 Sam Girgus analisa a questão do "American Adam" tal como Lewis a coloca,

avançando para uma visão do mito de Adão (e da América) como auto-destrutivo, por se basear num Eu isolado, incapaz de relações sociais significativas: "In a garden which he inherited, the American Adam's world was based so thoroughly upon his personal proclivities that it inevitably turned from a dream of paradise into a nightmare of emotional and psychological deprivations."14

Ao longo do século XX a ficção americana debruça-se cada vez mais sobre o sentimento trágico que resulta da consciência dos riscos que a inocência corre. Logo no início do século, nas obras de F. Scott Fitzgerald, o conflito interior do idealista e os compromissos a que as circunstâncias obrigam provocam o colapso; é o que acontece em The Great Gatsby ou Tender is the Night. Afirma Robert Merrill a propósito deste romance: "We do not think of Scott Fitzgerald as a tragic novelist, but Fitzgerald's novels are informed by what he once called 'the wise and tragic sense of life'."15 Este

sentido de tragédia de que alguma da ficção de Fitzgerald está imbuída constituía, de facto, uma das grandes preocupações do escritor, como explica numa das cartas à filha, Frances: "By this I mean the thing that lies behind all great careers, from Shakespeare's to Abraham Lincoln's, and as far back as there are books to read - the sense that life is essentially a cheat and its conditions are those of defeat".16

Sem querermos estender a nossa comparação longe demais, parece-nos que Salinger facilmente concordaria com a visão da vida como tragédia expressa por

13 Ibidem, p. 6.

14 Sam Girgus, The Law of the Heart, p. 22.

15 Robert Merrill, "Tender is the Night as a Tragic Action", in F. Scott Fitzgerald: Critical

Assessments. Ill, ed. Henry Claridge (Mountfield, East Sussex, GB: Helm Information, 1991), p. 190. F. Scott Fitzgerald, "From Undated Letters", in The Crack-Up. ed. Edmund Wilson (New York: New

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Fitzgerald. As suas personagens marginais e a sua opção por um recolhimento total há quase três décadas, descrita e criticada por Ian Hamilton em In Search ofJ. D. Salinger, podem ser interpretadas como resultado de algum desencanto em relação à sociedade americana e, muito particularmente, aos repórteres e críticos literários.17 Esta é, aliás, a

opinião de Alfred Kazin em Bright Book of Life: "He would rather be silent at the moment than see his imaginative world profaned by criticism."18

Salinger demonstra em múltiplos aspectos a herança de Fitzgerald: as preocupações de The Catcher in the Rye retomam muitas das questões tratadas por Fitzgerald nos seus contos sobre o mundo dos universitários. A religiosidade (quase misticismo) de Salinger inspira-se em Fitzgerald e Hemingway, cujos protagonistas são corporizações da Religião Americana, definida por Harold Bloom como uma "curious amalgam of Emersonian idealism and national messianism."19 Trata-se de um idealismo

que luta teimosamente contra a realidade americana, onde o sonho perdeu todas as ligações com o aspecto puramente espiritual, para perpetuar a vertente material da promessa da América: a secularização da promessa original. Sobretudo a partir da "Gilded Age" o sonho da América, ligado desde o seu início à retórica puritana, ao "New England Way" e à salvação espiritual, perdeu todos os contornos espirituais. Há um desfasamento óbvio entre o antigo ideal religioso dos Puritanos de New England e as promessas materiais que tomaram o lugar de qualquer ortodoxia na América de finais do século XIX e do nosso século.20 Os americanos acreditam poder atingir o Paraíso na

(sua) terra, e escritores como Fitzgerald e Salinger reflectem sobre esta questão da "materialização" do sonho.

17 Ian Hamilton, In Search of J. D. Salinger (New York: Vintage Books, 1988).

18 Alfred Kazin, Bright Book of Life: Novelists and Storytellers From Hemingway to Mailer (Notre

Dame/London: University of Notre Dame Press, 1973), p. 115.

19 Harold Bloom, "Introduction", in Holden Caulfield ed. Harold Bloom (New York/Philadelphia:

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Os protagonistas de Fitzgerald são corporizações do modo de vida americano, da Religião Americana do individualismo idealista e do sucesso, levados na sua obra às últimas consequências. O que o conto "The Diamond as Big as the Ritz" nos mostra, em última análise, é o aspecto grotesco e desumano do sonho americano - dessa Religião Americana - levado ao exagero, e os perigos da inexistência de uma distinção clara entre ilusão e realidade.21 Na mesma linha, Gatsby "is the only symbolic figure in American

literature who descends to the depth of the American Dream and comes back to tell us it is a nightmare."22

Na obra de Salinger o aspecto sagrado está ligado à extrema importância que o herói idealista confere às pequenas coisas, em detrimento das grandes invenções que o dinheiro pode comprar. "To notice every seeming triviality [...] is to respect the creation"23 - e é isso que faz Holden, preocupado com os patos, as crianças, o disco para

a irmã, o boné. A maior parte das personagens de Salinger caracteriza-se por uma filosofia de vida baseada naquilo a que Kazin chama "non-action, that places the highest value on a tender, loving, religious attentiveness to the littlest things of this world."24

Salinger/Holden sentia-se atraído pela ideia da inocência, do Eu que luta contra o mundo. Por mais de uma vez declarou a sua admiração pelo trabalho de Fitzgerald: "Re-read a lot of Scott Fitzgerald's work last week. God, I love that man. [...] Fitzgerald's only idiosyncrasy was his pure brilliance."25 De facto, a presença de The Great Gatsby

em The Catcher in the Rye ultrapassa a referência directa de Holden ao "Old Gatsby. Old sport. "(CR 147) As ligações entre os dois romances estabelecem-se a vários níveis, nomeadamente no que diz respeito à técnica narrativa utilizada e a aspectos temáticos

21 Sobre este assunto leia-se Marras Bewley, The Eccentric Design: Form in the Classic American

Novel (New York/London: Columbia University Press, 1963), pp. 259-270. 22 Ibidem, p. 291.

23 Alfred Kazin, Bright Book of Life, p. 118.

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explorados por Fitzgerald e Salinger: a revolta contra a corrupção da inocência, a capacidade de sonhar, o excesso de idealismo e visões individuais do tempo muito particulares. A razão do estudo conjunto destas duas obras decorre justamente da constatação destes pontos de aproximação.

Em ambos os romances o tema é o do americano inocente que persegue o seu sonho idealista contra a realidade do tempo, que não permite a sua realização. A cronologia dos acontecimentos narrados é fundamental, visto que o passado irá ter um grande peso sobre o presente, quando evocado por acção da memória dos protagonistas. No caso do romance de Salinger, esse passado sobrepor-se-á mesmo, em muitos momentos, aos acontecimentos presentes. A reflexão de Octávio Paz em relação ao tempo na modernidade adequa-se à visão do tempo de Holden: "La oposición entre el pasado e el presente literalmente se evapora, porque el tiempo transcurre con tal celeridad, que las distinciones entre los diversos tiempos - pasado, presente, futuro - se borran, o, ai menos, se vuelven instantâneas, imperceptibles e insignificantes."26 Se para

Holden o passado é chamado ao presente a cada momento, para Gatsby ele é perfeitamente manipulável.

