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Uma cinecidade latino-americana: um olhar distópico sobre o espaço urbano

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ALISSON GUTEMBERG DA SILVA SOUZA

UMA CINECIDADE LATINO-AMERICANA:

um olhar distópico sobre o espaço urbano

NATAL / RN 2020

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ALISSON GUTEMBERG DA SILVA SOUZA

UMA CINECIDADE LATINO-AMERICANA:

um olhar distópico sobre o espaço urbano

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Doutor. Linha de pesquisa: Complexidade, Cultura, Pensamento Social.

Orientadora: Profª Drª Josimey Costa da Silva.

NATAL / RN 2020

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FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Souza, Alisson Gutemberg da Silva.

Uma cinecidade latino-americana: um olhar distópico sobre o espaço urbano / Alisson Gutemberg da Silva Souza. - 2020. 272f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes. Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2020.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Josimey Costa da Silva.

1. Cinecidade - Tese. 2. Cinema latino-americano - Tese. 3. América Latina - Tese. I. Silva, Josimey Costa da. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 791(7/8)

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BANCA EXAMINADORA

Apresentada em: 20/02/2020

_________________________________________________________

Profª. Drª Josimey Costa da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGCS / UFRN) (Orientadora)

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (PPGCS / UFRN)

(Avaliador interno)

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Fagner Torres de França (PPGCS / UFRN)

(Avaliador interno)

_________________________________________________________________ Profª. Dr. Rodrigo Octávio d’Azevedo Carreiro (PPGCOM / UFPE)

(Avaliador externo)

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Rafael Morato Zanatto (ECA / USP)

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supeior (CAPES) por ter financiado esta pesquisa, reforçando, assim, a importância do Estado e das políticas públicas para o desenvolvimento da ciência e para o acessso ao conhecimento. No momento atual, que vivenciamos o desmantelamento do Estado por meio do avanço de uma agenda neoliberal, é fundamental enfatizar a importância da CAPES.

À minha orientadora, Professora Dra. Josimey Costa da Silva, por todo conhecimento compartilhado e por ter caminhado ao meu lado nesta jornada.

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ter sido o meu porto nos últimos anos.

Ao meu irmão, Anderson Breno, por toda ajuda e companheirismo.

Aos meu pais, pois, sem eles, nada disso seria possível.

À minha noiva, Janaína, por estar ao meu lado em todos os momentos e por tornar a minha vida mais feliz.

À tia Nilza, por tudo que fez e faz por mim. Por toda ajuda e por todo carinho.

A Tiago Lima, pela ajuda no processo de decupagem dos filmes.

A Gustavo Bittencourt, por compartilhar os sonhos e as angústias da vida acadêmica.

À minha filha Maria, que, como disse em outras oportunidades, é o vento que me impulsiona para frente. É a dona do riso que guia os meus passos.

E, por fim, agradeço ainda a todos que, de forma indireta, contribuíram para que este trabalho se tornasse uma realidade.

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Não me peça que eu lhe faça Uma canção como se deve

Correta, branca, suave Muito limpa, muito leve.

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RESUMO

Este estudo busca elucidar como representações de metrópoles latino-americanas chegam a formar uma paisagem simbólica contínua e um único ambiente imaginário, que se refere à significação resultante da produção de um sentido cultural próprio e comum para as cidades tematizadas cinematograficamente. Denomino esse equivalente cinematográfico do espaço urbano como cinecidade. No caso latino-americano, em específico, trata-se de uma abordagem em que as representações urbanas são predominantemente distópicas e marcadas por problemas sociais como desemprego, desigualdade estrutural e violência urbana, compondo assim uma cidade simbólica comum em crise. O estudo resulta da articulação de alguns pressupostos teóricos construídos para se pensar a relação entre a metrópole e o cinema (COSTA, 2002, 2005, 2008; PRYSTHON, 2006; KRACAUER, 1960; MORIN, 2005), em conjunto com a ideia de cidades contínuas desenvolvida por Ítalo Calvino (1990). Esta articulação é aplicada aqui à reflexão sobre a imagem de seis metrópoles : São Paulo, Buenos Aires, Caracas, Bogotá, Cidade do México e Manágua. Para tal, são analisados os filmes Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008), Hermano: uma fábula sobre o futebol (Marcel Rasquin, 2010), Las Tetas de Mi Madre (Carlos Zapata, 2015), Elefante Branco (Pablo Trapero, 2009), La Yuma (Florence Jaugey, 2009) e Dias de Graça (Everardo Valerio Gout, 2011), onde cada um representa uma das cidades tematizadas. A análise dessas representações urbanas evidenciou que, no contexto contemporâneo, há uma parcela significativa de produções cinematográficas, no âmbito da América Latina, que olha para a cidade sob um mesmo viés: a metrópole como o espaço da degradação social marcado por problemas estruturais. A origem desse universo comum, segundo minha pesquisa, se encontra no subdesenvolvimento e na dependência da América Latina. Herança, nesse caso, de um passado colonial, de uma modernidade periférica (SOUZA, 2009) e do aprofundamento de uma agenda neoliberal. Palavras-chave: Cinecidade. Cinema latino-americano. América Latina. Imaginário

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ABSTRACT

This study seeks to elucidate how Latin American metropolises representations form a continuous symbolic landscape and a single imaginary environment, which refers to the signification resulting from the production of its own cultural sense and common for cinematographically themed cities. Classify this cinematic equivalent of urban space as cinecity. In the Latin American case, specifically, this is an approach in which urban representations are predominantly dystopian and marked by social problems such as unemployment, structural inequality and urban violence, thus composing a common city in crisis. The study results from the articulation of some theoretical assumptions built to think about the relationship between metropolis and cinema (COSTA, 2002, 2005, 2008; PRYSTHON, 2006; KRACAUER, 1960; MORIN, 2005), together with the idea of continuous cities developed by Italo Calvino (1990). This articulation of ideas is applied here to reflect on the image of six cities: São Paulo, Buenos Aires, Caracas, Bogotá, Mexico City and Managua. To this end, the films Linha de Passe (Walter Salles and Daniela Thomas, 2008), Hermano: uma fábula sobre o futebol (Marcel Rasquin, 2010), Las Tetas de Mi Madre (Carlos Zapata, 2015), Elefante Branco (Pablo Trapero, 2009), La Yuma ( Florence Jaugey, 2009) and Dias de Graça (Everardo Valerio Gout, 2011) are analyzed, where each represents one of the cities investigated. The analysis of these urban representations showed that, in the contemporary context, there is a significant proportion of film productions, within latin America, which looks at the city under the same lenses: the metropolis as the space of social degradation marked by structural problems. The origin of this common universe, according to my research, is found in the underdevelopment and dependence of Latin America. Inheritance, in this case, of a colonial past, of a peripheral modernity (SOUZA, 2009) and the deepening of a neoliberal agenda.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 15

1. A MODERNIDADE COMO GÊNESE DA NOÇÃO DE CINECIDADE ... 28

1.1. O encontro entre o aparato cinematográfico e a urbe ... 29

1.2. Linguagens artísticas: captura do instante e olhar para o cotidiano... 32

1.3. A linguagem cinematográfica e a relação entre cinema e imaginário ... 38

2. IMAGINÁRIO E ORIGENS HISTÓRICAS DE UMA CINECIDADE LATINO-AMERICANA ... 41

2.1. A formação histórica da América Latina como legado desta cinecidade ... 52

2.1.1. O período colonial ... 54

2.1.2. Industrialização e modernidade periférica ... 63

3. BAS-FONDS: A MISÉRIA COMO IMAGINÁRIO SOCIAL ... 74

3.1. O lugar da miséria como imaginário social dominante do Ocidente ... 76

3.2. A cinematografia latino-americano e a noção de Terceiro Cinema como gênese do imaginário da miséria na filmografia da região ... 86

4. NEOLIBERALIZAÇÃO E METRÓPOLES EM CRISE NO CINEMA LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO ... 101

5. SEIS METRÓPOLES E UM IMAGINÁRIO: A FORMAÇÃO DE UMA CINECIDADE LATINO-AMERICANA ... 119

CONCLUSÃO ... 152

REFERÊNCIAS ... 159

FILMOGRAFIA ... 169

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1.1: Monet – Impressão, nascer do sol, 1873 ... 33

