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Casas como museus : narrativas afetivas de professores de artes visuais

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

HENRIQUE LIMA ASSIS

CASAS COMO MUSEUS:

NARRATIVAS AFETIVAS DE PROFESSORES DE ARTES VISUAIS

Campinas 2016

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CASAS COMO MUSEUS:

NARRATIVAS AFETIVAS DE PROFESSORES DE ARTES

VISUAIS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.

Supervisora/Orientadora: Prof. Dr. Ana Angélica Medeiros Albano

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO

ALUNO HENRIQUE LIMA ASSIS, E

ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ANA ANGÉLICA MEDEIROS ALBANO.

Campinas 2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica. Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Assis, Henrique Lima, 1977- As76c A

Casas como museus: narrativas afetivas de professores de artes visuais / Henrique Lima Assis. – Campinas, SP: [s.n.], 2016.

Orientador: Ana Angélica Medeiros Albano.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Artes Visuais. 2. Formação de professores. 3. Narrativas. 4. Afetividade. I. Albano, Ana Angélica Medeiros,1951-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Houses as museums : affective narratives visual arts teachers Palavras-chave em inglês: Visual arts; Teacher training; Narratives; Affection

Área de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação: Doutor em Educação

Banca examinadora:

Ana Angélica Medeiros Albano [Orientador] Rosvita Kolb Bernardes

Sumaya Mattar

Guilherme do Val Toledo Prado Lucia Helena Heily

Data de defesa: 29-02-2016

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

CASAS COMO MUSEUS:

NARRATIVAS AFETIVAS DE PROFESSORES DE ARTES

VISUAIS

Autor: Henrique Lima Assis

COMISSÃO JULGADORA:

Orientadora: Profa. Dra. Ana Angélica Medeiros Albano

Profa. Dra. Rosvita Kolb Bernardes Profa. Dra. Sumaya Mattar

Prof. Dr. Guilherme, do Val Toledo Prado Profa. Dra. Lucia Helena Reily

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Para início de conversa:

O que torna uma pessoa um professor de Artes Visuais?

12

PARTE I Como me tornei o professor de Artes Visuais que sou?

19

Meus exercícios de pintor de panos de prato 24 Diametralmente distante dos desenhos reproduzidos 26 Aprendi a cultivar uma casa singela, bonita, bem decorada 29 Saía muito, principalmente para ver como e com o que as pessoas

adornavam suas casas 31 Tenho, em casa, o caderno de desenho que usei na primeira série do

1º grau, em 1984 37 Iniciei, ou melhor, continuei minha preparação para o exercício

docente cursando a Licenciatura em Educação Artística 46 “Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática [...] envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer”

56 Meus encontros com a educação continuada de professores 65

PARTE II As narrativas como caminho desta pesquisa

77

As narrativas como elaboração e partilha das experiências 92 As pesquisas com narrativas e suas implicações na formação de

professores de Artes Visuais 97 As entrevistas narrativas e as entrevistas não diretivas: em cena, a entrevista piloto e os deslocamentos que ela provocou na investigação

105 Os professores de Artes Visuais entrevistados, quatro em Campinas e

três em Jataí: encontros e desencontros na produção de narrativas 117

Parte III Miniaturas de sentido: o que dizem os objetos que habitam as casas de professores de Artes Visuais?

129

A professora Acordeom 136 A professora Papel 157 A professora Maria Caixeta 172

Considerações finais:

Uma casa para habitar e uma tese para escrever: dois sonhos realizados

194

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Perdi as contas de tantas pessoas e objetos especiais, transbordados de afetos, de memórias e de histórias para contar a quem eu preciso agradecer. Sem eles, não teria caminhado até aqui e não teria sentido e nem conhecido o que conheci e, por consequência, não teria encontrado um lugar seguro para sonhar. E agora? O que fazer para agradecer-lhes? Como homenageá-los sem incorrer o risco de esquecer alguém ou de algum objeto?

Como não agradecer a meus familiares amados, aos amigos queridos, aos colegas de trabalho, de curso, de LABORARTE, que são tantos, e mais: aos funcionários atenciosos e prestativos da secretaria da pós, das bibliotecas e os da limpeza e das portarias, pelas inúmeras e importantes interlocuções que estabeleci com todos? Também, como não o fazer à orientadora desta tese, uma pessoa incrível, uma querida, que me estimulou a olhar os horizontes nos céus e para o ínfimo, o simples, o elegante? E à revisora do texto, atenciosa e delicada, ao podar os excessos, as redundâncias, as incoerências gramaticais?

E como não render graças à generosidade extremada dos professores narradores de Campinas e de Jataí? Colegas de profissão a quem agradeço alegremente, por terem aberto as portas de suas casas e partilhado algumas de suas experiências afetivas comigo, com a tese, colaborando profunda e existencialmente para que este trabalho se materializasse, fazendo-me um professor de Artes Visuais, doutor em Educação, com ênfase em formação de professores de Artes Visuais.

Ouvi atentamente suas narrativas como potentes experiências humanizadoras. E elas me humanizaram porque tocaram em questões caras para mim, igualmente, pela emoção que me causaram e pelas relações que me permitiram estabelecer. Suas miniaturas de sentido me induziram à intimidade, à alma dos objetos que habitam suas casas e, por consequência, à minha intimidade, aos objetos que habitam minha casa. Se fizeram espelho e eu me reconheci nelas.

E, em nome do Parque Municipal Botafogo, agradeço a todos os parceiros deste trançado, desta narrativa. Sem vocês, não teria chegado até aqui.

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criado no plano original de Goiânia, em 1938, e desenhado pelo arquiteto urbanista Atílio Corrêa Lima. Situado em Vila Nova, um dos bairros da capital mais generosos e hospitaleiros, que me acolheu com afeto e segurança desde que me mudei para cá, em 1999.

A poucas quadras de minha casa, as muitas horas que passei nele, especialmente caminhando, em diferentes horários do dia e das estações do ano, eram igualmente dedicadas à gestação da tese, às reflexões e às relações plurais que ia estabelecendo com os achados da pesquisa. Caminhava, então, para devanear, para fazer escolhas, para produzir sentidos e significados sobre o tornar-se professor de Artes Visuais.

Nessas caminhadas eu aprendi, principalmente, que os encontros podem e devem produzir poesia, que verdades não são absolutas nem únicas; que a beleza é maior do que meus os olhos e do que a tese que produzi; que as turbulências e incertezas são parceiras produtivas; que se aventurar por outros caminhos pode ser surpreendente e estimulador; que uma educação só é inteligente quando convoca os sentidos; que devanear é uma necessidade humana, um alimentar a vida.

Nele, fotografei inúmeros encontros, encantamentos e surpresas. Ouvi pássaros e cigarras; estas cantavam alegremente anunciando chuvas. Outros, eu não fotografei, porque nossos tempos ainda não nos permitiram os olhares, a intimidade e o desenho da pose.

Outros tempos, outras caminhadas virão. Há muito o que caminhar, olhar, ouvir e fotografar também; assim como investigar e aprender com as histórias contadas a partir dos objetos que habitam as casas, os museus dos professores de Artes Visuais.

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Esta investigação se constituiu em escutar e narrar experiências singulares que compõem os processos formativos de professores de Artes Visuais, vividas na relação com os objetos que habitam suas casas. Suscitado pela pesquisa, foram cartografados caminhos entre Goiás e São Paulo e Goiás para a produção das entrevistas narrativas da tese. E, como todo conhecer é autoconhecer, ao escutar as narrativas das memórias dos professores, o investigador também relembrou algumas experiências que o formou o professor de Artes Visuais que é e se tramou, também, ao investigado. O texto foi organizado em três partes: na primeira, desenhou os encontros, as experiências que o conduziram ao tema da formação de professores e suas relações com os objetos que habitam suas casas; na segunda, revelou os caminhos da pesquisa, sinuosos, às vezes limitados, mas rico em deslocamentos conceituais e procedimentais; e, por fim, apresentou as miniaturas de sentidos ouvidas, partilhadas nas casas dos professores visitados. Casas como museus foi o horizonte descortinado.

