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Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido

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Academic year: 2021

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(1)Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 19, Ano 2009. REFLEXÕES SOBRE O LIVRO NEGRO, OU O MEDO DO CONTINENTE DESCONHECIDO Reflections on The Black Book, or The fear of the unknown continent. Nícia Adan Bonatti Universidade Presbiteriana Mackenzie. RESUMO. niciabonatti@uol.com.br Este trabalho trata de uma experiência de tradução marcada pelo engajamento da tradutora à causa que norteou a elaboração de O livro negro da condição das mulheres. Escrita por cerca de quarenta especialistas de variadas procedências nacionais e de diversos campos do conhecimento, a obra pretende combater as mais diversas formas de violência contra as mulheres por meio do rompimento do silêncio que, complacente, permite a continuidade desses atos. A tradução ocupa então um papel político, na medida em que multiplica os leitores virtuais desse texto e certamente os conduzirá a uma reflexão sobre as próprias condutas e os limites daquilo que é ou não aceitável, para si e para o Outro. Ela permite também tomar conhecimento de fatos que ocorrem em escala planetária e afetam as sociedades. Em resposta, o corpo social, leia-se as nações, por intermédio de representações internacionais pode demandar modificações que farão parte integrante da nossa história. Por fim, o trabalho aborda as mobilizações que instigaram o trabalho da tradutora e apontaram a ética que fundamentou sua prática. A somatória desses efeitos pretende promover o acolhimento do Outro e com ele cerrar o liame tornado possível pela palavra. Palavras-Chave: tradução; violência; ética; engajamento; política.. ABSTRACT This paper is an account of a translation experience marked by the translator's engagement in the cause that guided the elaboration of The Black Book of Women's Condition. This work, whose contributors - around 40 - are experts from all over the world and from many fields of knowledge, aims at fighting diverse forms of violence against women, through the break of a complacent silence that sanctions the continuation of these acts. The translation has, thence, a political role, as it multiplies the virtual readers of the text and will assuredly lead them to a reflection on their own conduct and the limits of what is acceptable, for the others and for themselves. It also offers the opportunity to get acquainted with facts that happen in a world scale and affect societies. In a response to these facts, the social body - that is, nations, through international representatives - may demand modifications that will be an integral part of our history. The essay also explores the motivations that have conducted the translator's work and indicates the ethic on which her practice was based. The sum of these effects promotes the Other's protection and sheltering, creating a link between “us” and “them” by means of the written word. Keywords: translation; violence; ethics; political engagement.. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 15/11/2009 Avaliado em: 18/1/2010 Publicação: 27 de abril de 2010 29.

(2) 30. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. 1.. INTRODUÇÃO Este trabalho propõe-se a analisar o engajamento existente entre uma obra de vertente política e a aspiração de disseminá-la em outra língua, o que mobiliza em acentuado grau o desejo do tradutor, leitor privilegiado que deixará por escrito o produto de sua interpretação do texto em língua estrangeira. A tradução assim entendida é o liame incontornável entre o que se passa no mundo e que modifica sem cessar as sociedades, o que aponta para os direcionamentos políticos em jogo no planeta e constrói peça por peça o mosaico a que chamamos história; além disso, é o que traz o outro à nossa presença, estabelecendo com ele uma relação visceral fundada na palavra. Nessa vertente, a tradução colabora para o funcionamento adequado do mundo e possibilita uma forma apropriada de habitar Babel. No caso em tela, o tema é decididamente oportuno devido ao caráter da experiência, tal como entendida por Berman (2002), vivida, página a página, na tradução de O Livro Negro da Condição das Mulheres, de autoria coletiva e dirigido por Christine Ockrent, a ser publicado em 2010 pela Editora Bertrand Brasil. Por meio de relatos e avaliações efetuadas por cerca de quarenta especialistas mundialmente reconhecidos e das mais diferentes formações – historiadores, sociólogos, filósofos, jornalistas, doutores em Direito e em Ciências da Religião, diretores de pesquisas universitárias, estudiosos de gêneros, psicanalistas, cientistas políticos, médicos, membros da ONU e da Anistia Internacional, escritores e intelectuais de todos os horizontes – o volume traça uma radiografia da violência praticada sobretudo contra as mulheres, buscando a elaboração de um “afresco do tempo presente”, como se deseja na Introdução (p. 11). Investigo aqui o que significa analisar uma obra traduzida que contém uma mensagem política ou social dirigida a um público específico – que no presente caso se amplia ao infinito, dado que a matéria a ser examinada, a violência, nos concerne a todos, seja no mundo globalizado em que vivemos, seja com mais forte razão no cenário nacional, o que em muito aflige nossa sociedade, tornando-nos doentes de insegurança e fragilizados pela falta de proteção mínima. A análise começa então pela seguinte formulação: de quem é a mensagem veiculada na obra – do autor, da editora ou do tradutor? Uma possível resposta a essa indagação aponta, no momento fundador, para a indignação. Parece ter sido ela a mola propulsora que ligou tantas pessoas, de tantas procedências diversas, de tantos lugares do mundo, com tantas profissões distintas, numa única atividade política e social, historicamente marcada e absolutamente pertinente: a quebra do silêncio conivente, por meio da escrita destinada a disseminar-se por todos os cantos. Em seguida, indica uma trama cerrada, de. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(3) Nícia Adan Bonatti. 31. parâmetros múltiplos, que começa pelo desejo da organizadora do volume em mobilizar as pessoas envolvidas na confecção dessa “expedição às profundezas da nossa sociedade contemporânea” (p.14). Passa pelo empenho ético e político na realização das escolhas livres e impreteríveis – por meio das quais o ser humano inventa a si mesmo e ao seu mundo – defendidas pelos autores que, durante dois anos, mantiveram entre si um contato estreito, por vezes à custa de riscos pessoais, incluindo o de morte, com a finalidade de tornar conhecidos aspectos do sofrimento a que as mulheres são submetidas. Não se pretendeu deixar de considerar os homens que também sofrem, mas buscou-se enfocar prioritariamente as mulheres, mostrando as várias faces da violência – que vão desde as ofensas verbais e o abuso psicológico, até os assassinatos mais horripilantes. Passa também pelo engajamento do editor francês, que percebe a importância da obra e se empenha na sua árdua elaboração. Essa dedicação encontra seu duplo naquela do editor brasileiro, que apreende o mérito da obra em questão e se propõe a publicá-la em nosso país. Na cadeia produtiva de tal livro aparece então a tradutora que, encantada com a possibilidade de participar de tal empreendimento, não se detém diante dos problemas colocados pela tarefa – seja pelo desafiador número de páginas (777), seja pelos percalços que tem de enfrentar com tal tema (BONATTI, 2008). Por fim, aparece o sempre tão esquecido revisor, esse profissional atento aos “cochilos” de qualquer escritor, e que tanto valor agrega aos textos publicados. Toda essa sequência é necessária para que a informação chegue ao leitor, para nele causar efeitos e permitir, ao menos parcialmente, o alcance perseguido. Somos então levados a pensar que a mensagem que aqui nos chega são miríade, são uma somatória da elaboração de cada um dos participantes, produto de transformações, seja na escrita do texto de partida, seja naquela elaborada numa língua regulada por outra, de que nos fala Derrida (1972). Mas que mensagem é essa veiculada pelo Livro Negro? Façamos sobre ele um vôo panorâmico para apreender seu teor.. 2.. SOBRE O LIVRO NEGRO O projeto do livro funda-se na Declaração de Direitos Humanos. Cabe aqui uma consideração. Em francês, essa declaração recebe o nome de Charte des Droits de l’Homme, o que começa por colocar questões. Na origem dessa denominação havia decerto o desejo de referir-se ao ser humano em geral, mas o fato de só nomear o Homem demanda uma observação inicial da diretora: “Certos princípios universais, estou convicta, devem ser defendidos, proclamados e promovidos para além das culturas e das crenças. Dentre estes, a Carta dos Direitos do Homem é um texto fundador para toda a humanidade. E a humanidade inclui as mulheres – ou melhor, repousa sobre elas.” (p. 7).. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(4) 32. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. Essa passa a ser a bandeira que norteia toda a elaboração do livro. Nada justifica, portanto, os assassinatos, queimaduras, torturas, lapidações, estupros e outras formas brutais de violências contra mulheres, apenas porque são mulheres. Nada justifica o assujeitamento das mulheres, sua humilhação ou que se as prive dos direitos elementares da pessoa. Num patamar mais próximo, verificamos que apesar dos progressos obtidos pelas lutas femininas do último século, ainda se percebe facilmente no mundo ocidental a disparidade de remuneração e de atribuição de responsabilidades para homens e mulheres que dispõem da mesma formação, mesmo nos países mais desenvolvidos. Outra diferença, mais sutil, diz respeito à escolha das carreiras, e aqui caberia um questionamento sobre a predominância de tradutoras no mercado de trabalho, que penso estar ligada ao pífio reconhecimento social dessa profissão, circunstância que se reflete na invisibilidade do profissional e na baixa remuneração que a caracterizam. Assim como para as tradutoras, a vida cotidiana também impõe restrições a partir de ínfimos detalhes que acabam, como expõe Ockrent, por tecer com “fios de vidro o teto invisível que impede as mulheres de atingir os pontos mais altos” (p. 8). Na cena pública, qualquer que seja a reunião de poder, a presença é quase unânime: a gravata compõe a fotografia, com raras exceções, como Michelle Bachelet e Angela Merkel na atualidade, demonstrando mais a anomalia que a regra. Em outros ambientes, mas ainda no mundo ocidental, vê-se continuamente a mulher no pólo frágil das relações, exposta a precariedades, violências conjugais, exploração, pouca proteção judiciária, subemprego, pouca instrução – em suma, exposta ao estado de subordinação contínua que permite a emergência de desmandos cometidos contra elas. Como se não bastassem essas circunstâncias, ainda observamos em outros lugares sociedades teocráticas – ou, que até mesmo não o sendo mais, ainda conservam costumes ancestrais e bárbaros – que sobrecarregam as más condições a que mulheres são submetidas, com medidas que vão desde a submissão inconteste a casamentos arranjados, ao impedimento do ir e vir mais anódino e banal sem autorização expressa do marido, à possibilidade do repúdio seguido dos desamparos familiar e jurídico, além de penas de morte sumárias, ainda que por pseudodelitos, como simples suspeita de adultério. Em outras sociedades também são observados crimes hediondos contra as mulheres – como, por exemplo, os “fogos de saris”, em que suas vestes são “acidentalmente” incendiadas, ou ainda os desfiguramentos causados por ácido sulfúrico, que também podem conduzir à morte – causados pela insatisfação trazida pelos dotes oferecidos por suas famílias. Nelas, o pai de jovens casadoiras é vitaliciamente condenado à oferta de novas dádivas ao genro e à sua família, tentando salvaguardar a integridade das filhas – a conseqüência correlata é a atividade cada vez mais presente dos abortos seletivos, pois ter uma menina. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(5) Nícia Adan Bonatti. 33. é condenar-se ao pagamento de uma dívida que não tem fim. Em muitos horizontes, soma-se o sofrimento de ser pobre, desnutrida, de não ter acesso à saúde e à educação, de não ter armas de espécie alguma para defender-se no mundo hostil, em que se é sempre a ponta mais frágil, pelo simples fato de ter nascido mulher. Esta é uma das finalidades do livro: romper com o silêncio conivente, perpetuador desse status quo incompatível com o que se espera da vida em pleno século XXI. Ockrent e seus colaboradores se propõem a examinar a condição de ter nascido mulher, e viver como tal, como se explorassem um continente desconhecido – não por acaso usando a mesma enigmática denominação que lhes deu Freud (1976) – e examinando uma por uma as condições que a conduzem ao estado de vítima de violências múltiplas. “Promover as mulheres não é um modo de diminuir os homens”, diz Ockrent, mas é, “para nossas sociedades, a melhor garantia de equilíbrio e de progresso” (p. 9). A firmeza desse esforço tem como fundamento a constatação de que As mulheres são sua própria esperança e só podem contar consigo próprias para mudar a sociedade. A cada vez que fazemos progredir o direito de todas, a humanidade dá um passo na direção de um mundo mais justo. Por meio deste livro, desta fotografia da condição das mulheres de hoje, cada uma de nós tem a oportunidade de aprender aquilo que ignora, de descobrir o que não pode ou não quer ver, e de participar de uma luta para um mundo melhor. (p. 10). A coordenadora do Livro Negro, Sandrine Treiner, historiadora, jornalista e escritora, coloca várias questões profundas: Por que as mulheres são sempre as apostas maiores nas guerras contemporâneas? Como e por que elas são mutiladas, enclausuradas, deslocadas, negociadas, barganhadas, freqüentemente com a cumplicidade tácita do Estado, mesmo aqueles democráticos? Quais serão as conseqüências econômicas e humanas do desequilíbrio demográfico de uma Ásia privada, devido à preferência dada aos bebês machos, de cerca de noventa milhões de mulheres? Será um acaso o fato de que a AIDS mate atualmente mais mulheres que homens? Por que motivo se fala de trabalhadoras do sexo ao invés de prostitutas? Por que, em matéria de estupro e de violências conjugais, se privilegiam as explicações culturais ou religiosas nos países do Sul, para preferir as causas de ordem psicológica e individual nos países do Norte? Por que razões a liberdade das mulheres nos países muçulmanos continua a regredir com regularidade, ou até mesmo a marcar passo no Magreb, doravante inserido na modernidade? Como garantir a segurança de todas, qualquer que seja sua pertinência religiosa, na Índia multicomunitária? Por que as mulheres são ainda mais brutalizadas quando são instruídas e acedem à autonomia? Quais são as formas de desenvolvimento que permitiriam evitar que, em todos os lugares, as mulheres continuem a ser as mais pobres entre os pobres? (p. 11-12). Como se percebe, o programa é extenso, mas profundamente pertinente. Além disso, exige um aparato crítico multidisciplinar para sua abordagem e um cuidado minucioso para não cair no puro exercício da panfletagem. Trata-se de questões que não se reduzem a contingências históricas, econômicas, sociais e religiosas, dado que se demonstra que as violências cometidas contra as mulheres são universais e permanentes, o que aponta para uma realidade que concerne a cada um e a cada uma de nós. Os dados que comprovam essa afirmação na escala mundial estão disponíveis em relatórios da ONU, o que demandou dessa organização a definição do fenômeno: Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(6) 34. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. Os termos “violência em relação às mulheres” designam todos os atos de violência dirigidos contra o sexo feminino, que causam ou podem causar a elas prejuízo ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos, incluindo-se aí a restrição ou privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública, seja na vida privada. (p. 12). Para tanto, diretora e coordenadora cercaram-se de pesquisadores de quilate e partilharam o programa em cinco modos de aproximação, designados pelas palavras de ordem Segurança, Integridade, Liberdade, Dignidade e Igualdade, já enunciadas pela Organização das Nações Unidas em 1993. Palavras que também podem, em maior ou menor escala, definir a empreitada da tradução.. 3.. SEGURANÇA No primeiro módulo, examina-se a falta de mulheres em imensas partes da Ásia, da Índia, do Paquistão, de Bangladesh e da China. A cifra das “faltantes” no mundo ultrapassa a casa dos cem milhões – ou seja, mais de uma vez e meia a população da França –, sendo sua ausência sentida sobretudo na Ásia, e parece muito estranho que tal escândalo não tenha saído do círculo estreito dos demógrafos e pesquisadores. O fenômeno começa no aborto seletivo e caminha pela prioridade alimentar oferecida aos meninos, o mesmo valendo para os cuidados de saúde, incluindo-se a vacinação; some-se a isto a prática do infanticídio feminino que ocorre, por exemplo, no Tamil Nadu, sul da Índia. Na África, a prática da excisão do clitóris da bebezinha leva freqüentemente à morte por hemorragia ou à mutilação física e emocional, em caso de sobrevivência, além de gerar problemas gravíssimos de saúde que encontram seu ápice no momento do futuro parto, pois tendo as bordas do órgão genital cicatrizadas, não há dilatação. Em outros lugares desse mesmo continente, a prática diz respeito à infibulação, que consiste na costura precária e sem assepsia dos grandes lábios genitais, na maioria efetuada com espinhos tirados in natura. Diga-se de passagem, o Alcorão jamais preconizou tais práticas: elas advêm dos costumes e mantêm-se até nossos dias, apesar de campanhas informativas ocasionalmente empreendidas. Como se pode depreender, essa é uma questão de “leitura”, de interpretação de algo que em princípio “não está lá”, mas que indiretamente oferece respaldo, dado que atribui poder ao chefe religioso das comunidades para que exerça sevícias advindas de costumes bárbaros como se fossem provenientes de uma escritura sagrada. Foucault (apud ARROJO, 1993) aponta que, A verdade não se encontra fora do poder, nem abdica dele. [...