Figura 1.2: Renoir – Les Maisons Rouges - Paysage de Cagnes, 1905 ... 33

Figura 1.3: Monet – alguns dos quadros da série Haystacks, 1890-1891 ... 34

Figura 1.4: Chegada do trem na estação (Lumière, 1895) ... 35

Figura 1.5: The Gare Saint-Lazare (Monet, 1877) ... 35

Figura 4.1: Paisagem urbana repleta de trabalhadores informais... 109

Figura 4.2: Metrópole cindida em Elefante Branco ... 112

Figura 4.3: Imagens de Feios, Sujos e Malvados, Linha de Passe e Hermano ... 114

Figura 5.1: Imagens da representação de Manágua em La Yuma ... 125

Figura 5.2: Representação de confrontos com a polícia nos filmes analisados ... 128

Figura 5.3: O roubo como recorte temático nos filmes analisados ... 134

Figura 5.4: Recorrência da temática do tráfico de drogas nos filmes estudados ... 134

Figura 5.5: Recorrência do tema morte nos enredos dos filmes estudados... 139

Figura 5.6: O sequestro como parte do enredo dos filmes estudados ... 140

Figura 5.7: Recorrência da temática do desemprego/trabalho precário nos filmes .... 140

Figura 5.8: Martin descobre que sua mãe trabalha como stripper ... 141

Figura 5.9: Fila de desempregados na TV ... 144

Figura 5.10: Presença do esporte nos filmes analisados ... 144

Figura 5.11: Papel do esporte nos filmes analisados ... 145

Figura 5.12: Modalidades esportivas dos filmes analisados ... 149

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APRESENTAÇÃO

Na construção desta tese, optei por um texto mais pessoal, que, em certos momentos, remete a um ensaio. Sei que essa escolha coloca o meu trabalho, em certo sentido, à margem das convenções acadêmicas. Ainda assim, a escolha pelo texto pessoal, próximo ao formato ensaístico, não quer dizer que navegarei como uma nau à deriva. Na verdade, aqui, esta é uma opção epistemológica. Explico-me.

Usarei o texto pessoal, que em algumas passagens remete ao ensaio, como pressuposto formal para problematizar a escrita acadêmica. Para problematizar o modo como as convenções da “verdade” e do conhecimento, que dominam o universo acadêmico, impõem determinados modos de escrita e pensamento (LARROSA, 2003). E isso porque compartilho da ideia de que, para conhecermos a estrutura de uma prática institucional, é preciso que interroguemos o que ela proíbe. Enxergar os fenômenos das bordas, muitas vezes, é mais esclarecedor do que simplesmente seguir as convenções sem questioná-las.

Por exemplo: Theodor Adorno (2003) afirma que o ensaio é um gênero impuro, e é justamente essa característica que lhe delega um lugar marginalizado no âmbito do saber instituído. Ainda segundo o autor, a razão dominante identifica o conhecimento como sinônimo de ciência organizada e exclui tudo aquilo que não perpassa por esse predicado. E o ensaio, por sua vez, atravessa a distinção entre ciência, conhecimento e objetividade, por um lado; e arte, imaginação, subjetividade, por outro. Colocando, assim, as fronteiras em questão (LARROSA, 2003).

A minha escolha pelo texto pessoal, com certo tom ensaístico, se deu por conta da Complexidade (MORIN, 2005, 2008, 2015). Nesse sentido, como disse, é uma opção muito mais epistemológica do que técnica. A perspectiva epistêmica apontada por Edgar Morin (2005, 2008, 2015) aguça reflexões acerca do paradigma dominante do conhecimento, a ciência. A crítica construída, contudo, não tem por intuito a superação do paradigma científico1. Na verdade, a ideia é avançar. É fazer ciência com consciência.

1O olhar proposto por Morin (2005, 2008, 2015) não deve ser confundido com uma abordagem

pós-moderna (LYOTARD, 1986). São maneiras distintas de se questionar o saber científico. Enquanto há em Jean-François Lyotard (1986) uma crítica efusiva que prega a superação da ciência como paradigma

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13 Mas o que seria essa ciência com consciência? É fato que a afirmação de que há uma ciência feita conscientemente pressupõe a existência de uma outra, inconsciente. Essa constatação pode soar contraditória e alguns podem se perguntar: se a ciência é o campo do saber, como, em seu âmbito, pode existir algo que pressupõe certa “cegueira”? A esse questionamento, sob a luz das leituras das obras de Morin (2005, 2008, 2015), respondo: a ciência feita com consciência é aquela que conhece os próprios limites e problemas do fazer científico. Que reconhece o lugar da contradição e do acaso, que não renega o papel do sujeito nesse processo e não busca neutralizá-lo; pois, queira-se ou não, não há ciência sem indivíduos.

A Complexidade, nesse sentido, ressalta a premência da religação entre os saberes separados para que seja possível superar o processo de automação (MORIN, 2005, 2008, 2015), afirmando que é preciso interligar, juntar, reagrupar, aquilo que nunca deveria ser separado: a ciência do homem e a da natureza. Morin (2005) afirma que a ciência fora concebida na disjunção entre sujeito e objeto, para empreender uma premissa de imparcialidade, relegando à filosofia e à moral a noção de sujeito.

Ainda assim, a meu ver, qualquer texto, por mais impessoal que pareça, é fruto das subjetividades de quem o escreveu. É conjunto formado pelo acúmulo de experiências, sejam elas práticas e/ou teóricas. E foi por isso que optei pelo tom pessoal, ensaístico, pois ele me permite levantar esse debate. Pesquisadores como Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Walter Benjamin, por exemplo, também já optaram por uma perspectiva semelhante. Por isso, há uma tradição teórica que embasa o meu caminho.

Desse modo, o fato de escrever uma tese com um tom pessoal, ensaístico em certos momentos, não quer dizer que navegarei como um barco à deriva em um mar revolto. Uma deriva que me mova de um lado a outro e não me deixe estabelecer em porto algum. Busco, aqui, ao debater os caminhos que levam ao apagamento do sujeito no âmbito do fazer científico, amparado pela Complexidade (MORIN, 2005, 2008, 2015), refletir a ciência de forma filosófica. Que, para Morin (2005, 2008, 2015), perpassa pelo questionamento do paradigma da ocultação do sujeito. E o ensaio, como destaca Larrosa (2003), confunde justamente as diferenças entre ciência e filosofia. Haja vista que, por

dominante do conhecimento, em Morin (2005, 2008, 2015) busca-se compreender a ciência de maneira mais profunda, por meio do conhecimento do conhecimento; cujo objetivo é pensar cientificamente a ciência.

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14 conta do caráter híbrido, sua particularidade sempre será uma: manter qualquer método como problema. Esclarecida a questão, sigamos.

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INTRODUÇÃO

O que me interessa neste estudo é o encontro entre o aparato cinematográfico e a

urbe, um encontro que denominei de cinecidade. A cinecidade, a meu ver, tem sua base

formada em um espaço-tempo preciso – Paris do século XIX2. A cidade moderna é a base da experiência cinematográfica. É na metrópole que se desenvolvem o gosto pelo cotidiano, a mobilidade do olhar e o espetáculo. E esses são alguns dos elementos que atravessam tanto a experiência do indivíduo urbano moderno, como também a do espectador cinematográfico. O gosto pelo espetáculo e pelo cotidiano, nesse caso, são subsídios fundamentais para pensarmos o conceito que venho propondo.

É importante ressaltar que a cinecidade não é um espaço abstrato, descolado do mundo concreto. Um cineasta como Pablo Trapero, por exemplo, ao filmar Buenos Aires, leva em conta as dinâmicas sociais, culturais e políticas da cidade concreta. E esses elementos, que perfazem o cotidiano de Buenos Aires, são enfatizados e abordados por meio de um caráter espetacular; pois, quando o cinema se volta para determinado perímetro urbano ele estabelece discursos e sentidos para esse espaço. Por outro lado, esses discursos e sentidos construídos não são o real. Na verdade, são fragmentos que ganharam relevo.