É da importância do tempo e dos seus significados em The Great Gatsby e The Catcher in the Rye que este trabalho pretende dar conta. "Como tema e como problema - problema existencial - o tempo tornou-se a preocupação obsessiva no romance contemporâneo."27 Esta afirmação de Fernanda Irene Fonseca sublinha a importância do

aparecimento de novas "formas de encarar o problema do tempo (o 'tempo-problema')" e de "narrativamente enquadrar essa problematização da temporalidade."28 O romance

contemporâneo sacode o peso de uma cronologia linear como determinante da técnica narrativa utilizada e manipula o tempo livremente. No seu importante estudo sobre o

26 Octávio Paz, Los hiios dei limo: Del romanticismo a la vanguardia (Barcelona: Editorial Seix Banal,

1993), pp. 22-3.

27 Fernanda Irene Fonseca, Deixis. Tempo e Narração (Porto: Fundação Eng. António de Almeida,

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tempo e a narração, Paul Ricoeur afirma que há uma tendência na narrativa contemporânea para uma luta contra a representação linear do tempo, numa tentativa de "'déchronologiser' le récit".29 Ou, dito de outro modo, "[d]e realidade indiscutível que

era, o tempo passa a ser no romance a realidade discutível por excelência. "30 O que não

contraria a sua importância, muito pelo contrário: a insubmissão do romance em relação à cronologia resulta numa "progressiva interiorização, e, depois, numa explícita questionação do tempo. O tempo linear, o tempo cronológico, [...] vai dar lugar a um tempo interiorizado.T31

Apesar de estes estudos de Fernanda Irene Fonseca e Paul Ricoeur se debruçarem sobre o romance contemporâneo, parece-nos que as reflexões apresentadas podem ser aplicadas com pertinência às obras em análise. De facto, a técnica narrativa utilizada por F. Scott Fitzgerald e J. D. Salinger escapa a uma cronologia linear. Ambos os romances começam in ultimas res, o que significa, segundo Aguiar e Silva, que "em relação à temporalidade do segmento diegético primeiramente narrado, o romancista institui uma temporalidade segunda, dando assim lugar a uma anacronia."32 Os

narradores, ambos em Ia pessoa, intervêm directamente nos acontecimentos: no primeiro

caso trata-se de Nick Carraway que, não sendo a personagem principal da obra, tem conhecimento - directo ou não - de todos os acontecimentos que marcaram ou marcam a vida do protagonista. A sua quase omnisciência, por vezes pouco credível, aproxima-o de Holden Caulfield, que conta a sua própria história como personagem central dos acontecimentos.

É objecto central desta dissertação a forma como as diferentes personagens de The Great Gatsby e The Catcher in the Rye, nomeadamente os protagonistas dos dois romances, se relacionam com o tempo. As diferentes visões do tempo e da realidade são

29 Paul Ricoeur, Temps et Récit. I (Paris: Seuil, 1983), p. 53. 30 Fernanda Irene Fonseca, Deixis Tempo e Narração, p. 252.

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analisadas com base na distinção entre "uma noção do tempo, subjectiva, personalizada, 'privada', que é contrária à noção de objectividade e ao carácter 'público' do tempo científico ou do tempo marcado pelos relógios."33 Esta distinção, estabelecida por Isabel

Allegro de Magalhães em O Tempo das Mulheres, aponta para a existência de duas concepções do tempo distintas: "tempo-objectivo, resultado de análise lógica, tempo no seu aspecto físico-matemático, mensurável, 'espaciável'. E tempo subjectivo, o devir intuído, ou seja, um tempo identificado com a consciência, interior portanto ao homem que o experiência."34

Em Time and the Novel, Mendilow estabelece o mesmo tipo de diferenciação entre tempo cronologicamente medido e tempo psicológico, definindo este como "estimation of time by individual values rather than by objective scales".35 A teorização

de Vítor Manuel Aguiar e Silva vai no mesmo sentido: "O tempo da diegese comporta um tempo objectivo, um tempo 'público', delimitado e caracterizado por indicadores estritamente cronológicos [...]. A diegese comporta, todavia, outro tempo, um tempo mais fluido e mais complexo - o tempo subjectivo, o tempo vivencial das personagens, aquele tempo que Bergson designou por durée e Virginia Woolf por time in mind" Este tempo, a que Aguiar e Silva chama "tempo politemporal", é "diferente mas não dissociado do tempo objectivo e do tempo histórico", visto que "uma determinada

33 Isabel Allegro de Magalhães, O Tempo das Mulheres: A Dimensão Temporal na Escrita Feminina

Contemporânea (Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987), p. 90.

M Ibidem, p. 52.

Fernanda Irene Fonseca acrescenta a esta distinção a noção de tempo intersubjectivo; se o tempo objectivo inclui o "tempo físico" e o "tempo natural" (por exemplo, o astronómico), e o tempo subjectivo está ligado à vivência humana, ao "movimento interior", o tempo cronológico é intersubjectivo, pois resulta de uma convenção. "Não é um tempo objectivo, é antes um tempo objectivável intersubjectivamente". Fernanda Irene Fonseca, Deixis. Tempo e Narração, pp. 172-3. No entanto, afigura-se-nos mais operativa para a abordagem a que nos propomos a distinção de Magalhães, Mendilow e Aguiar e Silva entre tempo público / objectivo e tempo privado / subjectivo.

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vivência privada e íntima do tempo exprime ou reflecte, em parte, uma determinada problemática do tempo histórico, do tempo 'público'".36

A referência de Aguiar e Silva a Henri Bergson deve-se à importância da teorização deste sobre o tempo no início deste século. O seu contributo está ligado sobretudo ao conceito de "durée", do tempo que flui continuamente. Isabel Allegro de Magalhães analisa a questão da duração bergsoniana, chamando-lhe "uma espécie de eterno 'presente'";37 partindo da noção de fluxo do tempo, só através da intuição é

possível a percepção do tempo real, da duração. E aqui o papel da memória é fundamental, pois é ela que permite a consciência desta continuidade. Diz ainda Isabel Allegro de Magalhães: "Na consciência todos os tempos emergem como um agora: o passado é memória desvivida no presente e no futuro, antecipação também no presente vivenciada."38

Partindo da distinção entre tempo objectivamente medido (que passa de igual modo para todos e ao qual não é possível escapar), e tempo interior e relativo, e por isso subjectivo (pois depende de valores individuais e da memória, e não de uma medição científica), julgamos produtivo analisar de que modo tal distinção se aplica aos romances The Great Gatsby e The Catcher in the Rye.

O capítulo 1 deste trabalho debruçar-se-á sobre questões ligadas à forma narrativa. Ele versará aspectos relacionados com a cronologia dos acontecimentos narrados, procedendo ao estudo da distorção cronológica, patente sobretudo no romance de Fitzgerald. Para além disso, abordará a problemática do narrador, bem como a importância do tempo histórico e do tempo atmosférico na construção dos significados dos romances.

No capítulo 2 exploraremos a forma como a maioria das personagens de ambos os romances vivem de acordo com as regras do tempo, sobrevivendo dentro da realidade

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da sua época. Para elas o tempo privado não se constitui por oposição ao tempo público, pelo contrário, as regras do tempo, da vida e da morte são aceites naturalmente.