Palavras-chave

Formação de professores de Artes Visuais. Objetos que habitam nossas casas. Narrativas de afeto.

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This investigation has been constituted of listening to and narrating the singular experiences that are part of the processes by which Arts teachers are educated. Such experiences have been lived in close relationship with the objects that reside in those teachers’ houses. To meet the needs of the research, the production of the narrative interviews for the thesis followed a route mapped between Goiás and São Paulo and Goiás again. And since getting to know something is always getting to know yourself better, by listening to the teachers’ memory accounts the investigator was able to remember some experiences that have shaped the Arts teacher he has become and also the teacher being investigated. The text has been organized in three parts: the first one was dedicated to outlining the meetings and experiences that led to the theme of teacher education and how it relates to the objects that reside in the teachers’ houses; the second part revealed a route for the investigation: quite a winding one, rather limited at times, but plenty of rich procedural and conceptual displacements. The work is wrapped up by the presentation of the miniatures of meaning that were listened to and shared in the houses of the participant teachers. Houses as museums: that was the horizon uncovered.

Keywords

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Poema

2

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo Eu acordei com medo e procurei no escuro Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo Porque o passado me traz uma lembrança Do tempo que eu era criança E o medo era motivo de choro Desculpa pra um abraço ou um consolo Hoje eu acordei com medo mas não chorei Nem reclamei abrigo Do escuro eu via um infinito sem presente Passado ou futuro Senti um abraço forte, já não era medo Era uma coisa sua que ficou em mim, e não tem fim De repente a gente vê que perdeu Ou está perdendo alguma coisa Morna e ingênua Que vai ficando no caminho Que é escuro e frio mas também bonito Porque é iluminado Pela beleza do que aconteceu Há minutos atrás

2 Composição: Cazuza e Roberto Frejat. Interpretação: Ney Matogrosso. Disponível em:

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Para início de conversa:

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E o poeta bem sabe que a casa mantém a infância imóvel “em seus braços”. (Gaston Bachelard, 2000, p. 27)

Esta narrativa é um tecido sobre a formação de professores de Artes Visuais. Mais especificamente, uma toalha de mesa, tramada para adornar e aconchegar minhas relações, ajudando a nutrir o corpo e a alma, e seu bordado é resultado de tingimentos, urdiduras e cruzamentos dos fios que compõem minha singularidade a partir de experiências partilhadas por professores de Artes Visuais na relação com seus objetos biográficos, transbordados de afetos e guardadores de memórias e histórias.

Curiosidades em torno das histórias que os objetos que habitam as casas de professores de Artes Visuais contam alimentaram as buscas, a investigação, as caminhadas.

Os caminhos desta investigação foram formados, ou melhor, acompanharam e se fizeram “ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 2014, p. 23) desenhada e contemplada durante seu desenvolvimento. Os encontros e desencontros, as confissões e os silêncios – suspirados entre o desafio de lembrar e ressignificar para depois narrar – fizeram esta narrativa.

Um tanto orgânica e intuitiva, ela se diferenciou do sentido de mapa porque não seguiu rotas preestabelecidas pelos consagrados manuais de investigação. Mas, como um rio caudaloso, corrente e vivo, se desenhou ao som da escuta do outro e do silêncio reflexivo, atento e devaneador. Sendo assim, a toalha de mesa que lhes apresento acompanhou e se fez simultaneamente ao “desmanchamento de certos mundos [...] e a formação de outros” (ROLNIK, 2014, p. 23).

Decidi narrar o experimentado, o investigado e o encontrado em três partes. Escrevê-las foi uma aventura, uma experiência transformadora, exigiu esforço, dedicação e coragem para vencer medos, inseguranças, preconceitos. O que exigiu de mim, como bem pontua Freire (1996, p. 41, grifos meus), reconhecimento e assunção.

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Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos [esta tese é para mim a realização de um], capaz de ter raiva porque é capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.

Assumir-me professor de Artes Visuais apaixonado pelas árvores assim como pelas pinturas, sensível, pensador e realizador de sonhos é uma tarefa contínua e continuada, é a vida, a minha vida.

No entanto, produzir um texto autêntico, quiçá imaginativo e feliz, capaz de apresentar o experimentado, foi o desafio maior desta etapa formativa. Insegurança, medo e preconceitos plurais, além de uma completa ignorância de como narrar, um sem saber como fazer, perturbaram-me nestes cinco anos de doutorado.

Como suportei em meu corpo e em minha alma as dores e os amores, as certezas e as incertezas de produzir uma tese. Ainda mais porque me alimentei de imagens que diziam que escrever é sair de si, e “sair de si é perigoso: / pode-se não voltar, / voltar outra pessoa, / não se reconhecer” (FREITAS, 2005, p. 132). Como um capricorniano centrado, planejado, obediente, apaixonado por enraizamentos poderia lançar-se, sem sofrimentos profundos, ao desconhecido de escrever uma narrativa doutoral?

Padecendo, indagava: que escrita praticar? Que escrita conformaria os caminhos inventados e percorridos? Inúmeras foram as tentativas, até encontrar meu tom singular, minha voz, e reconhecer na narrativa o gênero textual mais afinado comigo e com as experiências vividas – agora partilhadas.

Em meus ensaios, experimentei alguns dos preceitos da escrita acadêmica, mais quantitativa e dedutiva, da teoria para os dados e, preferencialmente, em terceira pessoa, imparcial para melhor analisar, classificar, comparar, excluir, gerar categorias que, via de regra e historicamente falando, apresentam verdades já ditas e tidas como únicas e absolutas. Todavia, me deixei guiar pela escrita qualitativa, poética, indutiva, que primeiro acolhe os dados produzidos, para depois estabelecer

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relações com a teoria, a literatura, o cinema e outras tantas possibilidades expressivas.

Mais do que compor com tabelas ou comparar com um modelo bem-sucedido, dizendo o que está certo ou errado na experiência observada, compus minha experiência de me tornar professor de Artes Visuais, investigador, assumindo o vivido. Por essa razão, escrevi em primeira pessoa e acrescentei imagens, do passado e do presente, letras de música, poemas e trechos de escritos admiráveis para ajudar a narrar.

Encorajei e busquei uma experiência. Ao mesmo tempo, uma aprendizagem, uma transformadora, uma ritual. Uma escrita-polifônica, tramada a partir de várias vozes. Entre elas, as dos objetos vistos, dos professores visitados, dos autores lidos, dos professores e colegas dos cursos frequentados no programa de pós-graduação em Educação e do Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação/LABORARTE, da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP. A todos vocês, minha gratidão!

As três partes desta narrativa foram sustentadas na compreensão de que o ato de lembrar para narrar não é somente “reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado” (BOSI, 1994, p. 55). Dessa maneira, a Parte I está composta pela reconstrução de meus percursos pessoais até a proposição desta investigação, oficialmente, em 2011. Evidencia as maneiras pelas quais fui me transformando no professor de Artes Visuais que sou hoje, apresentando minhas raízes, minhas referências culturais e os modos como fui, ao longo de uma vida, me aproximando dos objetos que habitam nossas casas, para, com eles e a partir deles, propor esta investigação.

Por serem afetivas, seletivas, inventivas, as memórias não respeitam nenhuma cronologia, estão isentas da ditadura linear do tempo. Assim, algumas experiências vividas na infância foram relembradas na sequência de outras vividas na Licenciatura em Artes Visuais, no Mestrado em Cultura Visual e nas atividades docentes experimentadas nas escolas em que ensinei e no Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte. Sua maioria, foram rememoradas durante o período em que realizei as entrevistas narrativas e não diretivas com os professores colaboradores desta pesquisa, em especial as três de Jataí, Goiás.

