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O FIO E A TRAMA:

COMPARAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA

Escrito pelo Prof. João Borba (em agosto-Setembro de 2008)

Sumário

1. O “FIO” DOS NOSSOS PENSAMENTOS...2

2. A “TRAMA” DA SABEDORIA FILOSÓFICA...5

3. COMO O FILÓSOFO FORMA ESSA “TRAMA” DE CONHECIMENTOS COM OS “FIOS” DO SEU PENSAMENTO? QUE ASSUNTOS ELE USA PARA TECER ESSA “TRAMA”?...7

4. O AMOR DOS FILÓSOFOS PELA SABEDORIA...9

5. A IMPORTÂNCIA DE CUIDARMOS DOS NOSSOS PRÓPRIOS CONHECIMENTOS....10

6. A FILOSOFIA NÃO É CIÊNCIA, E NÃO PODE SER AVALIADA COMO SE FOSSE...11

7. POR QUE HOJE CONHECEMOS MAIS A CIÊNCIA DO QUE A FILOSOFIA?...12

8. A FILOSOFIA FAZ PENSAR NO SENTIDO DA VIDA...13

9. A ESTRUTURA DA FILOSOFLA É DIFERENTE DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA...18

10. TANTO A FILOSOFIA QUANTO A CIÉNCIA SÃO FORMAS DE PENSAMENTO TEÓRICO, E NÃO CONJUNTOS DE OPINIÕES: O QUE DIZEM É FUNDAMENTADO OU APOIADO Em CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO...20

11. SE EM TODO O MUNDO O CAPITALISMO TENDE A ISOLAR A FILOSOFIA, NO BRASIL A DITADURA FEZ A FILOSOFIA SE ISOLAR AINDA MAIS DA REALIDADE, MAS ISSO JÁ ESTÁ MUDANDO...23

12. O QUE SÃO PROBLEMAS FILOSÓFICOS?...25

13. E POR QUE OS FILÓSOFOS SÃO CHAMADOS DE “LIVRES·PENSADORES” SE O PENSAMENTO DELES PARECE PRESO A PROELEMAS QUE PODEM NÃO SER SOLUCIONADOS NUNCA?...26

l4. MAS COMO O FILÓSOFO AVALIA O QUE É UM BOM PROBLEMA FILOSÓFICO?..28

15. O RISCO QUE A FILOSOFIA CORRE DE PERDER DE VISTA A REALIDADE...29

16. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — A) PROGRESSO X ATUALIZAÇÕES...30

17. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — B) SOLUÇÕES E TEORIAS DESPERSONALIZADAS E ESPECÍFICAS X PROBLEMAS E ABORDAGENS QUE FORMAM TEORIAS GERAIS E PERSONALIZADAS...31

BIBLIOGRAFIA...34 O que o filósofo faz? O filósofo pensa. Mas todos nós pensamos! Estamos sempre pensando sobre uma porção de coisas diferentes. Então somos todos filósofos? Vamos com calma. Existem muitas maneiras deferentes de se pensar, e uma delas é a maneira filosófica. Examinemos primeiro a maneira como as pessoas costumam pensar normalmente, para entendermos depois, por comparação, a maneira como as pessoas pensam quando estão praticando filosofia...

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1. O “FIO” DOS NOSSOS PENSAMENTOS

Conforme vamos pensando sobre um assunto, vamos juntando um pensamento com outro, e mais outro, e mais outro, e assim por diante, formando uma linha de raciocínio, como se nossos pensamentos fossem se ligando uns aos outros e formando um fio, não e? É claro que não existe realmente um “fio” dentro da nossa cabeça, que isto é só uma imagem de como sentimos as coisas acontecerem no nosso pensamento. Estamos apenas usando a imaginação e comparando os pensamentos com um “fio” que vai se formando — mas é uma imagem que pode realmente nos ajudar a compreender um pouco melhor o trabalho da filosofia. Normalmente o fio dos nossos pensamentos não é muito firme, é meio frouxo, fácil de arrebentar. Às vezes estamos concentrados, pensando, e um colega barulhento interrompe o tio dos nossos pensamentos, perdemos toda a linha do nosso raciocínio só porque nos distraímos por um momento! Quando isso acontece, não temos a sensação de que o fio dos nossos pensamentos se “arrebentou”? Quando conseguimos nos concentrar, geralmente sentimos o fio dos nossos pensamentos mais firme.

Mas existe também um outro problema que deixa fraco o fio dos nossos pensamentos, fazendo com que ele seja fácil de arrebentar, e que não é um problema de concentração: é que não

estamos acostumados a ligar muito bem um pensamento com o outro. Juntamos os nossos

pensamentos quando um deles puxa “mais ou menos” o outro, como se, naquele milésimo de segundo em que ligamos dois pensamentos, saíssemos do primeiro pensamento tateando no escuro para encontrar o outro, e pegássemos o primeiro que aparece ou, no máximo, experimentássemos alguns e pegássemos o primeiro que parece se encaixar melhor.

Estamos tão acostumados com isso que ligar o primeiro pensamento com o segundo parece óbvio, fácil e claro. Nem paramos mais para pensar se aquela linha de pensamento está firme ou não. Se não apareceu nada que fizesse a gente ver que uma coisa poderia não estar tão ligada à outra, temos a sensação de que o nosso pensamento “funcionou”, e começamos a repetir em outras situações essa mesma ligação entre uma coisa e outra, ou seja, entre o primeiro pensamento e o segundo. O resultado é que quando aparece algum problema diferente daqueles aos quais estávamos acostumados, pode aparecer alguma coisa que realmente arrebenta esse fio — porque ela não se encaixa na maneira como costumamos pensar, como se o problema não “aceitasse” o nosso fio de pensamentos. Ou então pode acontecer que, quando somos forçados a testar o fio de pensamentos que formamos para ver se está firme, ele se arrebente facilmente, e sejamos pegos de surpresa, porque nossos pensamentos pareciam perfeitamente ligados uns aos outros, e de repente se tornou claro que não estavam assim tão bem ligados quanto pensávamos.

