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"Uma sombra sobre a América Latina": entre as cinzas e as chamas da representação do pensamento de "Che" Guevara no Brasil

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Academic year: 2021

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Scheyla Tizatto dos Santos

“UMA SOMBRA SOBRE A AMÉRICA LATINA”: ENTRE AS CINZAS E AS CHAMAS DA REPRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO DE “CHE”

GUEVARA NO BRASIL

Florianópolis 2019

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“UMA SOMBRA SOBRE A AMÉRICA LATINA”: ENTRE AS CINZAS E AS CHAMAS DA REPRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO DE “CHE”

GUEVARA NO BRASIL

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de doutora em História

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Busko Valim

Florianópolis 2019

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Este trabalho é dedicado a todos e todas que lutam e resistem em nome de um outro mundo possível.

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Agradecer é um ato de reconhecimento, afeto e retribuição a todos que incentivaram e auxiliaram na elaboração e finalização desta Tese. Assim, agradeço:

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelas bolsas concedidas. O fomento para a produção acadêmica é essencial para o desenvolvimento de pesquisa e ciência no país e, foi imprescindível para a realização desta tese.

À Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) pela infraestrutura e pela boa formação proporcionada. Da mesma forma, agradeço ao Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) que me acolheu como discente do programa de pós-graduação.

Ao professor Dr. Alexandre Busko Valim, pela orientação agora concluída, pelo tempo de aprendizado compartilhado, pelo olhar crítico sobre esta tese em particular e, sobre a historiografia. Agradeço a parceria que nos conduziu até aqui.

Aos professores Dr. Jordi Figuerola Garreta da Universitat Autònoma de Barcelona, Dr. Luiz Bernardo Murtinho Pericás da Universidade de São Paulo e ao Dr. Waldir José Rampinelli da Universidade Federal de Santa Catarina, pela leitura atenta e criteriosa da presente pesquisa e, sobretudo, pelas sugestões para aprimorá-la. Ao professor Dr. Ricardo Muller pela leitura do trabalho e pela participação na banca de qualificação.

Aos meus familiares, que das mais variadas formas estão presentes neste trabalho, agradeço compreensão e o incentivo.

Aos colegas do Programa de Pós-Graduação pelas experiências e discussões partilhadas, em especial a Celso Fernando Claro, Gleidiane Ferreira, Kelly Teixeira, Clarissa Grahl e Franco Alves pelas expectativas compartilhadas e pela infinita necessidade cambiar las cosas, queridos e queridas, outro mundo é possível!

Por fim, agradeço a todos e todas que dedicaram sua vida e juventude na luta contra as ditaduras e contra os tentáculos do imperialismo. Agradeço a experiência daqueles que antes de nós, lutaram na expectativa de outro mundo possível.

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... um espectro assombra o sono dos poderosos e inspira sonhos e lutas aos oprimidos da América Latina: o “guevarismo”. Existe algum movimento revolucionário ou contestador radical no continente, ainda neste começo de século XXI, que não se refira, em maior ou menor grau, ao médico guerrilheiro argentino?

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Ernesto “Che” Guevara é um importante personagem da história política do século XX. Sua ação-pensamento construída a partir das viagens pela América Latina e da luta revolucionária em Cuba, entre os anos de 1953 e 1959, contribuíram para elaboração crítica ao imperialismo estadunidense e das condições sociais dos povos da América. Durante a década de 1960, foi porta-voz do programa de transição socialista cubano e do método de guerrilha como luta política no continente. A presença-permanência do pensamento de Ernesto “Che” Guevara no Brasil, e os consequentes usos políticos de sua obra e de sua morte na Bolívia por meio das publicações acadêmicas, dos jornais da grande imprensa, dos documentos da repressão e das organizações de resistência à ditadura civil-militar brasileira, entre os anos de 1960 e 1967, contribuiu diretamente para a difusão do pensamento de Guevara no país. Ernesto “Che” Guevara como “adversário inconciliável do imperialismo” é um personagem em disputa nos amplos espectros políticos, o que provocou um instigante debate sobre a reprodutibilidade da sua imagem e da profundidade e extensão de seus escritos políticos e revolucionários, apesar da sobreposição de um sobre o outro. Essas representações sociais revelam diferentes perspectivas de “América”, revolução e transformação social, que implicaram, a partir do Brasil, uma rede de repressão e censura coordenadas pelo Estado e com amplo apoio de setores da sociedade. Portanto, ao considerar a ação-pensamento de Ernesto “Che” Guevara, o conjunto de abordagens sobre a sua obra e os mecanismos de repressão em diferentes contextos, pode-se vislumbrar que sua permanência prossegue viva e em constante reelaboração.

Palavras-chave: Ernesto “Che” Guevara. América Latina. Luta

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Ernesto “Che” Guevara is an important historical figure in 20th century politics. His action-thinking built from travels throught Latin America and the revolutionary struggle in Cuba, during the years of 1953 and 1959, have contributed to critical stablishment for north american imperialism and America population social conditions. During the 1960s, was the platform of the cuban socialist transition program and the guerilla method as politcs conflicts in the continent. The residence-presence of the Ernesto ‘Che’ Guevara’s thinking in Brazil, and the politics application in consequence of his work and death in Bolivia by the academic publication, great print press, of the repression documents and the resistence organization moviment against the brasilian civil-military dictatorship, between 1960 and 1967, has right contributed to spread of Guevara’s thinking in the country. Ernesto ‘che’ guevara as ‘imperalist obstinate oponent” is a controversy figure in the larges politcs espectres, what has teased a stimulating debate about the reproducibility of his profile and the intensity and extension of his politcs and revolutionary writings, although the overlay of the one on another. This socials representations reveal “America” differents perpectives, revolution and social changes, that have implied, from brazilian politic-history, a repression chain and suppress cordenated by government with huge support from sectors of the society. Therefore, by considering Ernesto ‘che’ Guevara’s action-thinking, the amount of approaches about his labor and the repressive apparatus in differents historical settings, it’s possible to detect his permanency stays alive and in ongoing reformulation.

Keywords: Ernesto “Che” Guevara. Latin America. Revolutionary

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ADELA Atlantic Community Development Group AGTC Associação Goiana de Trabalhadores do Campo. ALN Aliança Nacional Libertadora

CIA Central Intelligence Agency

COLINA Comando de Libertação Nacional. DOPS Departamento de Ordem Política e Social. ELN Ejército de Liberación Nacional.

EZLN Exército Zapatista de Libertação Nacional. FAB Forças Armadas Brasileiras.

FIP Força Interamericana de Paz

IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática.

ICAIC Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica. INRA Instituto da Reforma Agrária, Cuba.

IFC INternational Finance Corporation.

IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, Brasil. JB Jornal do Brasil.

MNR Movimiento Nacionalista Revolucionario, Bolívia. MR8 Movimento Revolucionário 8 de outubro

MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. M-26/07 Movimiento Revolucionario 26 de julio, Cuba PCB Partido Comunista Brasileiro.

POR Partido Obrero Revolucionario, Bolívia. OEA Organização dos Estados Americanos.

OLAS Organización Latinoamericana de Solidaridad.

OSPAAAL Organización de Solidaridad de los Pueblos de África, Ásia e América Latina.

SNI Serviço Nacional de Informação UDN União Democrática Nacional, Brasil. UFCO United Fruit Company.

