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Ato de transver: preparação corporal de atores para um espetáculo não visual

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

HIANNA CAMILLA GOMES DE

OLIVEIRA

ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO

CORPORAL DE ATORES PARA UM

ESPETÁCULO NÃO VISUAL

NATAL/RN

2018

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HIANNA CAMILLA GOMES DE OLIVEIRA

ATO DE TRANSVER: PREPARAÇÃO CORPORAL DE ATORES PARA UM ESPETÁCULO NÃO VISUAL.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Drª. Karenine de Oliveira Porpino NATAL/RN 2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Oliveira, Hianna Camilla Gomes de.

Ato de transver : preparação corporal de atores para um

espetáculo não visual / Hianna Camilla Gomes de Oliveira. - 2018. 93 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino. 1. Preparação corporal. 2. Corpo. 3. Atores. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792.02

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“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos Alberto Caeiro”

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Maria Francisca das Chagas, que me apoio sempre e com quem conto eternamente. Mãe, você é mar.

A Igor Barboà, por me encorajar e ter fé em mim. É uma fortuna dividir e construir um arco íris com vista para o rio com você.

A todos e todas que participaram e participam do projeto de extensão O que os olhos não veem. Obrigada por toda troca, aprendizagem e investigação coletiva. Sem vocês essa pesquisa não existiria. Em especial aos atores que aceitaram conversar após os encontros do ato de transver: Maria Flor, Ivan de Melo, Daliana Cavalcanti, Debora Tenório, Thalles Lopez, Geraldo Rodrigues, Elisiana Gomes. Suas vozes ecoaram em mim e por essas páginas.

A Profª Drª Karenine de Oliveira Porpino, orientadora desse trabalho que aceitou com paciência dialogar comigo e com minhas dúvidas para construirmos juntas essa pesquisa. Obrigada por tudo.

A Profª Drª Márcia Strazzacappa Hernandez pela leitura generosa desse texto compondo não só a banca de qualificação, mas a defesa com contribuições para minha escrita.

Ao Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, coordenador do projeto de extensão O que os olhos não veem. Obrigada por permitir que a minha participação no projeto seja uma oportunidade de testar, falhar, ousar, aprender sobre acessibilidade, ensino, teatro, ....sobre a vida.

Ao PPGARC UFRN pela oportunidade de desenvolver essa pesquisa de mestrado em artes cênicas

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RESUMO

A pesquisa trata de aspectos da preparação corporal de atores a partir da vivência com o elenco do Projeto de Extensão O QUE OS OLHOS NÃO VEEM, vinculado ao Centro de Educação e Departamento de Práticas Educacionais e Currículos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre a coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves. Investiga-se como a ausência do sentido da visão influencia as práticas corporais com os atores, como essa situação reverbera em seus corpos para a cena e na percepção de si. Toma-se como foco de investigação os relatos dos membros do projeto de extensão, os quais são analisados por meio da Análise Temática de conteúdo de Bardin. São tomadas como referências as provocações do filósofo Evegen Bavcar sobre outras dimensões do olhar que estão para além dos olhos, como também a ideia poética de Manoel de Barros acerca do ato de transver. Elas compõem a investigação do não visual como possível ferramenta no trabalho corporal de atores, juntamente com os estudos sobre a atenção de Virginia Kastrup e os conceitos de corpo e Heterotopia de Michel Foucault. Como resultados discute-se temas como: a dimensão tátil do olhar, ver como algo relacional, a reversão do estado de atenção, a atenção a si, a preparação corporal como um não lugar, a criação de um corpo utópico e alteridade entre atores e espectadores.

PALAVRAS CHAVES: PREPARAÇÃO CORPORAL; CORPO; ATORES; ATENÇÃO.

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ABSTRACT

The research deals with aspects of body preparation of actors from the experience with the cast of the Extension Project WHAT THE EYES DO NOT SEE, linked to the Education Center and Department of Educational Practices and Curricula of the Federal University of Rio Grande do Norte, about the coordination of Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves. It is investigated how the absence of the sense of sight influences the body practices with the actors, as this situation reverberates in their bodies for the scene and in the perception of itself. As a focus of research, the reports of extension project members are analyzed through Bardin's Thematic Content Analysis. Reference is made to the provocations of the philosopher Evegen Bavcar on other dimensions of the eye that are beyond the eyes, as well as the poetic idea of Manoel de Barros on the act of transver. They compose the investigation of non-visual as a possible tool in the bodywork of actors, along with studies on the attention of Virginia Kastrup and the concepts of body and Heterotopia by Michel Foucault. As results we discuss topics such as: the tactile dimension of the look, see as something relational, the reversal of the state of attention, attention to self, body preparation as a no place, creation of a utopian body and alterity between actors and spectators.

KEY-WORDS: BODY PREPARATION; BODY; ACTORS; ATTENTION.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 10

CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos ... 23

1.1. O que os olhos não veem o coração não sente ... 23

1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo” ... 29

CAPÍTULO 2: “Ver é algo para além dos olhos: Uma vivência de corpo inteiro” ... 43

2.1. Eixo Temático I: A ação de ver como algo relacional... 43

2.1.1. De olhos fechados é que me vejo e vejo o outro ... 48

2.2. Eixo Temático II: Percepções do corpo ... 52

2.2.1 A criação de um não lugar ... 52

2.2.2 Transvendo o corpo ... 56

CAPÍTULO 3: Eu sou você, eu vejo você ... 63

3.1 Se colocando no lugar do outro ... 64

3.2 A totalidade do ser sensível ... 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 73

REFERÊNCIAS ... 76

ANEXO I: FICHAS DE CONTEÚDOS ... 78

ANEXO 2: TABELAS DE DESCRIÇÃO DO CONTÉUDOS DE CADA NÚCLEO DE SIGNIFICADO... 84

ANEXO 3: TABELA DE EIXOS TEMÁTICOS ... 90

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INTRODUÇÃO

Minha fala é de dentro. De quem fala lá do meio, do olho do furacão De quem está mergulhado até a cabeça em tudo isso E por isso é tão difícil se separar Separar a si.

Quero, nesta introdução, compartilhar algumas questões que me inquietaram durante a iniciativa de idealização desta pesquisa de mestrado em Artes Cênicas, até o momento intitulada “Ato de transver: preparação corporal de atores para um espetáculo teatral não visual”, além de explicar o meu real envolvimento com a pesquisa e o local de onde reflito sobre ela.

Minha maior preocupação, ao iniciar essa pesquisa que se encontra em andamento, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, era como conseguir me distanciar, na condição de pesquisadora, do meu objeto de pesquisa. A minha relação com a prática corporal dos atores é tão forte que extravasa o ambiente acadêmico e inunda o meu fazer artístico. Por isso, para mim, foi necessário substituir processo de distanciamento, por um mergulho profundo de alguém que está submersa e compreende que, ainda assim, é preciso ir mais fundo.

Essa pesquisa parte dos questionamentos e dos pensamentos de alguém que se vê imersa em um fazer artístico e possui necessidade de refletir sobre ele. Nesta perspectiva, existe um caráter quase de relato de experiência, pois nasce das minhas vivências como atriz e depois, como mediadora da preparação corporal dos atores do Projeto de Extensão “O QUE OS OLHOS NÃO VEEM”.