Neste caso, se alguém pedir, por exemplo, para explicarmos exatamente por que e de que maneira nós chegamos a juntar o primeiro pensamento com o segundo, ficaremos um pouco confusos e não saberemos responder muito bem. Aquilo que parecia tão óbvio, tão fácil e claro, na verdade era um fio de pensamento frouxo, fácil de arrebentar, porque os pensamentos pareciam ligados, mas agora percebemos que não estavam muito bem ligados uns aos outros, faltava

esclarecer uma porção de coisas entre eles. Entre dois pensamentos que pareciam estar tão juntos,

percebemos que existe um “buraco”, um “vazio”: e que estão faltando uma porção de pensamentos

intermediários, ou seja, faltam outros pensamentos que deviam estar entre os dois, para fazer a

“ponte” de um até o outro, e sem isso, o fio dos nossos pensamentos pode ser “arrebentado” facilmente por qualquer um que exija uma explicação.

Uma das coisas mais importantes para a filosofia é, justamente, que não haja nenhum “furo” na linha de raciocínio, que o fio dos pensamentos seja forte e firme. Por isso, boa parte do trabalho do filósofo ou de quem estuda filosofia é esclarecer, detalhar e ligar melhor os pensamentos uns

com os outros. A filosofia é uma maneira de pensar muito parecida com esta como pensamos no

dia-a-dia. Por exemplo não precisa usar aparelhos complicados ou cálculos lógicos mais complicados ainda como aqueles usados na física ou na química, que exigem treinamento especial

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ou grandes equipes de pesquisa. Mas ao mesmo tempo, é uma maneira de pensar muito mais exigente do que a maneira como pensamos no dia-a-dia. Ela exige que o fio dos nossos pensamentos seja muito mais firme e forte do que estamos acostumados, e a exigência da filosofia neste sentido é tão grande que as vezes assusta até mesmo os cientistas. Mas não é nada que uma pessoa sozinha, usando o seu próprio raciocínio, não possa fazer — desde que essa pessoa não faça isso completa e absolutamente sozinha, mas sim acompanhada da leitura e do que as pessoas da comunidade filosófica — os filósofos — têm estudado e discutido sobre o assunto ao longo dos tempos.

Um dos maiores benefícios da filosofia é que ela funciona, de certo modo, como uma grande “academia de ginástica” dos pensamentos. Mas seria bobagem reduzir a filosofia a isso. Ela é muito mais do que uma ginástica do pensamento, porque envolve também problemas filosóficos a serem resolvidos e toda uma sabedoria, todo um conjunto de conhecimentos, a ser conquistado e avaliado rigorosamente através desse exercício mental, a ser organizado e valorizado por fios de pensamento e linhas de raciocínio tão fortes quanto possível, e a ser utilizado para resolver problemas filosóficos.

No dia-a-dia do filósofo, quando ele vai formando esses fios de pensamento com todo o cuidado para ficarem bem firmes, não é somente nas ligações entre as suas idéias ou pensamentos que ele presta atenção: presta atenção também nas idéias ou pensamentos que estão sendo ligados uns aos outros, verifica sempre se estão bem-definidos ou não, porque não adianta ligar bem um pensamento com outro, se esses pensamentos estão mal definidos e não se sabe muito bem do que é que o filósofo esta falando.

Mas ao mesmo tempo, o filósofo é muito critico, e do mesmo modo como ele procura definir bem suas idéias e fazer ligações firmes e cuidadosas entre elas, ele pode também, em certos momentos, achar que é melhor desfazer uma certa ligação entre duas idéias, ou então desfazer uma definição, ou deixar uma idéia um pouco menos definida do que estava, porque acha que essa definição não estava boa ou então não estava correspondendo aos fatos. Por exemplo: um filósofo pode pensar em uma definição muito precisa e exata de “amor”, para desenvolver uma teoria a esse respeito, mas depois, examinando bem a questão, pode achar que o próprio amor não é um sentimento muito definido afinal de contas, e que a sua idéia de “amor” está mais definida do que deveria, porque não corresponde aos fatos, já que esse sentimento não é uma coisa tão exata, pois varia a todo momento e não pode ser definido com muita precisão. Também pode acontecer que um filósofo não ache boa a definição que outro filósofo construiu, então ele trata de desfazer essa definição, mostrando por que é que ela não é boa. Em suma: um filósofo sempre pode deixar uma idéia mais definida ou menos definida, e pode até desmanchar completamente uma idéia, ou construir uma idéia que não existia antes, definindo alguma coisa que nunca foi definida antes por ninguém.

Estamos usando aqui a palavra “definição”, por exemplo, de uma maneira bem aberta, bem “solta”, e também a palavra “idéia”. Alguns filósofos ficariam escandalizados com isto, e diriam que é preciso mostrar com clareza que idéias, definições, conceitos etc. são coisas muito diferentes umas das outras. Mas aqui, esta maneira bem solta e aberta de entender essas noções, é mais do que suficiente — e na verdade é bem mais útil, porque o que o que estamos tentando fazer aqui, é mostrar de que modo o pensamento filosófico se parece, afinal de contas, com isto que qualquer um de nós faz a todo momento, quando esta pensando sobre qualquer assunto. Só que o filósofo é um

expert nisso, ele faz isso com muito mais cuidado e atenção, e dedica sua vida inteira a estudar qual

ele acha a melhor maneira de fazer isso (e a pô-la em prática) nos seus próprios pensamentos, conforme vai pensando sobre outros assuntos e estudando-os também.