É] algo deste mundo: produzida apenas como consequência de múltiplas formas de coerções. E produz efeitos regulares de poder. [...] Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade, ou seja, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que capacitam seus membros a distinguir enunciados verdadeiros dos falsos; o status daqueles que podem dizer aquilo que se aceita como verdade. (p. 72-73).. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(7) Nícia Adan Bonatti. 35. Enquanto não houver punição criminal para essas práticas da crueldade, com sanções severas – tanto para os pais quanto para as “especialistas”, oriundas de famílias de ferreiros e que chegam a usar até giletes em seu “ofício” –, garotinhas continuarão a morrer com tais suplícios ou a carregar sequelas por toda a sua miserável vida. Investiga-se também a falta de escolaridade das garotas, que serve para mantêlas nessas condições inumanas, sem aparatos que possibilitem algum tipo de evolução. Ao invés de irem à escola, trabalham, até os limites da exploração, fazendo serviços domésticos ou no campo e tarefas artesanais e industriais. Frequentemente trabalham como domésticas desde os cinco anos e quando adolescentes ficam expostas à lubricidade dos patrões ou de seus filhos – uma vez grávidas, são repudiadas por suas famílias, só lhes restando a prostituição e o tráfico de drogas. Quando escapam dessa contingência, continuam expostas ao perigo de estupro perpetrado por algum membro ou amigo da família, cabendo-lhes o mesmo destino acima descrito. Uma infinidade de garotas torna-se o ponto de atração do turismo sexual, sobretudo no Brasil, nas Antilhas, em Cuba, na República Dominicana, no Camboja, etc. Em países que atravessaram ou ainda se encontram em guerra, as meninas, quando não perdem a vida, são expulsas de seus países, tornam-se refugiadas e, por fim, soldados. Cereja no bolo das injustiças, as garotas são estrategicamente usadas durante as guerras para parirem os filhos dos inimigos – na ex-Iugoslávia, numa população de menos de quatro milhões de habitantes, 50 000 foram estupradas. Isso lhes traz, além da humilhação da violação e da possível gestação de um filho indesejado, o desprezo de seus conterrâneos, que as vêem não como vítimas, mas como as “putas” do adversário. Há não só a destruição dos homens, mas também – perversidade suprema – a da geração vindoura, que poderia representar o futuro do país, mas que desde o início está destinada a ser uma geração bastarda, sem pertencimento algum, sem respeito e sem dignidade. Mesmo em lugares onde no momento existe algo que se pode chamar de paz, as jovens também precisam haver-se com raptos, tráfico de noivas – destinadas a rapazes que habitam regiões onde não há candidatas a esposas em número suficiente – e o celibato dos homens, forçado pelo déficit feminino, já começa a ser catastrófico em algumas sociedades; nem por isso as mulheres são mais bem tratadas. Por fim, em muitos lugares, especialmente em países vizinhos da China, as garotas são mesmo objetos de um comércio escancarado, pois há “agências” especializadas na compra e venda de esposas. Na Palestina, um número assombroso de estupros é cometido no seio da própria família; difamadas, as jovens são assassinadas pelos seus familiares, para que “sua honra seja lavada”. Desde o início da Intifada, em 2000, os homens palestinos se vêem cada vez. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(8) 36. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. mais atingidos pelo desemprego e acabam confinados em casa, onde se distraem com a internet e com a pornografia, o que, somado à visão inferior que se tem da mulher, realimenta o círculo vicioso dos abusos cometidos contra aquela que se encontrar mais à mão, num claro desmonte da estrutura familiar de parentesco. Algumas raras mulheres que recebem educação e chegam a ter uma profissão, como algumas advogadas e juízas, batem-se infinitamente por todas as outras, buscando a elaboração de leis que as protejam, criando redes de acolhimento, mas isso lhes custa muito caro: ameaças de morte, ataques contra seus bens, tiros perdidos na noite, tudo que busque apagar suas vozes feministas. Outras buscam fazer parte do poder político para tentar modificar o cenário de violências em seus países. Mesmo nas famílias que buscam outros horizontes para sobreviver, como as que emigram para a América e a Europa em primeiro lugar, os costumes bárbaros continuam. Quando a França resolveu proibir o uso do véu nas escolas e foi vista por alguns setores como praticando ingerência em crenças, quis na verdade coibir hábitos que subjazem à prática muçulmana como a imposição religiosa, os casamentos forçados e, aposta maior, interditar a excisão e a infibulação. Contudo, a comunidade muçulmana resistiu e foi preciso mais de uma ocorrência hospitalar, e mesmo a morte causada por essas práticas, para que julgamentos severos e condenações pesadas acontecessem, tudo sob uma intensa cobertura midiática e acompanhamento de campanhas educativas. No Irã, no Paquistão, no Afeganistão, na Nigéria, na Arábia Saudita, entre outros países, subsiste a execução por lapidação, a morte por apedrejamento, levada a cabo com requintes de perversidade. Ela é aplicada em casos de adultério (ou suposição de) e está prevista no código penal iraniano. Nos termos do artigo 102, as mulheres devem ser enterradas até a altura do peito; pelo artigo 104, indica-se que o tamanho das pedras não deve ser muito grande, para que a morte não seja rápida; também não devem ser pequenas a ponto de não poder receber o nome de pedras. A finalidade da execução é infligir à vítima uma dor atroz antes de sua morte. Há muitas formas de violência inominável, tais como os assassinatos múltiplos em Ciudad Juárez, na fronteira do México com os Estados Unidos, que foram objeto de documentários, livros e um filme. Estupros, estrangulamentos, mutilações e demais atos cruentos são cometidos impunemente contra jovens bem determinadas, movidas pela possibilidade de atravessar a fronteira e viver no eldorado americano. O motivo? Talvez uma transação de drogas bem-sucedida, talvez o exercício insano do poder, tudo com a conivência da polícia local.