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A coragem pelas narrativas como estratégia de fabricação e coleta de dados e como gênero textual foi alimentada pela riqueza de possibilidades para a formação e investigação que elas oferecem. Portanto, a Parte II versa sobre as narrativas de vida como estratégia metodológica, extremamente rica e adequada ao ambiente da formação de professores. No estudo que realizei, as compreendi como processos, experiências de reelaboração e difusão do vivido. E mais, constatei que não era uma novidade, como eu pensava. Pelo contrário, sua utilização, mais ou menos nos moldes como conhecemos hoje, é tradição remontada ao início da humanidade.

Essa Parte está desenhada a partir de inúmeras reflexões e descrições sobre os percursos de produção dos dados. Dentre elas, as entrevistas narrativas e as entrevistas não diretivas, vistas como os procedimentos mais adequados à produção de dados para uma investigação científica que busca compreender os processos de se tornar professor de Artes Visuais, especialmente. E finalizo, expondo os modos pelos quais encontrei os professores narradores – em Campinas, São Paulo, e em Jataí, Goiás –, que, generosamente, abriram as portas de suas casas e mostraram seus objetos repletos de histórias para contar.

Todas as vidas são importantes e merecem atenção, cuidado, carinho, e uma história narrada enseja outra, que desencadeia mais duas, três e assim continuamente; os narradores só aconselham porque estão, ao mesmo tempo e espaço, integrados aos seus ouvintes e aos ritmos de seus ofícios cotidianos – essas são algumas das principais afirmações dessa Parte.

Narrar, ou aconselhar, para Benjamin (2012, p. 216), é “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está se desenrolando” e, por ser relevante, necessita desenrolar, ser contada e recontada infinitas vezes, para que não se perca no tempo, no espaço e nas relações pessoais e interpessoais.

A Parte III é um empenho, um desejo em desvelar experiências educativas vividas na relação com os objetos que as professoras de Jataí decidiram abrigar em suas casas. As narrativas que descrevem essas relações foram transformadas em miniaturas de sentido; elas evocam valores de intimidades e versam, problematizam questões relevantes ao universo da educação de professores de Artes Visuais.

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Assim, o sonho de construir um museu pessoal com os objetos herdados, ganhados, comprados; a prática docente em Arte, sem intimidade com o fazer artístico; o perfil profissional polivalência e especialista; a busca da imaginação criadora, geralmente, assassinada na generalidade dos currículos; a morte como pulsão de vida, como impulso à cultura, como consciência, autoconsciência, são algumas das histórias partilhadas pelos objetos que habitam as casas de professores de Artes Visuais.

Casas como museus: narrativas afetivas de professores de Artes Visuais foi

o horizonte descortinado; um universo intenso e extenso de saberes e fazeres se abriu para mim e para minhas investigações sobre o tornar-se um professor. Essa imagem foi percebida, desenhada já nos últimos dias de escrita da tese. Voltava de Jataí, do último encontro que tive com as professoras narradoras, em suas casas, para lermos o que havia escrito a partir das miniaturas de sentido3 que produzimos

nas entrevistas.

Esses encontros foram esclarecedores, amorosos e marcados pelo desejo de partilhar o vivido, para que ele não se perca no tempo, no espaço e nas relações sociais. Narrar é, então, uma possibilidade de vencer a morte, a finitude. O tempo havia passado desde que as entrevistei, e todas desejam seguir narrando, me atualizar, partilhar suas experiências conformadoras singulares.

Fui surpreendido nessa terceira vez que me reencontrei com as professoras narradoras para apontamentos éticos e técnicos relacionados à tese. Neles, experimentei a potência e a riqueza das investigações centradas nas narrativas orais e nos saberes e fazeres dos mais experientes que eu.

As paisagens que agora enxergo acenam possibilidades plurais para outras aproximações com os professores. Inclusive, outras investigações e incursões pelo universo poético e visual que habitam as casas, as escolas, os ateliês, os museus. Assim como outras escritas, outros devaneios, especialmente os poéticos, porque esses são devaneios que se escrevem, ou pelo menos, se prometem escrever, narrar, partilhar.

3 Miniaturas de sentido foi um conceito produzido a partir Leibniz (1974), Benjamin (2011) e Bachelard

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Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREITAS, Laura Villares de. O calor e a luz de Héstia: sua presença nos grupos vivenciais. Cadernos de Educação – UNIC – GPG, Edição Especial. EdUNIC, Cuiabá, p. 131-145, 2005.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformação contemporânea do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2014.

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PARTE I - Como me tornei o professor de Artes Visuais que sou?

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Escolhi esta pintura da tia Neusa da Silva para iniciar a tessitura de minha narrativa doutoral por muitas razões: a primeira, por me acordar a imagem primitiva do tecelão, rara nos dias de hoje, aquele ou aquela que, enquanto fia, tinge e urde, cruzando fios em infinitas tramas e combinações, narra suas experiências, suas sabedorias, seus conselhos. Experiente, portador de uma destreza sem fim, faz interagir alma, olhos e mãos, transformando e sendo transformado por aquilo que narra e por respeitar, profundamente, os tempos e os ritmos de sua matéria-prima.

Ou seja, um professor que ensina a desenhar o mundo enquanto pinta suas aquarelas e/ou modela seus potes e/ou fotografa seus encontros.

Outra razão para iniciar com a pintura se refere ao afeto. Era criança quando a vi pela primeira vez, e sua presença em meu corpo e em minha alma foi tão marcante e inspiradora que hoje a reconheço como uma das minhas principais experiências educativas em artes visuais. Depois delas, sonhei ser pintor, também!

A tia Neusa é graduada em Educação Artística - habilitação Artes Plásticas, em 1997, pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília/IA-UnB. Participou de exposições individuais e coletivas. Das tantas exposições individuais, cito as realizadas na Galeria de Arte Casa Thomas Jefferson, Brasília, em 1997 e em 2005; na Galeria Xico Stockinger – Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, em 2001; e na Casa de Cultura Laura Alvin FUNARJ, Rio de Janeiro, em 2003. Das coletivas, evidencio a participação no 3º Salão de Arte Contemporânea Brasileira – Conjunto Cultural da Caixa Econômica Federal, em São Paulo, em 2002; na Exposição de inauguração do Museu de Arte de Brasília – MAB, em Brasília, em 1985; e na Galeria de Arte Sette & Zucheratto, em Belo Horizonte, em 2002.

No catálogo da exposição Pinturas, de 2005, na Galeria de Arte Casa Thomas Jefferson, Lais Aderne (2005, p. 02) afirma que

Neusa Silva vem encontrando seu caminho em nosso cenário multicultural como Antônio Dias em sua forma construtivista, integrando a consciência brasileira nos grandes problemas do mundo; como Iberê Camargo, com seu informalismo agreste, carregando em sua ordem expressiva a riqueza de sua memória provinciana; como Rubem Valentim com seus símbolos religiosos afro-brasileiros; como Lygia Clark com sua reinvenção orgânica, ou

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ainda como Volpi que afirma que o concretismo em sua obra foi por acaso e que é considerado por Ayala como autor da síntese formal da decoração festiva das nossas festas caipiras. Neusa também encontrou, como tantos artistas nossos, seu próprio caminho.

Wagner Barja (2002, p. 02) escreve no catálogo da exposição, igualmente intitulada Pinturas, realizada no Espaço Cultural da 508 Sul, mezanino da Biblioteca de Arte de Brasília, que Neusa Silva

pinta como quem escreve um texto complexo, ou como quem concebe e rege uma sinfonia afinada, ampliada pelos sentidos. A lição de Cézanne foi dada e aprendida em alguns trechos dessa pintura que parece ter sido escavada com as unhas no interior da terra, mostrando em cortes os rastros gráficos que registram o esforço da pintora para construir uma paleta de tons fantasmáticos e temperatura quente, úmida interiorizada e enigmática. A busca das estruturas volumétricas na bidimensionalidade do suporte é visível, mesmo na penumbra dos negros e dos ocres, trazendo as telas [...] uma profundidade de campo consistente e bela. A artista produz uma obra sem nada querer significar, apenas ser pintura.