UNE União Nacional dos Estudante, Brasil. UPI United Press International

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas VPR Vanguarda Popular Revolucionária

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1 INTRODUÇÃO ... 19

2 BREVE PANORAMA SOBRE “CHE” GUEVARA OU A FORÇA E AS LIMITAÇÕES DE UM MITO ... 29

2.1 A luta revolucionária de Guevara, textos e interpretações ... 36

2.2 Leitura dos manuais, 20 anos depois ... 46

2.3 1997, o anos que descobriram apaixonadamente “Che”... 60

2.4 40 anos depois ... 71

3 ENCONTRO COM A AMÉRICA LATINA E AS ETAPAS FORMATIVAS DE ERNESTO “CHE” GUEVARA ... 79

3.1 Um vagar sem rumo pela “Maiúscula América”... 81

3.2 Recuerdos de la Sierra Maestra: método e revolução ... 95

3.3 “Che” Guevara, Cuba e as lutas anti-imperialistas ... 108

4 ERNESTO “CHE” GUEVARA NA REPRESENTAÇÃO DA IMPRENSA NA DÉCADA DE 1960 ... 121

4.1 As representações sociais de “Che” Guevara no Jornal do Brasil .. 125

4.2 Os jornais e as guerrilhas na América Latina ... 138

4.3 As mortes de Guevara na imprensa brasileira ... 152

4.4 “Procura-se vivo ou morto”... 158

5 GUEVARA NA BOLÍVIA UMA HISTÓRIA DE FRACASSO? ... 167

5.1 Em busca de Ernesto “Che” Guevara ... 185

5.2 ¡Patria o muerte! ¡Venceremos! ………... 195

5.3 O diário de campanha e o fim da guerrilha revolucionária ... 207

5.3.1 Correspondentes, guevarismo e o curso da ação guerrilheira ... 218

5.4 O “Revolução” e o contexto da morte de “Che” Guevara ... 225

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 243

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1 INTRODUÇÃO

A imagem de Che Guevara atravessou a segunda metade do século XX e início do século XXI desencadeando disputas, debates e publicações. Tornou-se estandarte para as lutas sociais pelo menos nos últimos cinquenta anos após a sua morte na Bolívia. Com maior ou menor intensidade, a história do médico guerrilheiro argentino-cubano é uma peça singular, que em nosso tempo presente provoca discussões nos diferentes campos do espectro político, editorial e midiográfico1. O embate sobre as ações de Guevara na América Latina foi conduzido por vozes dissonantes, que se amplificam nas proximidades dos aniversários de sua morte, dos pleitos eleitorais e ainda no cerceamento das atividades educacionais e pedagógicas.

Ao elucidar tais embates, a emergência do projeto “Escola Sem Partido” é exemplar. Em 2003, o advogado Miguel Nagib que atuava em Brasília, produziu uma carta aberta ao professor de história da instituição de ensino em que seus filhos estavam matriculados2, carta foi impressa e panfletada por seu autor no estacionamento da instituição. No documento, o advogado criticava o professor, a disciplina e a escola pela aula em que o “tema Guevara” foi abordado em equivalência com a trajetória de São Francisco de Assis. A associação entre a representação de “Che” aos pressupostos religiosos não é inédita, esse vínculo remonta ao início da década de 1960 no Brasil3, contudo, foi com a sua morte na Bolívia, que as representações de símbolos religiosos se misturaram a figura Guevara. A defesa produzida por Nagib, em sua carta aberta, enfatizou a “doutrinação” que as crianças recebiam nas escolas, já que os professores, no exercício de suas atividades pedagógicas, elaboraram uma representação de “Che” Guevara associada aos líderes religiosos da igreja católica, com o objetivo de construir a beatificação do guerrilheiro, conforme pode-se acompanhar no excerto a seguir:

1O conceito operação midiográfica que fazemos referência sintetiza os métodos utilizados pelos jornais e, sobretudo, pelos jornalistas na elaboração do acontecimento, a construção da verdade e a produção de uma escrita que estabeleça um consenso sobre as questões políticas mediadas pelos impressos. O conceito foi elaborado pela historiadora Sônia Menezes para analisar as narrativas produzidas pelos jornais no golpe de 1964.

2 Carta ao Professor Iomar, 19 de setembro de 2003, por Miguel Nagib disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=26349&cat=Artigos&vinda=S>.

3 A produção escrita da Bispo D. Pedro Casaldáliga aproxima, a partir do horizonte de justiça social a figura de Guevara com a missão da Igreja no Brasil. Textos publicados no panfleto especial Jornada Nacional Guerrilheira em Homenagem a Che Guevara e Camilo Torres – 27 de abril de 1981 (data de arquivamento pelo DEOPS/SP. Arquivo do Estado de São Paulo, Fundo DEOPS/SP, Ficha Arquivo Geral, documento nº 30-Z-160-16764).

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Que diabos o senhor tinha em mente ao comparar São Francisco de Assis a Ernesto “Che” Guevara? O senhor enxerga, realmente, uma afinidade entre esses dois personagens, ou a tentativa de associá-los visou apenas a reforçar, na imaginação dos seus alunos, o estereótipo romântico do guerrilheiro comunista?

Venho acompanhando há algum tempo o seu incansável esforço para doutrinar ideologicamente as crianças do Sigma, impingindo às suas frágeis consciências a visão que o senhor tem do mundo; e sei que para atingir esse objetivo – que o senhor certamente acredita ser necessário para a “construção de um mundo melhor” –, o senhor não hesita em aplicar à complexa disciplina que leciona o modelo de narrativa das histórias infantis, onde o Mal jamais se confunde com o Bem.

Assim, na história que o senhor ensina, a Idade Média é “do mal” e o Iluminismo é “do bem”; os capitalistas são “do mal” e os socialistas são “do bem”; os conservadores são “do mal” e os revolucionários são “do bem”; os Estados Unidos são “do mal”, a ONU e Cuba são “do bem”, e por aí vai4.

Para o autor da carta aberta, a disciplina de história é tratada pelos educadores de forma maniqueísta, aspecto essencial para o que chama de “doutrinação”. O caso narrado pode elucidar o impacto que a presença de Guevara ainda produz em nosso tempo presente, na eminência do cinquentenário de sua morte. Contudo, esse problema deve ser analisado de forma mais profunda, desde as implicações que gera à disciplina história, ao trabalho do professor e da construção do conhecimento. Mas, cabe destacar, o fator anticomunista que a abordagem sobre Guevara provoca em determinados setores da sociedade, e neste caso em específico, no campo da educação.

Ao recorrer as permanências históricas, é possível identificar no início da década de 1960, que os setores empresariais, a sociedade civil e a oposição parlamentar ao governo do presidente João Goulart, na tarefa

4 A carta, pedra angular que embasa o “Movimento Escola Sem Partido”, que nesta temporalidade tramita no Senado Nacional Brasileiro, e tem Miguel Nagib como coordenador, e autoria do Senador Magno Malta do Partido da República – PR. PLS 193/2016 que inclui entre as diretrizes e bases da educação brasileira o

“Programa Escola Sem Partido”, disponível em:

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de promover a desestabilização política, acusou o Ministério da Educação de “doutrinadores”, ainda que em outras bases referenciais, declaravam que o MEC estava tomado por comunistas5, sendo então, tarefa da sociedade combater a “sovietização”6 do Ministério.

O impacto da representação social de Ernesto “Che” Guevara tem despertado atenção de editoriais e revistas preocupados com a memória construída sobre a sua trajetória na América Latina, assim como, com a penetração de sua representação no campo da justiça social entre a juventude. Em oposição a essa ancoragem7, o uso da imagem de Guevara como um “assassino sanguinário”8, foi abordado pela Revista Veja em 2007 no quadragésimo ano de sua morte. Tal representação foi embasada no dossiê sobre as ações de Guevara na Bolívia, documentos desclassificados da Central Intelligence Agency (CIA) e da biografia produzida pelo estadunidense Jon Lee Anderson9. Em reportagem de capa sob o título “Che a Farsa do Herói”, com a manchete “verdades inconvenientes sobre o mito do guerrilheiro altruísta, quarenta anos depois de sua morte”, a Revista Veja fez uso do passado para expressar, em sua narrativa, frases atribuídas à Guevara quando foi preso na Bolívia10.