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(9) Nícia Adan Bonatti. 4.. 37. INTEGRIDADE A proposta desse segmento é defender a tese de que os direitos das mulheres são indissociáveis do respeito à sua integridade física. Isso inclui não só o fim das práticas de excisão e de infibulação, mas os cuidados de saúde das meninas, das adolescentes, das grávidas, das idosas, diz respeito ao atendimento de vítimas da AIDS, e outras doenças sexualmente transmissíveis. Além de seguir passo a passo os percalços de jovens africanas e muçulmanas que moram na França, o primeiro artigo deste segmento acompanha a situação de seu desenvolvimento, acesso à educação e irrestrito desenvolvimento. O segundo artigo trata da inovação trazida pelo professor de cirurgia Pierre Foldès, que propõe uma plástica reparadora às mulheres excisadas, na tentativa de devolver-lhes uma aparente integridade física e psíquica que possa minimamente oferecer uma vida sexual gratificante. A cirurgia é reembolsada pela Sécurité Sociale, mas mesmo assim as mulheres procuram o Dr. Foldès às escondidas, pois suas famílias são taxativamente contra. Nas palavras do médico, este “é um crime dos homens, que sacrificam a sexualidade de suas mulheres para melhor controlá-las”. Não obstante as reticências familiares, mais de 2 500 mulheres já foram reconstituídas pelo cirurgião e sua equipe. Outra chaga aberta é a feminização da pandemia da AIDS. Pobreza, falta de educação de base, de condições sanitárias mínimas, de informação, de educação sexual, de preservativos, machismo, isolamento de aldeias, falta de meios de comunicação de massa, maior vulnerabilidade genital ao vírus, falta de recursos para chegar aos postos de atendimento, prioridade de tratamento oferecida aos homens, transmissão pelo parto e pelo aleitamento, comércio sexual, desamparo social, sem falar no íntimo laço entre a expansão do HIV e as violências praticadas contra as mulheres. A mortalidade materna também é um ponto de agressão contra o sexo feminino e atinge cerca de 500 000 mulheres a cada ano, principalmente nos países pobres. Essas mortes poderiam ser evitadas por meio de políticas de saúde que lhes oferecesse o direito a uma maternidade sem riscos. Estimada entre 5 e 30 a cada cem mil nascimentos nos países desenvolvidos, a mortalidade materna pode atingir 2 000 em cada cem mil nascimentos em países em vias de desenvolvimento. É um dos maiores sintomas do tributo pago pelas mulheres ao crescimento demográfico carente de políticas de saúde no lado pobre do mundo. Quando se abordam todas essas questões, a sensação inicial é a de que tudo se passa num lugar longínquo, em sociedades aos nossos olhos bizarras, longe de nossas. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(10) 38. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. vidas, mas esse é um ledo engano. Deparamo-nos com o espelho quando chegamos ao artigo que trata das violências conjugais, desde aquela oral, que a berros e sucessivas humilhações mina pouco a pouco a auto-estima de quem a ela está exposta; passa pela psicológica, que leva à depressão; coteja a sexual, na qual não encontra limites, para chegar a agressões que podem levar à morte. Os mecanismos são os mesmos: impor-se à parceira, dominá-la e submetê-la. As violências conjugais acontecem em todos os meios sociais, e um estudo mais aprofundado poderia examinar as veias abertas por onde escorre a agressividade.. 5.. LIBERDADE Esta parte do livro examina a liberdade das mulheres que, como a dos homens, está no cerne de qualquer concepção humanista do mundo. Apesar disso, muitas sociedades negam-lhes os direitos primários: poder dispor de seu corpo, escolher seu parceiro de vida, circular livremente, opinar sobre seu futuro, ter direito a herança, a uma legislação que as proteja. Em todas as abordagens desta seção, investigam-se os entraves à liberdade das mulheres. Assim, os direitos civis na África subsaariana e no mundo árabe abrem as questões. Heterogêneas por excelência, essas duas regiões, em todos os países que as compõem, coincidem num ponto: a desigualdade entre mulheres e homens no que diz respeito aos direitos civis. Em cada uma delas há várias formas de praticar o direito, dependendo da religião, dos costumes e da legislação local. No mundo árabe, por exemplo, o islã dita a lei, mas também está sujeito às interpretações liberais ou conservadoras. O álibi religioso também é convocado para legitimar costumes ainda mais conservadores que o texto corânico, ainda que não previstos em outras escolas jurídicas da mesma religião. A natureza mais ou menos religiosa dos Estados reflete-se na elaboração das leis. Além disso, no Líbano, Marrocos, Iraque e Egito, cada vertente religiosa dispõe de seu próprio código de família, e não existe uma lei civil que se aplique à totalidade da população. A única interdição presente em todos os países árabes é a de uma muçulmana se casar com um não-muçulmano, mas a restrição dual não é colocada para os homens. Na África subsaariana impõe-se o costume, legitimação ainda mais restritiva que a religião e que privilegia sempre o lado masculino do conflito. A poligamia certamente contribui para tornar os problemas ainda mais penosos, e o inexistente direito à herança leva muitas famílias à mais completa desestruturação e à penúria que impede a sobrevivência.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(11) Nícia Adan Bonatti. 6.. 