Desse modo, o que o cinema faz é selecionar determinados aspectos de uma realidade e enfatizar, diminuir, ampliar, distorcer, espetacularizar. Em suma, ele sintetiza a realidade representada. Dentro dessa lógica, podemos constatar que as imagens das metrópoles contemporâneas passam pelo “entendimento e desenvolvimento de um processo criativo e estético que tem base na gênese da relação entre o cinema e o espaço urbano” (COSTA, 2005, p.4), haja vista que, ao longo dos anos, por meio de expectativas e valorações das mais diversas naturezas e ordens, as imagens cinematográficas têm ampliado o repertório e criado novas percepções acerca dos espaços concretos.

2Quando afirmo que a modernidade é a gênese da cinecidade, quero deixar claro que refiro-me a algumas

características oriundas do mundo moderno, precisamente do século XIX, que são fundamentais para a compreensão do conceito proposto. A modernidade inaugurou um novo espaço social. A concepção de cidade que temos hoje vem desse período. A urbe precede ao moderno, é verdade. No entanto, em composições distintas. A organização da pólis grega, por exemplo, difere bastante do modelo urbano que conhecemos. E não apenas no sentido arquitetônico e urbanístico; mas, principalmente, em nível de experiência cultural, ou seja, vivência urbana.

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16 No entanto, essa ampliação, é importante ressaltar, não perpassa apenas o cinema; mas, também, as mais distintas mídias. Há uma avalanche de imagens espetacularizadas do cotidiano, em um recorte temático diverso, que são veiculadas diariamente pela TV, pela mídia impressa, etc. E esse interesse pelo cotidiano, pela espetacularização do dia a dia, teve início com o advento do mundo moderno. É essa relação entre cotidiano e espetáculo, como já enfatizei, que é a base da cinecidade. Quanto a isso, com o advento do mundo moderno, o próprio dia a dia tornou-se espetáculo, objeto de interesse e fascínio. A novidade passou a brotar do caminhar pela cidade, daí o surgimento do

flâneur. A figura de um transeunte sem rumo e sem objetivo definidos só faz sentido no

contexto em que uma simples caminhada é capaz de revelar a novidade e gerar interesses e curiosidades. O espetáculo, nesse caso, é consequência e produtor da experiência moderna.

No texto O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do

público pela realidade na Paris fim-de-século (2004), Vanessa Schwartz aponta que a

metrópole moderna do século XIX havia se transformado no espaço da indústria do entretenimento: “a vida real era vivenciada como um show, mas, ao mesmo tempo, os shows tornavam-se cada vez mais parecidos com a vida” (2004, p. 337). Diante disso, a hipótese que venho construindo parte dessa relação entre cinema, cidade e espetáculo, iniciada no século XIX, e que ainda hoje persiste. Este estudo, contudo, busca extrapolar um olhar dirigido a um único espaço concreto; pois, a meu ver, as imagens das urbes tematizadas pelo cinema – refiro-me a espaços distintos, como Londres e Paris, por exemplo – podem formar um único ambiente simbólico imaginário a partir da espetacularização de diferentes cotidianos. Criando, assim, um continuum conceptivo e perceptivo. Tal como o faz a imbricação dos termos cine e cidade.

A partir do caso citado acima, referente ao cinema de Trapero3, por exemplo, pode-se compreender as imagens de Buenos Aires (o espaço concreto) como parte de um escopo geográfico e político mais amplo; pois, há o compartilhamento de uma herança histórica comum com países como Brasil e Colômbia, por exemplo. E isso, de certa forma, interliga suas dinâmicas sociais e políticas às de cidades como São Paulo e Bogotá. Nessas três cidades, observa-se, em alguns filmes, a preponderância de temas parecidos – desigualdade social, desemprego, corrupção, violência urbana, etc. Quanto a isso,

pode-3 Filmes como Mundo Grúa (1999), Elefante Branco (2012), Do Outro Lado da Lei (2002), por exemplo,

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17 se perguntar: de onde vem essa herança comum? Qual a sua origem? A minha hipótese, nesse caso, é que essa herança é fruto do legado histórico e do cotidiano concreto desses espaços: se não fosse assim, faria sentido, por exemplo, que essas mesmas imagens fossem acionadas para se pensar Veneza. E nós sabemos que não são.

O exemplo de Veneza é bom para pensarmos na cinecidade como uma herança imaginária, reconhecendo o imaginário como articulação das dinâmicas do mundo concreto. O imaginário que formulo como base da cinecidade é pensado por autores como Cornelius Castoriadis (1982, 1987, 2002) e Edgar Morin (1997), que enxergam a sua construção como dinâmica complexa em que mundo concreto e imaginário se misturam e formam um todo alterado. Veneza, como disse, é um bom exemplo. A sereníssima é uma das urbes mais conhecidas do mundo. E, ainda que o acesso ao seu espaço seja limitado por questões financeiras, por exemplo, as imagens das gôndolas atravessam os oceanos e criam discursos e formulações acerca do espaço concreto. Ao mesmo tempo, o espaço concreto se apropria dessas imagens e formulações. A magia da cidade, e, consequentemente seu turismo, depende disso.

Ainda assim, é a compreensão das representações das metrópoles como um

continuum conceptivo e perceptivo que vai permitir a edificação de diferentes

cinecidades. Um entendimento, nesse caso, que parte de dois aspectos iniciais: 1) a compreensão de que o cinema formula interpretações (MORIN, 2005); 2) a possibilidade de algumas questões exercerem peculiar atração para as lentes cinematográficas ao passo em que se tornam recorrentes (KRACAUER, 1960)4. Morin (2005) afirma que o cinema não registra o mundo concreto; mas, sim, formula interpretações sobre ele. Penso que o cinema não só cria interpretações, por meio de enquadramentos, mas, através de suas formulações, também produz uma hiper-realidade5.

Pensemos nas interpretações cinematográficas sobre o exercício do jornalismo, por exemplo, filmes como Rede de intrigas (Sidney Lumet, 1976), A montanha dos sete

4Vale lembrar que o cinema é a arte que representa o cotidiano urbano, e a cinecidade surge justamente desse encontro entre aparato cinematográfico e urbe. É diante disso, compreendendo o que afirma Kracauer (1960), que parto para pensar a possibilidade de continuums conceptivos e perceptivos interligando cidades distintas.

5Segundo Jean Baudrillard (1991), a hiper-realidade é uma realidade construída e divulgada pelos meios

de comunicação. Trata-se de uma criação incessante de imagens, criação essa que retira do objeto todas as suas dimensões: o peso, o relevo, o cheiro, a profundidade, o tempo, e, principalmente, o sentido. O fetiche da imagem digital reside na desincorporação e isso torna a imagem pura objetividade. A simulação busca, então, restabelecer todas as dimensões suprimidas com o intuito de tornar a imagem mais real que a realidade, justamente a hiper-realidade.

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abutres (Billy Wilder, 1951) e Fogueira das vaidades (Brian De Palma, 1990) não captam

a realidade da profissão, pois não é esse o objetivo. A realidade é muito ampla para ser captada de forma total. Portanto, o que esses filmes fazem é salientar determinados temas do cotidiano da profissão. No caso das obras citadas, o recorte temático é a falta de ética. Certamente existe falta de ética no exercício do jornalismo, como em qualquer função; porém, o cinema amplia esse fato, pois faz dele um hiper-real ao enquadrar aspectos de uma realidade como representação do todo. Acontece algo semelhante, por exemplo, com a cobertura midiática da violência.

A lógica da hiper-realidade molda as câmeras e lentes que trafegam pela paisagem concreta6. E, como já mencionei, Siegfried Kracauer (1960) nos alerta para um fato: alguns elementos são mais visíveis no cinema do que outros. A falta de ética para representar o jornalismo é um exemplo. E quais seriam os temas mais comuns na representação dos espaços urbanos? Foi a partir dessa questão que comecei a pensar em uma cinecidade – se faz sentido o que Kracauer (1960) afirma, é possível que encontremos filmes que se passam em diferentes urbes debatendo os mesmos elementos e discutindo as mesmas questões.