Em sua trajetória, recebeu prêmios como o Aquisição, no III Salão Universitário da UnB, em 1981. E está citada no Anuário Brasileiro de Artes Plásticas, São Paulo/2004, no Catálogo Arte & Artistas da Casa do Restaurador, São Paulo/2000 e no Catálogo do Panorama das Artes Visuais do Distrito Federal, Brasília/1998.

Além da imagem do artesão atento e respeitoso ao que produz, ao que narra, minha decisão por iniciar minha narrativa com esta pintura se deu porque ela me faz sentir e pensar a incompletude humana e as renovações pelas quais somos acometidos constantemente. Para mim, sua composição versa sobre o tornar-se humano como um processo inacabável – jamais estaremos prontos. Estamos em processo. Somos o processo. Nesta condição, Nietzsche (1987, p. 183) me ajuda pensar que somos uma

corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar. O que é grande no homem é

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que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam.

Alimentado por esses pensamentos e sentimentos, tenho considerado a educação de um professor de Artes Visuais como sendo uma travessia, um caminhar, um processo interminável, não definido e para além dos processos formais de ensino. Sabemos que as escolas e as universidades não são exclusivas nesse “a-caminho”; se é que posso assim chamar os percursos que cada um de nós percorremos para se tornar os professores que somos.

E, nesta paisagem, a pintura da tia Neusa fortaleceu ainda mais minhas reflexões, pois os fios que a compõem estão sendo trançados nas diagonais, sugerindo movimentos, exprimindo dinamismos, multiplicando possibilidades, teatralidades, experiências. A maior parte já está tecida, evidenciando percursos, memórias e histórias; a menor, encontra-se inacabada, incompleta, aberta e à espera de experiências que continuem a trama, a vida.

Outro conjunto de pinturas elaboradas pela tia Neusa habitava minha casa natal, adornando a parede principal da sala de estar. Hoje, elas não existem mais. O que é uma infelicidade para mim. Eu fantasiei muito a partir delas, mas o que mais fazia era me perguntar: como minha tia conseguia pintar aquelas pinturas? O que era preciso para que eu me tornasse um pintor? Eu fantasiava ser pintor. Aliás, foi vendo essas pinturas que sonhei ser artista.

Esses e outros pensamentos relacionados ao ofício de pintor eram aguçados, ainda mais, quando eu viajava a Brasília e me hospedava na casa dos meus avós, pois era lá que a maioria das pinturas da tia Neusa habitava, ocupando as paredes da sala, dos quartos, dos corredores ou empilhadas em um canto, no chão...

Mais tarde, descobri que as pinturas que adornavam a parede da casa dos meus pais, tão admiradas e que tanto bem me fizeram, eram consideradas por ela simples exercícios, experimentações apenas, aprendizagens, cujos objetivos eram dominar as técnicas da pintura. Mas, para mim, elas sempre foram pinturas amigas, companheiras da infância, imagens generosas, ajudaram-me produzir sentidos

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sobre a plasticidade e a vida, ensinaram-me a cultivar o gosto de contemplar e me despertaram, por isso, o sonho de ser também um pintor.

Eu ficava deslumbrado com tantas cores, formas, texturas. Tudo era muito bonito, encantador, mágico até! Minha tia entrava para o quarto onde pintava e, horas depois, quando de lá saia, trazia uma pintura nova. Aquele ritual me fascinava, seduzia e despertava o desejo de também ser pintor. Encantamento parecido senti ao ver, na disciplina “Fotografia e novos meios”, cursada na Licenciatura em Artes Visuais, as imagens que fotografei surgirem após os banhos no revelador, no fixador e, por fim, em água corrente.

[5]

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Essas viagens ocorriam sempre nas férias escolares. E, ao retornar de uma delas, por volta dos meus 7, 8 anos de idade, pedi aos meus pais que comprassem materiais para que eu também pudesse pintar. Contudo, o contexto socioeconômico familiar e a situação precária do comércio de Jataí, Goiás, minha cidade natal, não permitiram a realização de tal desejo. Minha mãe, sensibilizada e generosa, disponibilizou materiais alternativos e, então, aventurei-me na magia de me tornar um pintor, pintando em sacos de algodão, tradicionalmente usados para fazer os panos de prato.

Meus exercícios de pintor de panos de prato me conduziram até a casa da

Geneci, uma vizinha amiga da família, nascida na zona rural, que morava na cidade com os irmãos mais novos que ela, para que estudassem. Parece que ela tinha como função principal cuidar deles e da casa. Uma memória vaga, esmaecida no tempo, é que ela passava suas tardes assistindo às reprises de novelas e filmes ofertados pela Rede Globo, enquanto pintava seus panos de prato.

Acredito que um dos objetos preferidos da Geneci era sua “caixa de noiva”, uma caixa de madeira enorme, cheia dos panos de pratos e de outras peças de artesanato que deveria produzir ou adquirir. Ela dizia que os envolvia em papel de seda branco para que não amarelassem com o tempo. Pelo que recordo, essa caixa de madeira era um objeto de fetiche, desejado pela maioria das moças, à época.

Passei a frequentar sua casa com o intuito de observar como compunha seus desenhos e como usava seus materiais. Ao observar, percebi que sua técnica consistia, apenas, em copiar os desenhos que já vinham prontos nas revistas especializadas para pinturas em pano de prato. Que seu ritual de criação, para minha decepção, consistia em colocar o desenho escolhido em cima de uma folha estêncil sobre o tecido, transpondo-o e pintando, respeitando a tabela de cores indicada nas revistas especializadas que ela possuía.

Sendo assim sua relação com a pintura, eu aprendia, nessa experiência, que para ser um pintor era preciso saber copiar os desenhos que desejasse pintar, em vez de me lançar ao desafio de criar, expressar, comunicar e interagir com a vida a

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partir de suas dimensões gráficas. Assim, deixei, infelizmente, de arriscar, sonhar, conhecer e aprender que o desenhar não é apenas

copiar formas, figuras, não é simplesmente proporção, escala. A visão parcial de um objeto nos revelará um conhecimento parcial desse mesmo objeto. Desenhar objetos, pessoas, situações, animais, emoções, idéias são tentativas de aproximação com o mundo. Desenhar é conhecer, é apropriar-se. (DERDYK, 1989, p. 24)

Ignorando essa alternativa, eu pintei meus panos de prato com quaisquer motivos ou temas ou paisagens que conseguisse copiar. O repertório dessas experiências ia dos desenhos mimeografados que recebia das professoras na escola aos personagens da revista Amiguinho e dos desenhos animados da

Disney. A figura a seguir apresenta um dos vários panos de prato que pintei. É o

único que sobreviveu ao tempo.

Este, eu pintei para presentear minha avó materna, mãe da tia Neusa, que, caprichosa e cuidadosamente, deu acabamento, passando um bico de crochê, atendendo às orientações da tradição para a consecução desses artefatos culturais. Minha avó Ambrósia o guardou como recordação até a sua morte, que infelizmente ocorreu em 2011, ano em que iniciei meu doutoramento.

A escolha pelo casal de pássaros já anunciava minha paixão pela natureza. Aliás, não só minha: os livros de história da arte, os museus e nossas casas estão repletos de imagens de artistas que criaram a partir de seus encontros com ela.

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Diametralmente distante dos desenhos reproduzidos ou dos personagens da

revista Amiguinho ou da Disney que habitavam meu imaginário e reverberavam em minhas práticas artísticas, eu convivia com os desenhos que meu pai produzia em casa. Os seus desenhos consistiam em remover a terra do quintal de nossa casa, reorganizando-a em retângulos, cujo objetivo, para mim, uma criança de mais ou menos 6 anos de idade, era simplesmente colorir. E ele coloria nossos cotidianos com as suas hortaliças, muitas e variadas, as alfaces eram suas preferidas e as minhas prediletas.