Ao invés, ambos os protagonistas manipulam o tempo de acordo com a sua vontade, interferindo, assim, directamente na sua sorte, e é disso que dá conta o capítulo 3. Em O Tempo no Romance, Jean Pouillon defende que o destino nunca é totalmente infligido às personagens e que a sua ligação ao passado é sempre resultado de uma escolha. A direcção fatal resulta da psicologia de cada personagem, da forma como se liga ao passado e se dirige ao futuro. O destino está ligado ao mundo social, mas não é este que o determina por si só; a forte ligação ao passado resulta da psicologia da personagem que se acredita hoje determinada pelo passado.39 Pensamos que o sentido de

"personal responsibility" de que Fitzgerald fala se inscreve nesta ideia.40 Gatsby tem

responsabilidades no seu próprio destino trágico: é a sua crença na capacidade de manipular o tempo e instituir o passado no presente que contribui definitivamente para o seu fim. Só isso explica que a espera de Daisy Fay lhe tenha parecido interminável; quando afirma peremptoriamente que não via Daisy há quase cinco anos temos consciência plena disso, como Nick e a própria Daisy: "The automatic quality of Gatsby's answer set us all back at least another minute."41

Do mesmo modo, Holden é o maior responsável pela sua queda, pois também ele se convence da possibilidade de influenciar o tempo e tornar a inocência perene, como forma de escapar a uma realidade marcada pela falta de autenticidade. Assim se explica também que alguns momentos sejam para Holden intermináveis: "I never waited so long

39 Jean Pouillon, O Tempo no Romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. (S. Paulo; Cultrix: Editora da

Universidade de S. Paulo, 1974), p. 113.

40 Como explica Trilling, Fitzgerald não culpava o mumdo pelo que de mal lhe acontecia; preferia

culpar-se a si próprio. M[H]e never made out that the world imposes tragedy, either upon the heroes of

his novels, whom he called his 'brothers' or upon himself." Lionel Trilling, in "F. Scott Fitzgerald", F Scott Fitzgerald: Critical Assessments. IV, p. 57.

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for an elevator in my goddam life", diz quando abandona apressadamente a casa de Mr Antolini.(CR 200)

Em última análise, tudo irá convergir na percepção de que a visão do tempo de uns e outros tem implicações directas no seu destino: sobrevivência ou colapso. Gatsby é morto depois de confrontado com a realidade da passagem do tempo; Holden acaba internado numa instituição de saúde e o seu destino não se prevê regenerador.

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Capítulo 1

Tempo histórico e tempo ficcional em The Great Gatsby e The Catcher in the Rye

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Em Time and the Novel Mendilow analisa aquilo que apelida de "time-obsession of the twentieth-century", ou seja, a preocupação dos artistas em geral, e dos escritores em particular, com as questões do tempo, preocupação essa que os leva à procura de ritmos mais livres na poesia e de novas técnicas e convenções na narrativa.1

Os romances The Great Gatsby e The Catcher in the Rye, apesar de separados no tempo por cerca de 25 anos, têm em comum desde logo uma grande atenção dada às questões relacionadas com o tempo, quer se trate do tempo histórico em que se inserem e que reflectem, quer da estrutura do tempo ficcional, cujo significado se constrói na relação com o tempo cronológico e o tempo atmosférico. De facto, a questão temporal não se limita a ser um instrumento formal de narração, adquirindo em ambos os romances significações de ordem temática com repercussões no destino das personagens.

"From the dramatic immediacy of the present we are brought back to the past and referred to what might explain or motivate the action, reminded of its premises, recalled to its psychological reasons. In this superimposition and reciprocal influence of the two temporal levels, we are already confronted with an amplitude of perspective which makes the novel breathe."2

A "amplitude de perspectiva" de que fala Sergio Perosa a propósito do romance de Fitzgerald, conseguida pela forma como o tempo é tratado, existe também, embora a um nível mais restrito, na obra de Salinger. Também aí as incursões no passado se sucedem, existindo uma influência recíproca dos dois níveis temporais: o passado determina o presente e este, por sua vez, não faz sentido sem o passado que sobre ele paira.

Do movimento constante entre presente e passado, da influência recíproca destes dois níveis temporais, resulta a riqueza da estrutura temporal de ambos os romances. Para melhor a entendermos, começaremos por analisar o tempo histórico em que estas narrativas se inscrevem.

1 A. A. Mendilow, Time and the Novel, pp. 3-21. Este capítulo intitula-se "The Time-Obsession of the

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1. Os romances e a História

Partindo da distinção estabelecida na introdução entre tempo público e tempo privado, levanta-se uma questão mais vasta ligada ao conceito de tempo público: o papel da história. Se falamos em tempo público, quererá isso dizer que estamos em presença de romances históricos? Qual é a dimensão histórica de The Great Gatsby e The Catcher in the Rye? Parece-nos indiscutível que a história dos EUA tem um grande peso na construção de ambos os romances; muito do ambiente das suas épocas está presente, nomeadamente a inconstância e euforia dos "loucos anos 20" no primeiro caso e a desconfiança e desencanto do período da Guerra Fria no segundo.

1.1 The Great Gatsby e os anos 20

Independentemente da maior ou menor importância acordada aos aspectos históricos no romance de Fitzgerald, é opinião aceite que o escritor tem profunda consciência da sua época e que o conhecimento do momento histórico em que decorre o romance contribui decisivamente para a interpretação que dele fazemos.3

A acção desenrola-se no Leste americano entre a Primavera e o Outono de 1922, sendo completada através de diversas analepses que nos transportam à infância, adolescência e juventude de Jay Gatsby (aliás, James Gatz). Na época em que os acontecimentos narrados têm lugar Nick Carraway tem vinte e nove anos - faz trinta anos no dia do encontro entre Tom Buchanan e Gatsby no Hotel Plaza de Nova Iorque. No final dessa tarde, de regresso a casa, Nick declara a Jordan Baker: "'I just remembered that today's my birthday.' I was thirty."(GG 129) Realçando a importância da idade de Nick Carraway e do facto de Daisy Fay ter cerca de dezoito anos à data da sua relação com Gatsby, Richard Lehan salienta o significado destes dois números,

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correspondentes a duas datas essenciais de mudança na história dos Estados Unidos da América: o final da Ia Guerra Mundial (1918) e o início da Grande Depressão (1929).

Este é também o período em que se situa a "Jazz Age" de Fitzgerald -entre 1919 e 1929-datas essas personalizadas, em The Great Gatsby, nas idades de Daisy Fay e Nick Carraway. Fitzgerald delimita o período histórico em questão de forma mais precisa quando, em 1931, escreve: "The ten year period that, as if reluctant to die outmoded in its bed, leaped to a spectacular death in October, 1929, began about the time of the May Day riots in 1919."4 A "Jazz Age" corresponde a uma "cataclysmic change for the

nation".5 É sintomático que uma das poucas datas especificamente mencionadas no

romance aponte para o ano de 1922, para Fitzgerald o ano fulcral deste período: "May one offer in exhibit the year 1922! That was the peak of the younger generation, for though the Jazz Age continued, it was less and less an affair of youth. [... W]e will never feel quite so intensely about our surroundings any more."6

A "Era do Jazz" está, para Fitzgerald, intimamente ligada aos acontecimentos de "May Day" do ano que se seguiu ao fim da guerra. No dia 1 de Maio de 1919 soldados recém-desmobilizados atacaram grupos de socialistas, acusando-os de serem "un-American", uma vez que se haviam mantido como pacifistas durante a guerra. Estes incidentes, que terminaram com uma intervenção brutal da polícia, foram apenas um dos exemplos da intolerância que se instalou nos EUA juntamente com o "boom" económico do pós-guerra.