Quanto a isso, um dos recortes mais comuns, sem dúvida, é a perspectiva distópica. Que refere-se a um olhar pessimista para o presente e/ou para o futuro (EDUARDO, 2005; MELLO; SOBRINHO, 2009). Diferentemente da antiutopia, a distopia não parte do projeto utópico; pois, sempre mantém uma visão negativa. Por exemplo: na perspectiva distópica a máquina sempre domina o homem. Além disso, a distopia é uma característica ligada ao urbano7. Em A utopia no cinema brasileiro:

matrizes, nostalgia, distopias (2006), Lucia Nagib discorre sobre a distopia urbana a

partir do filme O Invasor (Beto Brant, 2002). Na obra de Beto Brant, como bem aponta a pesquisadora, a metrópole é representada como espaço de esfacelamento dos sonhos, das

6Quando falo em paisagem concreta me refiro ao mundo extra-diegético em que se sustenta a narrativa. 7 Em filmes como Linha de Passe (Walter Salles and Daniela Thomas, 2008), Hermano: uma fábula sobre

o futebol (Marcel Rasquin, 2010), Las Tetas de Mi Madre (Carlos Zapata, 2015), Elefante Branco (Pablo

Trapero, 2009), La Yuma (Florence Jaugey, 2009) and Dias de Graça (Everardo Valerio Gout, 2011), a metrópole é o espaço de esfacelamento dos sonhos. Por isso, quem foge, escapa da realidade caótica. E quem fica é “engolido” pela selva de pedras. Por outro lado, como parte de uma abordagem distópica, nesses filmes há a ausência de uma atitude política. Não há a luta coletiva pela superação dos problemas sociais; mas, sim, quando muito, uma ação individualista e de redenção pessoal. Realidade que invalida a resolução dos conflitos em termos de espaço social. Um recorte em que a cidade aparece como espaço caótico e que, muito mais do que uma simples locação, verifica-se na diegese a presença da sociedade como fator preponderante na composição do caos urbano. Fuga e morte são temas recorrentes nessa abordagem. E, muitas vezes, essa morte aparece no sentido metafórico – morte da inocência, morte de um sonho, etc.

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19 utopias. Um ambiente degradado pela violência estrutural. E, em todos os filmes que compõem este estudo, as cidades são representadas por meio de perspectivas, que, em certo sentido, se aproximam da análise empreendida por Nagib (2006).

Em La Yuma (Florence Jaugey, 2009), por exemplo, em que prevalece essa abordagem, observa-se a fuga de Manágua como uma tentativa de ruptura com o presente de sofrimento e dor. E é bastante comum observar filmes que abordam a cidade pelo viés da catástrofe, da violência. Por essa razão, esse é o recorte temático que trabalharei nesta tese. No entanto, o conceito de cinecidade é mais abrangente: podem formar uma cinecidade, por exemplo, a Nova Iorque do filme Ela (Spike Jonze, 2014) e a Buenos Aires de Medianeras (Gustavo Taretto, 2011). Tendo como aspecto comum, nesse caso, as interações que atravessam as sociedades e os indivíduos contemporâneos.

De modo basilar, a ideia de cinecidade articula determinadas questões. A compreensão das representações cinematográficas como um universo filtrado (MORIN, 1997) e a repetição de temas (KRACAUER, 1960) são dois exemplos já mencionados. Além deles, dialogo com mais duas ideias: 1) cidades contínuas, de Ítalo Calvino (1990); pois, para além dos aspectos singulares, as cidades podem formar espaços ininterruptos; 2) cidade cinemática, de Maria Helena Braga e Vaz da Costa (2002, 2005, 2008), perspectiva que pensa a cidade fílmica em correlação com o espaço concreto. No entanto, partindo da seguinte hipótese: as cidades visíveis do cinema não são necessariamente o real; mas, sim, uma interpretação.

Basicamente, isso quer dizer que a cidade cinemática é uma interpretação midiática de um recorte urbano que é fruto da correlação entre dois espaços – o fílmico e o real. E, a meu ver, a hipótese de Costa (2002, 2005, 2008) é certeira. Por exemplo: foi exatamente isso – essa correlação entre o universo fílmico e o cotidiano – que procurei demonstrar quando falei sobre a relação entre Veneza e o tema da desigualdade social. Por isso, essa dimensão entre o espaço fílmico e o concreto também aparece no conceito que proponho; porém, ainda assim, para além desse elemento, busco uma compreensão da cidade fílmica por meio de um recorte mais amplo que a sua delimitação geográfica. E acredito que a ausência desse olhar é uma lacuna no conceito de Costa (2002, 2005, 2008). Explico-me.

Na cidade cinemática (COSTA, 2002, 2005, 2008) é como se a relação fosse de 1:1; ou seja, uma cidade imaginária/fílmica para um espaço concreto. Costa (2002, 2005,

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20 2008) não menciona a possibilidade de espaços concretos distintos serem representados pelo mesmo recorte temático, aspecto que possibilita a construção de um único espaço imaginário a partir da representação de diferentes cidades. É nesse ponto que a cinecidade amplia a cidade cinemática. A cinecidade propõe uma expansão, une diferentes espaços a partir de um mesmo traço temático. Pensemos: o espaço fílmico de uma cidade como o Rio de Janeiro, em filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles; Kátia Lund, 2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007), não é apenas a representação simbólica de um lugar concreto. É também algo maior. É parte de um continuum que perpassa diferentes urbes por meio de questões como violência, corrupção e tráfico de drogas. E isso mostra que, apesar das singularidades, as cidades também podem formar espaços contínuos (CALVINO, 1990).

No artigo Representações urbanas no cinema latino-americano contemporâneo (2006), Ângela Prysthon aborda a possibilidade de se pensar em uma unidade latino-americana tendo como referencial as representações das metrópoles presentes em obras da cinematografia contemporânea de diferentes países da América Latina. E foi a partir desse pressuposto que passei a propor não só a aplicabilidade da proposta iniciada por Prysthon (2006); mas, também, a criação de um conceito que possa articular as imagens de diferentes cidades a fim de formar um continuum conceptivo e perceptivo por meio de similaridades temáticas.

Por exemplo: para além de São Paulo, Bogotá e Caracas, há na forma de enxergar e representar esses espaços uma construção imaginária que atravessa cada uma dessas

urbes e que se materializa em um modo distópico de representação muitas vezes comum.

E, como disse, a meu ver, isso é fruto do legado histórico e da vivência cotidiana desses espaços. Sendo assim, para não restar dúvida, é importante esclarecer que, quando falo em uma cinecidade, estou propondo uma dimensão mais ampla para se pensar a relação entre cinema e urbe. Uma dimensão que não entende a metrópole como espaço insular; mas, sim, como parte de um todo maior. Um todo interligado por dimensões políticas, históricas, econômicas e culturais.

Castoriadis (1982, 1987, 1992, 2002, 2004), por exemplo, afirma que não existe lugar e nem ponto de vista exterior à história e à sociedade. Nesse sentido, as representações das metrópoles, que constituem as cinecidades, estão impregnadas pela história e pelo cotidiano dos espaços concretos. E se formam uma paisagem simbólica

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21 contínua e um único ambiente imaginário é por que compartilham de realidades que se encontram. Desse modo, quando me refiro à cinecidade como um espaço, e não um lugar, que é simultaneamente fílmico, real e imaginário, quero afirmar que a ideia de cinecidade parte de uma significação estabelecida através das vivências. Michel de Certeau (2011), por exemplo, afirma que, diferentemente da noção de lugar, a ideia de espaço remete à prática cotidiana. Para ele, lugar é “[...] uma configuração instantânea de posições. Implica uma relação de estabilidade” (2011, p. 201). Por exemplo: uma rua, uma praça, etc. Por sua vez, a noção de espaço compreende a prática do lugar; ou seja, o modo como os sujeitos o transformam a partir das suas ocupações, apropriações e vivências.

