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Desmontando narrativas e corpos : uma reflexão sobre o corpo no gótico feminino na obra poética de Sylvia Plath e Anne Sexton, e na obra fotográfica de Francesca Woodman e Cindy Sherman

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Academic year: 2021

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Elisabete Cristina Simões Lopes

Desmontando Narrativas e Corpos:

Uma Reflexão sobre o Corpo no Gótico Feminino na obra

Poética de Sylvia Plath e Anne Sexton, e na obra

Fotográfica de Francesca Woodman e Cindy Sherman

Tese de Doutoramento em Literatura

Especialidade: Literatura Norte-Americana

Orientador: Professor Doutor Mário Avelar

UNIVERSIDADE ABERTA

LISBOA

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Desmontando Narrativas e Corpos:

Uma Reflexão sobre o Corpo no Gótico Feminino na obra Poética de Sylvia Plath e Anne Sexton, e na obra Fotográfica de Francesca Woodman e Cindy Sherman

Agradecimentos………iii

Resumo……….iv

Nota Prévia………v

Entrada do diário de Sylvia Plath……….vi

Introdução……….1

Capítulo 1 – Fantasmagorias do corpo feminino………..6

1.1. Considerações gerais sobre o gótico: génese e evolução de um “vírus literário”………...6

1.2. O gótico feminino………20

1.2.1. Contextualização das autoras no sub-género do gótico feminino……….32

1.3. A insustentável leveza das mulheres fantasma ………36

1.4.Por entre espelhos e campânulas de vidro……….80

1.4.1. Incursões da heroína do gótico no universo especular………..80

1.4.2. A campânula de vidro………..113

1.5. A morte, a mulher e a criptomimesis………..121

Capítulo 2 - Figurações do gótico parental………...149

2. 1.Medusas e senhoras das trevas: a figura materna no gótico feminino………149

2.1.1. A experiência da gravidez associada à criatividade………149

2.1.2. Madonas curvilíneas e estátuas funéreas: o contraste entre a mulher estéril e a mulher fértil………154

2.1.3. O aborto e a experiência da mulher fantasmática………163

2.1.4. Uma gravidez assombrada………...181

2.1.5. Os tentáculos de Medusa……….210

2.1.6. Ao encontro da senhoras das trevas……….246

2.1.7. O útero em ruínas e a Medusa decapitada………...271

2.1.8. A Madona e a “all Mouth”………...291

2.2. Incarnações do gótico paterno: O maestro das abelhas, o rei, o vampiro e Neptuno………..…314

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Capítulo 3 - Casas eléctricas, corpos assombrados: expressões do gótico

doméstico………..352

3.1. Mulheres à beira de um ataque de nervos na cozinha surreal………352

3.1.2. Dormindo com o inimigo: figurações do gótico marital……….372

3.2. Confissões de uma dona-de-casa desesperada dos subúrbios………380

3.2.1. O gótico marital como um camp gothic………..402

3.3. A presença fantasmagórica no ambiente delapidado………411

3.3.1. Nas asas do anjo: a desconstrução do anjo doméstico vitoriano………411

3.3.2. A pele que a heroína do gótico habita: metamorfoses do corpo………422

3.3.3. Uma aventura na casa assombrada……….426

3.3.4. A casa-caixão e a mulher vampiro………..438

3.4. Dona-de-casa em telhados de zinco quente………..442

3.4.1. De Bela Adormecida a damsel in distress………..459

3.5. “All those girls who wore red shoes”: a histeria como performance de um corpo gótico………475

3.5.1 A histeria e o contágio: imagens do corpo da heroína do gótico como corpo infeccioso………502

3.5.2 A insustentável vulnerabilidade de Ofélia………512

3.5.3. A médium e a histérica: tecelãs de sombras e de matéria ectoplásmica………..524

3.6.Olympia revisitada: retratos da mulher-autómato fragmentada………..531

Conclusão………...557

Apêndice………566

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AGRADECIMENTOS

Chegada ao fim de esta longa jornada, cabe-me deixar uma palavra de agradecimento à minha “peanut-crunching crowd” (SPCP, 245). Cumpre-me, assim, agradecer ao meu orientador, o Professor Doutor Mário Avelar, pela disponibilidade que sempre demonstrou e pelas sugestões e conselhos inestimáveis.

Agradeço igualmente aos meus familiares e amigos que acompanharam de perto esta caminhada e que se mostraram compreensivos, tendo sempre uma palavra de apoio para me animar naqueles dias em que a inspiração tardava em aparecer, naqueles momentos difíceis nos quais se pondera se porventura não nos teremos envolvido num projecto de investigação demasiado ambicioso. A todos queria confessar que valeu a pena todo o esforço e tempo investidos neste trabalho.

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Resumo

O objectivo desta investigação é o de examinar o modo como Sylvia Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman e Cindy Sherman exploraram a representação do corpo da mulher, à luz do gótico, mais especificamente, dentro do enquadramento do gótico feminino. Consequentemente, a obra poética de Sylvia Plath e de Anne Sexton, tal como a obra fotográfica de Francesca Woodman e Cindy Sherman, são exploradas dentro das várias vertentes do gótico: feminino, materno, paterno, doméstico e marital. Elementos tradicionais do gótico, tais como as ruínas, os fantasmas, os monstros, o

dopplegänger, o anjo ou a “madwoman” do período vitoriano, conjugam-se com

elementos de carácter surrealista (os peixes, as luvas, os espelhos, os cadáveres esquisitos), de forma a ilustrar o modo como o corpo feminino estabelece um diálogo com a geografia do espaço. Neste contexto, é igualmente importante analisar de que forma essas mesmas representações comportam um pendor feminista e determinar como operam enquanto resposta e revisão relativamente ao paradigma patriarcal. No âmbito deste estudo, conceitos operacionais intrinsecamente ligados ao estudo do gótico, tais como o grotesco, o abjecto ou a estranheza, são convocados com o intuito de enriquecer esta análise, no seio da qual o corpo feminino se encontra em permanente flirt com a presença da morte.

Palavras-chave: gótico, gótico feminino, corpo, estranheza, espelhos, fantasmas, monstros, horror, morte.

Abstract

This research aims at examining the way Sylvia Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman and Cindy Sherman have carried out female’s body representation, in the light of the gothic, specifically within the female gothic setting. Therefore, both Sylvia Plath’s and Anne Sexton’s poetic oeuvre and Francesca Woodman’s and Cindy Sherman’s photography are explored within the various gothic types: female gothic, maternal gothic, paternal gothic, domestic gothic and marital gothic. In this analysis, traditional elements of the gothic, such as ruins, ghosts, monsters, dopplegängers, the angel and the madwoman of the Victorian epoch, combine with surrealist imagery (fishes, gloves, mirrors, cadavres exquis) in order to convey the ways in which the female body engages in a dialogue with the geography of space. In this context, it is important likewise to analyse the feminist essence inherent in those representations, and unveil to what extent they constitute an answer and revision regarding patriarchy. In this research, we resort to theoretical concepts intimately linked to the gothic genre, such as the grotesque, the abject and the uncanny, so as to illustrate a female body which appears constantly flirting with death.

Key-words: gothic, female gothic, body, uncanny, mirrors, ghosts, monsters, horror, death.