O projeto está vinculado ao Centro de Educação e Departamento de Práticas Educacionais e Currículos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves. Este possui como integrantes

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11 discentes da UFRN dos cursos de Teatro, Artes visuais, História, Música, Comunicação Social e alunos da Pós-Graduação em Educação e Artes Cênicas, além de membros da comunidade como colaboradores do projeto.

Os trabalhos desenvolvidos a partir do projeto ocorrem no âmbito das investigações sensoriais atreladas a um processo educacional e artístico da construção de espetáculos. Inicialmente, a cegueira se encontra como temática norteadora, compondo uma tríade junto com os temas do Corpo e da Audiodescrição1.

Em suas propostas de espetáculos o público, sem o agenciamento da visão2,

o projeto permite ao público vivenciar uma experiência sinestésica por meio de estímulos sensoriais de cunho olfativo, sonoro, tátil e degustativo que são orquestrados durante o decorrer da apresentação. O objetivo não é de colocar e/ou fazer com que os espectadores se coloquem no lugar das pessoas com deficiência visual, mas sim, que elas possam exercitar as diferentes formas de ver o mundo.

Ver, neste caso, se encontra como algo para além dos olhos, algo semelhante ao que propõe Evgen Bavcar (2003), fotógrafo esloveno, que perdeu a visão durante sua infância, ao afirmar que não se pode ver somente com os próprios olhos, mas que um conjunto de dados influencia na nossa forma de ver, isto é, que o corpo não opera somente através de um sentido, mas em um enfoque multissensorial, no qual percebemos que somos nutridos de várias percepções. Essas chegam através das interações do corpo com os demais sentidos para ler uma imagem.

Por exemplo: se chegarmos na praia de olhos fechados, ao escutarmos a arrebentação das ondas e sentirmos o cheiro da maresia, poderíamos apontar a direção do mar e uma imagem mental deste lugar pode ser gerada em nossas mentes, pois nós utilizamos dessas percepções para construir uma leitura. Deste mesmo

1 Audiodescrição é um recurso de acessibilidade comunicacional que se configura como uma tradução intersemiótica (imagem para palavra), que tem como objetivo descrever os elementos imagéticos que não seriam compreendidos na ausência desse discurso verbal. Esse recurso tem como público -alvo principalmente as pessoas com deficiência visual, mas pode ser utilizado também por pessoas com deficiência intelectual, dislexia ou idosos.

2 O não agenciamento da visão em questão se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego ou não.

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12 modo, Bavcar ao fotografar se utiliza da voz do outro para posicionar o foco da câmera. Ele nos convida a perceber como nosso olhar também recebe enquadramento do olhar do outro por meio do que é externo a nós:

Eu utilizo uma espécie de telescópio para ver as estrelas. Todo mundo utiliza o olhar do outro só que em outros planos, sem se dar conta sempre. E como não se pode ver com os próprios olhos, somos todos um pouco cegos. Nós nos olhamos sempre com o olhar do outro, mesmo que seja aquele do espelho. (BAVCAR 2003, p.12).

Desse modo, o maior desafio é construir um espetáculo no qual a dramaturgia se desdobra por meio de uma perspectiva multissensorial, através dos estímulos olfativos, táteis, sonoros e até gustativos, que chegam como dados fornecidos ao público, para que este construa, com base nessas informações, um outro olhar. Um olhar que extrapola o sentido da visão e engloba o corpo todo, tomando, assim, emprestado a forma como as pessoas cegas veem.

Para Bavcar (2003, p.143) o olhar do cego ocorre de outra maneira. A pupila dos cegos é o seu corpo inteiro e eles podem, impunemente, voltar-se para o sol como se tivessem aprendido o reflexo condicionado dos girassóis. O significado de “ver”, neste caso, não está ligado ao fazer uso do sentido da visão e sim, a ideia de enxergar como algo para além dos olhos, algo que se dá no corpo por completo, do modo como os demais sentidos obtêm informações que permitem tomar conhecimento do que está a sua volta.

Deste mesmo modo é que o público vivencia essa forma de ver no decorrer do espetáculo “O que os olhos não veem”: anula-se momentaneamente a visão ocular para que os estímulos sensoriais, juntamente com as ações corpóreo/vocais dos atores que compõem cada cena, permitam ao público criar imagens mentais. Sendo assim, parte da peça teatral ocorre na imaginação de cada espectador, de acordo com as leituras que estes realizaram.

É como uma imagem refletida no espelho. O espectador tem em seu imaginário a imagem do espetáculo refletida através do espelho, que é a relação dos estímulos sensoriais, com a atuação dos atores em cena, porém a imagem que cada pessoa vê

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13 é diferente, pois cada uma dá o seu significado a essa representação. Como o discernimento de cada cena ocorre de forma individual, podemos dizer que o espectador assume a função de coparticipante de cada cena e a dramaturgia se completa na sua imaginação.

A não vidência faz parte das pesquisas do projeto de extensão na busca de provocar a criação de cenas multissensoriais, que rompam com visocentrismo na arte do teatro, a partir de uma reflexão sobre a origem epistemológica da palavra teatro, que do grego théatron significa “lugar de onde se vê” (PAVIS, 2011, p.409).

Esse modo de compreender a experiência teatral questiona a ideia do filósofo e estudioso do teatro Denis Guenoun (2003) ao afirmar que, “Uma assembleia se reúne no teatro - para fazer o quê? Para ver. - Ver e ouvir, assistir, sentir? Claro, porém, mais essencialmente ainda: para ver. Teatro provém do verbo grego que significa: olhar. E se, na arquitetura antiga, o termo designa o lugar do público mais que a cena ou a orchestra, é primeiro por esta raiz: o teatro (as arquibancadas) é o lugar de onde se vê (GUENOUN, 2003, p.43). Ou que, o teatro só germina quando alguma coisa é proposta à visão. Nas cenas propostas pelo projeto O que os olhos não veem não há o uso da visão, no entanto, há teatro. Este ocorre apesar da não vidência dos espectadores no decorrer do espetáculo inteiro, sem que os atores sejam vistos ou sequer os objetos cênicos manipulados por eles.

Sendo assim, em suas pesquisas, O que os olhos não veem procura fazer do teatro um lugar onde não se vê, através da ruptura com a cena visual.

Se tomarmos o pensamento de Guenon sobre o lugar do público como “o lugar de onde se vê” para refletir a cena, que não faz uso da visão para sua apreciação, logo o lugar deste não é mais o de quem vê e sim, o de quem não vê, já que não fará utilização do sentido da visão para acompanhar a cena, mas dos outros sentidos.

Para instaurar esse lugar onde não se vê, o grupo vem buscando formas de construir cenas que explorem a multissensorialidade, nas quais o espectador, seja ele vidente ou não, faça uso de vendas para anular momentaneamente o sentido da visão, de forma que para este assistir as cenas, se faz necessário o despertar dos demais sentidos, rompendo com a ideia de que apenas “vemos com os olhos” e ampliando para visão com o corpo todo.

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14 Dentro do projeto de extensão, mantemos a mesma ideia sobre a necessidade das práticas corporais dos atores, de modo que esta se aproxima da perspectiva de manutenção do ofício do ator, que independe da criação de espetáculo, mas que está diretamente ligada aos processos criativos. E é uma possibilidade de despertar o ser sensível apontado por Peter Brook:

De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercícios, é a mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro. “Ser sensível”, para um ator, significa estar permanentemente em contato com a totalidade de seu corpo (BROOK, 2000, p.18).