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embutida dentro da própria palavra “definição”, que é a noção de final, limite, fronteira, e imaginar como se o filósofo, quando faz uma definição, estivesse separando de um lado aquilo que faz parte da coisa definida, aquilo que está “dentro” dos limites ou fronteiras dessa coisa, e de outro lado aquilo que está “fora” da definição e que não faz parte dela. Vamos imaginar, por exemplo, que o filósofo estivesse definindo, delimitando, delineando, determinando a noção de “lei” — no sentido jurídico, como essa noção aparece no direito (e não, por exemplo no sentido de “lei da natureza”). “Definir”, “delimitar”, “delinear”, “determinar” — todas essas palavras carregam alguma coisa que no fundo parece o mesmo sentido de se traçar os contornos de alguma coisa, os limites aonde essa coisa termina. O que está “para dentro” desses limites faz parte da coisa, o que está “para fora” deles não faz.

Nosso filósofo iria então descrevendo o que entende por “lei” — por exemplo: “a lei é uma maneira de exprimir mais claramente os nossos direitos e deveres naturais em uma sociedade...” etc. Ao dizer isso, ele estaria ligando umas com as outras uma porção de características que descrevem isto que ele está chamando de “lei”: a) a “lei” é uma forma de exprimir alguma coisa; b) e uma forma de exprimir que deixa essa coisa mais clara, mais fácil

de se entender; C) aquilo que ela exprime são os nossos direitos e deveres; d) não são quaisquer direitos e deveres que ela exprime, mas aqueles que temos quando vivemos em sociedade; e e) além disso, os direitos e deveres que ela exprime são direitos e deveres naturais dos seres humanos. Isto pode ser imaginado na forma de um desenho ou diagrama, com as letras “a”, “b”, “c”, “d” e “e” no lugar dessas características escritas por extenso (só para ocupar menos espaço no desenho), mais ou menos da seguinte maneira:

Neste desenho, essa linha circular em volta das letras representa o final, o limite, a linha de contorno, o término daquilo que faz parte da noção de “lei”. As características que estão colocadas para o lado de dentro dessa linha (as características “a”, “b”, “c”, “d” e “e"), fazem parte da definição de “lei” que o nosso filósofo esta apresentando. Qualquer outra característica, se fosse colocada do lado de fora dessa linha, seria uma característica que não faz parte da definição. Por exemplo: se na definição de “lei” do nosso filósofo não importa saber se ela: f) serve para dizer o que as pessoas devem e O que não devem fazer; e g) serve para determinar punições para quem faz algo que não devia; então podemos dizer que as características “f” e “g”, estando fora da definição que ele fez, estão do lado de fora da linha que marca os limites do que é “lei” para esse filósofo. Um outro filósofo poderia discordar completamente deste, e definir “lei” justamente como algo que serve para dizer o que as pessoas devem e o que não devem fazer; e que serve também para determinar punições para quem faz o que não devia. Neste caso, teríamos duas definições separadas: uma com as características “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, e outra com as características “f” e “g”. mas poderíamos também imaginar duas definições que não são completamente diferentes, porque têm alguma coisa em comum, por exemplo se o segundo filósofo acrescentasse na sua definição a características “a” e “b”, dizendo que “lei” é uma forma de exprimir algo de maneira mais clara, mas que o que ela exprime é aquilo que esta dito com as características “g” e “f” — ou

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seja, o que se deve e o que não se deve fazer, e qual a punição para que faz o que não deve.

Além de tudo isso, quer dizer, além de fazer ou desfazer definições (em alguma medida ou completamente), e além de ligar ou desligar as definições umas com as outras (completamente ou só em alguma medida, deixando as ligações mais firmes ou mais frouxas), podemos dizer que o filósofo também pode apenas avaliar as definições e ligações, verificar se elas estão boas como estão ou se estão ruins — o que não quer dizer necessariamente que ele vai chegar a desfazer as que acha ruins. Uma coisa é avaliar uma ligação entre duas idéias e dizer que não é uma boa ligação ou que não estão bem ligadas como deveriam estar. Outra coisa é dar um passo além e chegar a afirmar mesmo que elas não estão ligadas, ou que elas não estão ligadas daquela maneira.

Como estamos falando de teorias filosóficas, e não de opiniões soltas que alguém vai dizendo sem se preocupar em fundamentar o que diz, é importante que tudo o que o filósofo faz ou desfaz, ou então avalia — sejam definições ou ligações entre elas — seja justificado com bons argumentos. Se o filósofo não fizer isto em algum ponto de sua teoria, vai estar

correndo o risco de ser cobrado neste sentido pelos outros filósofos. De qualquer maneira, perceba-se como as práticas intelectuais do filósofo são parecidas com aquelas que realizamos a todo momento no nosso dia-a-dia, conforme vamos seguindo uma linha de raciocínio qualquer. É isto o que o filósofo faz também, quando segue o fio do seu pensamento. Só que ele faz isso com muito mais critério, cuidado, dedicação e atenção do que a maioria de nós costuma fazer.

2. A “TRAMA” DA SABEDORIA FILOSÓFICA

Sabemos como é difícil definir o que filosofia. Podemos dizer que é uma forma de conhecimento teórico, ou seja, uma maneira de se conhecer as coisas fazendo teorias a respeito de como elas são. Também podemos dizer a filosofia nos traz sabedoria. Mas o que é uma sabedoria?

Quando sabemos de uma coisa, podemos dizer que “temos um saber” a respeito dessa coisa, ou seja, um conhecimento. Existem muitos tipos diferentes de conhecimento. Quando temos muito conhecimento sobre alguma área ou conhecimentos realmente importantes sobre ela, podemos dizer que temos alguma sabedoria nesse assunto.