À tardezinha, quando eu chegava da escola, sempre via meu pai trabalhando em seus retângulos que, juntos e vistos do alto, hoje eu imagino, deveriam alimentar belas pinturas, fotografias. Seus regadores de plástico, para uns muitos litros de água, já haviam sido azuis, amarelos, vermelhos. Semanas depois, eu era surpreendido com os verdes que surgiam entre os marrons avermelhados das terras de Jataí, que rasgavam o chão vermelho e cresciam em um fluxo contínuo, diário.

Seus desenhos eram uma atração – os vizinhos ou os passantes paravam extasiados em frente ao nosso portão para fruí-los alguns instantes. As roseiras cultivadas por minha mãe também atraíam os olhares.

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As roseiras, por ocuparem a parte central do quintal, a todos seduziam com sua beleza, delicadeza e perfume. Dispostas mais ou menos em filas, ladeavam o caminho estreito e comprido de cimento cru, responsável por conduzir a todos do portão da rua à sala de nossa casa e vice-versa. Eram muitas, enormes e carregadas de rosas, em sua maioria cor-de-rosa; às vezes, muito raro, uma amarela ou uma vermelha ou branca era cultivada.

Recordo-me dos muitos elogios aos meus pais; eram constantes e proferidos à chegada ou à saída de casa: “Seu Raul, como suas hortaliças estão viçosas,

saudáveis, parabéns!”, “Dona Oneida, como suas roseiras estão lindas e cheirosas!”

Aprendido com meus pais, também tenho investido no hábito de cultivar plantas em casa, regando, adubando, podando, replantando-as quando necessário; estabelecendo minhas relações de cuidado, de afeto, de vida. Reconheço as influências de minha família em minha educação estética.

Todavia, de maneira mais direta, a ação de cultivar plantas em meu apartamento conectou-me com outros tempos, com os tempos de cada coisa; abriu-me fendas, brechas, fissuras por onde pude atravessar e embrenhar-abriu-me mais profundamente em mim mesmo – especialmente em minha relação com os objetos que habitam nossas casas, nossos museus pessoais, também repletos de efeitos de sentidos e significados.

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[7] [8] 7 O antúrio – Henrique Lima Assis, 2013. 8 Begônia – Henrique Lima Assis, 2014.

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Aprendi a cultivar uma casa singela, bonita, bem decorada. Somaram-se ao

modo como meus pais decoravam nossa casa, outras maneiras que fui aprendendo pelas muitas casas que espiei pelas frestas enquanto caminhava pelas ruas de Jataí, de Goiânia, de Campinas e pelo mundo afora. No entanto, duas experiências singelas, simples, mas especiais e reconfiguradoras dos meus modos de ser, merecem ser partilhadas.

Uma delas se refere à geladeira Climax azul, uma novidade à época. No princípio da década de oitenta, meu pai, meus irmãos e eu saímos, numa tarde de sexta-feira, em comitiva, para a realização de um desejo raro e caro: comprar uma geladeira para nossa casa. Depois de muito andar, escolhemos uma Climax, cujo azul se assemelhava ao azul das tardes ensolaradas no Cerrado brasileiro.

Com a aquisição dessa geladeira, pudemos, meus irmãos e eu, fazer e vender big-bem, um suco de frutas acondicionado em um saquinho de plástico, para os viajantes que embarcavam e desembarcavam ou faziam escala na rodoviária da cidade, que era mais ou menos perto de nossa casa. Naquela altura, ela era muito precária, suja e com pouquíssimas lanchonetes, o que abriu aos moradores da cidade inúmeras possibilidades de comércio de alimentos nas janelas dos ônibus.

Essa experiência de fazer e vender big-bem não durou muito para mim, pois logo fui tomado por outros interesses e afazeres, e a única lembrança que tenho do que fiz com o dinheiro que ganhei é a compra de um trio de passarinhos de louça, de tamanhos diferentes e de um azul incrível, para ser pendurado na parede da sala, adornando e confortando ainda mais minha casa. Adornar é uma necessidade humana de beleza, crianças e adultos padecem dessa necessidade.

Seu azul-cobalto era tão intenso que é impossível de ser esquecido. Essa foi a primeira compra que fiz com recursos próprios: comprei na rodoviária, em uma loja que vendia de tudo, de lembranças da cidade a artigos de decoração, roupas, produtos de higiene pessoal.

Cheguei em casa eufórico e à procura de pregos e martelo, para enfeitar a parede da sala. Pendurados, perdia horas e mais horas olhando para os passarinhos. Sem pensar em nada, permitia apenas que meus olhos os

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percorressem demoradamente e dançassem ao som das formas estilizadas de pássaros.

A textura lisa, delicada e fria da louça era um agrado ao meu tato; o azul, aos meus olhos e coração. Por várias vezes pensei: por que não comprei balas, sorvetes ou bolas, como faziam meus irmãos? Por que queria viver em uma casa toda enfeitada? Que necessidade de colecionar objetos, sobretudo os de decoração, começava a se desenvolver em mim?

Guardo a impressão de que a compra desses pássaros já sinalizava os rumos que minha vida tomaria: ou seja, a escolha pelo exercício docente em artes visuais como o ofício, como vida.

A segunda experiência que marcou minha alma refere-se a um cisne rosa. Já era a semana do Natal, e as principais ruas de Jataí estavam enfeitadas com as luzes coloridas que ziguezagueavam de um lado ao outro – uma festa mais capitalista que religiosa, mas uma alegria! As lojas, naqueles dias do ano, permaneciam abertas até tarde da noite, convidando-nos ao consumo. Andávamos pelas Avenidas Brasil, Goiás, Rio Claro, seduzidos pelas vitrines que se insinuavam, entorpecendo nossos sentidos para as compras.

Em uma noite qualquer daquela semana, flagrei minha mãe se arrumando para sair de casa, não sabia aonde iria, mas queria ir junto, e fui! No caminho, ela me disse que iríamos comprar um presente de Natal para nossa casa. Não me lembro de mais nada, recordo apenas que me arrumei rapidamente e saímos, caminhamos, de mãos dadas, da rua de nossa casa até a Avenida Brasil, esquina com a Avenida Goiás, onde era sediado um conjunto de lojas comerciais.

Entramos em uma que vendia objetos de decoração. Esses eram mais delicados, sofisticados e não estavam empoeirados, nem ficavam amontoados uns sobre os outros, como os da loja da rodoviária. Eram organizados por categorias, em estantes de vidros que iam do chão ao teto. Eram objetos de toda sorte: esculturas de terracota, animais de porcelana, compoteiras de cristal, porta-retratos, abajures.

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Como sempre, perdi-me, fiquei paralisado, inteiramente indeciso com o que comprar. Queria tudo! Não tinha dimensão dos valores, isso não era importante; aliás, o importante era ter todos os objetos, que julguei maravilhosos, em minha casa, para deixá-la, mais bonita, mais afetiva, mais singular.

Minha mãe decidiu e comprou um cisne cor-de-rosa de porcelana, em um tom rosa pastel que reluzia aos olhos; cerca de 18 centímetros de altura por mais ou menos 26 de comprimento. As asas estavam abertas, uma mais estendida que a outra, e o pescoço e a cabeça voltados para trás, para o passado, planejando um voo, um futuro, imagino hoje.

Embrulhado em um papel de presente dourado, carreguei até em casa e, igualmente, escolhi o lugar onde ficaria: na estante, ao lado de duas patas de porcelana, uma verde e a outra branca. Na prateleira abaixo ficavam um cavalo branco e uma gansa com três gansinhos; nas de cima, uma enciclopédia para crianças, encadernada em muitos volumes de capa dura, vermelho carmim, com letras grafadas em dourado e mais uma coleção, referente a plantas diversas e seu uso medicinal; alguns livros infantis da série Vagalume e muitos, muitos exemplares da revista Amiguinho. Do outro lado da estante ficavam o aparelho de som e os discos do meu irmão mais velho, e a televisão, ainda em preto e branco.