Ao vivenciar práticas corporais, suprimindo o uso do sentido da visão como parte do processo de criação de cenas não visuais, dentro do projeto de extensão “O que os olhos não veem”, na condição de atriz e, mais a frente, como mediadora de tais práticas, comecei a notar que as minhas noções de espacialidade, eixo de equilíbrio, escuta, percepção da trajetória de movimento corporal e de relação com o outro ganharam outra dimensão durante o trabalho. Mais tarde, passei a perceber também suas inovações nos atores fazendo uso das vendas.

Isso iniciou o despertar para alguns questionamentos em mim, tais como: Qual a importância do uso das vendas3 por parte dos atores, já que se estes não farão uso

destas durante o espetáculo e sim o público? Como a não vidência inserida nas práticas corporais reverbera nos corpos dos atores? Essa prática pode ser um caminho para romper com o corpo cotidiano e acessar um corpo extracotidiano para criação cênica? Como a relação de troca e criação se dá com o outro se ambos estão momentaneamente sem enxergar?

Tomando como referência inicial as provocações dessas indagações, foi que comecei a desenvolver essa pesquisa, no campo das artes cênicas, voltada para reflexões sobre a preparação de elenco para compor um espetáculo não visual. Com

3 As vendas pretas, feitas de tecido e elástico, semelhantes às usadas como tapa olhos para dormir, são utilizadas pelos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem durantes as práticas corporais, e também pelo público durante os espetáculos.

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15 o objetivo é investigar a experiência das práticas corporais realizadas a partir da não vidência, a preparação de elenco no teatro, bem como as percepções corporais dos atores, nesse contexto, se relacionam ao seu fazer artístico.

O desenvolvimento desta pesquisa no campo das artes cênicas é de profunda importância por fortalecer as práticas corporais sensoriais como possibilidade de construção de um corpo consciente e pronto para cena, sendo esta uma alternativa para preparadores de elenco. Além de apontar um caminho para o trabalho individual e descoberta das potencialidades do próprio corpo através da atenção em si mesmo, isto se torna um universo de oportunidades para construção cênica e investigação de atores.

A pesquisa também indica um meio para que pesquisadores do corpo dentro dessa área possam fazer uso da não visão para pessoas que veem como percurso para ampliar a percepção dos corpos nesse processo e redescobrir, desta forma, os potenciais cênicos dos atores a partir de si, das relações que estes constroem da consciência do corpo.

Acredito na importância desse trabalho de mestrado como algo relevante para os artistas que compõem o projeto de extensão O que os Olhos não veem, e para alimentar as pesquisas desenvolvidas no mesmo, pois se propõem a refletir sobre os aspectos das práticas corporais investigadas dentro do projeto de extensão.

Para além disto, esta pesquisa auxilia na fomentação da formação artística difundindo, através do meio acadêmico, mais uma forma de fazer artístico desenvolvido por um grupo da própria instituição onde a pesquisa é realizada.

Assim, a pesquisa indica caminhos para pessoas ditas normais, que desejam ampliar a sua percepção corporal através da imersão nesta prática de desenvolver exercícios corporais, aliados à restrição do uso do sentido da visão. Portanto, este trabalho toca na sensibilidade que diretores, preparadores corporais, professores de teatro e qualquer profissional precisa ter ao decidir trabalhar com pessoas que necessitam de adaptações para realizações das atividades mediadas por estes.

Listo aqui alguns grupos que se utilizam da restrição do uso da visão com seus atores e/ou os espectadores, além da sensorialidade como ferramenta para

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16 desenvolver espetáculos de teatro, tais como o grupo O que os olhos não veem, de onde partem as provocações discutidas ao longo dessa pesquisa, sendo estes:

Companhia brasileira de teatro, é um coletivo de artistas de várias regiões do país fundado pelo dramaturgo e diretor Marcio Abreu em 2000, em Curitiba. Em seu repertório, há um espetáculo chamado "A viagem" cuja a proposta é conduzir o espectador vendado a uma viagem sensorial, guiado por um ator que narra sua história por meio de estímulos que compõem a dramaturgia. A concepção deste trabalho se aproxima do que realiza o projeto de extensão, no entanto a companhia encerrou suas investigações sobre o tema, restringindo a elaboração da peça e tomando outros rumos para seu fazer teatral, o oposto ao projeto da UFRN, que continua a desenvolver suas pesquisas com suas criações cênicas.

Sensorama (México) que trabalha na concepção de seus espetáculos a 18 anos, faz uso de provocações sensoriais para treinamento de atores, ponto de convergência com O que os olhos não veem. No entanto, o grupo mexicano tem essa prática como ideia de imersão em uma vivência teatral como recurso de sensibilização estética, acreditando que suas apresentações são um evento e também utiliza disto em cursos e oficinas oferecidos a empresas.

Teatro de los sentidos (Barcelona) explora, em seus espetáculos, a manipulação de objetos para criação de uma dramaturgia, fazendo relação com estímulos que esses provocam aos sentidos, porém, durante as apresentações, o público enxerga toda cena em muitos dos seus espetáculos, diferente da proposta do grupo O que os olhos não veem. O grupo de Barcelona nomeia essa prática de “poética dos sentidos” e compartilha suas experiências em workshops, cursos, nos programas de formação universitária em parceria com a Universidade de Girona Foundation no programa de Pós-Graduação e no caráter de intercâmbio universitário.

Com o intuito de um diálogo maior desta pesquisa com as atividades desenvolvidas por esses grupos, foi realizado uma busca nos sites4 da internet dos

mesmos, com a finalidade de encontrar materiais publicados que relatassem sobre o

4 Informações retiradas dos seguintes endereços eletrônicos: http://sensorama.mx/ (site da internet do grupo Sensorama), http://www.companhiabrasileira.art.br/ (site da Companhia brasileira de teatro) e

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17 trabalho de preparação dos atores para construção dos espetáculos ou a metodologia aplicada. No entanto, informações não foram encontradas.

No âmbito acadêmico, dois trabalhos se aproximam dessa pesquisa de mestrado: o primeiro desenvolvido por Everson Oliveira Cruz, e orientado pela Prof.ª. Dra. Karenine de Oliveira Porpino, dentro do Programa em Pós-

Graduação em Artes Cênicas da UFRN e intitulado “O que os olhos não veem: O não visível como forma sensível de apreciação”, que aborda o primeiro espetáculo do projeto de extensão O que os olhos não veem, com atenção a cena não visível, para discutir no território da recepção teatral a respeito do olhar do espectador em uma proposta cênica que não faz uso da visão. O objetivo da pesquisa é investigar como isso permite a compreensão do espectador a partir relação do seu corpo com o espaço e como isto potencializa a capacidade de apreciação. São discutidos três temas: o espaço da cena e o espaço do corpo; a reversibilidade dos sentidos na cena: e a emancipação do olhar. Cruz (2017) ampara seu trabalho em aspectos do campo da recepção teatral sobre os estudos de Flávio Desgranges e vincula a cena não visual sobre o aporte da Fenomenologia, segundo Maurice Merlau-Ponty, além de situar o olhar do espectador como um olhar emancipado com base nos escritos de Jacques Ranciére.