39. DIGNIDADE Para iniciar o tema, afirma-se que é a dignidade, direito fundamental, aquilo que funda e define, num mundo civilizado, a pessoa humana. A transformação da mulher em mercadoria que satisfaça a concupiscência masculina é um atentado à sua dignidade e não pode de forma alguma ser aceito em nossas sociedades. A esse comércio estão afeitos aqueles da droga e das armas, todos eles valendo-se de uma situação de pobreza, de ausência de educação, de saúde falha, de falta de oportunidades, de uma vida sem perspectivas e marcada pela ignorância, o que exclui infinitas mulheres de qualquer forma de desenvolvimento. Seus desdobramentos incontornáveis são a prostituição, o turismo sexual, a convivência com o submundo, a perda de valores, a desestruturação familiar – se é que tal arcabouço existe. O conjunto aponta para uma forma atualizada da escravidão, prisão quase invisível na qual a chave natural que moveria o ferrolho simplesmente não existe. Estas, contudo, não são as únicas formas de agressão dirigidas contra as mulheres. O controle de sua sexualidade passa pelo domínio de sua orientação sexual e atua em campos tão diversos quanto a jovem na rua e as delinqüentes, que se encontram encarceradas. É à investigação das mulheres deste quadro que se destina o capítulo, seja traçando as rotas do comércio que delas é feito no mundo, seja examinando as atuações da ONU e as violações perpetradas pelos próprios “capacetes azuis”, os meandros da prostituição chinesa, a cartografia do turismo sexual, a escravidão moderna e doméstica, os problemas enfrentados por lésbicas e as contingências enfrentadas por mulheres na prisão.. 7.. IGUALDADE Aqui a igualdade dos sexos é tomada como um princípio fundador dos direitos do gênero humano, sendo também o mais concreto e o que permite garantir todos os outros: a possibilidade, para a mulher, de escolher e de gerir sua vida. O século que há pouco se findou mostrou a importância do voto e da representatividade política para as mulheres, sem o que não há igualdade possível: igualdade de direitos, de oportunidades, de educação, e igualdade profissional e salarial que possibilitem o desenvolvimento econômico, social e pessoal. Esse capítulo explora o caminho que ainda precisa ser percorrido para que essa desejada igualdade possa se impor em nossas sociedades: examina a importância do sufrágio e da participação política feminina no cenário mundial e o que constitui um obstáculo à participação cidadã: a pobreza e as violências. Depois de. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(12) 40. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. atravessar. várias. perspectivas,. finaliza. na. análise. das. mulheres,. ciências. e. desenvolvimento. Eis a questão primordial que aqui é feita: “Por que a situação das mulheres é menor, ou desvalorizada, ou restritiva, ou tudo isso de uma só vez, e de uma maneira que podemos chamar de universal?” A resposta que oferece mostra como “o subdesenvolvimento é alimentado pela manutenção das mulheres num estado de subordinação e de analfabetismo. E demonstra por que o acesso ao saber é um elemento fundamental para a emancipação feminina” (p. 696). Assim, o livro se quer uma voz a mais na luta para a valorização das mulheres e a elas é dirigido, para que encontrem forças e meios para engrossar as fileiras de tal batalha. No Posfácio, o cumprimento da tarefa proposta é avaliado: Se este livro tem uma utilidade, é a de inscrever-se na longa história dos esforços levados a cabo para erradicar o arbitrário, a injustiça e a discriminação, usando a arma – inteiramente pacífica – da informação. [...] Pois o aspecto mais esclarecedor deste livro é mostrar o quanto a questão da igualdade entre os sexos se encontra no âmago de todas as convulsões da história tal como ela se faz, e sobretudo de suas contradições. Com sua complexidade, suas múltiplas dimensões – econômica, cultural, sexual, social, psicológica, geopolítica, religiosa... – trata-se decididamente de uma aposta decisiva para o futuro que as mulheres e os homens forjam em comum. (p. 734-735). O Livro Negro da Condição das Mulheres ainda oferece, em seus Anexos, os textos fundamentais que inscreveram no Direito Internacional o princípio de igualdade entre mulheres e homens. Assim, constam nessa parte as proclamações, que constituem o fundamento da adesão feita pela comunidade internacional, as declarações adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas, além de outras. O conjunto representa os instrumentos jurídicos conseguidos nas batalhas pelos direitos das mulheres, e uma fonte de consulta e de inspiração para todos aqueles que defendem os direitos humanos. O Livro Negro, portanto, cumpre a tarefa de fornecer subsídios ao pensamento e propiciar a documentação necessária para fundamentar qualquer outra forma de combate à discriminação. Uma batalha nobre, baseada no rompimento do silêncio complacente, pois este só presta serviços à continuação da impunidade. Uma contenda valorosa, da qual me orgulho em participar.. 8.. SOBRE A TRADUÇÃO As palavras que guiaram a organização do livro de Christine Ockrent advêm dos textos fundamentais da Organização das Nações Unidas: no preâmbulo da Declaração de 1993, a ONU proclama a urgência da aplicação dos direitos e princípios do gênero humano às mulheres. São palavras de ordem que também podem resumir o processo da tradução de O Livro Negro.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(13) Nícia Adan Bonatti. 