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Nota Prévia

Esta é uma breve nota que pretende esclarecer a forma como algumas das obras de Sylvia Plath e de Anne Sexton foram citadas ao longo da tese. Por motivos de clareza e de maior facilidade na ligação entre a autora e a obra, optou-se por não mencionar a data em determinadas citações. As referências às páginas dos textos foram assim abreviadas:

Sylvia Plath

BJ – The Bell Jar

JP – Johnny Panic and the Bible of Dreams LH – Letters Home

SPCP – Sylvia Plath Collected Poems

SPJ – The Unabridged Journals of Sylvia Plath

Anne Sexton

ASCP – Anne Sexton: Collected Poems

ASSL – Anne Sexton: A Self-Portrait in Letters

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Suddenly, I no longer care – let the wasteland run how it may – I am already in another world – or between two worlds, one dead, the other dying to be born. We are treated as ghosts. (SPJ, 376)

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Introdução

Quando se alude ao gótico literário, imediatamente uma paisagem nocturna e soturna se nos imprime na mente. Este é um género literário pleno de paisagens sinistras, onde se avista um cemitério, onde se perfilam casas assombradas, onde se alojam segredos; um género que é, no fundo, permeado por uma escuridão tumular. Todavia, ao mesmo tempo que promete essa mesma escuridão, o gótico também se propõe devassá-la, e trazer para a luz os esqueletos que ganham pó nesses interiores recônditos. Quer a jovem Francesca Woodman (1958-1981) que se passeia por entre as campas e vagueia no interior de casas decrépitas, quer Cindy Sherman (1954-) que destrói e reconstrói manequins reconfigurando as suas anatomias, quer Anne Sexton (1928-1974) que adormece os gritos contidos nos subúrbios, quer Sylvia Plath (1932-1963) que promete regressar do além-túmulo, todas elas desenterram os seus esqueletos, as suas dúvidas e as suas histórias nos terrenos férteis da paisagem lúgubre da tradição gótica.

O facto de o tema da tese ter recaído sobre estas quatro autoras, deve-se, não somente a um interesse de ordem pessoal, mas igualmente por se ter constatado haver uma afinidade temática entre todas elas, um fio condutor susceptível de ser explorado que permitia, assim, percorrer um caminho de investigação não anteriormente trilhado.Com efeito, aquando do primeiro contacto com a obra das autoras, verificou-se a presença de temáticas comuns e recorrentes, nas quais o terror, o estranhamento, o grotesco ou o abjecto evocavam a presença do gótico.1

Na verdade, tanto o discurso visual de Woodman e de Sherman, como o discurso poético de Plath e de Sexton, parecem debruçar-se sobre a questão da representação do corpo feminino, detendo-se em aspectos como a identidade e a posição da mulher artista perante a ordem simbólica e a preponderância do sistema patriarcal.

Por conseguinte, o objectivo primordial a que se propõe esta tese é, em primeiro lugar, o de analisar até que ponto a obra das autoras em epígrafe se enquadra no registo do gótico e, em segundo lugar, averiguar de que modo a representação do corpo da mulher e a construção da identidade feminina se enquadram no denominado gótico

1 É importante igualmente salientar que é provável que, em determinado capítulo, numa ou noutra secção,

uma autora prevaleça sobre as restantes. Isto prende-se com o facto de existir um maior espectro de informação disponível que entendemos ser relevante incluir, sob pena de não descaracterizar o corpus da tese.

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feminino, espelhando as ansiedades e dilemas experimentados pela mulher artista no seio de uma sociedade dominada pela produção artística levada a cabo pelo género masculino.2

É precisamente dentro do espírito inaugurado por uma tradição literária e artística na qual imperam as trevas e a escuridão que, no primeiro capítulo, nos iremos debruçar sobre os traços que caracterizam o género gótico, focando com especial ênfase o seu percurso histórico, os seus enredos e tropos, e a forma como este é fruto da cultura de uma época, replicando os seus medos, terrores e ansiedades. Na segunda secção deste capítulo iremos examinar as características e especificidades inerentes ao gótico feminino, e analisar de que forma este enquadra e inclui o registo poético de Sylvia Plath e de Anne Sexton, e o registo visual de Francesca Woodman e Cindy Sherman. De facto, podemos dizer que, quer Plath, quer Sexton construíram, no âmbito da sua ars

poetica, representações femininas que constituem verdadeiras emanações da heroína do

gótico tradicional (a persecuted maiden, a fallen woman, a bruxa, a mulher-monstro, a louca, a mulher-autómato). É dentro deste enquadramento que os sujeitos de enunciação da poesia de Plath e de Sexton, e que as mulheres presentes no repertório visual de Woodman e de Sherman, figuram no corpo desta tese como heroínas do gótico, sendo-lhes frequentemente atribuída essa designação. Desta forma, apropriamos as estruturas tradicionais do próprio género gótico para ilustrar a pesquisa, e para tornar o conteúdo da mesma mais coerente. É também pelo facto de estas figuras femininas ficcionadas surgirem e se movimentarem em cenários decalcados do gótico (casas em ruínas, cavernas, espaços hostis e claustrofóbicos), que optámos pelo recurso a essa terminologia. Estas personae, em virtude da forma como são caracterizadas, e consoante o pano de fundo que contextualiza a sua representação, constituem vivos exemplos da protagonista da narrativa gótica, cuja vida é repleta de tormentos, mediante a resolução dos quais consegue emergir, no final do enredo tortuoso, enquanto sobrevivente transformada. Visto que se encontra no escopo desta tese a abordagem e contextualização das obras das quatro autoras, à luz dos preceitos do gótico, mais concretamente, do gótico feminino, então, considerámos que seria apropriado e legítimo recorrer a essa designação terminológica no sentido de definir de um modo mais abrangente a protagonista quer da aventura poética, quer da aventura no campo visual.

2Embora nenhuma das autoras que integram este estudo se tenha alguma vez afirmado como feminista, o

que é importante no seio desta investigação, é averiguar o modo como, consciente ou inconscientemente, elas se envolveram em estratégias de representação que acabam por aflorar preocupações dessa ordem.

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Na verdade, o facto de nos referirmos às protagonistas dos enredos poéticos e visuais saídos do imaginário das autoras em epígrafe, como genuínas heroínas do gótico, contribui para tornar mais coerente o corpo textual da tese em questão que, por sua vez, orbita em torno desse género literário e artístico. Esta manobra de conveniência que tem implícita uma natureza estética serve, por conseguinte, para ilustrar com maior dose de realismo o drama e as angústias que afligem os sujeitos femininos que deambulam pelas paisagens poéticas e visuais das autoras em análise. Em suma, é precisamente pelo facto de lhes reconhecermos qualidades que as colocam no plano de gótico feminino que essa designação se torna legítima.

No segundo capítulo, a nossa atenção irá recair sobre dois aspectos que se afiguram pertinentes no contorno da paisagem textual e visual do gótico: a expressão do gótico materno e do gótico paterno. É importante verificar de que forma é que a relação com a figura materna e com a figura paterna condicionam as abordagens poéticas e visuais evidenciadas pelas autoras. Como salienta Anne Williams, na obra Art of

Darkness: The Poetics of Gothic: “(…) family stories, especially those involving

exclusion and repression, are somehow intimately connected to the Gothic.” (Williams, 1995:11) Quer na composição poética de Anne Sexton e de Sylvia Plath, quer na expressão artística de Francesca Woodman e de Cindy Sherman, a heroína do gótico, à semelhança do que acontece com a sua congénere tradicional, empreende um trajecto muitas vezes subterrâneo, em busca da sua identidade. Implícita nesta demanda, normalmente, está a auto-determinação da heroína do gótico, cuja construção do “Eu” surge assombrada pelo espectro materno e paterno. No que concerne a figura materna, este processo envolve um gesto especular, no âmbito do qual a heroína do gótico pondera os pontos de identificação ou os pontos nos quais a sua identidade se afasta da referência materna. Normalmente, este é um percurso envolto numa certa aura especular, na medida em que a heroína do gótico partilha o mesmo género que a sua mãe. Como realça a este respeito Claire Kahane em “The Gothic Mirror”: “What I see repeatedly locked into the forbidden center of the Gothic which draws me inward is the spectral presence of a dead–undead mother, archaic and all encompassing, a ghost signifying the problematic of femininity which the heroine must confront.” (Kahane, 1985: 336)

Quanto à figura paterna, analisar-se-á a forma como esta funciona, ou não, como um signo que assinala a imposição da ordem patriarcal. Como tal, observar-se-á a eventual resistência da heroína do gótico face a esta figura, na medida em que a entrada

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na ordem simbólica lhe confere um papel secundário. Esta figura paterna será assim analisada como ícone dos patriarcas, dos guardiães do mundo artístico, no qual as ambiciosas heroínas do gótico pretendem entrar.