É importante lembrar que a palavra “filosofia” foi criada na Grécia antiga, aproximadamente setecentos anos antes de Cristo ter nascido, a partir de duas outras gregas: philos e sophia1. Philos

quer dizer apego amoroso, amizade, e Sophia quer dizer sabedoria, saber O filósofo não é aquele que sabe de uma vez por todas tudo o que há para saber sobre um assunto, Filosofia não é somente uma sabedoria, mas um apego amoroso à sabedoria. O filósofo é aquele que gosta de saber, que gosta da sabedoria, e procura conquistar uma grande sabedoria, quanto mais ele sabe, mais ele quer saber. Podemos dizer que ele é amigo da sabedoria, ou até mesmo que ele namora com a sabedoria, cuida dela com muito carinho e atenção.

Filosofar é uma maneira muito especial de se conhecer as coisas e conseguir uma sabedoria

1 Os gregos da antiguidade usavam letras diferentes das nossas. Ao invés de “a, b, c...” etc,, usavam “a, b, c...” (que se lê alfa,beta, gama...). Quando escrevemos em português uma palavra da Grécia antiga que não é mais usada hoje, costumamos usar ph no lugar de f Mas o som continua sendo o de f Então, não liam “pilos” e “Sopia”: liam como se

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cada vez maior a respeito delas, a maior sabedoria possível, tomando todo o cuidado para saber também o quanto é possível conhecer a respeito de um assunto, para não criar uma falsa sabedoria sobre coisas que não se consegue conhecer realmente. O filósofo não quer se iludir com fantasias nesse seu “namoro” com a sabedoria. Ou se preferirmos entender “philo” como amizade, podemos dizer que o filósofo quer uma amizade verdadeira com a sabedoria, e não uma enganação. A cada conhecimento novo que conquista, precisa saber claramente o quanto aquilo que ele aprendeu é realmente sabedoria, e sabedoria valiosa, não uma ilusão ou mero conhecimento superficial das coisas. Precisamos sempre lembrar o quanto o filósofo se preocupa em estudar assuntos que sejam importantes para a humanidade, ou pelo menos para os seus colegas filósofos.

Nós conhecemos as coisas formando idéias2 no pensamento a respeito de como elas são, e

testando essas idéias para ver se elas estão corretas, se as coisas são realmente assim. E como formamos nossas idéias a respeito de como as coisas são? — Ligando os pensamentos uns aos outros. Por isso o filósofo é tão cuidadoso quando se trata de ligar um pensamento ao outro, e procura examinar nos mínimos detalhes como é que estamos fazendo essa ligação, porque muitas vezes ligamos “mais ou menos” os pensamentos sem muito cuidado, e nem percebemos que assim podemos estar formando uma imagem distorcida das coisas. Mas filosofar não é só cuidar do modo como ligamos os pensamentos uns aos outros.

Existe uma grande sabedoria sendo formada pelos filósofos com esses “fios de pensamento”, porque são assuntos importantes que estão sendo pensados, e os fios que vão se formando com os pensamentos dos filósofos sobre esses assuntos vão se entrelaçando uns nos outros, formando o que os filósofos costumam chamar de uma “trama” de pensamentos discutidos por todos eles, como um grande tecido em que estão bordados os grandes saberes da humanidade. De um filósofo para outro, de uma teoria filosófica para outra, existem muitas contradições, porque os filósofos não concordam uns com os outros, estão sempre debatendo e “testando” as teorias uns dos outros, por isso muitas vezes os cientistas parecem mais “certos” do que os filósofos. Na verdade, o que acontece é que os cientistas não são tão exigentes quanto os filósofos quando ligam um pensamento ao outro para formar um “fio” de pensamentos, ou quando ligam um “fio” de pensamento a outros “fios” para formar uma trama ou tecido de pensamentos, ou seja, uma teoria. Se fossem mais exigentes veriam muitas “falhas” e “rasgos” em suas teorias, porque nenhum conhecimento é perfeito.

Os filósofos são exigentes a ponto de encontrarem as mínimas falhas no pensamento, por isso assumem e reconhecem essas falhas quando elas aparecem. Podemos imaginar essas discordâncias entre os filósofos como grandes “rasgos” nessa enorme trama de saberes e conhecimentos filosóficos, coisa que não acontece com os cientistas, porque eles concordam muito mais uns com os outros. Mas dentro de uma mesma teoria filosófica encontramos uma trama muito firme, feita de “fios” de pensamentos muito fortes, geralmente mais fortes que os de uma teoria científica, muito bem ligados uns com os outros. Por mais que o conjunto da filosofia pareça um conhecimento todo “rasgado” por esses debates, em que cada filósofo tenta “puxar” a verdade para o seu lado, cada filosofia tem sua parte desse saber muito firme e bem-organizada, a trama de pensamentos da teoria de um bom filósofo não se rasga com facilidade.

2 Na verdade, em filosofia, a palavra “idéia” tem um sentido muito preciso, diferente do sentido em que costumamos usá-la no nosso dia-a-dia, mas vamos estudar isso mais adiante. Por enquanto, estaremos usando essa palavra no sentido

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3. COMO O FILÓSOFO FORMA ESSA “TRAMA” DE CONHECIMENTOS COM OS

“FIOS” DO SEU PENSAMENTO? QUE ASSUNTOS ELE USA PARA TECER ESSA

“TRAMA”?