Ao abrir a seção especial da revista, nos reencontramos com o conteúdo dos jornais de 1967, que anunciaram a morte do guerrilheiro. Ao longo de quatro páginas, os jornalistas Diogo Schelp11 e Duda Teixeira12 descreveram entrevistas com historiadores, biógrafos, ex-guerrilheiros e cubanos residentes em Miami que criticaram Fidel Castro e o modelo Cubano, personalizando-o e responsabilizando-o pelo bloqueio imposto a ilha. Os jornalistas exploraram as divergências entre Ernesto “Che” Guevara e Fidel Castro, o que não demonstrou nenhum

5 Cf. DREYFUSS, R. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981, p. 301.

6 Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1962, Notas e Comentários – Souza Brasil, Caderno B, p.2. 7 Por ancoragem entende-se o processo no qual uma representação e seu objeto constituem-se em uma rede de significações que lhes confere coerência e servem à instrumentalização do saber. Cf. JODELET, Denise. Representações Sociais: Um Domínio em Expansão. In: JODELET, Denise (org). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 17-44.

8 Revista Veja, 03 de outubro de 2007, n.2.028 Tiragem 1.209,145 exemplares. 9 Cf. ANDERSON, Jon. Che Guevara: uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

10 “Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto”, a frase atribuída a Guevara foi publicada os periódicos a seguir, sob os respectivos títulos: Folha de S. Paulo, 10 de outubro de 1967 – Bolívia anuncia a morte de Guevara – p.2; O Estado de S. Paulo, 10 de outubro de 1967 – Bolívia anuncia a morte de “Che” – Capa; Jornal do Brasil, 10 de outubro de 1967 – General Boliviano anuncia morte de “Che” Guevara – Capa; Correio da Manhã, 10 de outubro de 1967 – La Paz anuncia: Morreu Guevara – Capa.

11 Jornalista e diretor executivo da Revista Veja em São Paulo, apresentador do programa Mundo Livre da TVeja.

12 Jornalista e editor internacional da Revista Veja em São Paulo, com ênfase na América Latina. Publicou em coautoria com Leandro Narloch o livro Guia politicamente incorreto da América Latina, da editora LeYa, em 2011.

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ineditismo, pois essas questões já compunham o repertório da mídia a partir de 1965, com a renúncia de Guevara ao governo Cubano.

A matéria enfatizou as execuções deliberadas por Guevara em La

Cabaña e sua intolerância com as divergências entre os combatentes

guerrilheiros, a escolha por essa lupa estava enunciada na capa da revista. Essa edição da Veja produziu discussões entre os biógrafos e editores de Che Guevara no Brasil, assim com uma resposta provocativa da Revista Carta Capital, produzida pela jornalista Cynara Menezes13. Diferente do que produziu na Revista Veja, o Ernesto “Che” Guevara apresentado pela Revista Carta Capital não era executor, mas sim, o executado em uma ação conjunta entre os Estados Unidos e a Bolívia. Essa reportagem foi produzida com base nos relatórios da CIA, a qual se ocupou de apresentar as versões inéditas sobre o momento da morte de Guevara. Essas diferenças de linha editorial e também de circulação demonstram que a disputa pela narrativa da morte de Guevara se mantém em nosso tempo presente, e esse fato, torna uma análise sobre esse personagem no Brasil necessária, sobretudo, pelo embate sobre sua representação que permanece atual.

Os casos apresentados serviram para ilustrar de que maneira as representações sociais de Guevara são utilizadas para propor um embate político, não apenas partidário, mas uma disputa sobre os projetos políticos no país, sobretudo, em sua dimensão consensual e narrativa, processo no qual, a imprensa tem um papel fundamental. Desse modo, a representação de “Che” Guevara foi um recurso que desencadeou posições ideológicas e simbólicas. Nesse aspecto, foi associada ao caráter mercadológico, não apenas nas camisetas, quadros e pôsteres, mas também na publicação de livros, revistas e periódicos. Produções que tratam de explorar a experiência de Guevara geram curiosidade, pelo menos desde início da década de 1960, publicações sobre o tema foram apontadas como relevante recurso lucrativo14.

Ao realizar essa observação em perspectiva histórica, foi possível identificar entre as permanências do tema, que o recurso comercial e político, produziram abordagens que despertaram a necessidade da

13 Vale destacar que a circulação da Revista Veja é maior que da Revista Carta Capital, seus leitores também estavam em espectros ideológicos diferentes no campo político daquele período. Revista Carta Capital, 17 de outubro de 2007, n.466. Tiragem de 72.500 exemplares.

14 O aspecto de curiosidade e lucratividade que a figura de Guevara desperta foi analisada por Ferreira Gullar e sua coluna no Caderno B do Jornal do Brasil em 22 de fevereiro de 1962, sob o título: Proibições, p.2. E mais tarde, em 1967, por José Carlos de Oliveira em sua coluna no Caderno B em 28 de novembro de 1967 sob o título: Me chamem de subversivo, por favor! p.3. No campo da reflexão acadêmica João Quartim Moraes também afirma esse aspecto comercial da figura de Guevara em comunicação proferida no I Colóquio Internacional Ernesto “Che” Guevara: Presença e Permanência, organizado por João Carlos Quartim de Moraes, subsidiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

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presente pesquisa. Em nosso tempo presente, as representações sociais que são produzidas sobre “Che” Guevara o separam de sua produção escrita e, em grande medida, de sua trajetória de ação guerrilheira. Essa separação decorre, sobretudo, pelo distanciamento temporal de sua morte. A cada década que se separa daquele outubro de 1967, a representação de Guevara se aproximou mais de um pensamento produzido sobre ele, do que de sua própria escrita, como também, das representações distorcidas que emergiram da pop art15, que nessa temporalidade estampam camisetas, capas de tecnológicos, e ações públicas de grupos nacionalistas16.

Enquanto a relação entre Ernesto “Che” Guevara, Fidel Castro e a Revolução Cubana se desenvolvem para uma perspectiva de análise de suas aproximações, tensões e afastamento do que em sua aparente naturalidade. A trajetória da Revolução Cubana e seu impacto sobre a América Latina, são marcados por diferentes intensidades e abordagens, sobretudo, nos caminhos do socialismo na ilha. É possível, portanto, escrever uma história política da Revolução Cubana e sua recepção no Brasil a partir da grande imprensa, dos jornais clandestinos, dos manuais de ação armada e por documentos dos órgãos de repressão do Estado. Em todo esse corpus documental podemos encontrar representações sociais de Guevara, sua relevância no processo revolucionário, suas atividades e afastamento da estrutura de Estado e o significado de sua atuação no projeto de “exportar a Revolução”17.

15 A referência é o painel de Claudio Tozzi, Guevara, vivo ou morto (1967). Tinta acrílica na madeira. Coleção Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA). No Jornal do Brasil podemos acompanhar o problema político que essa obra provocou, conforme segue: Jornal do Brasil, 22 de dezembro de 1967 – DOPS não quer Guevara e Exposição – p.10; Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 1967 – Tozzi quer vender nas ruas “Guevara Vivo ou Morto” em cópias a preços populares – Capa. Vale destacar a ação dos agentes da polícia política no IV Salão de Arte Moderna de Brasília, que interpretaram a obra como uma conduta rebelde seu autor. A mostra foi cancelada por decisão do júri do Salão com o objetivo de preservar as obras expostas. Cf. CALIRMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar. 1. Ed. Rio de Janeiro: Reptil, 2013, p.23. 16 O documentário produzido pelo brasileiro Douglas Duarte e pela colombiana Adriana Mariño, em 2007, procurou construir uma narrativa audiovisual sobre a temática de “Che” Guevara naquele tempo presente. Intitulado Personal Che tem aproximadamente 87 minutos de duração e procurou explorar as respostas para questão: “Qual é o seu Che?” Para compor as repostas os diretores percorrem Hong Kong, Berlim, Havana,

La Higuera. Em Berlim, em especial, a cena é uma marcha de rua de um grupo “Livre Nacionalista” que

associa Hitler e Guevara na perspectiva da defasa do nacionalismo, da paz e da justiça. São associações como essas que não estão restritas apenas à Berlim, mas que se reproduzem em escalas macrorregionais é que chamamos de distorções da representação.