Por fim, no terceiro e último capítulo, iremos tratar as questões que se prendem com a representação da heroína do gótico no contexto do gótico doméstico. Nesta última parte da investigação, pretende-se observar até que ponto as autoras jogam com as noções de domesticidade feminina, replicando e desconstruindo modelos históricos (nomeadamente o modelo feminino patente na domesticidade Vitoriana) e contemporâneos. Como elemento complementar à faceta doméstica do gótico, é indispensável contemplar, na nossa análise, o gótico marital, nomeadamente os aspectos que se prendem com a presença do demon-lover, na medida em que este interveniente é susceptível de causar um impacto na forma como o espaço doméstico é inicialmente configurado.

Quando se dá início aos trabalhos exploratórios que culminarão na redacção do corpo textual da tese surgem uma série de interrogações que se impõem e que por vezes se ocultam por detrás de véus. É precisamente o erguer desses véus que integra a derradeira missão do investigador, muito similar, em certa medida, à própria tarefa de que é incumbido (a) o(a) protagonista do romance gótico. É à personagem principal que cabe o papel de detective ou de explorador indómito, no sentido em que procura desvendar segredos e contextualizar factos, acabando, no fim, por se deparar com um

puzzle resolvido, legível e coerente.

Esta tese propõe, assim, uma viagem no seio da qual a palavra e a imagem se encontram numa teia gótica de diálogo permanente, numa cumplicidade adivinhada que se desdobra em terrenos tortuosos nos quais somos susceptíveis de nos cruzarmos com criaturas improváveis e oriundas do sobrenatural: fantasmas, vampiros, monstros. No fundo, trata-se de uma descida em direcção a universos paralelos, casas assombradas, cavernas, caves, sótãos, hospitais psiquiátricos, espaços que constituem lugares comuns no submundo do gótico.

A caminhada por entre estes “marrowy tunnels” (SPCP, 132)3 do gótico nunca

foi uma caminhada fácil, já que corpos femininos que habitam este verdadeiro heart of

darkness traduzem corpos em sofrimento, uns de natureza espectral, outros feridos,

outros pulverizados, desmontados ou desfigurados.

3 Expressão utilizada por Plath em “Dark House” (“Poem for a Birthday”) que evoca um espaço sinuoso e subterrâneo, num registo que remete para uma espacialidade de natureza gótica.

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Nesta viagem que vos propomos, cada capítulo é uma porta que se abre, uma entrada para uma nova dimensão que evoca o imaginário surrealista, uma transição que nos enche de ansiedade em virtude da incerteza e do inesperado. Estas portas são entradas para um mundo feminino que se tece com os fios do female gothic, onde, a qualquer momento, podemos ser surpreendidos pela magnificência do sublime ou pela morbidez da câmara dos horrores, na certeza porém de que é o suspense que guia os nossos passos, impelidos pela curiosidade inexorável que pauta cada batimento cardíaco. Estes corpos femininos que encontramos inseridos nos tradicionais nichos do gótico são corpos suspensos sobre o Inferno de Dante: são corpos que sangram, que escrevem a sua própria história com os seus próprios fluídos: sangue, suor e lágrimas. Gritos de súplica evadem-se do interior dos hospitais psiquiátricos, zombies deambulam pelas ruas e becos, fantasmas vagueiam por entre as ruínas de edifícios devolutos, mulheres são transformadas em manequins de loja ou em estátuas de cera, e reduzidas a relíquias de museu.

É o recurso a este compêndio visual grotesco que imprime um cunho de terror e de horror às produções poéticas e visuais de Sylvia Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman e Cindy Sherman, e que ameaça fixá-las inexoravelmente nos parâmetros do gótico.

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1.Fantasmagorias do corpo feminino

1.1.Considerações gerais sobre o gótico: génese e evolução de um “vírus literário”

In Gothic novels readers discovered, or were reacquainted with, the night side of life. (Edmundson, 1999:8)

Quando se pensa a nível do gótico, a imaginação começa a vaguear em direcção a um espaço literário onde predominam ruínas, personagens misteriosas, monstros, fantasmas e assassinos em série. É precisamente esta paisagem das trevas, de que é feita a anatomia orgânica do corpo do gótico, que motivou David Reynolds a afirmar que, quando o leitor opta por este género, está prestes a embarcar numa “Dark Adventure” (Reynolds, 1989:190). Por seu turno, Dani Cavallaro destaca a existência de toda uma atmosfera de escuridão que envolve o discurso do gótico e que alastra da paisagem para a psiqué das personagens intervenientes no enredo:

Beside the hardware of places and times of darkness one has to take into account the software of dark psyches: Gothic mentalities tinged with neurotic, psychotic and paranoid proclivities. In this mental realm, the night is always dark regardless of the amount of moonlight shed upon it since the moon is itself cold, stabbing, unable to supply any sense of comfort? As landscape and architecture, climate and seasons, thoughts and emotions collude to evoke a tenebrous universe, paradoxically light ultimately proves as impenetrable as darkness itself. (Cavallaro, 2002:21)

Teorizadores do gótico, como Fred Botting, David Punter, Robert Miles, entre outros, são peremptórios em afirmar que, apesar de as suas origens se revestirem de contornos algo imprecisos,4 o notável pioneiro que se propôs explorar o lado mais negro da alma

humana foi Horace Walpole, em 1764, com a obra The Castle of Otranto.5 Walpole

inaugurou assim uma tradição que veio a ser posteriormente explorada por escritores como Mathew Lewis, autor de The Monk (1796), Anne Radcliffe, autora de The

Mysteries of Udolpho (1794), William Beckford, autor de Vathek (1786), ou Charles

4 David Punter observa, precisamente, em relação às origens do gótico: “It is not possible to put a

precisedate on this change, but it was one of huge dimensions which affected whole areas of architectural, artistic and literary culture in Britain and also in some parts of mainland Europe.” (Punter and Byron, 2004:8)

5 Markman Ellis, na obra The History of Gothic Fiction, argumenta a este respeito: “Judgements about the

propriety and value of the gothic lay behind Horace Walpole’s decision to rename the second edition of his novel, The Castle of Otranto: when it first appeared on 24 December 1764, the anonymous novel was subtitled ‘A Story’; the second edition, published in April 1765, prompted by the rapid sale of the first 500 copies, was subtilted ‘A Gothic Story’.” (Ellis, 2000:17) Mais tarde, escritores tais como Clara Reeve viriam a adoptar sub-títulos semelhantes para os seus romances. Reeve intitulou a sua obra The Old

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Maturin, com o seu romance do Judeu errante, Melmoth the Wanderer (1820).6O gótico

surgia, deste modo, como um movimento literário, podemos até chamar-lhe saudosista e melancólico, que procurava enaltecer o passado, e tudo o que se prendia com a Idade Média, ou as “Dark Ages”.7 Desta forma, a luz e a racionalidade, valores que o

Iluminismo tanto prezava, eram contrapostos pelas trevas e pelo irracional, típicos desse período histórico culturalmente considerado como sinónimo de algo mais rudimentar. Como assinala David Punter, o gótico começou, a partir de certa altura, a albergar no seu espectro tudo o que se relacionava com a Idade Média, em oposição ao Classicismo:

(…) if ‘Gothic’ meant to do with what was perceived as barbaric and to do with the medieval world, it could be seen to follow that it was a term which could be used in structural opposition to ‘classical’. Where the classical was well ordered, the Gothic was chaotic; where the classical was simple and pure, Gothic was ornate and convoluted; where the classics offered a world of clear rules and limits, Gothic represented excess and exaggeration, the product of the wild and the uncivilized, a world that constantly tended to overflow cultural boundaries. (Punter e Byron, 2004:7)

Rotulado de subgénero ou género secundário, por muitos dos aclamados críticos da época, e muitas vezes considerado como um mero apêndice do Romantismo,8 o gótico

foi, pouco a pouco, sedimentando a sua tradição através do surgimento de obras literárias que sustentavam certas convenções que lhes eram comuns. No seio desta tradição literária foram sendo gradualmente reconhecidos aspectos estéticos particulares e específicos, os quais Andrew Smith denomina “Gothic motifs”, que contribuíram para o definir, ao longo da História, como um género autónomo dentro do universo global da produção literária:

Despite the national, formal and generic mutations of the Gothic, it is possible to identify certain persistent features which constitute a distinctive aesthetic. Representations of ruins, castles,

6Outras obras que também se inscrevem nesta tradição da narrativa gótica são: The Recess or The Tale of

Other Times (1783), Vathek (1786) de William Beckford, Zolfoya (1806) de Charlotte Dacre ou Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner (1824), de James Hoggs.