Basicamente, a cinecidade é um espaço simbólico simultaneamente fílmico, real e imaginário; socialmente representativo pela produção de um sentido cultural próprio e comum para as cidades tematizadas no cinema. Elas, as cinecidades, por conta de seu caráter imaginário, não são imutáveis. São como fluxos. Magmas em constante transformação e em correlação com a história e com a sociedade (CASTORIADIS, 1982, 1987, 1992). Criações incessantes ligadas ao tempo e ao espaço. Por isso, podem formar uma cinecidade, por exemplo, as representações de Londres (Invasão a Londres – Babak Najafi, 2016), Nova Iorque (Nova York Sitiada – Edward Zwick, 1998) e Paris (Atentado

em Paris, James Watkins, 2016), tendo como ponto comum a ameaça terrorista. No

entanto, esta é uma análise que só faz sentido quando estabeleço um parâmetro histórico – que leva em consideração o binômio Ocidente/Oriente – e um recorte temporal, o século XXI e a questão do terrorismo. Sem a dimensão histórico-concreta a cinecidade seria apenas um exercício de recorte e colagem.

Fundamentalmente, é possível notar que a cinecidade refere-se a uma articulação que compreende mundo social-histórico e simbólico como partes de um todo mais amplo. Ainda assim, é preciso esclarecer que trata-se de uma “trama” em que o simbólico, por meio de redes de representação, produz sentidos acerca do mundo social-histórico ao mesmo tempo em que ele, o mundo social-histórico, alimenta o simbólico; pois, a partir da postura epistemológica adotada, baseada numa perspectiva Complexa (MORIN, 2005, 2015), assumo a ideia de que o mundo social-histórico é tão contaminado pelo simbólico como o simbólico se erige a partir das experiências e dados oriundos do “real concreto”. Na verdade, como ficou claro acima, mundo concreto e mundo simbólico são “faces de uma mesma moeda”. Assim, não somente a representação fílmica remete ao

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22 que se encontra na cidade concreta, como também a cidade representada molda concepções e ações no mundo vivido. Quanto a isso, segundo Morin (2018), a própria Cultura de Massa é animada por esse duplo movimento. Pensemos: a nossa relação com a cidade nem sempre acontece por meio de uma vivência in loco; mas, nem por isso, deixamos de estabelecer sentidos para os espaços concretos. Como não reconhecermos, por exemplo, a Paris do século XIX, de Émile Zola, a Londres de Charles Dickens e a São Petersburgo de Fiódor Dostoiévski? Como não estabelecermos sentidos para Nova Iorque ao assistir os filmes de Woody Allen e ao ouvir New York, New York na voz de Frank Sinatra?

É partindo dessa postulação que me proponho a analisar as construções simbólicas das metrópoles latino-americanas no cinema. Vani Moreira Kenski (1997), por exemplo, afirma que ao registrar suas marcas e lembranças nas tecnologias, nós, seres humanos, alteramos as nossas próprias memórias. Segundo ela, através das imagens projetadas por meio de equipamentos eletrônicos de comunicação, como em filmes e games, por exemplo, é possível o armazenamento de vivências e lembranças que não foram vivenciadas in loco, mas que passam a constituir o capital mnemônico-cognitivo de quem absorve essas imagens e conteúdos. Nesse sentido, podemos concluir que formas simbólicas são apropriadas por espectadores e usuários das diversas linguagens das mídias, e, junto ao anteriormente conhecido, configuram um conhecimento próprio alterado.

É dessa forma que o cinema atua na construção dos imaginários urbanos. E é esse aspecto que me interessa. Me interessa a relação entre a imagem da metrópole e o seu domínio social-histórico, pois é dessa relação que surgem as cinecidades. A cinecidade que pretendo estudar aqui é a latino-americana; e, como já afirmei, precisamente a urbe distópica. É verdade que nem todos os filmes que se passam nos grandes centros urbanos da América Latina abordam as cidades por meio desse olhar. Ainda assim, no cinema contemporâneo, encontra-se uma parcela significativa de obras que retratam cidades como São Paulo, Cidade do México, Caracas, Bogotá, etc. pelo mesmo enfoque da crise8.

8De acordo com Giorgio Agamben (2009), o contemporâneo é o presente, mas não um presente isolado, e

sim em relação com o que é passado. O acesso ao contemporâneo perpassa pela origem, pelo passado. Dessa forma, o contemporâneo é, também, uma relação entre tempos. É um espaço desencontro entre gerações, mas um espaço que contribui com ineditismo para algo que já foi apresentado em um dado momento histórico. O contemporâneo a mim leva em conta o meu século em suas relações temporais, como bem colocou Osip Mandel'štam, em poema citado por Agamben, ao dizer: “meu século, minha fera, quem poderá olhar-te dentro dos olhos, e soldar com o meu sangue, as vértebras de dois séculos?” Dois séculos

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23 Façamos um exercício de memória: quais imagens surgem quando pensamos em filmes latino-americanos?

No meu caso, sem dúvida, aparecem imagens de um espaço em crise. E uma crise ligada à desigualdade social, desemprego e violência urbana; e são essas as imagens que pretendo analisar. Como a Londres de Dickens e a São Petersburgo de Dostoiévski, essas representações produzem sentido acerca dos espaços urbanos concretos. Mas, nesse caso, de onde surge o meu interesse por essas imagens? Inicialmente, sem qualquer resquício de dúvida, do meu lugar no mundo – cidadão brasileiro, e, por consequência, latino. A intenção de conhecer melhor a nossa história, pois, logicamente, esse modo particular de distopia latino-americana está ligado à realidade social-histórica desse espaço, é o meu interesse primeiro.

Ainda assim, um segundo aspecto surgiu após uma pesquisa no banco de teses e dissertações da Capes9. Uma experiência que me evidenciou um problema10: o uso do termo latino-americano para trabalhos que no máximo representam um universo de três países. Por outro lado, quando pensamos em uma América Latina reconhecemos um território composto por três grandes espaços: América do Sul, América Central e América do Norte; porém, nenhum dos trabalhos encontrados aborda esse universo mais amplo.

É partindo disso que proponho uma análise de filmes das três grandes regiões do continente americano: São Paulo (Linha de Passe – Walter Salles e Daniela Thomas, 2008), Buenos Aires (Elefante Branco – Pablo Trapero, 2012) Caracas (Hermano: uma

fábula sobre o futebol – Marcel Rasquin, 2010), Bogotá (Las Tetas de Mi Madre – Carlos

aqui corresponde ao tempo de vida do próprio indivíduo, sendo os séculos XIX e XX - Osip Mandel'štam viveu de 1891 a 1938. Para mais informações ler: O que é o contemporâneo? (Giogio Agamben, 2009).

9Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br>. Acesso em: 04 de maio, 2017.

10Na busca que fiz, encontrei trinta e nove trabalhos quando digitei na área de procura o termo “cinema

latino-americano”, mas, desses, apenas dois discutem a relação entre urbe e cinema. Contudo, um focado apenas no Brasil e outro apenas na Argentina, sem fazer essa relação mais ampla. Nove desses trabalhos sequer têm relação com cinema e América Latina, fato que demonstra falha no filtro da plataforma. Como no caso de uma tese de 2014 que analisa a relação entre o público leitor e a obra da escritora inglesa Jane Austen. Dos vinte e oito trabalhos restantes, quatro deles estudam questões estéticas e temáticas e, ou, a produção no cinema contemporâneo da América Latina; mas, por meio de análises que se concentram em um, dois, ou no máximo, três países; seis deles estudam o cinema moderno latino-americano, nas décadas de 1960 e 1970; outros três analisam o estilo de algum diretor específico, como, por exemplo, o argentino Fernando Birri e o colombiano Victor Gaviria; mais três se concentram na representação da ditadura militar e do exílio em filmes latino-americanos; outros dois na representação da identidade latino-americana em obras de diretores como Walter Salles e Fernando Solanas; três nas influências do manguebeat, do tropicalismo e do barroco na estética cinematográfica brasileira; outros cinco pesquisam o documentário latino-americano; e, dos dois restantes, um discute a trilha sonora no cinema latino-americano e o outro a prática fotográfica no cinema industrial mexicano.