Os pontos de diálogo entre a pesquisa desenvolvida por Cruz (2017) são o projeto de extensão O que os olhos não veem e temáticas envolvendo a multisensorialidade, corpo e percepção, porém, o enfoque da pesquisa diverge, uma vez que o meu interesse é nas relações que se estabelecem com os atores durante sua preparação corporal para criação do espetáculo, e não durante o espetáculo, ou sob a ótica do espectador, como no trabalho de Cruz (2017). Destaco ainda que os teóricos que se configuram como interlocutores de cada pesquisa são diferentes devido as áreas de conhecimento, pois para tratar sobre conceitos de corpo e espaço dialogo com Michel Foucault, sobre aspectos da percepção, abordo o referencial de atenção si, apontado por Virginia Kastrup, e para discutir aspectos sobre o olhar, abordo Evgen Bavcar.

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18 O trabalho de Everson Oliveira Cruz é de fundamental importância por me impulsionar a pensar sobre a preparação corporal dos atores para os espetáculos do grupo O que os olhos não veem.

Já o segundo trabalho é da atriz/pesquisadora Lolita Goldschimidt, realizado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRS, como o título “PROCURANDO PAUSAS EM TEMPOS ATUAIS - UM ESTUDO DO

YOGA PARA O TEATRO”. Seu objeto de pesquisa é refletir sobre possíveis modos de utilização do yoga para o fazer teatral. Dentro desta pesquisa, Goldschimidt (2015) analisa três experimentações de yoga inseridos no fazer teatral, distintas e aplicadas por ela e cita as experimentações com o grupo de pesquisa de linguagem acessível em artes cênicas, que possui práticas nomeadas por Goldschimidt (2015) de práticas corporais de sensibilização, que propõe restrição do sentido da visão aos participantes como ferramenta de diálogo com o trabalho, através de recursos de acessibilidade para espetáculos teatrais. Essa ideia consiste em sensibilizar os atores, diretores, pesquisadores do grupo de pesquisa, audiodescritores e interpretes de libras sobre a percepção das pessoas com deficiência ao apreciarem espetáculos com recurso de acessibilidade. Este não é o foco da pesquisa e sim, um relato de uma prática dentro das experimentações que analisou em seus estudos. A relação entre o yoga e o teatro é, de fato, seu objetivo e não as práticas sem a visão.

Para refletir sobre as práticas corporais do projeto de extensão O que os olhos não veem, convido os coparticipantes dessas práticas, os atores que as vivenciam, compreendendo que seus relatos da experiência revelam e influenciam na percepção de seus corpos e no processo de criação cênica.

Ao pensar sobre a vivência dos atores dentro do projeto de extensão, me aproximo do conceito de experiência como aquilo que vivemos, que nos passa, semelhante ao conceito abordado por Jorge Larrosa Bondía (2011, p.07) ao dizer que, “a experiência é isso que me passa”. A experiência supõe, como já vimos, que algo que não sou eu, um acontecimento, passa, mas supõe, em segundo lugar, que algo me passa. Não que passe ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer dizer, em mim. A experiência supõe, como já afirmei, um acontecimento exterior a mim, mas o lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias,

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19 ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade) onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar. Não “isso que passa”, mas “isso que me passa”. Por isso, considero que não existiria ninguém melhor do que os atores para descrever a experiência de restrição da visão como parte da preparação corporal.

Para dar lugar à experiência de cada ator é que trago as suas falas como traço da experiência materializada, pois não considero justo falar sobre o trabalho que realizamos juntos sem os apontamentos e reflexões deles. A forma que trabalhamos nos configura como um grupo de múltiplas vozes e de origens diversas.

Há entre o elenco estudantes da licenciatura em teatro, do curso de história (bacharelado e licenciatura), artes visuais, música, jornalismo, a professora Mayra Montenegro, do corpo docente do Curso de Teatro e eu mestranda em artes cênica, todos com vínculo institucional com a UFRN. Somos negros, brancos, baixos, altos, magros, gordos, videntes, cegos... Artistas que se aventuram juntos neste fazer teatral nosso que compreende que se vê de corpo inteiro.

Trago as falas dos meus companheiros de trabalho, pois acredito que eles e elas são partícipes da experiência da preparação corporal, que denomino o ato de transver. Esse ato é semelhante a um local onde comunga o treinamento do ator imerso e o universo de criação do espetáculo teatral O que os olhos não veem. Este processo criativo e de manutenção do ator se junta para uma mudança de entendimento da dimensão do olhar, pois no ato de transver, ver é algo que se faz de corpo inteiro. Por esse motivo, o olhar ganha uma condição tátil, sonora e olfativa.

As falas que estão inseridas nesta pesquisa são frutos da gravação em áudio de rodas de conversa, estabelecidas como práticas de autoavaliação dentro do projeto de extensão. Nas conversas, avaliamos o trabalho que realizamos juntos, onde cada um expõe suas percepções e descobertas que teve no respectivo dia de trabalho corporal, sejam as dificuldades, sejam os ganhos.

Os áudios foram todos gravados com a autorização por escrito do uso de seu conteúdo, assim como os nomes reais dos sujeitos, para coleta de dados desta pesquisa, assinado pelo elenco e pela coordenação do projeto de extensão. As

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20 gravações são úteis não só para as reflexões desta pesquisa, mas podem ser usadas para as demais pesquisas desenvolvidas por membros do projeto de extensão.

O registro dos áudios foi realizado durante os encontros de trabalho do grupo O que os olhos não veem, que ocorreram de março de 2017 a junho de

2017, nas terças-feiras no período das 14h às 17h, na sala “C” do Departamento de Artes da UFRN.

Para análise deste material, faço uso da técnica de Análise de Conteúdo chamada Análise de Temática, da autora Laurence Bardin, com o intuito de tratamento dos dados visando uma pesquisa de caráter qualitativo. A autora descreveu a seguinte análise de conteúdo:

Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimento relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (MINAYO,1998, p.199 apud BARDIN, 1979, p.42)

Compreendo que este conjunto de técnicas tem como objetivo atingir os significados notórios e encobertos no material e para esta pesquisa, a Análise Temática é utilizada como técnica.

Após ouvir os áudios de cada gravação, dou início ao uso da Análise Temática sobre os temas comuns nas narrativas de cada ator, contidas nas gravações de áudios analisadas. Passo por três etapas: (i) Pré-análise, (ii) A separação e criação dos Núcleo de Significados e (iii) A correlação das falas dos atores com referenciais teóricos desta pesquisa. A análise dos áudios continuam em andamento atualmente, pois a pesquisa permanece em processo de construção.

Na etapa da Pré-análise, os áudios foram transcritos e lidos com o intuito de separar o conteúdo a ser analisado. Essa análise ocorreu segundo dois quesitos de relevância: repetição e representatividade. Considerando o quesito da repetição, não só aquilo que aparecia várias vezes nas falas dos atores, mas que também era colocado por eles como algo importante a ser acentuado. E quanto ao fator

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21 representatividade, estava atrelado aquilo que era dito apenas uma vez, ou não, mas que expressava um significado importante para as questões de pesquisa.

Na segunda etapa, o material foi separado no que chamo núcleos de significados, que são o agrupamento de partes das falas dos participantes da pesquisa de acordo com o grau de repetição e a representatividade dos temas tratados nas falas dos atores e que se encontram disponíveis para consulta nos anexos.