17 A ideia de “exportar a revolução” esteve presente no debate sobre cuba no Brasil ao longo dos anos de 1960, e pode ser observado na imprensa daquele período, como também nas discussões entre os deputados e os grupos de organização armada. Denise Rollemberg e Jean Rodrigues Sales investigaram a questão demonstrando que os impactos do apoio de Cuba na ação de guerrilha no Brasil resultaram em fracasso desses grupos. Contudo, é importante lembrar que o uso político da ideia de exportar a revolução teve um efeito mais moralizante em setores conservadores da sociedade do que propriamente nas ações diretas. Cf. ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001; SALES, Jean. O impacto da revolução cubana sobre as organizaçõescomunistas

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Desse modo, a representação social de Guevara foi, em grande medida, observada nas fontes de maneira relacional a própria forma como foi representada a Revolução Cubana no Brasil. Vale destacar, que durante a década de 1960, foram elaboradas pela imprensa diferentes interpretações sobre o processo de Cuba. A princípio, o “1º de janeiro de 1959”, foi festejado na imprensa brasileira como a vitória do povo cubano sobre a ditadura. O editorial de 02 de janeiro de 195918, sobre a queda de Fulgêncio Batista em Cuba, sob o título “Um ditador a menos”, parabenizou a vontade e a força do povo Cubano que fez cair mais uma ditadura latino-americana. O editorial apontou os problemas econômicos do sistema agroexportador de açúcar, ao qual o país estava submetido, condenou a violência de Estado da ditadura Fulgêncio Batista, a desigualdade na distribuição de renda e encerrou conforme reproduzimos a seguir:

No dia em que todos os brasileiros esperam sejam o fim do derramamento de sangue cubano, nossos votos são para que o povo daquele país encontre governantes capazes e probos que o conduzam a uma prosperidade econômica ainda maior e ao aperfeiçoamento de seus costumes políticos e à Justiça Social para todos os cubanos. Cada exemplo nesse sentido, partido de um membro da Comunidade Americana, é um ganho para todos os demais19.

O modelo “exemplar revolucionário” em Cuba não resistiu a implantação do novo governo, e logo, as notícias sobre as execuções de opositores ao regime assumiram o lugar dedicado ao “povo cubano” nas páginas daquele jornal. Mas, de todo modo, é sugestivo observar que em um primeiro momento, não se tinha entendimento da agenda política do projeto revolucionário, e o exemplo de Cuba, acabou por mudar de lado na balança da imprensa na década de 1960, quando passou a ser combatido, sobretudo, na questão da “exportação de sua guerra revolucionária”. Durante a década de 1960, a própria denominação do exemplo guerrilheiro de Cuba mudou no jornal. A partir de 1964, a “guerra revolucionária” passou a ser interpretada como guerrilhas

brasileiras (1959-1974). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, SP, 2005.

18 Embora o recorte temporal deste projeto tenha sido estendido aos anos de 1960, o retorno aos acontecimentos de 1959, é fundamental para compreender a trajetória da Revolução Cubana e as associações com Che Guevara na imprensa brasileira.

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comunistas quando o espaço de ação era no campo, já para as cidades a terminologia guerrilha urbana foi pouco utilizada, e o terno a ser definido por ações terroristas, e seus agentes classificados como subversivos.

Esse contexto nos levou a discutir como foi construído historicamente o personagem de “Che” Guevara, em diálogo com a sua produção teórica e o seu debate nos órgãos da imprensa no Brasil. Desse modo, levantamos a hipótese de que a imprensa como mediadora entre a política e a sociedade contribuiu para a construção da representação social de Ernesto “Che” Guevara. Esse processo foi útil para os organismos de oposição aos governos Jânio Quadros e João Goulart na escalada pré-golpe de 1964, e para os organismos de repressão consolidadas pela ditadura civil-militar. Esse processo, resultou na elaboração de um consenso político sobre as questões que sua representação suscitou, a qual só é inteligível em sua leitura histórica e contextual.

Cabe, portanto, a presente pesquisa analisar a escritura da imprensa de um acontecimento que permite aos historiadores questionar os debates políticos que são construídos e articulados pelos meios de comunicação, como também, analisar os alinhamentos e orientações políticas. Desse modo, a partir da análise dos jornais da grande imprensa, sob a perspectiva dos conteúdos que difundiu, compreendemos a necessidade desse meio em se colocar uma porta-voz das realidades socioculturais, ao emitir relatos cotidianos que se entremeiam nas colunas, nas páginas, nas imagens e na própria estética gráfica dos periódicos.

Ao analisar a escritura sobre a morte de “Che” Guevara, foi possível encontrar uma elaboração narrativa que envolveu um debate sobre a ação armada, a associação da resistência ao imperialismo estadunidense, crítica ao comunismo, ao marxismo e à própria esquerda como orientação política. Portanto, o objetivo geral desta tese foi demonstrar como a imprensa, enquanto um órgão de colaboração de Estado sob a ditadura civil-militar no período da morte de Ernesto “Che” Guevara, contribuiu para a construção dos consensos políticos sobre a luta armada e o comunismo no Brasil. Entre os objetivos gerais destacamos: a) compreender como as produções editoriais e acadêmicas elaboraram representações sociais sobre Ernesto “Che” Guevara; b) as etapas formativas do pensamento de Guevara a partir da análise dos seus registros diários; c) a trajetória de Ernesto “Che” Guevara produzida pela imprensa escrita a partir da sua morte na Bolívia; d) os impactos da morte de Ernesto “Che” Guevara na imprensa e nos grupos de esquerda.

Os documentos utilizados na presente pesquisa são de diferentes tipologias, utilizamos os jornais de grande circulação do período, entre

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eles, os paulistas Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, o carioca Jornal do Brasil. Da imprensa clandestina e alternativa, os jornais Bandeira Vermelha (Órgão do Movimento Comunista Internacionalista), A Voz Operária (Órgão do Partido Comunista Brasileiro), jornal Política Operária (POLOP), Revolução (Órgão oficial da ALN), em diálogo com os dossiês e relatórios do Departamento de Ordem e Política Social de São Paulo.

Os documentos consultados para presente pesquisa estão disponíveis no Arquivo do Estado de São Paulo, no Centro de Documentação e Memória da UNESP, na Biblioteca do Memorial da América Latina e na Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/SP), nos repositórios digitais do Projeto Brasil Nunca Mais e Hemeroteca do Arquivo Digital do Arquivo Nacional. Todos os documentos consultados estão disponíveis para consulta, aqueles sob tutela das Instituições de Estado a pesquisa é realizada com agendamento prévio.

Para análise dos jornais da grande imprensa consideramos os Editorias, a coluna de “Panorama Internacional”, os artigos de opinião e aqueles de correspondentes internacionais, com ênfase para o jornalista na publicação e elaboração dos conteúdos da imprensa. Consideramos que essa classificação contribuiu para a compreensão do objetivo dessa pesquisa, pois organizados dessa maneira, se torna possível explorar o periódico em sua dimensão de forma e conteúdo.