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24 Zapata, 2015), Manágua (La Yuma – Florence Jaugey, 2009); e, por fim, Cidade do México (Dias de Graça – Eveardo Valerio Gout, 2011)11, ao observar que a cinecidade formada por essas obras12 enfoca a recorrência de temas como corrupção, violência, desemprego e desigualdade social. Dentro dessa lógica, viver na metrópole é superar problemas, enfrentar desafios, e, logicamente, correr riscos. Trata-se, nesse caso, de um modo de representação urbana que não é exclusividade de um centro ou outro; mas, sim, compartilhada entre espaços diferentes. Relação essa que ilustra a tese de que algumas características do habitat urbano, dentro do cinema, interligam cidades distintas. Formando-se, assim, as cinecidades.

As narrativas dos filmes escolhidos, por exemplo, ilustram essa característica – demonstram cidades cindidas, divididas por uma desigualdade social latente. Em todas as obras, a urbe participa do enredo como um personagem, por meio de ruas, morros, prédios, casas noturnas e apartamentos. A metrópole, contudo, não aparece como espaço harmonioso; mas, sim, mergulhado em conflitos. Lugar que escancara as discrepâncias sociais e as dificuldades do cotidiano. E é, precisamente, esse recorte temático comum, abordado de modo hiper-real, espetacular, que forma, por meio de um legado que interliga cidades distintas em um continuum conceptivo e perceptivo, entre todas as outras possíveis, uma cinecidade latino-americana distópica. Fruto da construção histórica e do dia a dia desses espaços.

Substancialmente, nos filmes que compõem esta pesquisa, a cidade tem a sua existência ligada à temporalidade e à presença. Afinal, essas imagens são unidas à própria existência de cada uma dessas urbes. Tomemos a distopia das potências ocidentais como exemplo. O olhar distópico voltado para a questão do terrorismo é próprio de um espaço-tempo específico. Faz parte de um recorte geográfico delimitado em um espaço-tempo tão delimitado quanto. É assim também com os temas próprios da América Latina. Basicamente, observa-se uma distopia relacionada ao contexto desse espaço; pois, são

11Na escolha dos países, e das cidades, levei em conta o acesso aos filmes. É importante esclarecer também

que a América do Sul compõe 60% da análise por ser, na América Latina, o espaço que mais produz obras cinematográficas. De acordo com o site Filme B <http://www.filmeb.com.br/>, entre os vinte países que mais produzem filmes no mundo, quatro são sul-americanos.

12Essa cinecidade apontada aqui se relaciona ainda com um escopo maior de filmes, entre eles: Do outro

lado da lei (Pablo Trapero, 2012), Mundo Grúa (Pablo Trapero, 1999), Pelo Malo (Mariana Rondón,

2013), Amores Brutos (Alejandro González Iñárritu, 2000), Contra todos (Roberto Moreira, 2004), 7

Caixas (Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, 2012), Dias de Santiago (Josué Méndez, 2004), Jean Gentil (Laura Amélia Guzmán e Israel Cardénas, 2010). Todas essas obras abordam temas como

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25 representações da violência urbana como consequência da desigualdade social atrelada, nesse caso, a uma existência historicamente marcada por narrativas associadas, por exemplo, ao lugar de subdesenvolvimento da América Latina13.

Essa circunstância existencial também aparece atrelada à temporalidade, pois a América Latina dos séculos XX e XXI é diferente da América Latina do século XIX. O tema do caos urbano tem relação com a metrópole latino-americana e seu contexto de ampliação e consolidação, consequência do processo de industrialização iniciado no século XX e aprofundado ao longo do século XXI. Uma iniciativa que renegou o campo e aprofundou as diferenças sociais entre os espaços rurais e urbanos. Além disso, como destaca Ermínia Maricato (2007), os problemas urbanos das metrópoles latinas têm sido ampliados desde o final do século XX e o neoliberalismo tem contribuído significativamente para isso; ao passo em que as práticas neoliberais limitam os investimentos em infraestrutura. Realidade que aprofunda as discrepâncias econômicas entre os grandes e médios/pequenos centros (MARICATO, 2007). E a superlotação das grandes cidades latino-americanas, em conjunto com o teto em investimentos14, cria esse ambiente urbano caótico que é debatido aqui. Daí, por exemplo, a relação entre espaço e tempo.

Por sua vez, com relação à escolha dos filmes, além do aspecto geográfico e da questão do acesso, é importante destacar que as obras foram selecionadas levando em conta elementos técnicos e temporais. No que se refere ao primeiro ponto, priorizei narrativas arraigadas em uma produção voltada para os festivais e não em um modelo inserido dentro da lógica comercial dos blockbusters. Como já mencionado, dentro desse recorte, porém, o meu olhar voltou-se para os filmes em que o espaço urbano aparece através de uma perspectiva distópica; outro ponto importante na escolha das obras foi o recorte temporal: filmes do século XXI.

Acredito que este é um estudo importante em pelo menos dois sentidos: primeiro, por propor um conceito novo, cujo intuito é demonstrar que, na cinematografia

13O que não quer dizer, por outro lado, que o imaginário latino-americano se limite a essa perspectiva; pois,

como coloca Castoriadis (1982; 1987;1992), o imaginário é plural e de ampla capacidade criativa. Uma capacidade que, nesse caso, se liga à história e à sociedade.

14Os pontos do consenso de Washington colocam infraestrutura e educação como gastos (e não

investimentos), ao passo em que limita as despesas anuais dos países. Para obter empréstimos com os bancos financeiros é necessário aderir ao consenso. Essa medida garante o pagamento dos juros. Para mais informações ler: Globalização e política urbana na periferia do capitalismo (MARICATO, 2007).

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26 contemporânea, cidades como São Paulo, Buenos Aires, Caracas, Bogotá, Cidade do México e Manágua podem formar um único ambiente imaginário, uma cinecidade. São espaços que compartilham um contexto de crise urbana que é de certa forma comum; o segundo aspecto é o fato do trabalho estar concentrado em filmes de todas as grandes porções da América Latina, em um escopo de análise dilatado. E, como demonstrei com o levantamento apresentado anteriormente, isso amplia a perspectiva existente.

Ainda é interessante ressaltar que, na construção deste estudo, tendo o pensamento Complexo (MORIN, 2005, 2008, 2015) como eixo norteador, optei por uma metodologia que abarca a pesquisa bibliográfica e ferramentas como a análise fílmica15. No primeiro momento, a pesquisa bibliográfica assume um caráter central e nesse ponto a Complexidade está presente na transversalidade; pois, como destaca Morin (2000), temos questões cada vez mais complexas e transversais, ao passo em que o saber segue fragmentado, separado por áreas e disciplinas. É tendo esse aspecto em mente que construo a base teórica desta tese a partir de um diálogo entre diferentes campos do saber: Filosofia, Sociologia, História e Teorias do Cinema. Também na análise dos filmes o meu olhar para as obras cinematográficas leva em conta o pensamento Complexo (MORIN, 2005, 2008, 2015), na medida em que estabeleço uma correlação entre todo e parte. Há, neste estudo, um entendimento do cinema como uma parte que contém um todo maior, que é a sociedade. E, a meu ver, é essa relação entre “todo e parte” que torna possível a análise social por meio de imagens fílmicas.

Para tal, como instrumental metodológico, considero as propostas de Francis Vanoye; Anne Goliot-Lété16 (1994) e Manuela Penafria (2009). Que compreendem a análise fílmica como um processo que envolve ao menos duas etapas: 1) decomposição de cenas em planos; 2) analise das relações entre os elementos decompostos. O objetivo, nesse caso, é explicar, esclarecer, o funcionamento da obra cinematográfica tendo em conta, evidentemente, os interesses de quem o analisa. Desse modo, com relação à leitura dos filmes em seu processo de produção de sentido, considero a concepção de Umberto

15A análise das obras, aqui, prioriza os aspectos culturalistas (BORDWELL, 2008). Meu objetivo principal

é estabelecer sentidos entre os filmes e as correspondências culturais. No entanto, essa perspectiva não exclui o uso de pressupostos formalistas. Com o intuito, por exemplo, de compreender a materialização do espaço geográfico em espaço fílmico.