Mesmo formando essa “trama” de conhecimentos teóricos, que carrega muita sabedoria a respeito de assuntos de todos os tipos, a filosofia — justamente por isso, por não tratar de um tipo só de assunto — não pode ser definida só pelo tipo de assunto que estuda. O filósofo estuda de tudo, é difícil encontrar algum assunto que não possa ser estudado direta ou indiretamente por um filósofo, talvez seja até mesmo impossível o máximo que podemos dizer é que, como ele gostaria de estudar profundamente tudo o que existe para ser estudado no universo, e a vida é muito curta para isso, ele tende a escolher estudar coisas mais gerais, que valem para a gente entender uma porção de outras coisas ao mesmo tempo. Muitos filósofos chegaram a tentar definir a filosofia como um estudo dos assuntos mais gerais que seria possível imaginar, assuntos “universais”. Mas os filósofos, como sempre, discordam uns dos outros também em relação a isso, portanto o mais sensato talvez seja não afirmar isso de uma maneira muito rigorosa. De qualquer modo, os filósofos sem duvida nenhuma têm preferido sempre, ao longo da história da humanidade, os assuntos mais gerais e “universais”, que valem para todas as épocas, todos os povos e todas a s situações.

Então, por exemplo, se perguntarmos ao filósofo o que ele pensa da técnica de um jogador de futebol, e conseguimos deixá-lo realmente curioso quanto ao assunto (o que é muito fácil, porque filósofos são criaturas muito curiosas), ele vai começar a pensar na técnica de todos os jogadores do time, depois na de todos os jogadores de todos os times de futebol do mundo de um modo geral, depois vai começar a pensar na técnica de um esportista em geral, e não só na de um jogador de futebol, e finalmente vai começar a fazer para si mesmo perguntas do tipo:

— O que é técnica? Para quê serve uma técnica?

— O que é uma atividade esportiva, e qual o significado desse tipo de atividade para a humanidade?

— Qual é foi até hoje o significado e a importância do uso da técnica nas atividades esportivas, ao longo da história da humanidade?

E então ele começará a fazer o caminho contrario, voltando aos poucos para aquilo que havíamos perguntado:

— De que maneira isso tudo se reflete nas técnicas dos esportistas de hoje em geral? E nas técnicas dos jogadores de futebol? E na dos jogadores deste time? E na técnica deste jogador?

Quando o filósofo terminar de responder a todas essas perguntas, teremos uma enorme quantidade de conhecimentos sobre o futebol, os esportes, a história dos esportes na humanidade, a técnica dos esportistas em geral e dos jogadores de futebol, e ate mesmo sobre as técnicas daquele time e daquele jogador, mas certamente o filósofo mostrará muito mais interesse pelos conhecimentos maiores e mais profundos que ele conseguiu levantar do que por esses últimos, que eram a nossa pergunta original.

Geralmente as pessoas têm muito preconceito com relação a essa forma de pensar a respeito das coisas: afinal, só estavam interessadas em saber da técnica daquele jogador, e não de tudo isso. E o filósofo sabe perfeitamente disso, Mas nesse caso, a pessoa não deveria ter perguntado a um filósofo, e sim a um técnico esportivo. A maneira como o filósofo estuda o assunto e muito diferente daquela pela qual um técnico esportivo estuda o mesmo assunto. Podemos perguntar sobre a opinião pessoal do filósofo sobre o assunto, e então ele dará uma resposta simples como a de qualquer pessoa que goste de futebol, ou responderá que não entende muito do assunto. Mas se pedirmos que ele filosofe sobre o assunto, é óbvio que só podemos esperar um estudo de tipo filosófico, que provavelmente passará por questões como as que descrevemos acima.

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O mais provável é que o filósofo não leve o pedido a sério e evite falar a respeito, porque ele sabe muito bem que as pessoas não esperam realmente uma teoria filosófica, e que na verdade elas geralmente não entendem por que o filósofo leva as coisas tão longe e vêem isso com muito preconceito, como se ele estivesse “viajando” nas nuvens e não estivesse com os pés na realidade — o que e uma bobagem atrás da qual as pessoas, na verdade, escondem a sua preguiça de pensar e o seu medo de perceberem como sabem pouco a respeito das coisas que pensam que sabem. Não significa que os filósofos saibam mais a respeito das técnicas de um jogador do que um técnico de futebol, de maneira nenhuma — seria absurdo afirmar isso! o que significa é que a maneira como o filósofo pensa obriga as pessoas a pensarem muito mais do que estão acostumadas, porque ele acaba envolvendo muita coisa em tudo o que estuda, e isso assusta. Por isso a sabedoria dos técnicos, que costuma ser realmente boa e verdadeira, mas e uma sabedoria previsível e bem comportada, que― encontra respostas fáceis e diretas e nos ajuda a entender exatamente o que queremos e nada mais, acaba sendo mais valorizada do que a sabedoria dos filósofos — que e imprevisível e incômoda, porque vai longe demais e nunca sabemos até aonde vai chegar, e nos obriga a enxergar que existem muitas outras coisas envolvidas, por exemplo na técnica de um jogador de futebol, que não

são apenas futebol, mas coisas assustadoramente maiores, que têm importância para toda a humanidade.

As pessoas em geral não compreendem a paixão do filósofo pelo conhecimento e pelo desafio de levar o conhecimento sempre mais longe. Muitas vezes tacham a filosofia de fantasia, como se só fosse real aquilo a que já estão acostumadas.

Se ao invés disso deixarmos o preconceito de lado e confiarmos um pouco no filósofo, se realmente nos dispusermos a ouvir e compreender o que ele tem a nos dizer e o caminho que ele está fazendo, acabaremos passando por uma experiência muito interessante: além de terminarmos a conversa com muitos conhecimentos sobre muitos assuntos, estaremos com muitas perguntas novas em nossa cabeça, uma porção de idéias a respeito das quais nunca havíamos pensado antes, e algumas delas atiçando bastante a nossa curiosidade — estaremos com vontade de saber mais a respeito de certos assuntos, ou seja, estaremos pelo menos um pouquinho contaminados pelo paixão do filósofo por aprender e desenvolver a sabedoria.