Portanto, para estabelecer os limites temáticos e temporais esta tese foi dividida em duas partes. Na primeira, que corresponde aos dois primeiros capítulos, são discutidos o pensamento de Ernesto “Che” Guevara a partir da análise de seus diários de viagem e de campanha, e o debate que foi realizado pela bibliografia de abordou o tema a partir da sua morte em 1967. A segunda parte, que se refere aos dois últimos capítulos, nos concentramos em investigar como o pensamento e a presença de Guevara foram abordados no Brasil, a partir da análise da grande imprensa em diálogo com os jornais clandestinos que começaram a circular no país após a ditadura civil-militar. Desse modo, essa organização colabora para os argumentos desta tese, que procurou demonstrar que a força política de Guevara, apesar de polissêmica, é caracterizada pela indissociável relação entre teoria e prática revolucionária.

No primeiro capítulo, abordamos as discussões sobre a produção intelectual de Ernesto “Che” Guevara realizadas no campo das ciências humanas e da ciência política que circularam no Brasil. Escolhemos como marco temporal para este capítulo as celebrações em torno da morte de

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Guevara, pois este acontecimento contribuiu para a difusão e análise de sua obra teórica. Esse exercício prolongou a permanência de seu pensamento revolucionário vivo, apesar do episódio da Bolívia. Desse modo, o levantamento demonstrou como a produção de Ernesto “Che” Guevara foi complexa e contou com a intervenção do Estado para sua produção, difusão e circulação. Por isso, a leitura e interpretação de seus textos foram demarcados pelo contexto político e social nos quais foram enunciados, e estiveram submetidas às disputas que essa personagem evocou. Portanto, a historicidade de uma “guevarografia” colocou no cenário público a força política de seu pensamento mediante a imagem e o “mito”20.

No segundo capítulo, abordamos os registros de Ernesto “Che” Guevara nos diários de viagem pela América Latina e do diário de campanha de Sierra Maestra. A análise desses documentos foi necessária pela emergência das etapas formativas do seu pensamento, noção cara para a bibliografia cubana, e relevante para esta tese, pois colaborou para a compreensão do amadurecimento de problemas chave abordados por “Che”. Entre eles, enfatizamos três conceitos elaborados nestas fontes que são centrais para compreensão das representações e o legado de Guevara, são eles: “Mayúscula América”, imperialismo e Revolução Cubana. Essa discussão foi elaborada para compreender a centralidade das lutas progressistas da América Latina para a formação intelectual de Guevara, e a importância da experiência da guerra revolucionária de Cuba para o desenvolvimento do método guerrilheiro, e do conceito de revolução por ele abordado.

No terceiro capítulo, investigamos como os jornais da grande imprensa no Brasil noticiaram as políticas internacionais que envolviam a Revolução Cubana e a participação de Ernesto “Che” Guevara no governo revolucionário. A difusão de seus pronunciamentos, viagens, debates, além dos problemas de Playa Girón, e a crise dos mísseis. Mas foi a condecoração concedida por Jânio Quadros, que revelou usos políticos da presença de Guevara no país e contribuiu para a instabilidade do governo e dos contextos pré-golpe de Estado. Com a imposição da ditadura civil-militar, a emergência da temática da guerrilha e da “subversão comunista” passaram a ser debatidos na imprensa sob o processo guerrilheiro cubano, intensificado com o desligamento de “Che”

20 A noção de “mito” é tomada como antagônica com a produção intelectual de e sobre Ernesto “Che” Guevara. Neste sentido, utilizamos como referência “O Mito, na Direita” de Roland Barthes. Cf. BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução Rita Buongermino e Pedro de Souza. 11º edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001, p. 240.

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das funções burocráticas do Estado em 1965, até a sua queda pela ação na Bolívia em 1967.

No quarto capítulo, a trajetória de Ernesto “Che” Guevara na Bolívia foi privilegiada com o objetivo de compreender como transcorreu os últimos meses da luta guerrilheira que resultou na sua execução física e no seu “renascimento”. Para isso, analisamos o “Diário de campanha”, os documentos da contraofensiva guerrilheira e os jornais de grande circulação no Brasil, para entender a recepção, os desdobramentos da morte de “Che”, e as reações nos espectros políticos divergentes no país. Esse exercício demonstrou que a morte de “Che” foi comemorada pelos seus “inimigos ideológicos” como o fim das guerrilhas e até mesmo do comunismo no continente, perspectiva que demarcou aquele tempo presente. Em contraposição a este anúncio, os pronunciamentos, as “produções de Havana” e das frentes de esquerda colaboraram para a permanência de “Che” Guevara apesar da sua morte. Neste campo “Che permanece mais vivo que nunca”, um símbolo da revolução no continente21.

Por fim, para elucidar algumas terminologias adotadas nesta tese, a utilização da denominação “Che” foi decorrente de sua adesão aos guerrilheiros cubanos exilados no México, portanto, seu uso é feito a partir dos registros de 1956, com a guerrilha de Sierra Maestra. A interjeição “Che” é entendida como identificação guerrilheira de Ernesto Guevara. Sobre a sua morte, a historicidade daquele acontecimento na Bolívia, e a sua distância temporal levou a adoção dos termos “assassinato” e “execução” de Ernesto “Che” Guevara, são escolhas políticas utilizadas para delimitar a causa da morte do guerrilheiro heroico. Essas escolhas são relevantes porque expressam o papel das forças anti-guerrilheiras na Bolívia e, posteriormente, na América Latina. Então, após a divulgação do laudo da autópsia em 17 de outubro de 1967, passamos a utilizar na narrativa desta tese, a denominação “assassinato”.

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2 BREVE PANORAMA SOBRE “CHE” GUEVARA OU “A FORÇA E AS LIMITAÇÕES DE UM MITO

A vida e a morte de Ernesto “Che” Guevara são acontecimentos provocadores. Objeto de investigações acadêmicas, produções editoriais e audiovisuais que despertaram contravertidas disputas políticas sobre o personagem. As questões suscitadas por essas disputas se prolongam até o nosso tempo presente22. E a presença histórica de Guevara em diferentes processos políticos e sociais resultaram em um amplo material de análise, portador de uma profunda e difusa discussão sobre a sua ação e pensamento. O exame de sua linguagem revolucionária23, a dimensão diversa de seus textos, os pronunciamentos e os diários de campanha foram revistos nas últimas cinco décadas, o que fez perpetuar a presença de “Che” na história e na bibliografia do século XX.

Uma análise a cerca do que foi produzido sobre Ernesto “Che” Guevara é necessária para compreender a extensão do seu pensamento no campo acadêmico e nos organismos da grande imprensa, uma vez que essas áreas foram fundamentais para a permanência viva de Guevara após o seu assassinato na Bolívia em 1967. Desse modo, este capítulo procura responder por que “Che” Guevara, apesar da sua morte, permanece vivo? E, em decorrência desta questão, quais são os elementos históricos que contribuíram para a sua presença nos embates políticos do século XX? E que maneira este esforço resultou na elaboração de “Guevaras”?

Apesar de clichê, “Che” Guevara como produto, uma estampa de camiseta24, é um objeto popular, um suporte para sua permanência no tempo e, de maneira paralela, é uma imagem explorada para esvaziar o sentido político de sua obra e de seus usos na construção do debate sobre seu legado histórico. Em contradição ao que significou essa

22 A figura de “Che” Guevara foi central para a elaboração de projetos de censura no Brasil, pelo menos desde a década de 1960. Ao longo de cinco décadas (1967 – 2017), as disputas sobre o legado de Guevara, foram polarizadas na dimensão dos programas políticos que rivalizam a cena pública entre o campo conservador e o campo progressista, ou ainda com o aprofundamento do neoliberalismo no país. Em outra perspectiva, no campo progressista como esquerda política, a presença Guevara não foi hegemônica nas décadas de 1960 – 1970, e a sua memória histórica permanece controversa. Desse modo, a elaboração de Guevara como um mito da esquerda e para a esquerda contribuiu para esvaziar o conteúdo teórico das suas produções intelectuais. 23 Utilizamos nessa tese, linguagem revolucionária para identificar as produções intelectuais de Ernesto “Che” Guevara, em suas diferentes fases temáticas, fruto de um projeto de transformação social, somente alcançada por meio de uma revolução socialista. Essa linguagem, não é autóctone, ela tem como referência as obras de Karl Marx, Vladimir Lenin, José Martí e outros autores do campo da filosofia, como pode ser verificado nos Caderno de Leitura da Bolívia. Cf. GUEVARA, Ernesto. Apuntes Filosóficos. La Habana: Editorial de Ciências Sociales, 2013.