7Markman Ellis, na sua obra sobre a génese do gótico, refere: “(…) the Goths were the barbarians who

destroyed classical Roman civilization and plunged the civilized world into centuries of ignorance and darkness. The Goths were a German tribe who lived on the northern and eastern borders of the Roman Empire, who, after long-running border disputes, launched a widespread invasion of the empire in 376 AD. (…) By the eighteenth century, ‘Goth’ was a blanket term for any of the German tribes, as if distinctions between individual tribes were not significant. (…).The term ‘gothic’ came to stand for medieval culture, and thus for the culture dominant in England in the ‘Dark Ages’ (in the period from the seventh to the thirteenth centuries). (Ellis, 2000:22)

8Helen Meyers, na sua obra Femicidal Fears: Narratives of the Female Gothic Experience,afirma, alias,

a este respeito: “As a literary genre, the Gothic has long been considered a bastard cousin of both Romanticism and psychological realism.” (Meyers, 2001:17)

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monasteries and forms of monstrosity, and images of insanity, transgression, the supernatural and excess, all typically characterize the form. (Smith, 2007: 4)

Robert Miles, numa análise detalhada a estes lugares-comuns ou motivos característicos do gótico, apelida-os de “marketing cues”, referindo-os como aqueles aspectos que fundamentam as razões do seu sucesso junto do público, e que são, por conseguinte, responsáveis pela sua “imagem de marca”:

The marketing cues can be broken down into several categories: geographical features (the recess, ruins, the rock, Alps, black valley, black tower, haunted cavern); architectural features (priory, castle, abbey, convent, nunnery, ancient house, cloister); generic pointers (historical romance, legends, tales, memoir, traditions) ; ghost and its cognates (apparition, specter, phantom, the ghost-seer, sorcerer, magician, necromancer, weir sisters) ; exotic names (Manfredi, Edward de Courcy, Wolfenbach); and generic or historical figures (the monk, the minstrel, knights, the royal captives, Duke of Clarence, Lady Jane Grey, John of Guant). (Miles, 2002: 41- 42)

Afirmando-se como um movimento literário que baseia essencialmente os seus enredos na exploração de emoções fortes, tais como o medo, o terror e o horror, o gótico afigura-se, deste modo, como algo de radical, excessivo e transgressor. Fred Botting, na sua obra Gothic, declara a este respeito:

Gothic signifies writing of excess. It appears in the awful obscurity that haunted eighteen-century rationality and morality. Gothic atmospheres – gloomy and mysterious – have repeatedly signaled the disturbing return of pasts upon presents and evoked emotions of terror and laughter. (Botting, 1996:1)

Donna Heiland considera que o gótico detém um pendor de violência que se baseia numa transgressão de fronteiras a nível físico, sexual, mental, político, nacional ou até mesmo até a nível da integridade da identidade do sujeito. A autora compara as origens do gótico, mais concretamente os aspectos que remontam à acção violenta dos Visigodos sobre os Romanos, com a própria essência do enredo da ficção gótica, na medida em que em ambas as situações se verifica uma invasão de fronteiras, uma ameaça latente de fragmentação que acaba por se traduzir numa espécie de profanação da integridade:

The Goths did much to bring about the fall of the Roman empire (of which Britain had been a part), and while gothic fiction does not literally depict the Goth’s repeated incursions into Roman territory, or the sack of Rome in A.D. 410, gothic fiction does tell stories of ‘invasions’ of one sort or another. Gothic fiction at its core is about transgressions of all sorts: across national boundaries, social boundaries, sexual boundaries, the boundaries of one’s identity. (Heiland, 2004: 3)

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Susan Yi Sencindiver, no seu ensaio intitulado “Fear and Gothic Spatiality”, estabelece uma ligação entre essa mesma transgressão operada pelo gótico enquanto género literário, e a estrutura arquitectónica que lhe é inerente:

As a result of their consanguinity, Gothic architectural space and fiction mirror mutual essential features; the former permeates all the layers of the latter. The irregular design and mammoth dimensions of the former display aspiring towers endeavoring to pierce heaven, the profusion of ornament, and lack of proportion. This, in turn, reflects the transgressive literary practice of the latter; a genre that is aesthetically extravagant, places a centrality on the supernatural challenging the bounds of rational understanding, and is designed to encourage an inordinate emotional impact on its readers. (Sencindiver, 2010:4)

Com efeito, o gótico parece alimentar-se substancialmente da complexidade inerente à sua espacialidade; os tais “gloomy and mysterious”ambientes, a que Fred Botting faz referência, constituem um retrato metafórico da escuridão que assola a alma e, como tal, um reflexo de um estado psicológico. É precisamente nessa acepção que Dani Cavallaro imagina o decorrer de uma narrativa gótica como uma espécie de descida que pode ser considerada uma “dream-like journey” (Cavallaro, 2002:39). À medida que descemos no espaço arquitectónico, em direcção às profundezas, estamos simultaneamente a fazer uma viagem aos medos e ansiedades que assombram o inconsciente humano.

Peter Garret, na sua obra de referência, Gothic Reflections: Narrative Force in

Nineteeth-century Fiction, advoga que existe, de facto, no enquadramento geral que

envolve as narrativas góticas, um desejo de desestabilizar e de provocar um efeito perturbador no leitor (ou no espectador, caso se trate de uma fonte audiovisual) que se traduz numa força esmagadora que acaba, por fim, por funcionar como motor da própria narrativa:

What Gothic most often reflects on is the sense of narrative force, the force of the desire to disturb and to be disturbed that joins tellers and their audiences and the counterforces that seek to control disturbance, the force of destiny that overwhelms characters, the force of repetition that generates multiplying versions. (Garret, 2003:10)

De facto, em virtude dos terrores e horrores descritos no seio dos enredos góticos, os escritores, adeptos deste género literário como forma de expressão criativa, eram acusados pelos críticos da época de estarem envolvidos numa prática literária denominada de “Terrorist novel writing”9 (Botting, 1996: 15). Consequentemente, e 9 Rictor Norton, na sua obra de referência Gothic Readings: The First Wave, 1764-1840, esclarece a

origem de este conceito, explicando: “(…) the attack on Gothic novels in the contemporary press was informed by a conservative political ideology. As the Revolution in France degenerated unto the

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face à designação algo depreciativa, muitos críticos literários relegavam a ficção de índole gótica para segundo plano no que dizia respeito à sua qualidade literária, o que em parte também acontecia em virtude das suas incursões no fantástico e nos excessos daí decorrentes. Na verdade, o apelo generalizado da ficção gótica, segundo a opinião dos críticos da época, não parecia exercer uma influência benevolente sobre o leitor comum. Dentro deste enquadramento, Maggie Kilgour coloca ênfase nestes receios que vigoravam a nível social que tinham por sua vez a ver com a potencial influência que os temas abordados, e naturalmente as temáticas “perniciosas” do gótico pudessem exercer sobre os indivíduos:

With its cast of extreme characters, unnatural settings and perverse plots, the gothic played a significant part in late eighteenth century debates over the moral dangers of reading (…) there was a mistrust of the reader’s ability to handle the heavy responsibility, and a wariness of the potentially pernicious influence of literature on a broad naive market, The spread of literacy, the growth of a largely female and middle-class readership and of the power of the press, increased fears that literature could be a socially subversive influence. (Kilgour, 1995:6)