E uma coisa ainda mais interessante terá acontecido: dai' em diante, toda vez que olharmos para um jogador de futebol em ação, ou para um esportista qualquer pondo em prática a sua técnica, seremos capazes de enxergar nesse jogador ou esportista muito mais do que aquilo que estávamos acostumados a enxergar, Veremos todo um pedaço da história da humanidade e de toda a sabedoria que a humanidade acumulou ao longo da história acontecendo ali, ao vivo, na nossa frente, naquele jogador — veremos naquele jogador toda uma trama de sabedoria filosófica posta em prática, provavelmente sem que o próprio jogador se dê conta de que existe tanta coisa envolvida naquilo que ele está fazendo.

Então virá outro filósofo, reconhecerá uma porção de coisas importantes nessa sabedoria filosófica com que começamos a enxergar a técnica daquele jogador de futebol, mas começará a encontrar também algumas “falhas”, alguns “furos” na trama de pensamento que este primeiro filósofo formou a respeito da importância da técnica para a humanidade, do esporte, da técnica no esporte etc. Mostrará que alguns “fios” de pensamento estão muito fracos, e os arrebentará na nossa frente usando argumentos muito fortes, e começará tudo de novo, repensando o assunto de outro modo...

É assim que os filósofos enxergam as coisas do mundo e é assim que lidam com o pensamento, quando pensam a respeito delas. Tudo para eles aparece envolvido em uma enorme riqueza de conhecimentos que esta ali como um tesouro maravilhoso pronto para ser descoberto. É verdade que misturado a uma porção de coisas menos importantes, mas de qualquer modo, todo esse conhecimento esta la, pronto para ser selecionado, conquistado com muito esforço de critica e

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distribuído para toda a humanidade, ou pelo menos entre seus colegas de filosofia e todos aqueles que compreendem O valor desse tesouro — porque podemos ter a sensação de que os filósofos estão “brigando”, cada um puxando a sabedoria da humanidade para o seu lado, e com isso rasgando essa preciosa trama, mas é uma falsa impressão: na verdade os filósofos são todos apaixonados por essa sabedoria. Mas são apaixonados só pela sabedoria que é feita com “fios” de pensamento realmente fortes, com os pensamentos muito bem ligados uns aos outros. Por isso “puxam” realmente com força essa sabedoria por todos os lados, discordando uns dos outros: o verdadeiro tesouro do conhecimento, para os filósofos, esta naquelas tramas de idéias que forem feitas com pensamentos mais firmes e resistentes.

O filósofo muitas vezes se sente profundamente grato à humanidade por ela ter desenvolvido todo esse maravilhoso tesouro de sabedoria para ele pesquisar, mesmo que esse tesouro venha misturado com muito “pano fraco” de baixa qualidade, que se rasga facilmente. Ele se sente grato também aos colegas filósofos e estudiosos de outras áreas, por estarem sempre ajudando na descoberta de novos tesouros, novas sabedorias. Mas os verdadeiros tesouros — vale a pena repetir — estão aqueles “fios” de pensamento que podem ser puxados à vontade, porque são firmes e resistentes, De que adianta termos um tesouro se ele está todo misturado com coisas que não valem nada, e não conseguimos separar o que é importante do que não tem valor? Nessas condições, e como se não tivéssemos tesouro nenhum!

Se os filósofos são muito exigentes, criticam e “rasgam” os pensamentos uns dos outros, não é por que cada um quer “o seu pedaço” e os outros que “se danem” — pelo contrário: o debate é uma forma de os filósofos trabalharem juntos e colaborarem uns com os outros e com a humanidade, Se debatem e criticam as teorias uns dos outros, não debatem à toa, só por debater, nem criticam à toa, só por criticar. Estão interessados em enriquecer o seu próprio pensamentos e o pensamento humano em geral, e se fazem isso, é apenas para encontrar o verdadeiro tesouro, aquele que deixará todos eles, e toda a humanidade, um pouco mais ricos em sabedoria. O único ponto que complica um pouco as coisas é que esse tesouro não é exatamente um tesouro de respostas certeiras e definitivas para os problemas da humanidade. Mas antes de entendermos isto, ale a pena examinarmos um pouco como é esse “amor” dos filósofos pela sabedoria.

4. O AMOR DOS FILÓSOFOS PELA SABEDORIA

Para compreender como era esse amor pela sabedoria que os filósofos herdaram dos gregos antigos, precisamos entender que os gregos também eram guerreiros e, de certo modo, viviam como piratas dos mares, lutando bravamente para conquistar grandes tesouros ou defender os seus tesouros de outros povos guerreiros. E amavam a sabedoria como um pirata ama o seu tesouro, lutando por esse tesouro. Não gostavam de tesouros falsos e sem valor, e do mesmo modo, seus sábios não gostavam de falsos conhecimentos.

Desconfiavam muito dos tesouros fáceis, um tesouro conquistado sem nenhuma luta, para eles, não tinha realmente o valor de um tesouro, pois sentiam que é quando lutamos por algo, que esse algo se toma valioso para nós. E do mesmo modo — não se sabe bem se a partir de Pitágoras ou Tales — seus sábios começaram a valorizar muito a luta pelo conhecimento. Não bastava mais sair por ai dizendo grandes verdades. Era preciso lutar para provar que essas verdades eram realmente valiosas. E se dedicar a essa luta de todo o coração, apaixonadamente.