24 Após a morte de Ernesto “Che” Guevara, o DOPS-Guanabara fez apreensão de um lote de camisetas brancas com o seu retrato, acontecimento acompanhado pelo Jornal do Brasil, 15-16 de outubro de 1967. Caderno B, sob o título “Esse jeito manso de ser do contra”. Portanto, essa imagem-produto de “Che”, foi uma elaboração de seu imediato pós-morte como um ícone de centro de uma camiseta, mais um manifesto da contracultura da década de 1960.

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produto, muitos autores utilizadosnesta tese procuraram demonstrar que o excesso do produto teve seu uso prático no afastamento do pensamento de Ernesto “Che” Guevara e de sua historicidade25. A noção de Guevara como um “mito no panteão do socialismo”26, foi uma elaboração explorada pela grande imprensa e pelos setores conservadores na disputa pela “narrativa-verdade” sobre o legado de Ernesto “Che” Guevara para a história do socialismo. Ao identificar a construção do “mito” como um recurso de fala despolitizada27 e, como um processo da sociedade burguesa, sua função pode esvaziar o real, e retirar o processo histórico do objeto e do acontecimento. A ideia do “mito” “Che” Guevara, portanto, o separa do processo histórico do que foi parte estruturante.

A imagem de “Che” Guevara como retrato28 em uma camiseta,

em cartazes, e faixas, foi amplamente difundida com a auxílio dos movimentos estudantis e de resistência à violência de Estado, como as marchas públicas contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos29, as barricadas de “Maio” emParis. Nas ruas de Tóquio30 a inscrição “Um, dos,três Vietnans”31 se tornou “palavra de ordem” do internacionalismo proletário. Os usos das imagens e do pensamento de Guevara nas

25 Sobre o poder da imagem “hollywoodizada” e “comercializada”, o historiador Luiz Bernardo Pericás argumentou que em nome de todo tipo de memorabília que se espalhou pelo planeta, muito do estofo político foi esvaziado. Por um lado, a sua imagem se tornou um produto rentável, enquanto sua vida e obra são “agressivamente” atacada em alguns jornais e revistas. Cf. PERICÁS, Luiz. Che Guevara, a revolução cubana e o Brasil. Uma visão panorâmica, política e editorial. In: PERSEU: História, Memória e Política, v. 7, p. 235-247, 2016. Outros autores, antes mesmo de Pericás, observaram a circulação da imagem de “Che” Guevara como um produto rentável e especialmente hollywoodiano, entre eles, Emir Sader e João Quartim de Moraes, para o último, a ideia “mediática” de Guevara trouxe a ideia de que seu combate pertencia ao passado obsoleto e já superado. Cf. MORAES, João. Guevara: o antiimperialismo em atos. Critica Marxista (Roma), v. 6, 1997. p. 129-143. Voltaremos a essa questão ainda neste capítulo.

26 Jornal do Brasil, 12 de outubro de 1967. Caderno B, O cadáver e o mito.

27 Para Barthes, o mito na sociedade burguesa é uma fala despolitizada, sendo política “um conjunto das relações humanas na sua estrutura real, social, no seu poder de construção de mundo”, portanto, o sufixo des denota a deserção do sentido político das relações e do mundo. Cf. BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução Rita Buongermino e Pedro de Souza. 11º edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001. p. 234.

28 O retrato do qual fazemos referência são aqueles inspirados pela fotografia “Guerrilheiro Heroico”, por Alberto Korda de março de 1960.

29 Douglas Kellner, identificou que na década de 1960, a inspiração por “Che” Guevara trouxe para rua a insatisfação para população estadunidense com a Guerra do Vietnam e ajudou a sepultar a reeleição do Lyndon Johnson à Casa Branca. Cf. KELLNER, Douglas. Os grandes líderes do século XX. Che Guevara. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1990. p. 79.

30 Na análise de Eric Hobsbawm, as manifestações públicas da virada de 1968-69, sobretudo as ocorridas no “Primeiro Mundo”, destacaram uma nova força social dos estudantes, que aos milhões foram às ruas e, apesar das barricadas e da intensa onda de greves operárias não provocaram grandes revoluções. Para o autor, a “rebelião dos estudantes ocidentais” em nome da rejeição de tudo o que representava os valores da classe média se aproximou mais de uma revolução cultural e dos costumes, do que de uma reivindicação de cambio político, econômico e social. Essas manifestações estudantis fizeram emergir uma “Nova Esquerda” global, na qual, as “imagens de Che Guevara eram carregadas como ícones por manifestantes estudantis em Paris e Tóquio, e seu rosto barbudo, inquestionavelmente másculo e de boina fez bater corações mesmo não políticos na contracultura”. Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 341.

31 Subtítulo da Mensagem aos povos do Mundo através da Tricontinental de Ernesto “Che” Guevara, publicado em 16 de abril de 1967, Havana, Cuba.

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manifestações públicas estudantis e do movimento operário, aproximaram o seu conhecido retrato das lutas sociais que não estavam representados pelo signo da revolução armada. Embora, estranho àquele homem da revolução, e com novos significados atrelados a sua “emoldurada-imagem”, esse uso, apesar de difundir outras características da produção intelectual de Guevara, ainda foi uma reprodução sintética e delimitada de sua vida e obra.

A noção do “mito” e o retrato na camiseta se encontram como características de um interesse de classe. Disputado na cultura política da sociedade burguesa e propagada nos seus meios de difusão, a imprensa. Essas duas formas de representar “Che” Guevara são métodos de permanência que resumiram a sua ação e o seu pensamento sob signo da aventura32. O “aventureiro heroico” em contradição com o militante revolucionário demarcou o processo de disputa do legado histórico do personagem. Seu desenvolvimento se deu de maneira complexa, na qual o antagonismo político polarizado da Guerra Fria foi uma fase dessa elaboração. É possível destacar desse contexto as políticas anticomunistas para a América que foram essenciais para uma vitória hegemônica de uma narrativa mitológica sobre “Che” Guevara. Em decorrência das ações restritivas à Cuba e a revolução33, a produção e circulação das obras de Guevara ficaram comprometidas, pelo menos até o início da década de 1980, produto dos anos de censura das ditaduras na América Latina.

A produção bibliográfica analisada neste capítulo, foi elaborada a partir dos trabalhos acadêmicos que escolheram Ernesto “Che” Guevara como objeto de investigação. A partir delas, foram destacadas as principais características abordadas tanto dos escritos, quanto das ações de “Che” Guevara, método que contribuiu para a identificação dos encontros e desencontros com a noção de “mito” desta trajetória. Os critérios adotados para este estudo são os seguintes: a) opção pelas produções da área de humanas, entre elas, história, e ciências políticas; b)

32 Michael Löwy, ao abordar a questão do “mito Che”, em 1969, atribuiu a imprensa a responsabilidade dessa narrativa que propôs, a partir do sistema ideológico dominante, a figura do aventureiro heroico em detrimento do militante revolucionário. Cf. LÖWY, Michael. El pensamiento del Che Guevara. México. Siglo XXI Editores, 1971. p. 2.