Com efeito, Fred Botting considera: “Existing in relation to other forms of writing, Gothic texts have generally been marginalised, excluded from the sphere of acceptable literature.” (Botting, 1996:15) Ainda assim, e apesar de ser considerado como um género inferior,10 ou subgénero literário, o gótico apresentava uma vertente pedagógica,

de cariz positivo, no sentido em que, nas suas narrativas, aquelas personagens cujo comportamento violava o décorum vigente, eram submetidas a um castigo no final da história:

Gothic novels frequently adopt this cautionary strategy, warning of dangers of social and moral transgression by presenting them in their darkest and threatening form. The tortuous tales of vice, corruption and depravity are sensational examples of what happens when the rules of social behavior are neglected. (Botting, 1996:7)

wholesale slaughter of the Terror, which seemed to bury the ideas of liberty, equality and fraternity, much of the reactionary ruling class in England condemned such democratic ideals as leading to the complete collapse of society. Gothic novels were politically censured as ‘the terrorist system of writing’, and their authors denounced as Jacobins set on destroying England. (Norton, 2006:xi)

10 Susan Becker assinala que a marginalização do gótico passa pelo facto de este funcionar quase como

um anti-género. Assim, esta secundarização do género em epígrafe defendida por alguns críticos é susceptível de ocorrer “ (…) because the gothic is the genre of negativities, of the un-real, the anti-rational, the immoral. (Becker, 1999:22)

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Para além desta faceta pedagógica, o gótico conhecia na adopção do sublime como parte integrante da sua ficção um gesto que o enaltecia a nível da redacção e da estética. Agnieszka Monnet afirma:

The sublime is associated with phenomena that defy our ability to grasp them intelectually: the sea, the Alps, infinity. Defined by its immeasurability and unboundness, the sublime was a source of endless fascination in the eighteenth-century and possibly its defining aesthetic term. Like the gothic, the sublime is an essentially ambivalent category, characterized by an irresolvable combination of terror and awe. (Monnet, 2010:23)

Deve-se a Edmund Burke o estabelecimento de uma relação de proximidade entre o sublime e o terror. De facto, no seu tratado sobre a estética intitulado A Philosophical

Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful, o autor propõe,

uma reflexão profunda acerca deste tema, avançando mesmo com uma definição do mesmo:

Whatever is fitted in any sort to excite the idea of pain, and danger, that is to say, whatever is in any sort terrible, or is conversant about terrible subjects, or operates in a manner of analogous to terror, is a source of the sublime; that is, it is productive of the strongest emotion which the mind is capable of feeling. (Burke, 1958:39)

Como reconhece Fred Botting, o intuito da introdução de elementos sublimes servia fundamentalmente o propósito de impressionar o leitor:

Linked to poetic and visionary power, the sublime also invoked excessive emotions. Through its presentations of supernatural, sensational and terrifying incidents, imagined or not, Gothic produced emotional effects on its readers rather than developing a rational or properly cultivated response. (Botting, 1996:5)

Para alguns críticos literários, a inserção de elementos que contribuíam para ligar o gótico ao sublime, funcionava com uma mais-valia que o elevava a um patamar mais alto, a nível dos padrões estéticos, uma vez que o associava com “grandeur and magnificence” (Botting, 1996:3). Para além da estética do sublime, o gótico constituía uma narrativa onde, em qualquer momento, o familiar ameaçava transmutar-se em algo de estranho, e onde o leitor, vítima de tácticas astuciosas, no âmbito de uma atmosfera carregada de suspense, era acometido de uma sensação de desconforto e de insegurança intermitentes. Como assinala Edith Birkhead na sua obra intitulada The Tale of Terror :

The anticipation is half pleasurable, half fearful, as we shudder at the thought of what may befall us within its walls. At every turn something uncanny shakes our overwrought nerves; the sighing

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of the wind, the echo of distant footsteps, lurking shadows, gliding forms, inexplicable groans, mysterious music (…). (Birkhead, 2008:56-57)

De facto, esta impressão de insegurança causada por algo (uma situação, um local, um rosto, uma sombra) que à primeira vista parece ser familiar, e depois não o é, configura precisamente a essência do que Sigmund Freud designa uncanny (unheimlich).11 É

precisamente este impacto provocado por um certo estranhamento que abala os alicerces que sustêm a segurança quer das personagens, quer do leitor, que acaba por ser inconscientemente contagiado por esta ambiguidade. Segundo Freud, a experiência inerente ao uncanny tem na sua origem “something familiar that has been repressed.” [Freud, 2003 (1919):154] Peter Garret salienta que a tensão que advém do confronto entre as forças conscientes e inconscientes, que se debatem na mente do sujeito, e que são responsáveis pela origem da chamada duplicidade, se encontram intimamente ligadas com o fenómeno deste estranhamento que assola muitas narrativas góticas:

Gothic reflections work differently, in part because the uncanny events and effects of Gothic already estrange us from the familiar; their reflexivity is always linked with the problematic relations of subjectivity and the social, their self-consciousness always in tension with the forces of the unconscious. (Garret, 2003:9)

No século XIX o gótico passa a ser palco para narrativas que se debruçam particularmente sobre os “murky recesses of human subjectivity” (Botting, 1996:11) traduzindo, por sua vez, o que Eugenia Delamotte denomina “the most private demons of the psyche” (Delamotte, 1990: vi). Na verdade, é nesta altura que os duplos e os alter-egos começam a emergir na literatura gótica, pondo em evidência a relação do ser humano com o “Outro”, cada vez mais impelindo-o no sentido de questionar a sua identidade e integridade sócio-psicológica.12 Na sua análise The Gothic Other: Racial

and Social Constructions in the Literary Imagination, Ruth Anolik ressalta a ligação

histórica que o género em epígrafe sempre manteve com a alteridade, e as consequências daí provenientes:

The Gothic is marked by an anxious encounter with otherness, with the dark and mysterious unknown. From its early manifestations in the turbulent eighteenth-century, this seemingly

11 O termo uncanny, ou no seu original unheimlich, foi discutido num ensaio redigido por Sigmund Freud, em 1919. Este ensaio surge como uma revisão da obra de Ernst Jentsch, On the Psychology of the

Uncanny (1906).

12 Julian Wolfreys salienta a este respeito: “(…) in double there is both that which is familiar enough to

be disturbing and strange enough to remind us of the otherness that inhabits the self-same” (Wolfreys, 2002:15).

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escapist mode has provided a useful ground upon which to safely confront very real fears and horrors. (Anolik, 2004:1)

De facto, este encontro torna-se, por vezes, num confronto já que a alteridade é um espaço onde a ambiguidade prepondera, originando consequentemente uma atmosfera onde imperam a instabilidade e a ansiedade. O espaço da narrativa gótica torna-se assim o locus privilegiado, no seio do qual ocorre uma exploração da dupla natureza humana, sendo objecto de especial enfoque o seu lado mais negro e ameaçador. Segundo Anolik, este encontro, desencontro ou confronto com a duplicidade do “Eu” dá-se através da criação de um ambiente de segurança a qual nos é oferecida pelas páginas da literatura gótica. Consequentemente, este torna-se no tal “safe ground” onde o leitor se sente seguro porque lhe é dada a faculdade de contemplar, com o distanciamento necessário, qual voyeur, este desdobramento psíquico sofrido pela personagem. Como alega Coral Ann Howells, autora de Love, Mystery and Mysoginy: Feeling in Gothic Fiction:

(…) as readers we are constantly placed in the position of literary voyeurs, always gazing at emotional excess without understanding the why of it (…).The springs of these emotions elude us, so that we can only look on with appalled fascination as floods of feeling rush through the characters, distorting their physical features with alarming rapidity. (Howels, 1978: 15-16)

A este fenómeno emocional, que consiste em contemplar algo que nos horroriza ou nos repugna, de um ponto de vista seguro e distanciado, como constitui exemplo vivo, a leitura de um livro (ou o visionamento de um filme), Terry Heller dá o nome de “safe thrills” (Heller, 1987:72).13 Esta noção de segurança é conferida ao leitor ou ao

espectador através de aplicação de convenções e estratégias próprias do gótico, que lhe outorgam um sentimento de poder sobre os acontecimentos narrados. Como, aliás, salienta Patrick Bridgwater: “Readers of all age enjoy being frightened within safe limits.” (Bridgwater, 1994:82)