Frederick J. Hoffman, um dos grandes estudiosos desta fase da história americana, considera-a uma época de contradições, referindo-se àquilo a que chama "the

4 F. Scott Fitzgerald, "Echoes of the Jazz Age", in The Crack-Up. p. 13.

5 Richard Lehan, The Great Gatsby. The Limits of Wonder (Boston, Mass.: Twayne Publishers, 1990),

pp. 5-6.

6 F. Scott Fitzgerald, "Echoes of the Jazz Age", in The Crack-Up. pp. 15 e 22. Outra data mencionada

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phenomenon of America's industrial wealth and its spiritual poverty".7 A América é nos

anos 20 uma nação onde o crescimento económico não foi acompanhado por idêntico desenvolvimento ao nível das atitudes e valores. Os incidentes de Maio de 1919, juntamente com a perseguição a anarquistas e comunistas, designadamente o caso Sacco

e Vanzetti, constituem exemplos do mal-estar social vivido numa década de optimismo económico generalizado. Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, anarquistas de origem italo-americana, foram presos por assassínio, condenados e executados em 1927, apesar dos protestos públicos de um grande número de intelectuais, tornando-se as vítimas mais polémicas da política de intolerância dos EUA no pós-guerra, o "Red Scare". Tratava-se, segundo a retórica oficial, de uma tentativa de restabelecer os valores tradicionais americanos e purificar a nação, eliminando ideologias vindas do exterior. A chamada Lei Seca, promulgada em 1919, inscrevia-se no mesmo objectivo de reafirmação de valores tão americanos como o do trabalho árduo para o sucesso e o da moralidade puritana. A "Prohibition" é, ao mesmo tempo, uma vitória do Puritanismo e a prova irrefutável das contradições no seio da sociedade americana dos anos 20. São essas contradições que levam à desilusão alguém como Fitzgerald, que mata o sonhador em The Great Gatsby. Em termos de história da América, elas impulsionam o chamado movimento dos expatriados, dando lugar, a nível interno, à Grande Depressão que se seguiu aos "roaring Twenties".

Nick Carraway entende os seus 30 anos como o início de uma "portentous, menacing road"(GG 129), um momento de passagem para um outro grau. De facto, eles corresponderão a uma mudança disruptiva na sua vida, com o regresso ao Midwest. A sua percepção da passagem do tempo e da inevitabilidade do envelhecimento no dia de mais um aniversário aproxima-o de Dexter Green, em "Winter Dreams". Dexter dá-se conta de que a beleza de Judy Jones, a sua Daisy, decaiu com o passar do tempo. Apesar

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de já a ter perdido há muito, a imagem da beleza indestrutível ficara, para ser destruída sete anos mais tarde, quando alguém lhe diz que ela envelheceu:

'"Look here,' said Dexter, sitting down suddenly. 'I don't understand. You say she was a 'pretty girl' and now you say she's 'all right'. I don't understand what you mean - Judy Jones wasn't a pretty girl, at all. She was a great beauty.'

[...] 'Lots of women fade just like that' Devlin snapped his fingers. 'You must have seen it happen.'"8

Também Nick reflecte no dia do seu aniversário: "Thirty - the promise of a decade of loneliness, a thinning list of single men to know, a thinning brief-case of enthusiasm, thinning hair. [...] So we drove on toward death through the cooling twilight."(GG 129, itálico nosso) A sua antevisão do futuro apresenta-se carregada de imagens de solidão, decadência e morte. Embora se trate aqui de uma reflexão pessoal de Nick e não de uma reflexão à escala da nação, é interessante verificarmos como Fitzgerald parece ter uma premonição do que vai ser a década americana de 30, marcada pela depressão económica.

Embora nos pareça redutor ver The Great Gatsby unicamente como um documento da "Jazz Age", a verdade é que "Fitzgerald is a social novelist, though not in the sense in which that phrase is usually understood. [...] For Fitzgerald, the most significant kind of reality is to be found in the observed manners of the immediate social group."9 Os romances de Fitzgerald não se esgotam na representação de um período

histórico, uma vez que visam sobretudo dramatizar as relações das pessoas em sociedade, nomeadamente as dos mais favorecidos na Nova Iorque dos anos 20. E indesmentível que Fitzgerald escreve sobre a moral e dinâmica social do seu tempo, o que levou E. L. Doctorow a afirmar há bem pouco tempo: "[H]e consistently offers the

8 F. Scott Fitzgerald, "Winter Dreams", in Babylon Revisited and Other Stories (New York: Charles

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insights of a first-rate cultural historian."10 Hoffman reafirma a sua convicção de que

"Fitzgerald is representative of the decade"11. Para este "[it] was an age of miracles, it

was an age of art, it was an age of excess, and it was an age of satire."12 Fitzgerald

captou, na sua ficção em geral e em The Great Gatsby em particular, o tom, esperança, possibilidades e desespero dos anos 20. As festas de Gatsby, as bebidas alcoólicas, os automóveis, o dinheiro que brota abundantemente não se sabe de onde, fazem o ambiente dos romances. As referências ao mundo do cinema, a importância da música Jazz e da dança, os jornais que Jordan lê, as preocupações de Tom com a civilização ocidental e o avanço das minorias reflectem o espírito de uma época.

Em pleno optimismo financeiro resultante do grande "boom" económico do pós-guerra, Nick Carraway deixa-se contagiar: "Everybody I knew was in the bond business, so I supposed it could support one more single man. "(GG 9) Em Nova Iorque apercebe-se da promessa da cidade, onde tudo pode acontecer.

"Over the great bridge, with the sunlight through the girders making a constant flicker upon the moving cars, with the city rising up in white heaps and sugar lumps all built with a wish out of nonolfactory money. The city seen from the Queensboro Bridge is always the city seen for the first time, in its first wild promise of all the mystery and the beauty in the world.

[...] 'Anything can happen now that we've slid over this bridge' [...]."(GG 67, itálico nosso)

Mais tarde, em "My Lost City", um dos textos autobiográficos incluídos em The Crack-Up, Fitzgerald descreve a cidade em termos muito semelhantes: "the white glacier of lower New York swooping down like a strand of a bridge to rise into uptown New York, a miracle of foamy light suspended by the stars."13 No entanto, do mesmo modo

que a descrição de Nick introduz o elemento da morte com a imagem de "a dead man [...] in a hearse"(GG 67), também Fitzgerald se dá conta de que o milagre da cidade tem limites. A fragilidade sugerida por "foamy" e "suspended" é confirmada quando o

nova-10 E. L. Doctorow, "F. S. F., 1896-1996", in The Nation, vol.263, no. 9, (1996), 36. 11 Frederick J. Hoffman, The Twenties, p. 122.