A última etapa é a fase de leitura dos núcleos de significados, estabelecendo um diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa para criação de eixos temáticos, que são compostos do agrupamento de núcleos de significados e abordam temas semelhantes e/ou complementares. Os eixos temáticos fundamentam parte das discussões dos capítulos dois e três desta pesquisa. Essa fase se encontra em andamento e até o presente momento, as investigações desta pesquisa estruturaram o primeiro capítulo e parte do segundo capítulo.

O primeiro capítulo, intitulado “Um convite a fechar os olhos”, venho descrever sobre o meu envolvimento com o projeto de extensão O que os olhos não veem, suas práticas corporais, que são tão minhas quanto do grupo de atores que o compõem, além de questionar as semelhanças e cisões entre o treinamento corporal e a preparação de atores, apresentando a ideia do ato de transver como prática desenvolvida por mim no grupo. Uma possibilidade de trabalho com atores que retomo mais à frente.

No capítulo dois, “Ver é algo para além dos olhos: uma vivência de corpo inteiro”, promovo uma reflexão a partir das falas dos atores, estruturadas em eixos temáticos, constituídos pelos núcleos de significados em interlocução com os referenciais teóricos, que fundamentam as discussões sobre as dimensões físicas e imagéticas do corpo dos atores durante o ato de transver. As discussões são respaldadas pelas pesquisas sobre atenção a si, a reversão da atenção e a dimensão tátil do sentido da visão, com base nos estudos da autora Virginia Krastrup5 sobre

5 Virginia Krastrup é psicóloga com doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997) e pós-doutorado no CNRS, Paris (2002) e CNAM, Paris (2010).Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia

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22 atenção e cognição de acordo com Francisco e Varella , e nas pesquisas do filósofo francês Michel Foucault acerca do espaço heterotópico e sobre utopia corporal, ambos termos por ele utilizado, em uma de suas rádioconferências (FOUCAULT, 2013); e relacionando com aspectos da visão e sua percepção, que estão inseridos nos questionamentos do estudioso da fotografia, o esloveno Evgen Bavcar.

Como parte estrutural da pesquisa, exponho aqui o capítulo dois apresentando os dois Eixos Temáticos de onde partem as discussões teóricas com o aporte já apontado aqui, juntamente com os depoimentos dos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem. Nomeio os Eixo Temáticos da seguinte maneira: Eixo I: A ação de ver como algo relacional; Eixo II: Percepções do corpo. Há ainda o Eixo III nomeado Alteridade que deu margem para construção do terceiro capítulo.

No último capítulo intitulado “Eu sou você, eu vejo você” abordo as questões sobre o contexto do Eixo temático III entorno da alteridade partindo da definição significado da palavra e do sentido empregado por Michel Foucault para as relações de alteridade, correlacionando com as falas dos atores sobre a experiência não visual do ato de transver e sua importância para o grupo.

Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: cognição, invenção, produção da subjetividade, aprendizagem, atenção, arte e deficiência visual.

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CAPÍTULO 1: Um convite a fechar os olhos

“A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.” (MANOEL DE BARROS)

Descobrir e me aventurar em novas maneiras de desenvolver o fazer teatral é uma marca sobre o meu percurso de formação enquanto artista. Por isso, sempre fui muito aberta a mergulhar em novas vivências, assim, não tive como dizer “não” ao convite feito por Everson Oliveira Cruz6, na época, diretor do espetáculo O que os

olhos não veem, a participar na condição de atriz.

Neste primeiro capítulo, relato sobre o lugar de origem desta pesquisa; sua relação com o projeto de extensão O que os olhos não veem; como este é; quais as pesquisas desenvolvidas e sua origem. Como ocorrem as práticas corporais realizadas dentro do projeto, mediante a necessidade de desenvolver um processo de preparação corporal para atores, dialogando com o processo de criação do espetáculo.

1.1. O que os olhos não veem o coração não sente

6 Ator e diretor do espetáculo O que os olhos não veem, do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente, que no decorrer de sua trajetória dentro do projeto de extensão desenvolve a pesquisa de mestrado no programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

UFRN, O QUE OS OLHOS NÃO VEEM: O NÃO VISÍVEL COMO FORMA SENSÍVEL DE APRECIAÇÃO, aborda questões da recepção teatral em relação a cena não visual.

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24 Ao chegar à primeira reunião com o grupo, obtive contato com a história que impulsionou a nomeação do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente e, mais à frente, o nome do espetáculo teatral desenvolvido pelo grupo. Trago, então, o relato que ouvi e que integra o texto da ação de extensão do projeto junto a UFRN.

“Na hora do intervalo, Carla conversava com uma colega na sala de aula sobre o fato dela estar “afim” de um dos meninos da mesma sala. E a grande dúvida era se já está na hora de se aproximar mais do garoto ou se aguardava mais um tempo. A colega informou que já vinha notado “certos olhares” do garoto para a amiga. Isso a estimulou a ser mais explícita em relação ao seu interesse. Dali por diante, iniciou-se um jogo de sedução, fazendo com que Carla começasse a conversar com o garoto, a entrar na arena das insinuações, das “deixas”. No entanto, em uma das ocasiões em que todos retornavam do intervalo para a sala de aula, a amiga de Carla disse-lhe que havia algo escrito no quadro que ela não iria gostar e, imediatamente leu: “Se ‘o que os olhos não veem, o coração não sente’, como uma cega pode amar?” Essa frase feriu a alma de Carla e explicitou os preconceitos em relação às pessoas cegas, mesmo que por trás dessa manifestação preconceituosa, estivessem motivações de ciúme ou de inveja.”

O que os olhos não veem, nasce em 2014 na UFRN, a partir das provocações sobre estigmas dessa narrativa e de outras pessoas cegas, tais como essa jovem que foi nomeada como Carla, estudante, que cursava o Ensino Médio, na época e era voluntária no Instituto de Educação e Reabilitação de Cegos do RN (IERC) como professora de Braille e de soroban7, com quem entramos em contato através das

oficinas e visitas realizadas no instituto. Assim, o projeto foi criado a partir das pesquisas sobre a relação entre arte, deficiência visual e questões de acessibilidade cultural, tendo a coordenação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, vinculado ao Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do Centro de Educação da UFRN.

O projeto, segundo ALVES 2017 no relatório da ação de extensão no SIGAA da UFRN, tem como objetivo desenvolver um processo educativo e estético de

7 Soroban, é um ábaco japonês utilizado para realizar operações matemáticas de soma, subtração, multiplicação, divisão e até raiz quadrada, aperfeiçoando o cálculo mental. Por isso é adota como ferramenta para auxiliar no ensino de matemática para cegos. 8A supressão da percepção visual neste caso se faz por meio do uso de vendas por parte do público, seja este cego ou não.

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25 criação teatral, de construir um espetáculo a partir da articulação de histórias de vida e narrativas ficcionais em torno da cegueira, tendo como referência a supressão da percepção visual8 em favor da exploração cênica dos outros sentidos,

compreendendo o processo artístico como um processo de formação dos artistas envolvidos.