Consequentemente, e face a este ambiente aparentemente seguro e controlado, o duplo começou a ser a personagem através da qual as contradições inerentes à personalidade da personagem principal poderiam ser reveladas. Como admite Mark Edmunsdson: “One of the major resources of this Gothic mode is the double. The idea

13 Terry Heller esclarece o significado deste conceito, ao observar: “[The gothic narrative] presents the

implied reader with ideas and images of terror screened by various conventional and special techniques so that the real reader can experience power over these images and ideas. This is what we mean by safe thrills.” (Heller, 1987:72)

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of a second self – of a horrible other living unrecognized within us, or loosed somehow into the world beyond – is central to the vision of terror Gothic.” (Edmundson, 1999:8) Exemplos paradigmáticos da exploração literária e psicológica dos princípios paradoxais que tingem a natureza humana são os famosos Frankenstein or the Modern

Prometheus (1818), de Mary Shelley; The Strange Case of Dr. Jeckyll and Mr. Hide

(1886), de Robert Louis Stevenson; The Picture of Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde; Dracula (1897) de Bram Stoker, ou Heart of Darkness (1902), de Joseph Conrad. Maggie Kilgour, no seu estudo emblemático The Rise of the Gothic Novel (1995), define esta relação do “Eu” com o “Outro”, que incorpora uma temática fulcral no âmbito do gótico literário e visual como uma relação que implica uma certa permeabilidade entre o exterior e o interior:

The self and whatever it is that is outside have a proper, natural, necessary connection to each other, but one that the self is suddenly incapable of making. The inside life and the outside life have to continue separately, becoming counterparts rather than partners, the relationship between them one of parallels and correspondences rather than communication. This, though it may happen in an instant, is a fundamental reorganization, creating a doubleness where singleness should be. And the lengths there are to reintegrate the sundered elements – finally, the impossibility of restoring them to their original oneness – are the most characteristic energies of the Gothic novel. (Kilgour, 1995: 13)

Jerrold Hogle, por seu turno, define o gótico como um género literário onde o terror se entrelaça com o horror, em discursos narrativos que pretendem aliciar o leitor, torná-lo um autêntico participante no enredo, deste modo fazendo com que aquele sofra os tormentos físicos e psicológicos das personagens. Nesta óptica, o autor expressa a diferença entre estes dois ingredientes que fazem parte da natureza intrincada do gótico, contribuindo para veicular com maior intensidade e emoção os episódios narrados. Assim, e de acordo com Hogle:

(…) the ‘terror gothic’ (…) holds characters and readers mostly in anxious suspense about threats to life, safety, and sanity kept largely out of sight or in shadows or suggestions from a hidden past, while the latter [‘horror gothic’] confronts the principal characters with the gross violence of physical or psychological dissolution, explicitly shattering the assumed norms (including the repressions) of everyday life with wildly shocking, and even revolting, consequences. (Hogle, 2002:3)

Já David Sadner, na sua obra sobre o fantástico, Fantastic Literature: a Critical Reader, retomando as palavras da “mãe” do gótico, Ann Radcliffe, defende a perspectiva segundo a qual: “Terror and horror are so far opposite, that the first expands the soul,

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and awakens the faculties to a high degree of life; the other contracts, freezes, and nearly annihilates them.” (Sadner, 2004: 47) Desta forma, poderemos concluir que, enquanto o terror procura desestabilizar psicologicamente o leitor, o horror assume, por seu turno, contornos mais ligados ao aspecto físico, já que a reacção que suscita não é sobretudo uma apreensão psíquica, mas antes uma espécie de repulsa. Assim, o

suspense afirma-se como uma técnica mais ligada ao terror, enquanto que o horror já

tem, por exemplo, a ver com a visão explícita de algo que perturba o leitor de forma visceral, fazendo-o, por exemplo, arrepiar-se ou desviar o olhar. O surgimento de um cadáver em estado de decomposição ilustra este sentimento de repulsa física que caracteriza o horror. O gótico assume, assim, uma faceta que se compraz numa partilha de sensações, que são com frequência hiperbolizadas, e que penetram no domínio do excesso, o que acaba por ir de encontro à afirmação feita por Fred Boting segundo a qual: “Gothic signifies writing of excess.” (Botting, 1996:1) Com efeito, e como salienta Susan Becker:

‘Excess’ is one of the terms most frequently, and most pejoratively, used in established gothic criticism: ‘excess’ in moral, but also in formal terms. I hope to show ‘excess’ as a pleasurable but also subversive gothic strategy, the emotionalizing centre of the gothic’s provocation as well as of its ongoing intertextualisation. (Becker, 1999: 25)

Frequentemente associado ao conteúdo da narrativa gótica encontra-se o grotesco, que pode ser justamente definido como a aplicação de uma estratégia de excessos, e que joga com a dualidade conceptual que oscila entre algo que é familiar e a des-familiarização, numa procura, uma vez mais, no sentido de desestabilizar a plataforma do real, causando no leitor (ou espectador) uma severa sensação de desconforto. Como salienta Sarah C. Shabot: “Grotesque bodies are hybrid bodies: mixtures of animals, objects, plants, and human beings. Hence, the grotesque has been recognized as a concept evoking monstrosity, irrational confusion, absurdity, and a deformed heterogeneity.” (Shabot, 2007:56) No seio do gótico, o grotesco manifesta-se com assaz frequência na personagem do monstro, enquanto um “hybrid body” teorizado por Sarah Shabot, ou então emerge na descrição de cenários que envolvem, por exemplo, crimes violentos que acabam por deixar os corpos num estado físico irreconhecível, ou então na própria excentricidade do cenário gerado, qual teatro encenado, no local desse mesmo crime ou acontecimento. O grotesco tinge, então, o gótico de um tom mais negro, indo de encontro aos seus excessos e transgressões, e contribuindo, dessa forma,

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para a implementação de uma estética de hiperbolização, no seio da qual os aspectos sociais, económicos, religiosos e políticos, são empolados e exacerbados na sua vertente menos positiva. É neste sentido que o gótico funciona também como uma narrativa de interrogação, isto é, que através dos seus excessos visa “colocar o dedo na ferida” e alertar para situações disfuncionais que ocorrem no seio de uma sociedade que apresenta uma tendência para ocultar o seu lado mais cruel.

Associado com frequência ao grotesco, surge o abjecto, foco de profunda reflexão por parte de Julia Kristeva em The Powers of Horror (1982). A ensaísta concebe o abjecto como uma manifestação de alteridade que perturba a normal existência do indivíduo, e que ameaça desestabilizar a ordem simbólica. Baseada na terorização proposta por Kristeva, Susana Araújo define o abjecto:

(…) as an ‘other’, not as an object, which provokes fear, which threatens, which calls into question the boundaries on which notions of self and society are founded – boundaries that are articulated in the realm of semiotic signification. Most conspicuously, the abject manifests itself in phenomena such as ‘a piece of filth, waste, or dung’ that threatens the body’s assumed cleaniness, purity, and health; it is experienced spontaneously as horror, disgust, and loathing. (Kutzbach e Mueller, 2007:222)

Um exemplo no qual o abjecto e o grotesco se entrelaçam na narrativa gótica, a fim de fomentar o medo, o terror, o horror e a repulsa, é claramente visível em The Monk, nomeadamente na seguinte passagem:

Sometimes I felt the bloated Toad, hideous and pampered with the poisonous vapours of the dungeon, dragging his loathsome length along my bosom: Sometimes the quick cold Lizard roused me leaving his slimy track upon my face, and entangling itself in the tresses of my wild and mattered hair. Often have I at waking found my fingers ringed with the long worms which bred in the corrupted flesh of my Infant. At such times I shrieked with terror and disgust, and while I shook off the reptile, trembled with all a Woman’s weakness. [Lewis, 2010 (1796):298]