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iorquino (que podia ser o próprio Fitzgerald) sobe ao Empire State Building, a nova jóia da arquitectura americana, e se dá conta "for the first time that [the city] faded out into the country on all sides, into an expanse of green and blue that alone was limitless."14 Até

certo ponto, The Great Gatsby fala dos limites de Nova Iorque e dos limites da América. O sonho da América como terra da oportunidade esteve desde sempre ligado à conquista dos territórios a Oeste e ao mito de um lugar para todos. A ideia de que a cidade tem limites aponta para as fronteiras do próprio território e, por consequência, do sonho, na sequência da tese do envelhecimento da América defendida por Frederick Jackson Turner em "The Significance of the Frontier in American History".

1.2. The Catcher in the Rye e os anos 40/50

O cenário de The Catcher in the Rye é também Nova Iorque, desta vez a cidade do final dos anos 40, início dos anos 50, o que leva Harold Bloom a chamar ao romance "a period piece".15 Publicada em 1951, a obra é produto de dez anos de trabalho de

Salinger, mas serão sobretudo os últimos cinco anos, em que a Guerra Fria domina o campo político nos Estados Unidos, que irão ter uma influência decisiva na criação do ambiente de solidão e desencanto em que se movimenta Holden Caulfield. Após o lançamento da bomba atómica em Hiroshima, o sentimento que perdura é o do medo da ameaça nuclear, do optimismo histórico perdido e de um sentido permanente do mal humano, reflectidos no romance de Salinger, por exemplo na visão do Central Park:16

"What made it worse, it was so quiet and lonesome out, even though it was Saturday night. I didn't see hardly anybody on the street. Now and then you just saw a man and a girl crossing a street, with their arms around each other's waists and all, or a bunch of hoodlumy-looking guys and their dates, all of them laughing like hyenas at something you could bet wasn't funny. New

14 Ibidem, p. 32.

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York's terrible when somebody laughs on the street very late at night. You can hear it for miles. It makes you feel so lonesome anddepressed'."(CR 86, itálico nosso)

A acção decorre numa época em que, nos EUA, se assiste a julgamentos consecutivos de indivíduos considerados subversivos não só nos meios políticos, mas também académicos e artísticos. Influenciados pelo discurso político, os americanos suspeitam dos "phoneys" e não falam de si próprios.17 O discurso de Holden Caulfield

ecoa as pressões e contradições da sociedade americana desse tempo. Como sublinha Alan Nadei, "in thinking constantly about who or what was phony, Caulfield was doing no more than following the instructions of J. Edgar Hoover, the California Board of Regents, The Nation, the Smith Act, and the Hollywood Ten, to name a very few."18 A

preocupação de Holden com a verdade leva-o a repetir "really", "if you want to know the truth", "I swear", numa tentativa desesperada de reforçar a veracidade das suas afirmações. Nadei sublinha ainda a utilização de uma multiplicidade de nomes próprios (de pessoas, lugares e coisas) por parte de Holden, como se estivesse a prestar depoimento no "House Un-American Activities Committee", onde era necessário citar nomes e fornecer informação factual.

O próprio facto de Holden colocar em causa a validade de certas palavras e o seu significado poderá ser entendido neste âmbito. Atentemos na reflexão de Holden ao abandonar a casa de Mr Spencer: "I'm pretty sure he yelled 'Good luck!' at me. I hope not. I hope to hell not. I'd never yell 'Good Luck!' at anybody. It sounds terrible, when you think about it."(C7? 19) Ou então no seu comentário no final do capítulo 12: "The Navy guy and I told each other we were glad to have met each other. Which always kills me. I'm always saying 'Glad to've met you' to somebody I'm not at all glad I have met. If you want to stay alive, you have to say that stuff, though. "(CR 92)

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A sua preocupação com a autenticidade da linguagem reflecte uma consciência mais vasta da falsidade circundante. Trata-se da época de McCarthy, da Guerra da Coreia, do medo atómico, que produz a chamada "silent generation", uma geração conformista contra a qual Holden levanta a voz através, por exemplo, das críticas que faz ao pai:

"'All you do [if you're a lawyer] is make a lot of dough and play golf and play bridge and be a hot-shot. And besides. Even if you did go around saving guys' lives and all, how would you know if you did it because you really wanted to save guys' lives, or you did it because what you really wanted to do was be a terrific lawyer, with everybody slapping you on the back and congratulating you in court when the goddam trial was over, the reporters and everybody, the way it is in the dirty movies?"'(C7? 179)

Há nas suas palavras um duro ataque ao conformismo na sociedade de massas e à democracia americana em que o sucesso é a palavra de ordem. Alguns anos mais tarde Salinger viria a dar voz ao mesmo tipo de preocupação através de Franny Glass: "Tm not afraid to compete. It's just the opposite. I'm afraid I will compete - that's what scares me. [...] I'm sick of not having the courage to be an absolute nobody.'"19 A tentação do

sucesso é demasiado grande para Franny, que decide abandonar aquilo que faz melhor: teatro. Holden foge também ao sucesso, nomeadamente ao reprovar propositadamente na escola.20

Holden é, de certo modo, um produto dos anos 40, "[the] last great age of innocence".21 Apesar de declarar que odeia o cinema, Holden frequenta-o e tem

comportamentos que lembram os das personagens incarnadas por Humphrey Bogart. Como elas, ele fuma, frequenta "night clubs", não tem onde se esconder, tem uma atitude de quem está cansado da vida. Os seus comportamentos têm como suporte o cinema dos

19 J. D. Salinger, "Franny", in Franny and Zooev (Harmondsworth: Penguin Books, 1964), p. 29. 20 Vide Josephine Hendin, Vulnerable People: A View of American Fiction Since 1945 (Oxford/New

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anos 30 e 40. Ao recusar tomar decisões em relação ao futuro e encarar a realidade da entrada na idade adulta, Holden tenta desesperadamente não entrar nos anos 50, porque isso implicaria também a possibilidade de ser recrutado para a Guerra da Coreia.

"Incubated during the last years of the Second World War, published in the middle of the Korean War, and having had a definable impact on the literary context of the Vietnam War, The Catcher in the Rye is itself a war novel once removed, a subliminal war novel in which not a shot is fired but the process of conscription is well under way."22

A ideia de que The Catcher in the Rye é um romance de guerra onde não se ouvem tiros parece ganhar consistência se atentarmos na conversa sobre poesia entre Allie e D.B., que é recordada por Holden a dado momento:

"I remember Allie once asked p.B.] wasn't it sort of good that he was in the war because he was a writer and it gave him a lot to write about and all. He made Allie go get his baseball mitt and then he asked him who was the best war poet, Rupert Brooke or Emily Dickinson. Allie said Emily Dickinson. "(CR 146)

Mie demonstra um entendimento precoce do que é a poesia (ou a literatura em geral); ela ultrapassa a referencialidade directa, retratando a guerra sem necessitar de descrever o campo de batalha.

The Catcher in the Rye é um documento da época também na medida em que reflecte as preocupações sociais do final dos anos 40. No ano anterior à publicação do romance de Salinger, David Riesman publicou o seu estudo sociológico sobre a juventude americana, The Lonely Crowd. A análise das mudanças do "American character", no sentido de uma maior importância do grupo de pares e da escola, das maiores solicitações para a ocupação dos tempos livres, da crescente influência dos meios de comunicação de massas no mundo pós-industrial, estão presentes no romance de Salinger na relação amor/ódio de Holden com os colegas, o cinema e o teatro, a música. Holden de certa forma resiste a uma sociedade "other-directed" ao preferir

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actividades como a leitura ("inner-directed") e ao exprimir o desejo de viver como eremita.23

2. O Tempo e as histórias

A complexidade da estrutura temporal de The Great Gatsby é resumida por Ronald Berman quando afirma: "There is a historical world in this text with its own exact chronology, but it subsists within a much deeper temporality."24 Um dos

elementos-chave para entendermos essa complexidade é o peso dos tempos cronológico e atmosférico neste romance, mas também em The Catcher in the Rye.