Não bastava mais ter sabedoria e mostrar sabedoria, era preciso descobrir que aquela não era uma falsa sabedoria ou uma sabedoria sem nenhum valor e provar isso às pessoas. O filósofo, para ser realmente filósofo, precisava provar o valor das suas descobertas, principalmente para as

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pessoas que estavam “no mesmo barco” que ele, ou seja, para outros filósofos que também estavam buscado o conhecimento. Foi esse desafio que fez nascer a filosofia. Quando um filósofo acha que tem nas mãos um grande tesouro de sabedoria, ele examina esse tesouro de todos os ângulos, de todas as maneiras, para ver se é verdadeiro, e quando esta bastante confiante, lança orgulhosamente esse tesouro para seus colegas de pirataria — os outros filósofos — examinarem também. Ele procura provar que aquela sabedoria que ele trouxe para dividir com os colegas é realmente verdadeira e valiosa, e os colegas vão examina-la também com o mesmo cuidado, com o mesmo carinho e a mesma exigência. Procuram examinar cada mínimo detalhe daqueles conhecimentos para ter certeza de quanto eles valem. Um dos principais trabalhos da filosofia é esse trabalho de examinar a sabedoria humana em cada minimo detalhe é descobrir exatamente o quanto cada

conhecimento é verdadeiro e valioso para a humanidade ou não.

Uma pessoa que acumula uma porção de conhecimentos a respeito das coisas pode se tornar sábia, mas não é um filósofo. Começa a se aproximar da filosofia partir do momento em que ela começa a lutar por uma sabedoria mais verdadeira e valiosa, a partir do momento em que começa a fazer a autocrítica, examinando por si mesma tudo o que pode ser falso ou errado em sua sabedoria, e deixando que outros filósofos a examinem e critiquem também, para melhorar sua própria autocritica, cuidando carinhosamente de cada passo dessa investigação, acompanhando as investigações de seus colegas filósofos e aprendendo a investigar cada vez melhor, e dedicando-se a isso apaixonadamente para errar cada vez menos.

5. A IMPORTÂNCIA DE CUIDARMOS DOS NOSSOS PRÓPRIOS CONHECIMENTOS

É uma coisa muito importante pensarmos nos cuidados que costumamos ter com nós mesmos, e nos cuidados que devíamos, mas não costumamos ter O filosofo é alguém que pratica o conhecimento, e procura praticar cada vez melhor, com muito cuidado para não errar, porque gosta muito de aprender e saber das coisas. Cuidar dos nossos conhecimentos, se dedicar a aprender as coisas, é talvez a forma mais importante de cuidarmos de nos mesmos. Hoje em dia somos muito descuidados com a nossa vida... pode parecer que não, podemos ter a impressão de que cuidamos muito bem de nós mesmos o tempo todo.

Afinal, cuidamos dos prazeres do nosso corpo, comendo coisas gostosas, relaxando, tomando sol na praia, ou uma cervejinha no bar, não é mesmo? Também cuidamos da saúde do nosso corpo, fazendo ginástica, ou procurando comer coisas saudáveis. Ou cuidamos da nossa aparência, do nosso penteado, da nossa roupa... Cuidamos também da nossa mente e dos nossos sentimentos, namorando, cuidando dos nossos parentes e amigos, indo a um psicólogo e fazendo terapia para compreendermos melhor quem nós somos, ou pensando sozinhos a respeito de nós mesmos, do nosso jeito de ser e de como nos tomamos assim.

Cuidamos do nosso futuro, pensando na vida profissional e nos preparando para ela, ou nos aperfeiçoando profissionalmente. Cuidamos até da nossa alma ou do nosso lado espiritual, procurando fazer o bem, tentando descobrir em quê acreditamos além dessas coisas do mundo material a nossa volta, ou seguindo alguma religião.

Há pessoas que não tomam cuidado nem com metade dessas coisas, e vivem bastante mal, vivem a vida de uma maneira meio “estropiada”, “esculhambada”, e só percebem isso muito tarde. Mas muitos fazem quase tudo isso e se sentem satisfeitos com o modo como cuidam de si mesmos. Todos esse cuidados podem ser muito bons para uma pessoa, mas como é que sabemos que estamos cuidando dessas coisas todas da melhor maneira?

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Alguns se acham muito sábios nesse sentido, mas não examinam com cuidado aquilo que acham que sabem. Chegam a dar conselhos aos outros o tempo todo ou até a vender conselhos. Outros simplesmente seguem tudo o que as pessoas “mais sábias” dizem sem raciocinar muito a respeito, ou pegam qualquer informação que circula por ai' como se fosse uma grande verdade, e também não param para examinar com cuidado o assunto. A grande maioria das pessoas faz um pouco disso tudo: colhe uma porção de informações sem pensar no valor que essas informações têm ou não; procura ler ou ouvir o conselho de pessoas que parecem muito “sábias” porque dizem muitas “verdades” sobre a vida, e acredita nessas “verdades” sem pensar; e em alguns momentos dá conselhos “muito sábios” aos outros — sobre o que pensa que sabe, mas nunca parou para pensar a respeito.

Hoje em dia cuidamos muito pouco dos nossos conhecimentos, parece que não percebemos que eles são um tesouro que precisamos avaliar cuidadosamente, que pode ser muito valioso, mas também pode ser falso, ou ter apenas um valor muito pequeno.

Recebemos muitas informações por todos os lados, de outras pessoas, de revistas e jornais, da televisão, da internet, dos livros de auto-ajuda etc., e nos deixamos levar por essas informações que muitas vezes parecem confusas, estranhas, contraditórias ou muito vagas, como se deixassem as coisas apenas “mais ou menos” ditas, e não claramente colocadas em todos os detalhes — mas nem pensamos muito a respeito, apenas seguimos aquela informação porque fazemos uma rápida comparação com outras informações do mesmo tipo e ela pareceu a mais correta.

Parece que temos muitos saberes e informações chegando até nós por todos os lados, mas não praticamos o conhecimento, não cuidamos da nossa capacidade de aprender a respeito da nossa vida, da vida humana em geral, do mundo em que vivemos e da nossa vida no mundo, como seres humanos, E a grande maioria desses saberes e informações que temos na verdade nos ensinam muito pouco sobre essas coisas, quase nada, porque são apenas informações sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer no mundo ou saberes técnicos sobre como fazer alguma coisa ligada à nossa vida cotidiana, e são quase sempre “receitas” prontas, algumas vezes boas e úteis, outras vezes bastante enganosas: como realizar um trabalho, como conquistar quem amamos, como resolver um problema do dia-a-dia etc.