Com alguma frequência, o gótico, em virtude de constituir incursão no universo do misterioso, do sobrenatural e do fantástico, para ganhar credibilidade junto do leitor, assenta na fórmula do sonho. Frankenstein or the Modern Prometheus, ou The Castle of

Otranto, são apresentados pelos narradores como fruto de um sonho, já para não falar

nos sonhos recorrentes que povoam as mentes atribuladas das personagens em

Melmoth, the Wanderer ou em The Monk. Confirmando o artifício do sonho como um

veículo de subversão, Jason M. Harris, na sua análise Folklore and the Fantastic in

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constitui um claro exemplo de indícios de repressão cultural (Harris, 2008:3). Por conseguinte, pode dizer-se que o sonho informa uma espécie de pretexto, que suaviza a vertente dos excessos cometidos no gótico, ao mesmo tempo que o reveste de uma maior credibilidade relativamente ao relato de certos acontecimentos, de cuja natureza é difícil convencer o eventual leitor. É no âmbito deste enquadramento que a linguagem dos sonhos se funde com a linguagem do fantástico, abrindo caminho para uma reflexão sobre o papel do inconsciente na construção da narrativa gótica. Como refere Danielle Hipkins acerca desta ligação:

The centrality of the spatial dynamic in a definition of the fantastic comes more sharply into focus when we consider the close relationship between the language of the fantastic and that of dreams. In both familiar is made strange and alters our perceptions of it, often through spatial metaphors (…) In the closeness, therefore, between the dream and the fantastic literature, space emerges as a primary common denominator, suggesting that any emphasis on its role in the fantastic will inevitably be closely bound up between the fantastic and its relationship to the unconscious. (Hipkins, 2007:18)

As temáticas abordadas no gótico constituíram terreno fértil para os estudos de Sigmund Freud e desempenharam um papel relevante no posterior desenvolvimento da Psicanálise. Como recorda Linda Badley: “In providing forms of dream narrative, Gothic fiction taught readers to interpret their dreams, preparing them for the ‘dream work’.” (Badley, 1996: 8)14

Na realidade, a própria narrativa gótica é muitas vezes permeada pela sensação de se estar a viver dentro de um sonho, ou pesadelo. Esta curta passagem retirada de

Carmilla (1872), um romance de Sheridan Le Fanu, ilustra esta situação:

A vista opened in the forest; we were on a sudden under the chimneys and gables of the ruined village, and the towers and battlements of the dismantled castle, round which gigantic trees are grouped, overhung us from a slight eminence. (…) In a frightening dream I got down from the carriage, and in silence, for we had each other abundant matter of thinking; we soon mounted the ascent, and were among the spacious chambers, winding stairs, and dark corridors of the castle. [Le Fannu, 2010 (1872): 99]

14 Rictor Norton destaca a relação de proximidade que existe entre a narrativa gótica, a psicanálise e os

sonhos: “The psychoanalytical approach was popular throughout the 1980s, especially in the use of Freudian theory and Freud’s concept of ‘the uncanny’. Much attention has been given to the analysis of repressed sexuality and how this is reflected by Gothic compositional devices such as premonitory dreams and the projection of the displacement of fear, and Gothic images such as the specter or monster (representing ‘the other’). During the 1990s the psychoanalytical approach focused specifically on female sexual issues, such as female masochism, and theories about the ‘pre-Oedipal’ stage in which the female infant fears being absorbed into the mother (who certainly haunts many novels).” (Norton, 2006: ix)

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A expressão “frightening dream” é ambígua, no sentido em que não se sabe se o narrador se encontra, de facto, a sonhar, ou se, pelo contrário, este sonho assustador é apenas um rótulo que classifica os acontecimentos por ele vivenciados. É precisamente esta natureza forjada na ambiguidade e na estranheza que coloca o leitor do gótico num território literário pantanoso onde vigora a premissa de uma suspension of disbelief.

Mais tarde, o gótico acabou por atravessar o Atlântico, contaminando, com as suas convenções literárias, as mentes criativas dos Estados Unidos da América. Edgar Allan Poe, Charles Brockden Brown, Daniel Hawthorne e H.P. Lovecraft inauguraram aí uma tradição que ainda hoje é seguida por escritores contemporâneos, tais como Stephen King e Anne Rice. O ambiente essencialmente nocturno associado ao gótico, é novamente aludido por Leslie Fiedler, sendo desta vez, aplicado no universo americano, no contexto do qual é descrito como: “a literature of darkness and the grotesque in a land of light and affirmation.” (Fiedler, 1960:29) São precisamente estas contradições que, segundo Stephen King, na sua obra crítica Danse Macabre, explicam o desabrochar deste género literário na realidade norte-americana:

We were fertile ground for the seeds of terror, we war babies; we had been raised in a strange circus atmosphere of paranoia, patriotism, and national hubris. We were told that we were the greatest nation on earth (…) but we were also told exactly what to keep in our fallout shelters and how long we would have to stay in there after we won the war. We had more to eat than any nation in the history of the world, but there were traces of Strontium-90 in our milk from nuclear testing. (King, 1981:23)

A este respeito, Teresa Goddu defende igualmente que o gótico desponta na América num registo que se encontra intimamente ligado à concepção da própria identidade nacional e aos paradoxos que lhe subjazem: “in its narrative incoherence, the gothic discloses the instability of America’s self representation; its highly wrought form exposes the artificial foundations of national identity.” (Goddu, 2000: 270) A ensaísta acredita, à semelhança do que acontece com Fred Botting, que há uma função pedagógica que permeia as composições literárias que se inserem no gótico. Consequentemente, Goddu defende que o género em epígrafe é susceptível de denunciar situações delicadas e incongruências sociais, assumindo, por conseguinte, uma faceta de crítica social:

However, while the gothic reveals what haunts the nation’s narratives, it can also work to coalesce those narratives. (…) the gothic serves as the ghost that both helps to run the machine

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of national identity or disrupts it. The gothic can strengthen as well as critique an idealized national identity. (Goddu, 2000: 270)

Desta forma, e embora com um passado histórico diferente e recente (quando comparado à realidade europeia),15 o gótico, as suas paisagens sombrias, os seus

monstros e os seus fantasmas, foram-se progressivamente entranhando na mente de alguns escritores que o encararam como o espaço criativo mais propício aos seus relatos, um espaço no qual podia ter lugar a desconstrução e a distopia, que funcionavam como cenários distorcidos, em ambientes fantásticos e surreais, forçando o leitor a reflectir sobre as causas que presidiam a essa mesma distorção, e analisar de forma consciente as suas raízes seminais no mundo real. Neste sentido, o gótico assume claramente a vertente que o classifica como uma literatura de regeneração (Edmundson, 1999:6). Assim, à guisa de síntese, pode considerar-se que o gótico se compraz num espaço literário no seio do qual se desconstrói para que, no futuro, se possa construir. É no seio do espaço criativo forjado pelo gótico que vão ser objecto de análise as produções literárias de Sylvia Plath e de Anne Sexton, em conjunto com os testemunhos fotográficos de Cindy Sherman e de Francesca Woodman, interpretados à luz da tradição decorrente do female gothic, expressão que designa a especialidade feminina dentro do género, e que se debruça fundamentalmente sobre questões de índole femina. É dentro desta moldura formal que, como adiante tentaremos demonstrar, a mulher que calcorreia os labirintos das “dark adventures” propostas por Plath, Sherman, Sexton e Woodman, pode ser considerada como a típica heroína que povoa estas narrativas góticas a nível literário e visual; uma mulher que, em busca da sua identidade, reflecte no modo como o seu corpo é percebido, interpretado, representado e constrangido na esfera social.