Na sua introdução a New Essays on The Great Gatsby. Matthew J. Bruccoli cita um estudo sobre o tempo no romance de Fitzgerald, em que se regista a ocorrência de quatrocentas e cinquenta palavras relacionadas com o tempo, com "time", "moment(s)" e "day(s)" a registarem o maior número de ocorrências, oitenta e sete, setenta e três e setenta respectivamente.25 A título de exemplo, verificamos que só no capítulo V, aquele

que descreve o encontro entre Daisy Buchanan e Gatsby na casa de Nick Carraway, há setenta e oito referências ao tempo, incluindo a "clock" e "watch", que constituem motivos recorrentes. Nesse momento fulcral do romance, a pressão do tempo faz-se sentir muito particularmente, com a presença simultânea de passado, presente e futuro. O peso do tempo, a pressão que exerce sobre algumas das personagens e as diferentes percepções do seu significado são centrais na obra, como teremos ocasião de provar.

Do mesmo modo, a questão temporal assume grande importância em The Catcher in the Rye, e também aí a insistência nas referências ao tempo é marcante. Registam-se mais de setecentas palavras relacionadas com o tempo, com a palavra "time"

23 David Riesman, The Lonely Crowd: A Study of the Changing American Character (New Haven:

Yale University Press, 1970).

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a aparecer cerca de cento e oitenta vezes, a maior parte delas na boca de Holden. O carácter obcessivo da questão temporal para Holden está patente na repetição constante de expressões temporais, quer se trate de referências ao tempo cronológico, quer se trate do tempo atmosférico.

Tanto The Great Gatsby como The Catcher in the Rye são fortemente marcados pelas estações do ano em que decorrem: Verão e Inverno, respectivamente. A chegada de Nick Carraway a Nova Iorque coincide com o fim da Primavera e início do Verão, com a promessa de tempos auspiciosos: "And so with the sunshine and the great burst of leaves growing in the trees, just as things grow in fast movies, I had that familiar conviction that life was beginning over again with the summer. "(GG 9-10) Na obra, a promessa da Primavera cedo morre e este recomeço da vida vai mostrar-se ilusório; aliás, a própria comparação com o cinema aponta nesse sentido: "in fast movies" as coisas crescem a um ritmo irreal, artificialmente.26 Os famosos relvados azuis do jardim

de Gatsby são um dos exemplos dessa artificialidade da própria natureza que o envolve. A ideia da mudança é veiculada pela referência às estações do ano que delimitam o tempo cronológico da acção: Primavera e Outono. É o próprio Nick que o diz: "Now it was a cool night with that mysterious excitement in it which comes at the two changes of the year. "(GG 106) A modificação que se irá operar é prenunciada pelas referências à mudança que abundam no capítulo VI, sobretudo com a primeira visita de Daisy a casa de Gatsby. Nick reflecte: "There were the same people, or at least the same sort of people, the same profusion of champagne, the same many-coloured, many-keyed commotion, but I felt an unpleasantness in the air, a pervading harshness that hadn't been there before."(GG 100)

Após a tragédia das mortes dos Wilson e de Gatsby, e confrontado com a indiferença dos Buchanan, Nick sente o apelo do Midwest, para onde regressa em 26 J. S. Westbrook, "Nature and Optics in The Great Gatsby", in F. Scott Fitzgerald: Critical Assessments. II, ed. Henry Claridge (Mountfield, East Sussex, GB: Helm Information, 1991), p. 266.

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Outubro "when the blue smoke of brittle leaves was in the air and the wind blew the wet laundry stiff on the line".(GG 167) Este percurso do Verão para o Inverno corresponde a um movimento da esperança para uma falsa ilusão, do romance para a tragédia. Não é por acaso que a história se inicia no solstício e termina no equinócio. O dia do solstício de Verão - o dia mais longo do ano, que Daisy sempre esquece - constitui o apogeu do movimento solar. É simultaneamente o início da fase descendente, da luz para as trevas. Nick aprendeu a respeitar a passagem do tempo, de que por vezes tinha querido alhear-se na companhia de Jordan: "As we pasalhear-sed over the dark bridge [Jordan's] wan face fell lazily against my coat's shoulder and the formidable stroke of thirty died away with the reassuring pressure of her hand. "(GG 129, itálico nosso)

Em The Catcher in the Rye, as aventuras de Holden Caulfield durante os três dias em que vagueia em Nova Iorque são narradas a posteriori pelo mesmo Holden, entretanto internado num hospital no Oeste. Como no romance de Fitzgerald, também aqui toda a narração é uma analepse, anunciada à partida como tendo um desfecho trágico: "I'll just tell you about this madman stuff that happened to me around last Christmas before / got pretty run-down and had to come out here and take it easy. "(CR 5, itálico nosso) As expressões realçadas fazem antever um final pouco feliz, apesar de a acção decorrer durante a quadra natalícia, com o seu ambiente de frio e neve. É um facto que a grande cidade não oferece ao protagonista ocasiões de paz e alegria genuínas:

"It was lousy in the park. It wasn't too cold, but the sun still wasn't out, and there didn't look like there was anything in the park except dog crap and globs of spit and cigar butts from old men, and the benches all looked like they'd be wet if you sat down on them. It made you depressed, and every once in a while, for no reason, you got goose-flesh when you walked. It didn't seem at all like Christmas was coming soon."(CR 124)

A cidade de Nova Iorque assume contornos de uma personagem no romance. Para além das personagens directamente ligadas a Holden (família, colegas, professores e amigos), as personagens anónimas que povoam o romance são só aparentemente

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"[T]he characters that Holden meets have little depth apart from their function as specimens of a depressingly antithetical world. [...] In this hall of mirrors the apparent multiplicity of experience turns out to be largely a replication of the same experience, in which those who act out of purpose, conviction, or faith are heartbreakingly rare."27

O anonimato inerente à urbe está presente na dificuldade de comunicação e contacto de Holden com os motoristas de táxi, os empregados dos bares e clubes nocturnos, o rapaz do elevador no hotel. No primeiro táxi que apanha, Holden tenta o contacto, para receber uma recusa impaciente: '"Would you like to stop on the way and join me for a cocktail? On me. I'm loaded.' 'Can't do it, Mac. Sorry.' He certainly was good company. Terrific personality. "(CR 64) Todas estas figuras (a maior parte delas sem nome) adquirem importância por serem actualizações concretas da indiferença e frieza da cidade. As freiras que Holden conhece na estação de comboios são uma das poucas excepções; no entanto, Holden descobre que elas são de Chicago, ainda não fazem parte da imensidão da grande cidade, da degradação espiritual que ela apresenta na era atómica.