16 Vale ressaltar: a análise fílmica nem sempre requer uma observação minuciosa da obra como um todo.

O analista pode escolher uma sequência que seja importante e consiga traduzir as ideias presentes no filme (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994).

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27 Eco (2016). Uma abordagem que aponta como fundamental a autonomia do intérprete – tendo em conta seus desejos, pulsões e vontades – na construção do sentido obtido por meio da interpretação. Ainda assim, evidentemente, sem se distanciar de um grau de coerência.

Por fim, dividi esta tese em cinco capítulos. No primeiro, A modernidade como

gênese da noção de cinecidade, discuto as origens do conceito ao apontar o advento da

metrópole moderna como base da espetacularização do cotidiano. Em seguida, no capítulo dois, Imaginário e origens históricas desta cinecidade latino-americana, apresento a noção de imaginário que noteia esta pesquisa e analiso a formação histórica da América Latina em dois momentos específicos: 1) período colonial e 2) advento da modernidade. Por sua vez, no terceiro capítulo, Bas-fonds: a miséria como imaginário

social, me concentro na investigação histórica da pobreza enquanto imaginário dominante

em nações centrais do Ocidente e a sua gradual superação em países como França e Inglaterra, por exemplo. Além disso, aponto as origens da miséria enquanto pressuposto técnico e estético da cinematografia latino-americana e a sua duração em diferentes contextos históricos.

Já em Neoliberalização e metrópoles em crise no cinema latino-americano

contemporâneo (capítulo quatro), abordo a representação da metrópole latino-americana

em um contexto de neoliberalização e aponto algumas contribuições do neoliberalismo para o aprofundamento das desigualdades sociais em diferentes países da América Latina, tendo como pano de fundo obras cinematográficas. Finalmente, no capítulo cinco, Seis

metrópoles e um imaginário: a formação de uma cinecidade latino-americana, faço uma

análise dos filmes Linha de Passe, Elefante Branco, Hermano: uma fábula sobre o

futebol, Las Tetas de Mi Madre, La Yuma e Dias de Graça e demonstro de que forma

temas como violência urbana, desigualdade social, desemprego/trabalho precário, etc. se repetem em cada um dos enredos. Constituindo, assim, um único espaço imaginário; ou seja, uma cinecidade.

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1. A MODERNIDADE COMO GÊNESE DA NOÇÃO DE

CINECIDADE

Do ponto de vista teórico, é possível afirmar que o conceito de cinecidade é consequência de uma correlação entre o espaço urbano e o cinema. E esse encadeamento só se tornou viável com o advento do mundo moderno. Tanto o cinema como a cidade, na forma em que conhecemos, são frutos e perfazem a experiência da vida moderna. E, de modo geral, toda cinecidade refere-se aos modos de representação das urbes por meio de um caráter espetacular. Uma outra consequência do mundo moderno.

Estruturalmente, a metrópole moderna inaugurou um novo espaço social, com lojas de departamento, trens, ruas asfaltadas, iluminação pública etc., e essa característica tornou-a atrativa: pela primeira vez, na Paris do século XIX, as pessoas saíam de suas casas para observar o novo ambiente urbano que se formava. Nesse contexto, por exemplo, como afirmei anteriormente, surgiu o flâneur; pois, no âmbito da metrópole moderna, o próprio cotidiano tornou-se a novidade. E isso fez com que o espetáculo se deslocasse da fantasia, das narrativas míticas, para os acontecimentos corriqueiros. O aparato cinematográfico surgiu nesse ambiente, em um momento em que a captura do instante, do cotidiano, revelava a novidade e uma mudança de era – o nascimento do mundo moderno.

Nascido como aparato de registro, o cinema amadureceu ao longo do tempo e desenvolveu uma linguagem própria. Movimento que Edgar Morin (1997), por exemplo, define como a passagem do cinematógrafo para o cinema. Foi a partir desse deslocamento que a sétima arte desenvolveu narrativas, passou a produzir discursos e sentidos, e, assim, tornou-se a “máquina mãe geradora de imaginários” (MORIN, 1997). E essa máquina que antes, em suas primeiras experiências, apenas captava as mudanças do século XIX, se transformou na mídia que melhor traduz os modos de vida dos indivíduos contemporâneos; ou seja, tornou-se o meio que melhor exprime a experiência urbana.

O cinema, contudo, não capta a realidade em sua forma completa, isso é impossível. Ele seleciona, enquadra determinados aspectos de uma realidade, e lhe confere um caráter espetacular. E é dessa forma que surgem as cinecidades. O espetáculo é a própria condição de existência do cinema. E o que é a cinecidade se não uma representação espetacular de diferentes espaços urbanos através de um imaginário

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realista? O que é a cinecidade se não a seleção, a escolha, de determinadas características

visíveis para representar diferentes urbes por um mesmo viés temático? A cinecidade é o caráter espetacular do concreto, e é por isso que não pode ter outra gênese que não seja a modernidade.

Sendo assim, o conceito de cinecidade só é possível dentro do que a Escola de

Frankfurt classifica como Indústria Cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) , haja

vista que, no âmbito da Cultura de Massa, a interpretação do espaço urbano e a própria vida ganharam um caráter espetacular. Desde o século XX, a existência humana está majoritariamente ligada às urbes. O cinema se tornou, com isso, a mídia que melhor expõe os hábitos, os desejos, o cotidiano, as decepções e as alegrias do homem moderno. A existência moderna, urbana, encontra no cinema a sua melhor representação. E é essa relação entre cinema e cidade, ligada a um modo espetacular de representação social, que é a base primeira do meu conceito.

1.1. O encontro entre o aparato cinematográfico e a urbe

O cinema não surgiu como o meio que conhecemos hoje, com linguagem bem definida e com narrativas complexas. Na verdade, o primeiro cinema, como aponta Flávia Cesarino Costa (2006), tinha como função o registro do cotidiano e se misturava a outras formas culturais. O aparato cinematográfico foi consequência de um rearranjo cultural, social e cognitivo que se consolidou no século XIX. E que, além disso, inaugurou a experiência urbana moderna.

Tal qual o surgimento da fotografia, a “invenção” do cinema está intimamente relacionada com uma mudança na relação do homem com o mundo: as formas de pensar, agir e olhar passaram por modificações e se consolidaram por meio de novas configurações (CRARY, 2012). Desse modo, como consequência de um rearranjo amplo, nasceu um contexto onde o sujeito, antes isolado, passou a interagir de forma cada vez mais acentuada dentro de um espaço repleto de informações. Espaço esse, inclusive, que compreendia um processo de urbanização.

Basicamente, é possível estabelecer correlações entre a cidade – através de uma experiência urbana oriunda da vida moderna – e o cinema. Ambos são consequências de um novo modo social e cultural inaugurado com a modernidade. Essa materialização de uma maneira diferente de existir tem o seu marco em um espaço-tempo preciso, Paris do

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30 século XIX. Quanto a isso, por conta dos estímulos informativos, Walter Benjamin (2000) definiu a experiência “urbana-moderna” como uma espécie de choque17. Segundo ele, o habitante da metrópole moderna passou a absorver um alto grau de informação de uma maneira constante. Informações que perpassavam por cartazes, fachadas, etc. E o número elevado de informação, na medida em que seu fluxo se acentuava, desenvolveu um tipo específico de distração (BENJAMIN, 2000).

Por sua vez, Crary (2013) atualiza essa perspectiva e aponta que a distração da experiência moderna é seguida por um alto grau de atenção. Na verdade, define a percepção na modernidade como fruto de uma organização em par, articulada através da relação atenção/distração. E essa percepção do cotidiano moderno se relaciona com a experiência do espectador cinematográfico. Imaginemos esse espectador. Ele se encontra distraído para o seu entorno justamente pelo alto grau de atenção empreendido para a recepção da mensagem fílmica. Tal qual o transeunte da metrópole, que precisa estar atento aos perigos da cidade. Para tal, tanto o transeunte, como também o espectador, empreendem uma atenção seletiva, enquadrada, e que, ao mesmo tempo, favorece a distração.