Os anos se passaram, e essa disposição foi modificada inúmeras vezes: ora alguns desses objetos ficavam na sala, ora na cozinha. Suas disposições seguiram a dinâmica da casa, o nosso crescimento, a nossa vida. Hoje, além dos livros, quase nada existe, o que é uma pena. E continuo investindo, nutrindo meu desejo, minhas necessidades de habitar uma casa decorada de beleza e segura para os sonhos, os devaneios, as experiências.

Saía muito, principalmente para ver como e com o que as pessoas adornavam suas casas. Saía curioso para conhecer os objetos que não existiam em minha

casa, para conhecer outros cenários, para crescer, para aprender outras possibilidades de produzir a vida. A luz que entrava naqueles interiores mais os objetos que os habitavam compunham atmosferas especiais para a imaginação, a criação, o pensamento e, em especial, para o devaneio.

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Por sorte, nasci em um tempo e em lugar onde o portão que separava a casa da rua era muito mais acessível do que hoje. O de minha casa natal, em especial, não me recordo, quando criança, de vê-lo trancado a cadeado. Então, sair e caminhar pelas ruas da vizinhança não era um problema para mim, não assustava e nem preocupava meus pais.

Considero, também, aquelas caminhadas minhas primeiras vivências educativas. Elas me aproximaram de uma cultura visual do interior de Goiás, alimentando minha estima pelos objetos que habitam nossas casas e suas múltiplas possibilidades de produção de sentidos estéticos, subjetivos, narrativos. Assim como, quando cursava a Licenciatura em Artes Visuais, na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, minhas caminhadas em busca dos Museus de Arte de Goiânia/MAG e de Arte Contemporânea de Goiânia/MAC e da Fundação Cultural Jaime Câmara, por exemplo, formaram-me no professor de Artes Visuais que sou.

Sair para apreciar os objetos nas casas, assim como nos museus, desenvolvendo percursos, produzindo sentidos, estabelecendo relações com outros objetos e experiências humanas do presente, do passado e do futuro, é um alimento para eu seguir pensando as casas como museus.

Em relação às minhas primeiras vivências etnográficas, recordo-me de uma porção vasta de objetos que habitavam os interiores vislumbrados em Jataí, no princípio da década de oitenta. Eram cachorros de gesso, jarras com flores de plástico, elefantes, cavalos, pinguins, fotopinturas do casal, dos filhos e dos antepassados, cujas molduras apresentavam tons marrons e eram protegidas por vidros côncavos e esverdeados. Imagens religiosas da igreja católica e da umbanda, como: pinturas da arca de Noé, da sagrada família, da Iemanjá saindo das águas do mar, um mar extremamente azul, quase se fundindo ao céu, de retratos de São Benedito e de outros pretos velhos de que não recordo; esculturas em gesso de São Francisco, Santo Antônio, São Judas, entre outras tantas.

Lembro-me bem de vitrolas, gramofones, rádios e televisores que mais se pareciam com móveis do que com eletrodomésticos, devido a suas enormes caixas de madeira. Conjuntos de sofás com linhas retas, cores lisas e escuras e os pés

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torneados, altos e pintados de preto – uma peça de três lugares e duas com um lugar apenas, que imagino pouco confortáveis. Rodas de fiar, cabideiros, ferros de passar roupas à brasa, que representavam o passado dos mais idosos das casas espiadas.

Cabeças de animas empalhadas, geralmente penduradas no centro da parede principal da sala de estar, revelando que aquela era uma casa de fazendeiros, de pessoas envolvidas com o universo rural. Miniaturas de carros de boi – as que lembro eram feitas pelo seu Ambrósio, um senhor, primo de minha avó materna, Ambrósia, e o primeiro artesão que conheci. Suas miniaturas de carros de boi me fascinavam: eram delicados e ricos em detalhes, extremamente miméticos. Cristaleiras repletas de jogos de taças, copos e xícaras, coleções de canecas e jogos de latas para guardar arroz, açúcar, café, cujos desenhos, em sua maioria, eram flores e folhas de vermelho e verde intensos. Tachos de cobre, panelas de ferro, potes de barro, entre outros, muitos outros objetos domésticos – talvez biográficos e afetivos.

Ao lembrar e listar essa porção mínima, em relação à enorme, à “imensa vegetação dos objetos”, como diz Baudrillard (1973, p. 09), eu o faço para reorganizar minhas lembranças, de forma que eu igualmente possa compreender o lugar delas em meus processos educativos.

Ao reorganizar minhas lembranças, recordei, também, da narrativa Todos os

nomes, contada por Saramago (1997). A personagem central dessa história é o Sr.

José, um homem solteiro, de meia-idade, muito tímido, funcionário da Conservatória Geral de Registro Civil, responsável pelos arquivos dos vivos e dos mortos.

O Sr. José morava de favor em uma casa construída, improvisadamente, ao longo das paredes laterais da Conservatória. Em sua casa havia duas portas: uma permitia o acesso à rua e a outra, ao interior da grande nave que abrigava os arquivos de centenas e centenas de cidadãos. Mas, por problemas estruturais na arquitetura da Conservatória, o Sr. José fora obrigado a inutilizar esta última porta, trancou-a e foi privado de transitar livremente, como sempre fizera, entre seu trabalho e sua casa, entre sua vida privada e a profissional.

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Contudo, o que me chamou a atenção e levou-me a estabelecer paralelos entre o acontecimento na obra literária e minha investigação foi o fato de que há muitos anos o Sr. José vinha alimentando um passatempo, que consistia em reunir recortes de jornais sobre pessoas que, por boas ou más ações, se tornaram famosas em seu país. Mas, um dia, teve a percepção, a ideia de que, em sua coleção de nomes e referências pessoais daqueles sobre os quais colecionava apenas os recortes, faltavam, por exemplo, o registro de nascimento e outras informações de natureza íntima, como: os nomes dos pais, de irmãos, padrinhos, o lugar de nascimento, onde estudaram, com quem se casaram, quais profissões escolheram, entre outras que os noticiários não anunciaram.

O Sr. José passou, então, a buscar, investigar, colecionar, obstinadamente, mais detalhes sobre os integrantes de sua coleção. Assim, transgrediu as regras e invadia a Conservatória todas as noites, por meio da porta que deveria permanecer trancada. E, como um detetive, fez cópias dos registros de nascimento e depois enveredou por um labirinto de investigações, percorrendo ruas, praças, jardins, conhecendo os lugares onde nasceram e descobrindo os segredos, as traições, os crimes desses noticiados.

No desenrolar da história, Saramago (1997, p. 23) nos chama atenção, narrando que existem, em todos os tempos e lugares, pessoas como Sr. José, que ocupam o seu tempo

ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refresco, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelanas, brinquedos antigos, máscaras de carnaval.

E, na busca por explicações sobre as razões pelas quais os guardadores ocupam parte importante de seu tempo na prazerosa, mas também desafiadora e perigosa tarefa de colecionar objetos de fetiche, de desejo, de sonho, Saramago (1997, p. 23) desenvolve seu romance, afirmando que pessoas assim como o Sr. José, provavelmente

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fazem-no por algo a que poderíamos chamar de angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.

Será mesmo que só guardamos objetos por não suportarmos o caos que rege o universo? Que forças eles exercem em nossas vidas, que nos fazem colecioná-los, guardando-os em nossas casas? E nós, os professores de Artes Visuais, responsáveis por deflagrar processos expressivos e cognitivos, guardamos objetos em nossas casas? Se sim, quais? De onde originaram? Que peripécias fizeram para obter seus objetos desejados? E ainda, quais memórias guardam? Quais experiências narram? Ou eles, simplesmente, habitam suas casas por inferências do acaso?