41. Assim, a Segurança, que na obra começa pelo direito de viver, pode ser tomada em amplo espectro e contemplada em mais de uma vertente na empreitada tradutória: a de “protesto, afirmação”, que foi a bandeira empunhada pela profissional desde as primeiras páginas do livro; a de “fiança, caução”, garantida pelo engajamento de primeira hora, e que recobre também o de “estado, condição ou caráter daquilo que é firme, seguro, inabalável, ou daquele com quem se pode contar ou em quem se pode confiar inteiramente”; e por fim, sem esgotar o tema, o sentido de “conjunto de processos, de dispositivos, de medidas de precaução que asseguram o sucesso de um empreendimento, do funcionamento preciso de um objeto, do cumprimento de algum plano etc.”, porque o plano e os partis pris vieram antes da elaboração do texto traduzido. Como indica PierPascale Boulanger (2004), “a tradução é permeada por atitudes, por modos de pensar e por comportamentos que sugerem uma ética, mesmo que não haja um enunciado de princípios segundo uma lógica apriorística e peremptória” (p. 57). Em seguida, o tema Integridade, em seu sentido ético, também é a tônica que permeia a tradução, apontando para a retidão da leitura mais cuidadosa possível, da escolha criteriosa dos significantes, da conferência de cada indicação bibliográfica, de cada endereço eletrônico (em que possa pesar sua efemeridade), de cada fonte oficial, de cada relatório apontado e assim por diante. Acima de tudo, indica a força para conviver com as tragédias contadas no livro, somada ao alento e à rijeza necessários para continuar a tarefa até o fim. Depois, o item Liberdade, que trata de tantas diferenças e culturas díspares, aponta para o que nelas é distinto de nossas sociedades e nos faz refletir sobre a nossa própria liberdade. Também fornece subsídios para que, desejando, possamos exercer pressões sociais e políticas que venham a modificar o estatuto das mulheres − o daquelas mais sofridas concernidas no livro e, por extensão estratégica, o nosso próprio. Temos aqui novamente a tradução como efeito político e como laço entre o que ocorre no mundo e a resposta que obtém em nosso país. A liberdade também atua na tradução: liberdade de escolha dos significantes, liberdade de expressão, liberdade de prazos e, liberdade visceral, a de aceitar ou rejeitar traduzir textos segundo a avaliação proporcionada por nossa ética e pelos nossos sistemas de valores. O tema Dignidade nos remete à definição da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns com os outros dentro de um espírito de fraternidade” (grifos meus). É esse espírito que conduz a maioria dos tradutores em sua prática profissional e, com certeza, norteou esta tradutora. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(14) 42. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. em todos os momentos de sua lide, num ombro a ombro com a proposta que guiou todos os autores a lutar pela melhoria da vida de seres humanos. Por fim, o que se reúne sob o tema da Igualdade se refere principalmente àquela dos sexos, que extrapola o princípio fundador dos direitos do gênero humano, sendo também o direito mais concreto, que garante todos os outros e que oferece às mulheres a possibilidade de escolher e de dominar suas vidas. Dominar a própria vida inclui esmerar-se no desempenho da atividade profissional e almejar ao necessário retorno financeiro que ela implica. Estendendo para todos − homens e mulheres − o que se reclama, e como o campo que aqui nos concerne é o da tradução, propõe-se que a igualdade também seja vista como o acesso apropriado ao mercado de trabalho, com uma retribuição condigna ao esforço intelectual levado a cabo pelo tradutor. É essa a visibilidade que se abraça: a limpidez do trabalho bem feito e que já promove a colheita de bons frutos: nos dias atuais, há quem compre um livro levando em conta o profissional que elaborou a tradução. Poderíamos, a título de exemplo − que não retire o mérito de nenhum outro tradutor −, sugerir o nome de Vera Ribeiro, que confere valor e credibilidade a qualquer texto traduzido de psicanálise. Se as mulheres podem e devem contar consigo próprias para mudar a sociedade, se a cada vez que se age também se faz progredir o direito de todas e a humanidade dá um passo na direção de um mundo mais justo, propõe-se aqui um quinhão. Ínfimo, evidentemente. Contudo, parte de um todo que se pretende suficientemente forte para provocar efeitos. Nesse sentido afiança-se o engajamento da tradutora. A fotografia, ou mais que isso, a radiografia, pois revela as entranhas do processo, passa pelo comprometimento assumido em dar a conhecer o que permanece oculto para muitos olhos, seja a realidade exposta no livro, seja a opção minuciosa dos significantes escolhidos para veiculá-la. É um quesito a mais nos cuidados que permeiam o trabalho oferecido e que conclamam a agir com mais ênfase para participar com eficiência do projeto iniciado por Ockrent: uma mulher traduzindo um texto dirigido por outra mulher, sobre mulheres, para que a sociedade tome conhecimento do que se passa com elas e possa modificar as ações que toma em âmbito internacional, na busca da mudança positiva. A informação tende a modificar a atitude, então ela deve ser dada da maneira mais apropriada possível, de modo a estimular a devida resposta social e a compaixão no acolhimento do Outro − por meio do ato de Hospedar o outro, sem reservas, no sentido derridiano do termo (2003). É preciso, pelo viés da tradução – de algo que vem do Outro e necessariamente se aclimata –, acolher a parcela de mulheres que sofrem, compreender os mecanismos que as sujeitam e encetar o combate por vias adequadas para que o ciclo seja rompido em benefício de seres humanos. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(15) Nícia Adan Bonatti. 