Assim, o projeto provoca uma reflexão acerca da etimologia da palavra teatro, théatron no grego, que de acordo com Patrice Pavis (2011, p.409) seria

“o lugar de onde se vê”, ao transformar o teatro no lugar onde não se vê, e ampliando o entendimento do ato de ver como algo que está para além dos olhos, algo que se dá de corpo inteiro através da multissensorialidade, gerando um trocadilho com o nome do próprio projeto.

As investigações do projeto culminaram no espetáculo O que os olhos não veem, fundamentado na experimentação multissensorial sem o agenciamento da visão, provocando o público a encontrar outras formas de olhar, que proporcione dialogicamente o enxergar do outro e a nós mesmos através da cena teatral, organizada por estímulos sensoriais. Todo o seu processo de criação ocorreu durante os anos de 2014 e parte de 2015, estreando, neste mesmo ano e passando por remontagem devido a mudanças no elenco durante o semestre de 2015.2.

De acordo com os relatórios de ações de extensão do grupo na UFRN (ALVES, 2014 e 2017), os estudos teóricos que implicam diretamente nas práticas desenvolvidas nas ações de extensão do projeto, ocorrem a partir das iniciativas dos próprios participantes e através da orientação do Professor Dr. Jefferson Fernandes, em um diálogo direto com arcabouço teórico entrelaçado pelas provocações da dimensão do olhar do filósofo esloveno Evgen Bavcar, respaldados pela dimensão multissensorial do corpo humano, segundo as pesquisas de Amanda Torjal e José Alfonso Ballestero-Álvarez, tencionados pelas provocações do fazer teatral e da recepção no teatro pelo francês Denis Guénoun e pelo professor Dr. Flávio Desgranges. Também se embasam nas questões de alteridade e formação de sujeito, a partir da análise de discurso, segundo Jacques Rancière e Mikhail Bakhtin respectivamente.

O espetáculo retrata as várias fases da vida de João (menino/homem) ao misturar sonho e realidade. As “inutilezas” do poeta Manoel de Barros, se

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26 transformam em estímulos para compor o espaço cênico de uma viagem em busca da Rua Furtacor, misturando atores, personagens e espectadores junto com João, através dos percalços da vida de uma pessoa cega.

(cartazes do espetáculo “O que os olhos não veem”)

Tencionando a dimensão de apreciação estética no teatro, o espetáculo O que os olhos não veem questiona a ideia do estudioso francês Denis Guénoun, de que “o teatro sem visibilidade não é teatro” (2003, p.51), construindo sua argumentação com base na teatralidade a partir da exposição visual, por meio das ações dos atores ao tornarem visíveis aquilo que para o autor é invisível, no caso, a palavra. O texto teatral.

Quando se centra o fazer teatral no ato de expor as coisas ao espectador, é possível ter teatro quando a capacidade de visualizar o que ocorre em cena é vetado? Esse questionamento dá margem à reflexão sobre a apreciação do espetáculo, onde os espectadores são convidados a vivenciar outra forma de ver aguçando os sentidos e, ainda assim, afirmando em cena uma apreciação teatral que está para além dos olhos.

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27 Quando o projeto de extensão começou em 2014, suas atividades eram desenvolvidas principalmente no Departamento de Artes da UFRN, e seus componentes eram 12 alunos do curso de licenciatura em Teatro da própria instituição. O projeto permitia articular a formação artística e docente dos alunos do curso de Teatro, a partir da interface entre Estágio Supervisionado de Formação de Professores de Teatro, com a ação extensionista de constituição de um espetáculo teatral. O projeto preocupava-se também com a formação do espectador, uma vez que o olhar para a cena teatral, como de resto, para qualquer artefato artístico, pressupõe um processo educacional, o qual pode ser mediado teatralmente. (DESGRANGES, 2003; 2006). Refletindo sobre essas questões da apreciação teatral e da participação dos espectadores dentro do contexto da proposta cênica do O que os olhos não veem, Everson Oliveira Cruz, ator e diretor do espetáculo, passou a desenvolver sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes cênicas da UFRN, intitulada O que os olhos não veem: O não visível como forma sensível de apreciação, sob a orientação da Prof.ª. Dr. Karenine de Oliveira Porpino e co-orientação do Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves.

Atualmente, o projeto de extensão é composto por alunos de diversos curso s da graduação da UFRN, tais como, Teatro, Artes Visuais, História, Música, Educação Física, Gestão Hospitalar. Tem circulado pela capital e pelo interior do estado do Rio Grande do Norte, apresentando o extrato cênico do espetáculo O que os olhos não veem (que agora, está sob a direção do ator Ivan de Melo8), ministrando oficinas,

promovendo palestras e discussões sobre acessibilidade cultural, audiodescrição, ensino de Teatro e compartilhando aspectos sobre o seu fazer teatral.

Foi nesse contexto que vivenciei na pele aquilo que mais à frente iria me levar a desenvolver esta pesquisa, que se volta para as práticas de preparação do elenco, com o intuito de criar e atuar em um espetáculo teatral no qual o público, seja ele

8 Ivan de Melo, estudante de bacharelado em História pela UFRN, bolsista do projeto de extensão O que os olhos não veem, ator integrante do elenco do espetáculo, que leva o mesmo nome do projet o e diretor do extrato cênico apresentado atualmente.

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28 vidente ou cego, é convidado a fazer uso de vendas para restringir o uso do sentido da visão durante toda apreciação.

As práticas de preparação de elenco eram desenvolvidas e mediadas por Everson Oliveira, diretor do espetáculo em andamento, como um processo de imersão no universo multissensorial e tinham o caráter de oficinas e laboratórios de investigação dos sentidos. Tudo era novo para o grupo como um todo. Estávamos ainda por descobrir como trabalhar e desenvolver o processo criativo.

Com o passar do tempo os atores começam a propor exercícios e a conduzir alguns encontros, tal como a experimentação com bacias e águas para criação de sonoridades, vivência mediada por Erhi Araújo9. Isto devido ao processo criativo

colaborativo do grupo e a intervenção como abordagem metodológica de trabalho. Até este momento eu participava do projeto na condição de atriz e desde então, passei à função de conduzir e mediar as práticas corporais com o elenco, apoiada na intenção de transpor os atores para uma experiência de exploração da multissensorialidade, através supressão do sentido da visão por intermédio do uso de vendas pretas para que, deste modo, durante todo o processo, os envolvidos investigassem suas percepções sensoriais. Isso ocorreu devido a necessidade de Everson assumir para além da função de diretor a de ator, compondo parte do elenco do espetáculo.

Inicialmente, após propor exercícios de cena em parceria com Ivan de Melo nos ensaios, comecei a assumir a função de oficineira, propondo e mediando a condução das oficinas ofertadas pelo projeto de extensão em suas ações de extensão. Assim, passei a levar as práticas corporais desenvolvidas com os atores nos ensaios para a comunidade externa e interna.

Paulatinamente, passei a auxiliar Everson na direção do espetáculo O que os olhos não veem, como auxiliar de direção e colaborei com a condução de algumas

9 Erhi Araújo é músico, ator, professor de teatro formado pela UFRN, que durante os anos de 2014 e metade de 2015, fez parte do projeto de extensão O que os olhos não veem o coração não sente, desenvolvendo pesquisas sobre as matrizes sonoras para criação do espet áculo e neste período, também compunha parte do elenco.

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29 práticas, associadas à preparação do corporal dos atores, para criação de cenas e antes das apresentações.