Este bloco de questões acompanhou-me pela leitura do livro e alimentou, ao mesmo tempo, o desejo de ir a campo visitar as casas, os museus dos professores e conhecer seus objetos especiais, ouvir suas narrativas, aprender com seus conselhos. Então, como o Sr. José, lancei-me na prazerosa, mas igualmente desafiadora e perigosa tarefa de me expor ao conhecimento, ao autoconhecimento; pois toda ação de conhecer é sempre uma ação de autoconhecer, afirma Souza Santos (1996).

Um conjunto de memórias relativas aos guardadores e suas necessidades, quase obsessivas, de guardar objetos em casa, refere-se a uma casa verde que fica na esquina de minha casa natal. Nela, a calçada da rua cedia lugar a duas sibipirunas, cujas copas eram tão densamente arredondadas, suas folhas tão miúdas, leves e brilhantes que, juntamente com suas flores delicadas e amarelinhas, forravam o chão a primavera inteira. O cheiro adocicado dessas flores é indelével em mim.

Nessa casa verde da esquina, eu aprendi sobre excessos, paixões, separações. Nem precisava sair pelo portão de casa e andar pelas ruas para

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olhá-la. Bastava subir em um amontoado qualquer perto do muro que nos separava, que meu horizonte era todo tomado pelas cores e pelas formas das centenas de objetos que a habitavam. Eram montanhas e mais montanhas de coisas de toda sorte, amontoadas pelo quintal, umas se sobrepujando às outras.

E eu sempre procurava algum motivo para frequentá-la. Ia para brincar com as crianças de lá, muito mais velhas do que eu, ou para dar ou receber algum recado. Ia porque já sabia que meu olhar iria se perder no meio daquelas montanhas de coisas velhas – a maioria usadas, depois abandonadas e recolhidas, abrigadas, acolhidas.

A paixão e o sacrifício da dona da casa verde consistiam na possibilidade de sobrepor, de acumular, de colecionar. Andava longas distâncias carregando, nas costas, os objetos recém-encontrados. Cresci vendo-a colecionando. E foi visitando essa casa que meu olhar tomou contato, igualmente, com uma infinidade de estampas em tecidos, pois havia pela casa uma infinidade de lençóis com flores vermelhas, amarelas, azuis, que eram deslocados de sua função original para virar cortinas para os quartos sem portas.

Como seria cozinhar naquela casa? A cozinha de uns 8m², aproximadamente, era toda tomada. Centenas de pratos, talheres e copos empilhavam-se em cima das mesas de madeira. As panelas, as caçarolas e suas respectivas tampas dividiam, ou melhor, brigavam por um espaço mais digno na prateleira. A geladeira, vermelho carmim intenso, era usada também como suporte para as muitas xícaras de café.

Essa casa, além de abrigar esses objetos, acolhia também periquitos, papagaios, passarinhos, infelizmente, presos em gaiolas; cachorros; muitos gatos; e uma casa de abelhas Jataí. Quando descobri as abelhas, fiquei surpreso e feliz, pois estava vendo de perto o ícone de que tanto ouvira falar na escola: as abelhas Jataí, que emprestaram seu nome ao rio que margeava a cidade e que, consequentemente, nomeou a cidade.

Imagino que ela, a dona da casa verde, possuía a Síndrome de Diógenes e, aos poucos, foi “expulsando” toda a família de sua casa, para viver somente com os tantos objetos que ganhava, comprava ou recolhia nas ruas. O dela foi o primeiro

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caso de separação conjugal que conheci, ainda na infância. Separou-se do marido e ganhou mais espaço em seu quarto para os objetos; e, na sequência, os filhos casaram-se todos. Assim, teve os cômodos de uma casa enorme tomados por profusão de objetos de toda sorte.

Além de pássaros, gatos e cachorros, ratos e insetos peçonhentos passaram a morar naquela casa. Esse cenário agravou-se e gerou situações desconfortantes em relação à higiene e à saúde dela, em particular, e da vizinhança, em geral. Esta, então, acionou a vigilância sanitária municipal para intervir. E ela interveio – interditou sua casa por um dia inteiro, para a limpeza do quintal, retirando caminhões e mais caminhões de objetos juntados ao longo de uma vida.

Essa cena eu não vi, felizmente, pois foi mais recente. Eu já morava em Goiânia para cursar a licenciatura. Ao ouvir os relatos de minha mãe, senti meu coração apertar com o quão horrível deve ter sido vê-la gritar, agredir os trabalhadores da prefeitura quando recolhiam seus objetos. Disse-me minha mãe que, desesperada, a dona da casa chorava, ao vê-los sendo retirados à força de sua casa, de sua companhia, de sua vida.

Hoje, anos depois, quando retorno a Jataí, vejo que ela retomou seu processo de guardar objetos em sua casa. Então, mais uma vez, passei a contemplar, a espiar de longe, da calçada da rua e nos segundos em que atravesso seu portão, esculturas quebradas, brinquedos infantis, sofás velhos, vasilhas de alumínio amassadas, caixas de madeiras com livros e jornais velhos e muitos outros. Quais relações ela estabelece com os objetos que acumula? O que eles dizem para ela? O que dizem dela? Por que abriga em sua casa objetos que, geralmente, foram descartados pelas outras pessoas? Quais marcas subjetivas eles desenham?

Tenho, em casa, o caderno de desenho que usei na primeira série do 1º grau, em 1984. Em bom estado de conservação, ainda encapado com o plástico original,

um xadrez verde com branco. Foi guardado por minha mãe, e só me apoderei dele quando me mudei de Jataí para Goiânia, para cursar a Licenciatura em Artes

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Visuais. Trouxe como lembrança, como documentação de uma etapa educativa, subjetiva, em geral, e profissional, em específico.

No início do ano letivo, a professora, a tia Lázara, como era por nós chamada, solicitou que comprássemos alguns materiais escolares, como, por exemplo, lápis de escrever, de colorir, borrachas, cola, cadernos para as tarefas de português, matemática, para o treino da caligrafia – e um para os desenhos. Tudo muito simples, singelo, como a condição socioeconômica de minha família e de Jataí, na década de oitenta. Todavia, tudo repleto de sonhos e de desejos por aprender, por colorir, por projetar.

As aprendizagens de expressão visual daquele ano envolveram, basicamente, o manusear do caderno de desenho, composto por folhas mais grossas, nas quais colávamos os desenhos mimeografados e já coloridos, e por folhas finas, quase transparentes, que protegiam os desenhos nele anexados. As folhas finas foram nossa descoberta mais feliz: adorávamos levantar os braços, à altura dos olhos, segurando os cadernos abertos nessas folhas para, através de sua transparência, olhar os colegas, a professora, a paisagem fora da sala de aula, pelos vidros dos imensos janelões.

Esse caderno de desenho exigiu de nós, estudantes inexperientes no controle escolar, muito cuidado, atenção e higiene ao ser manuseado. Nada de folhas amassadas, ou mais ou menos coladas uma na outra ou borradas. Deveríamos colorir até as linhas que definiam o desenho da semana. Hoje eu penso que ele deveria ter sido, igualmente, objeto de cuidado e atenção pela professora, ao propor ações estéticas e artísticas.

Ou seja, o objetivo de tia Lázara deveria ter sido muito mais do que simplesmente nos ensinar a colar os desenhos pedagógicos mimeografados que ela nos oferecia para colorir uma vez por semana, geralmente às sextas-feiras, após o recreio, perto da hora de irmos para casa. No mínimo, deveria ter alternado com atividades mais desafiadoras e autorais, como os desenhos de observação, ou de memória, ou de imaginação. Em suma, deveria ter proposto experiências artísticas que nos desafiassem, que nos fizessem desenvolver, ampliando nossas possibilidades de compreensão de si e dos outros e de interação no mundo.

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Como esperar um ensino inteligente e sensível em desenho de uma professora sem formação e sem intimidade com a arte? Como romper com a cultura dos desenhos reproduzidos, que até hoje ocupam muitas horas letivas de milhares de estudantes? Como ressignificar as experiências artísticas na educação básica? Como produzir uma educação inteligente e sensível, que forme sujeitos esteticamente éticos e justos?