33 Oitava reunião de consulta de ministros de relações exteriores, Punta del Este, janeiro de 1962. Resolução VI “Exclusão do atual governo de Cuba de sua participação ao Sistema Interamericano”. Nona reunião de consulta de ministros de relações exteriores, Washington D.C., julho de 1964. Aplicação de medidas al atual governo de Cuba, “Convocada pela Venezuela para considerar as medidas que deviam ser adotadas frente aos atos de intervenção e agressão do Governo de Cuba, que afetavam a integridade territorial e a soberania da Venezuela, bem como a vigência de suas instituições democráticas”. Décima segunda reunião de consulta de relações exteriores, Washington D.C., setembro 1967. Resolução III “prevenção de propaganda e do financiamento de armas para Cuba e outras fontes ilegais para outros países da América, fortalecimento do controle sobre viagens de Cuba e para Cuba, para impedir o movimento de elementos subversivos, e que coordenam de maneira eficaz seus esforços destinados a impedir tais movimentos e transportes”.

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estudos publicados no entorno das celebrações do assassinato na Bolívia, o que permite discutir o papel das efemérides na construção de um ideal de Guevara; c) obras que foram publicadas no Brasil ou em outros países latino-americanos, mas que circularam de forma comercial no país. Essa divisão representa um recorte contextual e temático das condições de produção das obras e o desenvolvimento no campo acadêmico inseridas no contexto político de cada período que marca as três fases de produção.

A discussão sobre as estratégias e escolhas realizadas pela produção acadêmica para narrar a trajetória de “Che” Guevara como o papel de sua ação-pensamento na história do século XX, revelou aspectos datados dessas narrativas ao devir do contexto político e das disputas sobre a “verdade” a respeito de tal personagem. A partir da análise dessa extensa bibliografia foi possível identificar que a produção, circulação e recepção dos debates públicos que envolveram a trajetória de Guevara emergiram e foram marcadas por interesses políticos e ideológicas do contexto brasileiro. Tal interesse correspondeu, sobretudo, ao impacto que a ação e o pensamento de Ernesto “Che” Guevara provocaram nos diferentes setores da sociedade a partir do anúncio da sua morte em 1967. A extensão e a diversidade temática da obra de Ernesto “Che” Guevara permitiram que a classificação e ordenamento de seus textos transpusessem aquela ordem cronológica. Os recortes mais comumente utilizados priorizaram grandes blocos de debates sobre a questão da libertação nacional, do debate econômico em Cuba, do terceiro mundismo e, por fim, o internacionalismo proletário34. Contudo, as primeiras compilações de seus textos, que em grande medida, foram organizados pelo governo cubano de maneira cronológica após a sua morte35 foram reunidas em: textos políticos, textos econômicos e textos revolucionários.

A difusão paulatina dos textos inéditos de Guevara, colocou em pauta diferentes “ondas” de análise de sua obra, o que torna o critério cronológico um marco necessário. As publicações que circularam no Brasil são relevantes para esta tese, pois contribui para discutir como Guevara foi interpretado no país a partir do material que esteve disponível para a compreensão de sua experiência no tempo, mas, sobretudo, de sua permanência histórica. Embora tenha sido um marco, as publicações

34 María del Carmen García tem estudado a produção intelectual de Ernesto “Che” Guevara a partir de três fases temáticas: a) Fase latino-americana de libertação nacional; b) Fase terceiro mundista de cambio; c) Fase de cambio em escala global: a luta revolucionária. Sua análise tem concentrado ênfase na atualidade do pensamento de Guevara mediante a luta anticapitalista nos países explorados da América. Para ela, o legado de “Che” se mantém vivo neste tempo presente por concentrar um forte caráter político de integração dos povos para uma transformação social. Cf. GARCÍA, María del Carmen. Che Guevara: fases integradoras de su proyecto de cambio social. México: Ocean Sur, 2008.

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tardias não produziram um impacto revisionista sobre a obra de Guevara, elas demonstraram um aprofundamento e amadurecimento de sua interpretação de “cambio” social e de afirmação revolucionária em nome de um programa socialista latino-americano. Apesar de demarcar a historicidade do debate no tempo, seu programa internacionalista caracterizou a presença de sua obra para uma agenda de libertação da América Latina. Desse modo, essas produções intelectuais foram icônicas na experiência da luta armada na América Latina nas décadas de 1960 e 1970.

Em síntese, a obra de Ernesto “Che” Guevara, ainda pouco explorada pela historiografia brasileira, é uma importante contribuição para o debate sobre as questões que tangenciam a história de luta dos povos e dos países da América Latina. Analisá-las sob a perspectiva da temporalidade da produção e circulação dos seus escritos revela a preocupação de “Che” com o desenvolvimento de uma teoria revolucionária capaz de enfrentar as contradições entre as “nações exploradoras e os povos explorados”36.

A emergência de dois segmentos de análises das obras de Guevara, o acadêmico e os meios de comunicação, em especial aquelas elaboradas no Brasil, foram marcadas pelas delimitações temáticas e pelo encaminhamento político do período de cada escrita. Dessa maneira, verificou-se que a construção de uma narrativa “mitológica” como esforço realizado pelos meios de comunicação e editorial afastou um conjunto complexo de significados da envergadura política do pensamento de Guevara.

Durante décadas, a temática foi explorada à luz de cada nova descoberta sobre a vida e a morte “Che” Guevara. Sob o contexto da Guerra Fria, o debate sobre o imperialismo e as lutas dos países latino-americanos evidenciavam a permanência da sombra de “Che” sobre o continente, desde a organização da luta armada até o desenvolvimento de um programa político socialista. Entre os anos de 1997 e 2007, a emergência de novos dados, fontes e debates foram utilizadas nas biografias e produziram consensos sobre a “não ortodoxia” do marxismo de Ernesto “Che” Guevara37. Em 1997, ao completar trinta anos da sua morte em Vallegrande, Bolívia, os restos mortais de Guevara foram entregues à Cuba, onde foi sepultado. Esse episódio, ainda em aberto, é

36 Cf. GUEVARA, Ernesto. Pasajes de la guerra revolucionária: Congo. México: Ocean Sur, 2009. p. 249. 37 Para Ignacio Taibo, Ernesto “Che” Guevara foi o “mais herege dos marxistas latino-americano do século XX”. Cf. MAHAJO, Francisco Ignacio Taibo. Che Guevara, também conhecido como Che. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.15.

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bastante debatido no extenso capítulo sobre sua morte38. Com o amadurecimento das produções sobre a obra Ernesto “Che” Guevara, e a publicação de textos inéditos do autor39, renovou a análise sobre o seu pensamento revolucionário e sua dedicada leitura de teóricos marxistas.

O contexto no qual se desenvolveu o pensamento de Ernesto “Che” Guevara foi profundamente marcado pela perspectiva de que “A história da América Latina é a história dos marginalizados e dos excluídos do capital”, é a história da “exploração e do colonialismo”. Essas afirmações não são inéditas para o seu tempo, e mantém sua atualidade em nosso tempo presente40. A história da América Latina é uma história de lutas e um importante campo de debate em disputa. É a região do etnocídio das populações originárias, na qual uma minoria branca é entendida como maioria. É o lugar das desigualdades de classe. Destacar desse processo histórico uma mostra para análise não é uma tarefa simples, conectar as trajetórias desses países é um exercício historiográfico e acadêmico bastante extenso para uma tese. Por isso, é necessário estabelecer escolhas sem perder no horizonte o lugar da resistência dessa América destituída de nome41.