Assim, a experiência do ser, no âmbito do espaço moderno urbano, inaugurou a percepção necessária para o desenvolvimento do espectador de cinema e da sua própria linguagem, na medida em que a paisagem repleta de estímulos visuais ajudou a desenvolver um tipo de atenção específica. Benjamin (2000) já enxergava isso quando afirmou que o choque exercido pelo cinema sobre a sensibilidade do espectador, em estado de distração, acomoda seu aparelho perceptivo e contribui para a composição de uma nova sensibilidade: reproduz esteticamente a experiência sensorial que os moradores dos grandes centros urbanos experimentam cotidianamente.

Nesse sentido, apontar uma correlação entre o cinema e a cidade, tendo como elo o surgimento do mundo moderno, a partir da incorporação paisagística e psicológica do movimento e da imagem à experiência cotidiana, é elementar. As experiências urbana e

17Em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (2000), Benjamin afirma que a

montagem no cinema, criando uma sucessão rápida de imagens, impede uma atitude contemplativa da parte do receptor, característica que proporciona uma modalidade de fruição estética denominada de distração. Essa distração mensurada por Benjamin aparece como elemento distinto daquela que se verifica em relação à arte tradicional por se tratar de uma percepção praticamente imediata dos estímulos visuais, e, por isso, não é dado tempo para que o espectador elabore cognitivamente o que lhe é apresentado. Daí o efeito de choque. Ligado tanto à linguagem cinematográfica, bem como à experiência urbana moderna.

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31 cinematográfica, ambas consequências e produtoras da experiência moderna, se relacionam em diversos aspectos. Como ocorre, por exemplo, no caso do passageiro de trem que, pela primeira vez, experimentou um olhar enquadrado e móvel. Trem das

Cores, de Caetano Veloso, exemplifica esse fato. A letra abaixo relata a experiência de

um passageiro de trem. Experiência similar à de um espectador cinematográfico:

A franja na encosta cor de laranja, capim rosa chá O mel desses olhos luz, mel de cor ímpar O ouro ainda não bem verde da serra, a prata do trem

A lua e a estrela, anel de turquesa

Os átomos todos dançam, madruga, reluz neblina Crianças cor de romã entram no vagão

O oliva da nuvem chumbo ficando pra trás da manhã E a seda azul do papel que envolve a maçã

As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar Os dois lados da janela

E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há Azul que é pura memória de algum lugar

Teu cabelo preto, explícito objeto, castanhos lábios Ou pra ser exato, lábios cor de açaí

E aqui, trem das cores, sábios projetos: tocar na central E o céu de um azul celeste celestial

(CAETANO VELOSO, Trem das Cores)

A atenção moderna foi concebida como visual e móvel, ao passo que também era fugaz e efêmera. Por isso, as formas modernas de experiência necessitavam não apenas do movimento; mas, sim, da sua junção com a visão na construção de imagens em movimento. Basicamente, a letra de Caetano retrata a experiência de um passageiro de trem que, em meio à viagem, observa as imagens à sua volta. Na canção, imagem e

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32 movimento se intercambiam e produzem um único sentido; e é no cinema que esses dois elementos se constituem como característica essencial e específica de uma linguagem que se estabeleceu, não por acaso, na modernidade. É por isso que Régis Debray (1993) afirma que o cinema se consolidou como a arte dominante do século XX – a linguagem cinematográfica materializou a experiência moderna, uma experiência que perpassa pelo espaço urbano.

1.2. Linguagens artísticas: captura do instante e olhar para o cotidiano

No contexto da modernidade, marcada pela aceleração do ritmo de vida, críticos e filósofos buscaram identificar a possibilidade de se experimentar o instante; que, inclusive, se tornou categoria na obra de autores como Benjamin e Martin Heidegger – ambos buscaram resgatar a possibilidade da experiência sensorial em face ao caráter transitório da modernidade (CHARNEY, 2004). Definida, entre outras coisas, pelo esvaziamento da presença estável como consequência de um modo de vida estabelecido pelo movimento constante e acelerado. Quanto a isso, muito provavelmente, o Impressionismo se constitui como um dos melhores exemplos para pensarmos no instante como elemento fugaz; pois, o seu caráter principal é a compreensão de todo instante como único. E disso resulta a sua preocupação pela captura do momento.

A obra de Claude Monet, por exemplo, é sintomática para compreendermos essa preocupação. Para Monet, a importância de sua arte residia em captar a ocasião. Tida como única. Sua preocupação não era o acabamento e nem as convenções das artes plásticas, como o uso da perspectiva. Muitos críticos, inclusive, referiam-se às suas pinturas como processos inacabados, rascunhos. Daí o nome Impressionismo. No quadro abaixo (Figura 1.1), por exemplo, não é possível ver os detalhes dos elementos representados (pessoas, barcos, paisagem); mas, apenas, impressões formadas por efeitos de luz, sombra e impressão de movimento.

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Figura 1.1: Monet – Impressão, nascer do sol, 1873 Fonte: wikiart.org

Interessados pela natureza, os impressionistas procuravam captar o fugaz. Na tela abaixo de Pierre-Auguste Renoir, por exemplo, é possível notar o movimento da vegetação (Figura 1.2). O ideal impressionista era pintar o que não podia se repetir, o instante. A partir disso, além do movimento, a cor era um dos elementos centrais. Na série

Haystacks (Figura 1.3), de Monet, essa preocupação fica evidente. Monet pintou várias

vezes, em horas, dias e meses diferentes, o mesmo lugar. E em cada uma dessas obras a paisagem aparece de forma distinta, por conta da iluminação diversa.

Figura 1.2: Renoir – Les Maisons Rouges - Paysage de Cagnes, 1905 Fonte: artnet.org.

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Figura 1.3: Monet – alguns dos quadros da série Haystacks, 1890-1891 Fonte: wikipédia.org

Essa busca pela captura do instante coaduna com o cenário de cognições perdidas que Léo Charney (2004) aponta em seu texto. Trata-se também do elemento crucial do Impressionismo, vanguarda artística que se desenvolveu na França do século XIX. O mesmo espaço-tempo dos irmãos Lumière. A captura do instante atravessa tanto o impressionismo como o cinema. Não por acaso, em O olho interminável (2004), Jacques Aumont refere-se aos Lumière como os últimos pintores impressionistas18 – após as primeiras experiências, o cinema desenvolveu técnicas de narrativa. Tornou-se mídia complexa. Muito mais preocupada em estabelecer discursos e produzir sentidos.

Na era do cinematógrafo, porém, a captura do instante era a maior ambição. Quando os irmãos Lumière, em 1895, apontaram suas lentes para uma estação de trem essa característica ficou clara (Figura 1.4). O trem representa o deslocamento, a mobilidade, a própria experiência moderna. A rapidez da estrada de ferro se relaciona com o caráter transitório da modernidade e o ritmo de vida acelerado é a base da perda do instante. Instante que intriga tanto os impressionistas como os Lumière. Vale ressaltar: Monet também se interessou pela chegada do trem à estação (Figura 1.5).

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Figura 1.4: Chegada do trem na estação (Lumière, 1895) Fonte: youtube.com

Figura 1.5: The Gare Saint-Lazare (Monet, 1877) Fonte: Khanacademy.org

Basicamente, esse olhar para o instante, para o imediato, é a gênese de um interesse pelo cotidiano, pelo presente momentâneo. Não por acaso, foi nesse contexto de captura do instante que surgiu uma outra estética artística: o Realismo. Uma espécie de alternativa à perspectiva romântica que prevaleceu na literatura do século XVIII até o final do XIX. O seu marco foi Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1856). No entanto, Honoré de Balzac foi quem “plantou a semente do realismo” (HARVEY, 2015). A literatura de Balzac, que serviu de inspiração para Flaubert, tinha como foco de análise a

Referências

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