(Foto do espetáculo O que os olhos não veem o coração não sente. Arquivo do grupo O que olhos não veem)

Estar exercendo a mediação das práticas corporais me dispôs a investigar e questionar: Quais os seus diferenciais? De que maneiras devo realizá-las? Quais são os resultados obtidos com elas? Essas indagações geraram o nascimento desta pesquisa.

1.2 Outra forma de ver, “é preciso transver o mundo”

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30 Na busca por uma forma de conduzir o processo com os atores dentro do projeto de extensão, ainda sob a condução de Everson, o grupo se aproximou do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, LUME10 com suas

investigações sobre a técnica-em-vida e o estado de representação (BRUNIER, 2009, p.21-26), no intuito de abordar os mesmos princípios utilizados pelo núcleo em sua metodologia para criação dos exercícios e práticas corporais do projeto.

A técnica-em-vida compreende o fazer artístico do ator como algo que não trabalha e trata seu corpo como um mero invólucro de músculos, mas que o entende como a totalidade do ser, como aquilo que lhe afeta em vida e que, para isso, é preciso construir um meio que consiga entrar em contato com ele mesmo e com o espectador.

O termo “em-vida” empregado por Luís Otávio Burnier 11 (2009) está

relacionado com o “corpo-em-vida” que Eugenio Barba13 (1994) utiliza para intitular

um corpo em contínua interação com os refúgios mais escondidos da alma humana, pois para Barba (1994, p. 218), “não se deve trabalhar com os extremos, mas sim com a gama de nuanças que estão no meio. O corpo-em vida é uma questão de nuanças”. Ou seja, os extremos mencionados por Barba são fatores externos ao ser humano e para ele, era importante trabalhar com as questões internas: com os sentimentos, dúvidas, angústias e afetações do ser.

Segundo as ideias do LUME, ao se aproximar dos estudos de Barba para cultivar esse corpo-em-vida é que concretiza o treinamento cotidiano, ou seja, a técnica-em-vida. Constitui-se um espaço para o ator trabalhar a si mesmo, não a personagem ou a cena, muito menos o espetáculo, mas as conexões entre seu corpo e sua alma, transformando suas emoções em ações físicas.

As emoções do ator, neste caso, não são algo de ordem psicológica, imaterial ou impalpável, e sim, algo concreto, físico e muscular, com capacidade de movimento, fluidez e dinâmica interna, ou seja, é o corpo. O ato de representar surge da ação de

10 LUME é o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) com sede em Barão Geraldo, Distrito de Campinas (SP), fundado em 1985 pelo ator, diretor e pesquisador Luís Otávio Burnier. Possui um coletivo de sete atores que se tornou referênc ia internacional para artistas e pesquisadores no redimensionamento técnico e ético do ofício de ator. 11Luiz Otávio Burnier (1956-1995), ator, diretor e fundador do LUME que centrou suas investigações na busca de uma metodologia e sistematização de uma técnica corpórea e vocal pessoal para o ator. 13 Eugenio Barba, diretor fundador do Odin Teatret com pesquisas voltadas para Antropologia teatral, presença do ator e treinamento.

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31 treinar e se caracteriza pela construção de ações físicas por parte do ator para criação do personagem; em outras palavras, “o ator que não interpreta, mas representa, não busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas ações físicas.” (BURNIER, 2013, p. 23)

As ações físicas instituem o treinamento cotidiano como espaço para desenvolver a criação, conforme descreve Renato Ferracini12: “a maneira de se

trabalhar todo esse processo é a criação de um espaço onde o ator, assim como o pianista, que necessita de horas de treinamento em um piano durante toda a vida, possa trabalhar todos os componentes de sua arte.” (FERRACINI, 2003, p.126)

No que se refere ao treinamento do ator nesta pesquisa e nas atividades com o projeto de extensão, me aproximo das ideias e princípios do treinamento adotados pelo LUME, por meio dos escritos do Luís Otávio Burnier e Renato Ferracini, nos aspectos do ato de treinar como uma busca por estados corpóreos para criação.

[...] treinar é uma busca de estado e não exercícios a serem executados em um espaço-tempo exato. Na verdade, no estado do treinar, pouco importa a execução precisa e exata do exercício ou sua evolução enquant o complexidade. Importa, sim, o uso dos exercícios para se atingir um limite, uma borda, criar fissura em sua géstica conhecida e cotidiana ou mesmo em seus clichês expressivos artísticos singulares, no caso de um ator com experiência (FERRACINI in LEMES, 2010, p.68).

Porém, na busca de um suporte metodológico para o trabalho com os atores, passei a refletir sobre o uso do termo “treinamento” adotado pelo LUME e tantos grupos, diretores, atores e coletivos teatrais no Brasil, embora compartilhe o significado do treinamento esse grupo e faça uso de suas experiências para o meu trabalho de preparação de atores. Reflito que o termo treinamento é também usado socialmente com outras conotações, diferentemente daquelas dadas pelo LUME, ou seja, existe uma relação do treinar com um ato de adestramento ou mesmo de busca de resultados quantitativos relacionados somente a mecânica corporal, a exemplo de rotinas de exercícios físicos praticados por atletas de alto rendimento. Este uso do termo treinamento não possui a intenção de criar significados gestuais para as ações

12 Renato Ferracini. Ator-pesquisador-colaborador do LUME desde 1993, desenvolve pesquisas sobre codificação, sistematização e teatralização de técnicas corpóreas e vocais não interpretativas para o ator.

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32 dos praticantes e não possuem uma dimensão estética, tão necessária ao fazer teatral.

No volume três da História do Corpo escrito por CORBIN (2008) há a seguinte citação, retirada de um dicionário de esporte francês de 1872, sobre o uso da palavra treinamento: “Palavra reservada durante muito tempo a preparação dos cavalos de corrida: a palavra ‘treinamento’. Essa prática consiste em corridas seguidas de cuidados que têm por objetivo livrar o cavalo de seu supérfluo e ensiná-lo a correr.” Esse sentido do termo “treinamento” como algo similar ao adestramento não interessa para essa pesquisa.

O treinamento para preparação dos atores é o que importa como postura adotada durante as proposições de práticas corporais com os atores do projeto de extensão e é o que se aproxima da ideia do diretor russo Constantin Stanislávski13

descrita por Jerzy Grotowski (2010).

Stanislavski combatia essa falta de disciplina cotidiana dos atores e propunha alguns exercícios preparatórios que chamava de “treinamento”. Tratava-se, de um lado, de “jogos de ator” e, de outro, de exercícios para desenvolver as qualidades do corpo, da voz, das articulações. Stanislavski acreditava que o ator devia fazer vários tipos de ginástica, esgrima, um pouco de acrobacia. Se o ator hesita antes de um salto difícil, hesitará antes do ponto culminante do seu papel.” (GROTOWSKI, 2010, p.165)

Meu intuito para com os atores do projeto O que os olhos não veem é a construção de um processo de imersão através de práticas corporais, associadas ao universo da multissensorialidade e das matrizes de criação do espetáculo, um lugar onde os atores iniciam o contato com a ausência da visão. Essa ação tem como objetivo despertar o potencial de criação cênica para uma apreciação não visual, acionar um estado de presença nos corpos dos atores de maneira tal que permaneçam ativos em cena.