15 Existem teorizadores que são relutantes no que diz respeito à legitimação da aplicação do termo gótico

a determinado tipo de ficção americana. Todavia, e como demonstra Agnieska Monnet, apesar de um passado histórico diferenciado, a essência do gótico americano acaba por ser um reflexo do gótico Britânico, uma vez que abordam temáticas idênticas, nomeadamente no que diz respeito à exploração de medos e ansiedades sociais: “Scholars have often distinguished the American Gothic from the British by arguing that the United States did not have a historical past to explore in its fiction, and so turned inward to create a gothic literature of the mind, of guilt and obsessive psychology (...). However, Americanists have recently challenged these schematic claims by demonstrating that history, social problems, national instituions, and cultural contradictions have been central to American Gothic writing from the start.” (Monnet, 2010:25) Assim, verifica-se que, também no seu congénere americano, o gótico serviu de espaço privilegiado para explorar as contradições sociais, preenchendo, portanto, o seu papel fundamental de crítica social.

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1.2. O gótico feminino

Gothics can be identified by their cover illustrations: each portrays a young girl wearing a long, flowing gown and standing in front of a large, menacing-looking castle or mansion. The atmosphere is dark and stormy, and the ethereal young girl appears to be frightened. [Modleski, 2008 (1990):51]

Segundo Kate Fergusson Ellis, foram as mulheres que pegaram nas rédeas de um género baseado no enquadramento temático inaugurado por Horace Walpole: “(…) although Horace Walpole is the father of the Gothic, it was women writers in the late eighteenth century who took up his literary curiosity and transformed it into a vehicle capable of didactism as well as entertainment.” (Ellis, 1989:52) Com efeito, este género literário afigurou-se particularmente apelativo para as escritoras, tendo a denominada “Walpole formula” (Miles, 2002:46) sido posteriormente apropriada por Anne Radcliffe, Clara Reeve, Sophia Lee, Charlotte Dacre, Jane Austen ou as irmãs Brönte. De acordo com Elaine Showalter: “[ The gothic] has always been especially congenial to the female imagination” (Showalter, 2004:280), e foi-se progressivamente tornando terreno fértil para um género literário susceptível de traduzir “women’s dark protests, fantasies, and fear” (Ibidem, 260). De igual modo, Patricia Meyer Spacks, no seu estudo emblemático The Female Imagination:A Literary and Psychological Investigation of

Women’s Writing, reconhece a existência de um fenómeno literário feminino, ainda que

o caracterize de impreciso, alojado no interior do universo do gótico literário:

(…) there appears to be something that we might call a woman’s point of view – except that sounds like a column in the Ladies Home Journal – a vague enough phenomenon, doubtless the result of social conditioning, but an outlook sufficiently distinct to be recognizable through the centuries. (Spacks, 1976:3)

Ellen Moers foi pioneira na identificação do denominado female gothic, como um sub-género que engloba a escrita feminina no âmbito da generalidade da ficção gótica, através da sua obra Literary Women:

What I mean by Female Gothic is easily defined: the work that women writers have done in the literary mode that, since the eighteen century, we have called the Gothic. (…) In Gothic writings fantasy predominates over reality, the strange over the common place, and the supernatural over the natural, with one definite intent: to scare (…) to reach down into the depths of the soul and purge it with pity and terror (as we say tragedy does), but to get to the body itself, its glands,

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muscles, epidermis, and circulatory system, quickly arousing and quickly allaying the philosophical reactions to fear. [Moers, 1986 (1972):90]

De acordo com Moers, o corpo é o centro do gótico feminino, sendo o seu objectivo fundamental, enquanto narrativa, causar sensações fortes, não somente a nível psicológico, mas igualmente a nível físico. Desta forma, o terror, o horror e o sobrenatural funcionam como instrumentos que agem sobre o corpo através da ficção ou da imagem, perturbando-o, suscitando as mais diversas reacções, tais como o medo, a ansiedade, o estranhamento, a repulsa, fenómenos aos quais aliás Mary Shelley alude na introdução de Frankenstein or The Modern Prometheus:

I busied myself to think of a story, - a story to rival those which had excited us to this task. One which would speak to the mysterious fears of our nature, and awaken thrilling horror – one to make the reader dread to look round, to curdle the blood, and quicken the beatings of the heart. [Shelley, 1992 (1818):23]

Neste sentido, o gótico feminino e o corpo apresentam uma relação muito estreita. Com efeito, o corpo surge no seu papel de objecto enquanto elemento de representação e foco de reflexão, e num papel de sujeito, pois é nele que incidem os efeitos do gótico, enquanto género literário que o pretende despertar para sensações mais extremas.

No universo criativo forjado por esta variante feminina do gótico, são afloradas temáticas de índole mais delicada, de carácter ideológico, designadas por questões-tabu, das quais faziam parte a menstruação, a gravidez, o parto ou o desequilíbrio mental. Estes assuntos do foro privado foram introduzidos, de forma gradual e sub-reptícia, na ficção de várias autoras, abrindo assim espaço para um discurso que se apressava a reflectir acerca de certos mitos historicamente construídos acerca da natureza inerente ao sexo feminino, e que jaziam intocados no seio de uma sociedade marcadamente patriarcal. Por vezes, esta subversão de valores ocorria a nível da conceptualização do espaço. Com efeito, determinados espaços, tradicionalmente associados ao sexo masculino, como o castelo ou o laboratório, eram objecto de revisão e, consequentemente, acabavam por sofrer um processo de feminização, ainda que disfarçada através do artifício literário. Frankenstein or The Modern Promehteus traduz um exemplo flagrante desta manobra subversiva, uma vez que o laboratório de Victor Frankenstein é susceptível, a nível metafórico, de configurar um útero. Logo, na senda de uma leitura psicanalítica, de cariz feminista, o “monstro” por si engendrado constitui o retrato distópico de um recém-nascido.

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A ensaísta Julian Fleenor, na sua obra Female Gothic, apresenta uma definição do gótico feminino, na qual faz precisamente referência a esses aspectos mais problemáticos que se prendiam com a sexualidade e a reprodução humanas, e que constituíam referências constantes no gótico literário:

[the Female Gothic] uses the traditional spatial symbolism of the ruined castle or an enclosed room to symbolize both the culture and the heroine; as a psychological form, it provokes various feelings of terror, anger, awe, and sometimes self-fear and self-disgust directed towards the female role, female sexuality, female physiology, and procreation; and it frequently uses a narrative form which questions the validity of the narration itself. It reflects a patriarchal paradigm that women are motherless yet fathered and that women are defective because they are not males. (Fleenor, 1983:15)

Por conseguinte, podemos dizer que se, por vezes, estas ficções afloravam, de um modo camuflado e disfarçado, certas situações de pendor mais privado que diziam respeito à intimidade feminina, outras vezes era a própria mulher escritora que veiculava as percepções que a sociedade tinha acerca da sua imagem, enquanto mulher. Emulava, por conseguinte, padrões prevalecentes no imaginário literário masculino que apontavam para retratos onde dominavam sintomas de inferiorização e de submissão femininas. Noutras circunstâncias ainda, esses aspectos que se prendiam com a intimidade do universo feminino eram objecto de encobrimento ou de omissão. Este encobrimento de factos, tais como desejos perversos, fantasias carnais e expressões de violência incorre no fenómeno que Eve Kosovsky Segdwick, na sua obra de referência

The Coherence of Gothic Conventions, denomina “unspeakable”:

‘Unspeakable’, for instance, is a favorite Gothic word, sometimes meaning no more than ‘dreadful’, sometimes implying a range of reflections on language. The word appears regularly enough, in enough contexts, that it could be called a theme in itself, but it also works as a name for moments when it is not used: moments when, for instance, a character drops dead trying to utter a particular name. [Segdwick, 1986 (1980):4]

Esta categoria abrange, portanto, todas aquelas ocorrências corporais e extra-corporais, imanentes ao género feminino, que não poderiam ser objecto de uma descrição explícita, atendendo ao rigor que pautava os padrões de décorum da época. Martin Kaplan e Robert Kloss, no seu estudo de cariz psicanalítico The Unspoken Motive: A

Guide to Psychoanalytic Literary Criticism (1973), apresentam como alternativa a esta

noção de “unspeakable” um conceito menos lato e mais específico: o “unspoken motive” que, tal como a própria designação indica, contemplava um espectro de temas susceptíveis de serem silenciados pelo ethos. No âmbito deste enquadramento, Mary

Referências

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