43. Daí a necessidade de redigir um texto fluido, sem os “estranhamentos propostos por Venuti (1995) para que se perceba a figura do tradutor: “Quanto mais ‘bem sucedida’ a tradução, maior a invisibilidade do tradutor, e maior a visibilidade do autor ou do significado do texto original.” Nesta concepção, para “ser visto”, o tradutor deveria manter tropeços de leitura que criassem obstáculo à fluência, para apontar assim sua presença. Não é essa a proposta que norteou a tradução do Livro Negro, por mais de um motivo. Um deles, certamente, é a plena convicção de que as marcas do tradutor no texto que produz são inexoráveis, são elementos constitutivos de sua prática, mesmo que ele queira se eximir delas. O apagamento do tradutor, seu desaparecimento daquilo que escreve são impraticáveis, dado que cada profissional comparece em seus textos pelas escolhas lexicais que efetua, eleição que se mostra absolutamente singular, que é fruto mesmo de tudo que compõe a história daquele sujeito e que funciona de maneira similar a uma impressão digital. Outro motivo é que os tropeços − se ainda sobrasse algum álibi para mantê-los − desviariam a coletânea combativa de sua finalidade precípua − o rompimento do silêncio conivente − para focá-la numa suposta presença marcante da tradutora. Políticas da tradução, políticas possibilitadas pela tradução. Ou, como afirma Michaël Oustinoff, “não é exagerado afirmar que a tradução é constitutiva da civilização ocidental. [...] Por conseguinte, constitui uma aposta essencial para a legitimidade simbólica, cultural e literária de uma dada língua e de um dado país” (p. 21). Por sua vez, Louis-Jean Calvet (p. 51) defende que “somente uma política da tradução [...] pode garantir o progresso da ciência, isto é, ao mesmo tempo a circulação da informação, o compartilhamento do conhecimento adquirido, a comparação e a crítica das diferentes posições – coisas sem as quais nenhum avanço significativo pode acontecer”.. 9.. CONCLUSÃO Voltamos então ao engajamento que havia desencadeado esta reflexão. Desde sua etimologia, engajamento refere-se a um afeto: “atrair ou ser atraído por uma linha de pensamento”, “dedicar-se com afinco a uma tarefa”, “tomar parte em”, “comprometerse”, segundo algumas das acepções do Houaiss. E é esse conjunto de vertentes que mobilizou o desejo da tradutora no exercício de sua tarefa. Ao tecer o texto em português, estreita-se o liame que une aquilo que ocorre no mundo à nossa realidade brasileira – assim como àquela dos países lusófonos –, compondo mais uma peça no intrincado panorama da interpretação histórica. E nessa forma de habitar Babel também se processa, no presente caso, um comprometimento com a quebra do silêncio, com a disseminação Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(16) 44. Reflexões sobre O Livro Negro, ou o medo do Continente Desconhecido. das informações, com o grito que permitirá, num futuro que se espera próximo, o sucesso da luta contra toda forma de violência, seja ela perpetrada contra mulheres, em sentido específico e urgente, seja contra o ser humano em geral. Certamente o fato de eu ser uma tradutora – e no presente livro uma mulher a mais na linha de combate contra as discriminações em relação às mulheres –, só faz mobilizar ainda mais meu desejo de reescrever na minha língua materna a História desse Outro que sofre, trazendo-o até nós e atando-o pela rede da palavra. Certamente o Livro Negro da Condição das Mulheres atende à demanda de um segmento do público pensante, este mesmo que fará alguma coisa com a informação, seja comentando, seja reproduzindo, seja divulgando, seja engajando-se em atividades concretas, ou mesmo aquele que, lançando mão do que leu, refletirá sobre sua própria vida e nela modificará alguma coisa. Daí a importância de se formar o mercado de leitores e de opiniões, de insuflar pensamentos e experiências novas no cenário nacional, buscando modificar a sociedade e imprimir rumos à política, retraçando a história do nosso tempo e trazendo o Outro longínquo à nossa presença, para que nele se apague o caráter exótico e bizarro – que afasta – e que seus contornos humanos nos façam apreender sua dor e nos modifiquem para que lutemos em favor do respeito ao próximo. Uma experiência de engajamento, de combate, de esforço para a superação de obstáculos. Uma experiência política. Ou, em outras palavras, uma experiência de tradução.. REFERÊNCIAS ARROJO, Rosemary. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. BERMAN, A. – A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica – Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: Edusc, 2002. BONATTI, Nícia Adan. “Feminicídio, ou o mal-estar na tradução”, Tradução & Comunicação, n. 17, set. 2008, p. 161-170. BOULANGER, Pier-Pascale. “L’épistémologie cinétique de la traduction: catalysateur d’éthique”, in TTR: traduction, terminologie, rédaction, v. 17, n. 2, Traduction, éthique et société, 2004, p. 5766. CALVET, Louis-Jean – CNRS. Revue Hermès, numéro 49, Édition Traduction et mondialisation, “La mondialisation au filtre des traductions”. Edição coordenada por Joanna Nowicki e M. Oustinoff. 2007, p. 45-57. DERRIDA, Jacques. Positions. Paris: Minuit, 1972. ______. Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre De l’hospitalité. Paris: Calmann-Lévy, 2003. FOUCAULT, Michel. “Truth and Power”. In Paul Rabinov (editor), The Foucault Reader. Nova Iorque: Pantheon Books, 1984. FREUD, S. “Análise terminável e interminável”. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 287. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

(17) Nícia Adan Bonatti. 45. OCKRENT, Christine (dir.). Le livre noir de la condition des femmes. Paris: XO Éditions, 2006. A ser publicado proximamente por Bertrand Brasil, Rio de Janeiro. Tradução de Nícia Adan Bonatti. OUSTINOFF, Michaël – CNRS. Revue Hermès, numéro 49, Édition Traduction et mondialisation, “Les Translation Studies et le tournant traductologique”. Edição coordenada por Joanna Nowicki e M. Oustinoff. 2007, p. 21-28. VENUTI, Lawrence. A invisibilidade do tradutor. Tradução de The translator invisibility. In Criticism, v. XXVIII, Spring 1986, Wayne State UP, p. 179-212 por Carolina Alfaro in Palavra 3, p. 111-134, 1996. Nícia Adan Bonatti Graduação em Comunicação Social - Relações Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1975), mestrado em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (1993), doutorado em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e aperfeiçoamento em Études Françaises pela Université de Toulouse Le Mirail (1981). Atualmente é da Junta Comercial do Estado de São Paulo e Professora da Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas. Tem experiência na área de Lingüística.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 29-45.

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