A diferenciação maior entre o trabalho do LUME com o treinamento do ator e o meu trabalho, junto ao projeto de extensão, está na associação direta com um processo de criação cênica, no caso, do espetáculo O que os olhos não veem. Para

13 Constantin Stanislávski (1863-1938), Ator, diretor e professor de atores, que fundou do Teatro de Arte de Moscou. Desenvolveu várias pesquisas sobre a interpretação do ator e sua movimentaç ão natural no palco. Seus principais escritos são os livros: A Preparação do Ator, A Construção do Personagem e A Criação do Papel.

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33 o LUME, o treinamento tem o intuito de descobrir uma técnica pessoal e não está necessariamente associado ao trabalho com o espetáculo, o que Ferracini descreve da seguinte maneira:

Esse treinamento deve ser sistemático, cotidiano e disciplinado. É um trabalho pré-expressivo, pois no momento do treinamento, o ator não trabalha a personagem ou um espetáculo teatral, mas é o espaço onde o ator se trabalha, seja descobrindo sua técnica pessoal, seja adquirindo e assimilando elementos de técnicas aculturadas, já estruturadas e codificadas (FERRACINI, 2003, p.116)

No caso do trabalho com os atores do projeto de extensão, há sempre uma perspectiva de criação de espetáculos teatrais. O ato de treinar assume um caráter de preparação devido a sua ligação direta com o processo criativo, ou melhor, um está diretamente ligado ao processo de composição da cena.

Penso na natureza de treinar aproximando-me da reflexão sobre o significado do termo preparação, que segundo o dicionário de língua portuguesa Aurélio, é o seguinte: “processo de aprontar qualquer coisa para uso”. Levando em consideração que estamos tratando de atores, não podemos pensar que possuem o caráter de coisa para uso, mas quero ressaltar a ideia de processo de aprontar, que dá margem para construção, deixar pronto, mesmo sabendo que o corpo do ator nunca estará pronto, não pensando na ideia de finalização, e sim, que este sempre estará aberto à criação, na busca de novos modos de ser. Associo a preparação dos atores durante o treinamento como o processo que lhes permite estar preparados para a cena, o lugar da construção cênica.

Assim, trato o treinamento, associado a criação de um espetáculo, na preparação corporal dos atores. A manutenção do ofício do ator não se dissocia do processo criativo: ambos são coabitantes do mesmo território.

Por esse motivo adoto, nesta pesquisa, a ideia de preparação dos atores a qual nomeio como ato de transver. Isso surge da necessidade de estarmos (eu e os atores) e impregnados pelo universo da cegueira para conseguirmos compreender o que os olhos não veem. Os atores foram sim preparados para perceberem o mundo de uma outra forma, já que não seria possível criarmos um espetáculo com a proposta de apreciação sem o sentido da visão se não sentíssemos isso na pele.

Tomo emprestado da poesia do poeta mato-grossense, Manoel de Barros a ideia de transver o mundo para nomear o trabalho corporal com os atores dentro do

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34 projeto de extensão O que os olhos não veem como ato de transver, acreditando na necessidade de mudança de perspectiva sobre o treinamento de atores, do sentido da visão e do fazer artístico. Com o intuito de associar ao ato de transver à ampliação dos sentidos e de mudança de perspectiva em relação ao mundo, ao outro e a si mesmo. É neste momento de mudança que acessamos a multissensorialidade como ferramenta, ao entender que esta acontece, como descreve José Alfonso Ballestero-Álvarez (2003, p.13),

Na ausência de um sentido, na maioria dos casos, obtemos a informação de elementos por meio de outros sentidos de percepção sensorial, em separado ou em conjunto, naquilo que se denomina multissensorialidade, são aquelas percepções elaboradas entre: ouvido e tato, nariz e tato, boca e tato, etc.

Acredito que se faz necessário, como alertado no poema, transver o mundo para redimensionarmos a forma com a qual nos relacionamos com ele e refletindo sobre a proposta de preparação dos atores, faz-se necessário essa mudança através do ato de ver, que sai do âmbito de observação por meio dos olhos, acessando uma

dimensão tátil e sonora em um aspecto multissensorial. Para isso, é fundamental que os sujeitos se coloquem em um estado relacional com aquilo que se propõem transver.

Me provoco a refletir sobre o termo transver de Manoel de Barros como uma ação que o poeta dá à manifestação de artistas no mundo, um exercício transgressor que o fazer artístico tem através da imaginação e da busca constante de formas de investigar o novo, de mudar a lógica, de reinventar a si e a realidade. Isso me permite fazer uma ponte com o que ocorre na preparação corporal dos atores do projeto de extensão O que os olhos não veem como esse lugar da reconfiguração, a partir das provocações do projeto em fazer teatro de outra forma, sem o sentindo da visão e que afeta a forma do grupo criar e de desenvolver suas provocações cênicas, os conduzindo de modo a redimensionar a perspectiva de como se relacionam com o mundo sem a visão.

Portanto, o ato de transver é o ponto inicial dentro do processo de preparação corporal dos atores, por meio da investigação não visual no fazer teatral do grupo. Um exercício que antecede a criação e a apreciação cênica com a ausência do sentido da visão.

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35 Tenho como respaldo o processo de imersão que proponho para os atores ao restringir o uso do sentido da visão, através de vendas de tecido preto. Sugiro aqui um paralelo entre a ausência momentânea da visão e a investigação dos demais sentidos para fundamentar o ato de transver. Ora, neste caso, compreendo que é sem ver que os atores expandem sua percepção transvendo a si e a tudo em sua volta. É uma forma de aguçar os sentidos e ativar o estado de presença dos atores (BARBA,1994).

Pensar na visão como algo de caráter meramente físico é reafirmar a necessidade de distanciamento, de estado de contemplação, atribuindo aqui o significado do olhar como a função fisiológica de funcionamento através da observação inicial realizada pelos olhos. Dialogando com as reflexões sobre o olhar que o filósofo esloveno Evgen Bavcar aponta em seu livro Ponto Zero, “o olhar nos põe a distância, ausentes de tudo o que vemos e de tudo que pode ser visto; fora, portanto, da relação corporal.” (2000, p.25). Isto é: ausente do estado relacional, algo que foge do sentir, do que afeta, criando uma distância entre o sujeito que observa e o objeto.

No ato de transver, tencionamos o significado da visão e por meio da multissensorialidade, os atores se colocam em relação com o que se propõe a “olhar”. É instaurado uma dimensão tátil do olhar, que será tratada no segundo capítulo.

Dentro do projeto de extensão, mantemos a necessidade das práticas corporais dos atores estarem diretamente ligadas aos processos criativos, sendo essa uma possibilidade de despertar o ser sensível, apontado por Peter Brook (2000).

O motivo pelo qual as práticas corporais com os atores adotaram o uso frequente das vendas de tecido no decorrer de seus exercícios foi a necessidade de encontrar um caminho para eles estarem em contato com a totalidade de seus corpos e de estabelecerem uma relação de alteridade com os espectadores dentro da proposta de apreciação, através da restrição do sentido da visão e de aproximação do universo das pessoas cegas, que é a temática norteadora da criação do espetáculo.

Tal contato com o ser sensível dentro do trabalho corporal com os atores se assemelha à busca de acessar o corpo extracotidiano (BARBA 1994). Trata-se de um corpo que fuja dos ditos padrões de normalidade da ação de cada indivíduo. Nesta

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