A referência inicial de Holden aos romances de Charles Dickens, em tom depreciativo, não será por certo obra do acaso; se nos romances de Dickens muitas das personagens são actualizações grotescas da cidade da era industrial, as personagens desenraizadas que habitam o mundo com o qual Holden contacta em Nova Iorque são também grotescas, produtos de uma época em que a sombra atómica paira sobre a sociedade e a urbe: "The bellboy that showed me to the room was this very old guy around sixty-five. He was even more depressing than the room was. He was one of those bald guys that comb all their hair over from the side to cover up the baldness. "(Ci? 65)

A degradação da cidade é veiculada pelo ambiente degradado do Central Park, ao qual se acrescenta o mau tempo. A posição de Holden é a de alguém que está só e indefeso na grande cidade. Daí a sua preocupação constante com os patos do Central

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Park: '"You know those ducks in that lagoon near Central Park South? That little lake? By any chance, do you happen to know where they go, the ducks, when it gets all frozen over? Do you happen to know, by any chance?'"(C7? 64) Os patos simbolizam o próprio Holden, que também não sabe para onde ir. A sua inquietação poderá ser lida como uma tentativa de encontrar protecção para si próprio contra os rigores do tempo e da realidade.

À medida que a narração avança, o tempo atmosférico adquire maior importância, exercendo uma influência mais marcante nas atitudes e estados de espírito das personagens de ambos os romances. No capítulo VII de The Great Gatsby, que narra o confronto decisivo entre Tom Buchanan e Gatsby, há pelo menos quarenta e quatro referências ao calor insuportável que oprime a atmosfera, precipitando o drama interior das personagens: '"But it's so hot,' insisted Daisy, on the verge of tears, 'and everything's soconfused."'(GG113)

Do mesmo modo, também em The Catcher in the Rye o frio agreste do Inverno parece aumentar à medida que se aproxima o final do romance e que a queda de Holden Caulfield parece cada vez mais irreversível: "Boy, I was still shivering like a bastard, and the back of my hair, even though I had my hunting hat on, was sort of full of little hunks of ice. That worried me. I thought probably I'd get pneumonia and die. "(Ci? 161) Os momentos que Holden passa no exterior durante a sua última noite em Nova Iorque são marcados pelo frio intenso e pelo medo de apanhar uma pneumonia e morrer: a ideia da morte aparece, assim, ligada ao frio que faz lá fora, no mundo de Holden, e que contrasta com o aconchego que encontra em casa na sua visita nocturna a Phoebe: "I felt swell, for a change. I didn't even feel like I was getting pneumonia or anything anymore. "(CR 166) No entanto, a casa não chega a ser um local de refugio; Holden entra e sai como um ladrão e receia ser encontrado.

A insistência nas referências ao tempo em ambos os romances faz parte de uma intenção narrativa de âmbito mais vasto que visa colocar ênfase especial na estrutura

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estamos em presença de dois modos de narração distintos, apesar das semelhanças óbvias ao nível da escolha de um narrador de Ia pessoa, que em ambos os casos se

retirou para o Oeste, onde narra acontecimentos nos quais tomou parte no Leste. Para além da circunstância de Nick Carraway não narrar a sua própria história, este encontra-se numa situação de muito menor proximidade temporal com aquilo que narra do que Holden Caulfield. O lapso de tempo existente, no romance de Fitzgerald, entre o tempo em que ocorre a história narrada e o tempo da narração propriamente dita não encontra paralelo em Salinger, visto que Holden conta a sua história nos dias que se seguem à sua ocorrência.

Fica claro desde o início de The Great Gatsby que Nick Carraway escreve "this book"(GG 8) algum tempo passado sobre os acontecimentos, após ter regressado do espaço geográfico que habitara como personagem (o Leste) ao Oeste de onde partira.28

Essa deslocação teve lugar, como nos diz Nick no início da obra, "last autumn"(GG 8), e no final sabemos que passaram dois anos sobre a morte de Gatsby. Nick goza, assim, das vantagens de um afastamento não só no espaço, mas também no tempo, em relação aos acontecimentos que narra. Partindo do Oeste ingénuo da sua juventude, leva a cabo uma "riotous excursion" (GG 8) pela corrupção do Leste, regressando a um Midwest que, como adiante veremos, não corresponde já à sua ilusão.

O afastamento temporal de Nick permite-lhe uma maior reflexão, ao mesmo tempo que arrasta consigo diversos regressos reflexivos ao presente, permitindo-lhe impor o ritmo desejado à história e rever a sua própria posição em relação à narração: "Reading over what I have written so far, I see I have given the impression that the events of three nights several weeks apart were all that absorbed me."(GG 56) Reflexões

28 George Garrett, "Fire and Freshness: A Matter of Style in The Great Gatsby", in New Essays on The

Great Gatsbv. p. 110. George Garrett chama a atenção para o facto de, logo nas páginas iniciais, Nick Carraway se referir à sua história como "this book". O facto de se tratar de uma história escrita implica, na sua opinião, que os acontecimentos são definitivamente do passado e que já houve tempo para uma

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como esta testemunham o papel essencial de Nick como organizador da sua história, ao mesmo tempo que obliteram por momentos a diferença entre o presente da narração e o passado da história.29 Até porque Nick se encontra simultaneamente na posição de

narrador distanciado no tempo e de personagem, participante na acção. É o caso do passo que abaixo se transcreve, em que a súbita mudança para o presente dos tempos verbais coloca o narrador no tempo da acção, isto é, Nick viaja no tempo até à época das festas de Gatsby em que ele também participou dois anos antes, tornando o passado presente pela acção da memória:

"At least once a fortnight a corps of caterers came down with several hundred feet of canvas and enough coloured lights to make a Christmas tree of Gatsby's enormous garden. [...]

By seven o'clock the orchestra has arrived, no thin five-piece affair, but a whole pitful of oboes and trombones and saxophones and viols and cornets and piccolos, and low and high drums. The last swimmers have come in from the beach now and are dressing upstairs; the cars from New York are parked five deep in the drive, and already the halls and salons and verandas are gaudy with primary colours, and air bobbed in strange new ways, and shawls beyond the dreams of Castile."(GG 41-2, itálico nosso)

Esta posição ambígua de Nick leva Berman a afirmar que as múltiplas expressões temporais não implicam necessariamente uma cronologia clara. "Instead, they imply a kind of double vision. [...T]he reader's sense of time and place is affected also by the way that Nick states his own perceptions and restates the dialogue he remembers."30 Em

muitos momentos, a diferença entre a visão de Nick-narrador e Nick-personagem é quase imperceptível. Logo no início do romance passamos do presente da narração para o passado da história de forma tão subtil que o único indício é uma questão de forma: um espaço em branco a separar os parágrafos. Da reflexão introdutória de Nick, já no Midwest, saltamos no tempo para 1922 e no espaço para West Egg, sem que disso sejamos avisados: claramente Nick manipula a cronologia da história que escreve.