E não esqueçamos que uma educação inteligente e sensível

depende de ensaio e erro, de pesquisa, investigação, experimentação na busca de solução de problemas que geram dúvidas, incertezas [...] o ensino fundamentado na cópia inibe toda e qualquer manifestação expressiva original. A criança, autorizada a agir dessa forma, certamente irá repetir fórmulas conhecidas diante de qualquer problema ou situação que exige respostas. Ela, com todo o seu potencial aventureiro, deixa de se arriscar, de se projetar. Seu desenho enfraquece, tal como seu próprio ser. (DERDYK, 1989, p. 107)

Em oposição a essa concepção aventureira do desenho na escola, a ‘tia’ Lázara sempre falava: “Vamos dar vida aos desenhos?” E, para dar vida aos muitos desenhos mimeografados, usávamos, geralmente, o lápis de cor, papeizinhos picados ou enrolados, serragem, areia ou arroz, com ou sem a casca. Mas como dar vida aos desenhos feitos por outro? Como “iluminar” um desenho mimeografado? Como desenvolver, desabrochar um imaginário pessoal?

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Passaram-se 30 anos desde que vivi essa experiência adestradora, limitada, enrijecedora, de pintar celebrações relativas ao Carnaval, ao Dia do Trabalho, ao aniversário de Jataí, ao Sete de Setembro, ao Dia das Crianças, ao Natal, entre outras datas que o currículo considerava importantes e eram comemoradas por meio dos exemplos que coloríamos. E ainda hoje não me libertei, não construí um percurso pessoal de criação e expressão. Ainda não desenvolvi um desenho-linguagem, um desenho-expressão. Não sonhei, não projetei, não me lancei à frente, via meus desenhos autorais.

E o pior: em toda minha educação básica, os desenhos mimeografados protagonizaram as aulas de Arte. Sendo assim, nunca entrei em contato com os benefícios que os desenhos proporcionam às crianças, em especial.

As experiências de colorir os desenhos já desenhados me privaram de imaginar, de desejar, de contar minha história pessoal. “Se a criança desenha para contar sua história, encontramos também a criança que não desenha para não contar” (ALBANO, 2012, p. 23). Não, não contei minha história, não porque não quis... Não escolhi não contar... Não narrei porque me foi tirado o direito de contar,

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de sonhar, de aprender, de desenvolver-me, aprimorando as possibilidades do desenho como habilidade humana de interação, percepção, compreensão do mundo.

Os desenhos mimeografados, hoje xerocados ou impressos, nos roubam a oportunidade de aprimorar em infinitas dimensões nossa expressão pessoal, nossa sensibilidade e inteligência para explorar linhas, formas, materiais, emoções, memórias, experiências. Inserida nessa paisagem, uma multidão de estudantes como eu foi e continua sendo privada de expressar, por meio da aquisição e do desenvolvimento dos desenhos pessoais, suas descobertas, alegrias, tristezas, deslocamentos, fragmentações subjetivas pelas quais passou. Autoritariamente, esses desenhos me fizeram abrir mão de minhas imagens próprias, em toda minha educação básica – geralmente, em favor de desenhos que eram para ser coloridos, as flores em vermelho e o caule verde.

Os percursos autorais são experiências investigativas e projetivas. Ao desenhar, nos movemos, nos lançamos adiante e nos colocamos em condição experimentar materiais, formas, sensações e, em especial, nos entregamos às possibilidades de ver-nos e rever-nos constantemente: “antes o desenho estava supertriste. Existe neste projetar-se um movimento de dentro para fora e de fora para dentro. A criança, mesmo sem ter uma compreensão intelectual do processo, está modificando e sendo modificada pelo desenhar” (ALBANO, 2012, p. 21).

Contraditoriamente, aqueles momentos enrijecedores à expressão, à criação, à busca pessoal eram de extrema alegria, generosidade, prazer, porquanto desfazíamos as filas que organizavam a sala de aula e agrupávamos nossas carteiras em grupos de amigos para compartilhar ou trocar materiais, percepções, sugestões. Parece-me que as lições, as atitudes, os conteúdos mais aprendidos, pelo menos por mim, foram os relacionados à cordialidade com os colegas e à possibilidade de ajudar ou ser ajudado a superar alguma dificuldade encontrada no cumprimento dessas atividades – mais do que ser criativo, inventivo, perceptivo, sensível, crítico; um artista, como eu já sonhava ser.

Aos poucos, o sonho de ser pintor, um artista, foi sendo substituído por outras experiências. Não sei exatamente quando, mas acredito que por volta dos

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12, 13 anos de idade. Comecei a trabalhar oficialmente aos 14 anos, era o

office-boy de uma loja de decoração. Passei a estudar no noturno, e um dos meus

projetos de vida tornou-se o ingresso na Aeronáutica, em Brasília. E, por razões econômicas, o governo federal não alistou nenhum rapaz, dispensou-nos todos. E o meu desejo de mudar de Jataí não se realizou naquele ano.

Essa porta se fechou, para uma outra se abrir. Logo quando retornei de Brasília, a Secretaria Municipal de Cultura havia inaugurado o Museu de Arte Contemporânea de Jataí/MAC, que disponibilizaria, a partir de então, uma intensa programação de exposições e cursos. E, nesse contato, todo aquele desejo substituído veio à tona e retornei a pintar.

Dessa vez, sob as orientações de uma professora de Educação Artística, licenciada na Universidade Federal de Uberlândia/UFU – ela é uma das professoras narradoras investigadas. Como eu já trabalhava, ganhava meu dinheiro, me dei o prazer de experimentar materiais tradicionais e próprios à pintura, como: tela, papéis aquareláveis e não aquareláveis, giz pastel oleoso, tinta a óleo, aquarela, aguarrás, pincéis, espátula, ainda restritos e limitados às condições culturais do interior de Goiás da década de noventa.

A partir de então, passei a me dedicar à pintura. Ora eu pintava a óleo, ora aquarelava, ora coloria com lápis de cor ou giz pastel e, ainda, explorava materiais e possibilidades, como técnicas mistas, envolvendo colagem e pintura.

As temáticas partiram de revisitações dos temas utilizados por artistas consagrados pela história da arte e pela cidade, com variações em torno dos nus, das paisagens urbanas, dos casarios. Mas eu tinha especial predileção pelas folhagens de bananeiras, extremamente comuns nos quintais de Jataí. Suas linhas retas e seus verdes intensos me desafiavam a pensar esteticamente e a criar infinitas composições.

Diferentemente da escola, o MAC de Jataí exerceu importante influência em meus encontros com as imagens da arte. A cada dois, três meses, era inaugurada uma nova exposição, o que ampliava significativamente meus contatos com temáticas, suportes e materiais artísticos experimentados pelos artistas plásticos em cena. Esses moravam em Jataí ou em outras cidades, e, a partir da inauguração

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do MAC,em maio de 1995, comecei a interagir com imagens produzidas por Suely Lima, Morena, Joice Carvalho, Assis, Zé Cesar, Omar Souto, Maria Guilhermina, entre outros que expunham suas imagens no museu recém-criado.

Nunca fui exigente ao ponto de Cézanne (1839 – 1906), o pintor francês, para cujo trabalho lhe eram necessárias cem ou mais sessões para obter uma natureza-morta ou um retrato, como informa Merleau-Ponty (2013). De tal modo, tomei coragem e expus minhas pinturas, meus exercícios poéticos, como disseram alguns, os mais exigentes.

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Intuitivamente e distante das regras especializadas do universo das artes visuais, eu cuidava carinhosamente de todo processo, desde a produção dos convites à montagem da exposição.

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11 Da série Sobre os quintais I, II – Henrique Lima Assis, 1998. 12 Exposição: Fazendo Arte – Henrique Lima Assis, 1996.

Referências

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