O desenvolvimento do continente produziu de maneira paralela violência e política como antigas parceiras na História42. Ao tomar como ponto de partida o século XX, as divergências políticas foram marcadas pela hostilidade do Estado sobre os grupos insurgentes. Durante a década de 1960, os movimentos de luta armada contra as ditaduras impostas ao continente, estabeleceram um ponto de confluência na realidade política

38 Em 1997, Cuba enfrentava momentos difíceis, sobretudo em relação ao abastecimento e a economia, havia fome e escassez de produtos de primeira necessidade. Sinais de insatisfação popular foram representadas por manifestações públicas e “Abajo Fidel” emergiram nos muros e paredes de Havana. Para recuperar a “mística revolucionária”, aquele ano foi proclamado como “Año del Che”, no qual o personagem principal deveria voltar para casa. Segundo Rico e Grange, o Estado procurou a todo custo devolver o “Comandante de América” para Cuba antes de outubro, antes do trigésimo aniversário da morte de “Che”. Cf. RICO, Maite, & GRANGE, Bertrand de la. “Operación Che”. Historia de una mentira de Estado, Letras Libres, February 2007. 39 Cuadernos de lectura de Bolivia e Apuntes filosóficoscompilados e publicados entre 2003 e 2014. 40 As afirmações utilizadas são citações não literais da “Segunda Declaracíon de la Habana: del pueblo de cuba a los pueblos de America y del mundo”, de 04 de fevereiro de 1962 no seguinte excerto: “Os povos da América libertaram-se do colonialismo espanhol a princípios do século passado, mas não se libertaram da exploração. Os latifundiários feudais assumiram a autoridade dos governantes espanhóis, os índios continuaram em penosa servidão, o homem latino-americano de uma ou outra forma continuou escravo e as mínimas esperanças dos povos sucumbiram sob o poder das oligarquias e da canga do capital estrangeiro. Hoje a América Latina jaz sob um imperialismo muito mais feroz, muito mais poderoso e desapiedado que o império colonial espanhol”. Cf. CASTRO, Fidel. As declarações de Havana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 109.

41 Utilizamos o recurso literário de Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina, no qual o autor afirma que pela trajetória de exploração, a América explorada perdeu o direito de assim se denominar para o mundo. América é tão só os Estados Unidos, o que resta do continente é uma sub-América, uma América de segunda classe. Cf. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016.

42 Paulo Sérgio Pinheiro elaborou uma síntese da luta armada na história contemporânea da América Latina, em seu rápido artigo, declarou que violência na política é tão antiga quanto a própria política. Cf. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Um continente sob o signo da Guerrilha. História Viva, São Paulo, 2007. p. 58-61.

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da região como ações conjuntas dos países do Cone Sul que atuaram para coibir e reprimir os movimentos de resistência. Capítulos da história que integram realidades regionais, que apesar das especificidades de cada país, e de cada movimento social, devem ser compreendidas em uma perspectiva conectada.

Desse modo, a ação armada na América Latina da década de 1960, foi explorada como projeto revolucionário de inspiração internacionalista, que não se restringiu a um movimento de resistência aos governos ditatoriais, pois buscavam construir um novo tipo de sociedade. No Brasil, as lutas das esquerdas revolucionárias não tinham como propósito reconstruir um país pré-1964, defendiam a formação de um país radicalmente novo, no qual as reformas de base anunciadas por João Goulart não se faziam suficientes43.

A possibilidade de uma transformação revolucionária na América Latina ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana de 1959, destacando-se desse processo as práticas e teorias de Ernesto “Che” Guevara44. Guevara foi umareferência que conectou a América Latina na luta contra o imperialismo estadunidense. Embora não tenha sido unanimidade entre as frentes de luta armada na região, sua ação-pensamento se fez presente nos textos-manifestos, na imprensa clandestina45 e nos debates dos partidos comunistas. O impacto da experiência de Guevara nas organizações de esquerda produziu representações em diferentes setores, produções e suportes materiais. Para os setores conservadores da sociedade, Guevara e as guerrilhas somaram-se ao repertório das represomaram-sentações comunistas que deveriam somaram-ser combatidas.

O repertório anticomunista brasileiro é amplo e circula em diferentes instituições, o Estado e a Igreja são relevantes irradiadores dessa política que foram mediadas pelo uso que essas instituições fizeram dos organismos da imprensa. Portanto, como um prolongamento dessas

43 Cf. SALES, Jean. O impacto da revolução cubana sobre as organizações comunistas brasileiras (1959-1974). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, SP, 2005. p.85.

44As publicações sobre a trajetória de Guevara são renovadas a cada década que se afasta da sua morte em 1967. Ao completar 20 anos daquele episódio multiplicaram-se e diversificaram-se publicações sobre o guerrilheiro, em coleção intitulada “Os grandes líderes do século XX” de 1987, o filósofo da cultura das mídias Douglas Kellner, responsável pelo texto sobre Che Guevara, enquadrou o comandante da Revolução Cubana como símbolo do compromisso e do heroísmo revolucionário. Cf. KELLNER, Douglas. Os grandes líderes do século XX. Che Guevara. São Paulo. Nova Cultural, 1990.

45 Para citar alguns exemplos destacamos, no Brasil os jornais: Voz Operária; O guerrilheiro; Palmares e Resistência; Bandeira Vermelha. Jornais disponíveis para consulta no Instituto Vladimir Herzog e no Centro de documentação e memória da UNESP em São Paulo.

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instituições e de seu objetivo de elaborar consensos46 a partir de suportes nos quais o anticomunismo circulou, foi elaborado e difundido. Muitas das imagens produzidas pela imprensa no combate ao comunismo incluíram elementos de fundo religioso e progressista, entre eles, a inclusão de Guevara no repertório anticomunista brasileiro. O recurso de imagem aqui adotado reforçou uma das múltiplas memórias que se construiu de Guevara, e que se prolongam até o nosso tempo presente.

A presença de Guevara na História da América Latina não foi apenas um capítulo de conexão entre lutas e resistência a exploração capitalista. Seu pensamento foi uma constante desde a década de 1960, incorporou um legado de ações diretas e de pensamento político que retorna na trajetória da sociedade latino-americana a cada projeto de governo de características liberais47. A cada ação contra os direitos sociais, a representação de Guevara emerge como elemento simbólico, excertos limitados de sua obra aparecem como mote na agenda dos movimentos sociais, muitas são as unidades de luta social que carregam seu nome na carteira de identidade48. Ernesto “Che” Guevara é, portanto, um ponto de confluência na diversa história dos países latino-americanos.

2.1 A LUTA REVOLUCIONÁRIA DE GUEVARA, TEXTOS

E INTERPRETAÇÕES

Durante a década de 1960, os textos escritos por Ernesto “Che” Guevara, tiveram como principal centro editorial as capitais Havana e Paris. A editora François Maspero/França, foi um sistema de circulação do pensamento de Guevara no ocidente. No Brasil, os livros da editora responsável pela publicação dos ‘clássicos vermelhos’49 foram proibidos,

46 A fabricação de consensos é entendida em consonância com a perspectiva de Noam Chomsky, como um recurso de controle de massa, no qual a classe política, a comunidade financeira e empresarial, são responsáveis por orientar opiniões. Essa orientação é mediada pela propaganda e pelos suportes das mídias. Cf. CHOMSKY, Noam. Fabricando consenso: el control de los médios de comunicacion. [online] 1993. p.20. 47 Para Oliver Besancenot e Michael Löwy, a força da permanência de Guevara na história do tempo presente, sobretudo, no continente Americano esteve relacionada aos pressupostos de justiça social defendidas pelo autor e da constante luta contra o capitalismo Cf. BESANCENOT, Olivier & LÖWY, Michael. Che Guevara: Uma chama que continua ardendo. Editora UNESP, 2009. p.100.

48 Destacamos os assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que receberam o nome de Assentamento Che Guevara em Santa Catarina, São Paulo e Ceará, todos com mais de duas décadas. Ocupações urbanas organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) carregam Guevara na identidade.

49 Considerados como livros centrais do pensamento socialista e da ação política na primeira metade do século XX. Ver: PEREIRA, Luciana. A lista negra dos livros vermelhos: uma análise etnográfica dos livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.

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