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Se a história de Nick é indiscutivelmente escrita, a de Holden Caulfield apresenta uma coloquialidade narrativa que procura imitar a oralidade. Uma das qualidades distintivas da obra de Salinger é, para a generalidade dos críticos, a forma como este conseguiu captar de forma magistral a linguagem dos adolescentes americanos dos anos 40/50, do mesmo modo que Mark Twain captou os falares do Mississippi em The Adventures of Huckleberry Finn. Desde a primeira linha de The Catcher in the Rye que Holden se dirige a um interlocutor, como se de uma conversa se tratasse: "If you really want to hear about it, the first thing you'll probably want to know is where I was born".(C/Î 5) Esta intimidade com o interlocutor/leitor é conseguida através dos constantes apelos directos a uma cumplicidade que não existe com muitas das personagens com quem Holden se cruza no romance.31 Tal cumplicidade é analisada por

Michael Cowan, que procura descobrir quem é o ouvinte de Holden, identificando-o como alguém com idade próxima da sua, também do sexo masculino, com qualidades de inteligência, perspicácia e paciência que o aproximam do público ideal que Hawthorne descreve em "The Custom House".32 Apesar da consistência da argumentação de

Cowan, a opinião mais generalizada e por nós partilhada é a que aponta para que o interlocutor directo de Holden seja o médico (provavelmente psiquiatra) da instituição de saúde onde se encontra no final da obra.

As marcas oralizantes na sua narração são evidentes no uso do calão, da repetição, do itálico enfatizante, de expressões como "anyway" e "boy"(C7? 9) em início de frase e no abuso de abreviaturas, por vezes praticamente indizíveis, como é o caso de "wuddaya say?" ou Td've". Estas características levam Donald Costello a afirmar: "The structure of Holden's sentences indicates that Salinger thinks of the book more in terms

31 Afirma Richard Rees: "Salinger does possess an almost hypnotic gift for creating a sense of exclusive

intimacy between himself and his reader." Richard Rees, "The Salinger Situation", in Contemporary American Novelists, ed. Harry T. Moore (Carbondale/Edwardsville: Southern Illinois University Press,

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of spoken speech than written speech."33 O discurso de Holden reflecte também uma imediaticidade e espontaneidade próprias de um adolescente para quem o presente é marcado pelo passado e o futuro é ameaçador. O imediatismo do discurso não se liga somente às óbvias marcas de oralidade; é uma característica evidente na sua linguagem em geral e, muito particularmente, na utilização dos tempos verbais. Os saltos entre passado e presente são constantes, pois a cada momento Holden tece comentários acerca de acções e acontecimentos passados. Esses comentários ilustram a tendência de Holden para a generalização excessiva, que o torna irredutível em relação a certos tipos de pessoas. Qualquer atitude ou comportamento individual é imediatamente generalizado e categorizado pelo adolescente:

"'Hey,' Stradlater said. 'Wanna do me a big favour?'

'What?' I said. Not too enthusiastic. He was always asking you to do him a big favour. You take a very handsome guy, or a guy that thinks he's a real hot-shot, and they're always asking you to do them a big favour. Just because they're crazy about themself, they think you're crazy about them, too, and that you're just dying to do them a favour."(Cft 32, itálico nosso)

Os exemplos abundam: "On my right there was this very Joe Yale-looking guy, in a grey flannel suit and one of those flitty-looking tattersall vests. AH those Ivy League bastards

look alike. My father wants me to go to Yale, or maybe Pinceton, but I swear, I wouldn't

go to one of those Ivy League colleges if I was dying, for God's sake. "(Ci? 90, itálico nosso)

Esta oscilação entre passado e presente demonstra também uma grande confusão de sentimentos em relação às pessoas com quem Holden convive; a quase todas ele se refere favorável e desfavoravelmente, em diferentes momentos. A linguagem imediatista

33 Estes e outros exemplos das características da linguagem de Holden e do seu significado são

analisados em: Donald P. Costello, "The Language of The Catcher in the Rye", in Holden Caulfield p. 48.

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da personagem aponta, assim, para uma visão da realidade também ela imediatista. A tentação da hiper-generalização condiciona a linguagem de Holden, e vice-versa: a coloquialidade reflecte um imediatismo na forma de entender o real que um discurso mais articulado preveniria.

O discurso de Holden é, portanto, menos reflectido do que o de Nick Carraway. Holden repete-se e contradiz-se a todo o momento, mostrando estar a pensar na sua história pela primeira vez à medida que a conta. Os constantes regressos ao presente apontam também no sentido de uma necessidade imperiosa de manter o contacto com o seu interlocutor ao manter o contacto com o presente: "While I was in the cab, I took out my wallet and sort of counted my money. I don't remember exactly what I had left, but it was no fortune or anything. [...] Tm a goddam spendthrift at heart. What I don't spend, I lose"(CR 113, itálico nosso)

Ao contrário de Nick, que selecciona e organiza os acontecimentos, Holden limita-se a narrar as suas aventuras sem tirar conclusões e ensinamentos das experiências, sem escolher. No final da obra confessa: "If you want to know the truth, I don't know what I think about it. "(Ci? 220) Ele é uma das vítimas da "banana fever" que afecta a maior parte das personagens de J. D. Salinger, e que é diagnosticada por William Wiegand.34 A primeira vítima mortal é Seymour Glass, no conto "A Perfect Day for

Bananafish", onde o próprio Seymour explica a Sybil Carpenter como morrem os peixes-banana:

'"Well, they swim into a hole where there's a lot of bananas. They're very ordinary-looking fish when they swim in. But once they get in, they behave like pigs. Why, I've known some bananafish to swim into a banana hole and eat as many as seventy-eight bananas. [...] Naturally after that they're so fat they can't get out of the hole again.'"35

34 William Wiegand, "Seventy-Eight Bananas", in Salinger: A Critical and Personal Portrait, pp.

123-36.

35 J. D. Salinger, "A Perfect Day for Bananafish", in For Esmé with Love and Squalor and Other

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Seymour ("see more") morre por ver demais e não saber distinguir as experiências importantes das que não o são. Por não diferenciar o amor aos outros do amor próprio, ele "afoga-se" como Narciso, fica preso no buraco como os peixes-banana.

Também Holden quer abarcar toda a experiência sem um critério de selecção, é incapaz de escolher, arriscando-se a ser vítima do mesmo destino dos "bananafish". Daí a sua narração palavrosa e desordenada, uma desorganizada acumulação de experiências mais ou menos importantes, sem o cuidado de selecção e organização de Nick Carraway. Na sua narração ele dá voz às suas idiossincrasias. Essa é, aliás, uma das características da narração em primeira pessoa, aplicável a Holden, mas sobretudo a Nick:

"Fiction in the first person [...] may plausibly be arranged [...] idiosyncratically, particularly since most first-person narrators retain an awareness of two strands of time rather than one - of the time lived through while events are narrated, as well as of the time during which these events were experienced."36

É a consciência da existência desses dois níveis de tempo na narrativa que leva Nick Carraway a reflexões do tipo da que abaixo se transcreve, introduzindo no romance um terceiro nível temporal: o tempo da revisão.37 Dado que Nick está a escrever a sua

história muitos meses mais tarde, ele tem tendência para comentar os acontecimentos e, em alguns momentos, explicar as suas opções narrativas. Os momentos de reflexão e revisão contribuem, assim, para a complexidade da estrutura temporal da obra, sendo possíveis pelo lapso de tempo que decorre entre os acontecimentos do Verão de 1922 e o momento em que Nick conta a história:

36 Randall Stevenson, Modernist Fiction: An Introduction (Hertfordshire, GB: Harvester Wheatsheaf,

1992), p. 88.

37 A distinção entre três níveis de tempo é estabelecida em: George Garrett, "Fire and Freshness: A

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