6. A FILOSOFIA NÃO É CIÊNCIA, E NÃO PODE SER AVALIADA COMO SE FOSSE.

O que é filosofia, então?

Normalmente, quando começamos a ensinar filosofia, falamos muito mais sobre a Grécia antiga, na época em que a filosofia nasceu (sete séculos antes de Cristo), comparando a filosofia com a religião da época, que era chamada de “mitologia”. Os gregos usavam a religião deles — a mitologia — como uma forma de entender o mundo. Acreditavam em vários deuses ou entidades mágicas, e cada deus ou entidade era uma força da natureza ou então da natureza humana; uma força viva ligada a alguma coisa como a terra, as plantas, os mares, os relâmpagos, a memória, a sabedoria, as palavras etc. Geralmente se começa a explicar o que é a filosofia entrando em muitos detalhes sobre a mitologia grega e de que modo os primeiros filósofos foram desenvolvendo um modo diferente, mais racional, de se pensar sobre as coisas e de se entender o mundo. l\/las não vamos começar por ai'. Vamos saltar diretamente para os dias de hoje e começar fazendo uma comparação entre Filosofia e Ciência.

Por que?

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e não temos nenhuma do que é filosofia. Por isso tendemos a olhar para a filosofia como quem olha para a ciência, ficamos esperando da Filosofia coisas que não têm nada a ver com ela, e que têm tudo a ver com ciência. Isso forma um entendimento esquisito da filosofia.

A gente não entende do que se trata, e fica achando que é uma coisa ruim, porque estamos avaliando a filosofia como se fosse ciência, como se ela devesse fazer o que a ciência faz, e de maneira científica. Acontece que se nós avaliamos a filosofia como se fosse ciência, ela fica parecendo mesmo uma péssima ciência, mas se nós avaliamos a ciência como se fosse filosofia, a ciência também fica parecendo uma péssima filosofia. São duas atividades intelectuais diferentes, duas formas de pensar diferentes, e confundir uma com a outra não ajuda a entendê-las, só atrapalha.

Não foi sempre assim, nem sempre a filosofia e a ciência estiveram separadas como duas atividades diferentes — na verdade fazem só uns poucos séculos que essa separação começou a acontecer, e ela só ficou realmente forte do século XIX para cá. Nós podemos discutir se essa separação é uma coisa boa ou não, e se a filosofia e a ciência não deviam estar unidas numa atividade só, como antigamente. Mas é preciso reconhecer que hoje as duas atividades se mostram muito diferentes uma da outra. Elas dialogam, trocam idéias, às vezes uma critica a outra, mas só em casos muito específicos aparecem realmente misturadas como se fossem uma atividade só.

Antigamente não era assim: essas duas atividades estavam sempre fundidas em uma só. No começo da filosofia, então, sete séculos antes de Cristo, essa separação não existia, as duas atividades estavam misturadas em uma só, que era muito mais parecida com o que hoje é a filosofia do que com o que hoje é a ciência, então na verdade é como se só existisse a filosofia, e dentro dela, às vezes algum assunto era estudado de uma maneira que parecia um pouquinho mais com a ciência de hoje. A grande novidade que a história nos trouxe foi a ciência como uma atividade diferente e separada da filosofia.

Primeiro foi aparecendo dentro da filosofia uma área que foi sendo chamada de “filosofia natural”, depois, dessa área da filosofia foram surgindo a física, a química e a biologia. As ciências humanas foram nascendo de outras áreas da filosofia. Pode-se dizer que todas as principais ciências de hoje — física, química, biologia, história, geografia, economia, direito etc. — nasceram saindo de dentro da “mãe” filosofia, que estudava um pouco de tudo, e se foram se tomando campos de estudo cada vez mais especializados. Só uma ciência parece ter sido mais antiga ainda do que a filosofia: a matemática. Mas quando a filosofia começou a aparecer, ela “engoliu” uma parte da matemática, e a matemática ficou meio para dentro da filosofia, meio para fora, então existia na antiguidade uma matemática que era meio filosófica, meio só matemática.

O mais importante é entender com toda clareza que hoje, de um modo geral, o que o os cientistas fazem — especialmente aqueles da matemática ou das ciências que estudam a natureza — é muito diferente daquilo que os filósofos fazem, e só em alguns pontos muito específicos essas duas atividades continuam coincidindo uma com a outra. Os estudiosos de ciências humanas — história, direito, sociologia, psicologia etc. — têm um contato bem maior com a filosofia, e o que eles fazem é um pouco mais parecido com aquilo que os filósofos fazem, mas ainda não é filosofia também.

7. POR QUE HOJE CONHECEMOS MAIS A CIÊNCIA DO QUE A FILOSOFIA?

Por que é que conhecemos hoje em dia nós geralmente conhecemos mais a ciência do que a filosofia?

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Conhecemos mais a filosofia do que a ciência porque temos alguns resultados da ciência que são de caráter mais prático ou de caráter tecnológico, temos teorias aplicadas e tecnologias que derivam das ciências puras — principalmente das ciências exatas (matemática) e da natureza (física, química, biologia etc.), mas também das ciências humanas (psicologia, sociologia, história etc.) — e convivemos no nosso dia-a-dia com resultados dessas tecnologias e teorias aplicadas que usamos a todo momento e que ocupam sempre a nossa atenção, principalmente aparelhos tecnológicos que resultam indiretamente da física: telefones celulares ou fixos, carros, ônibus, relógios, caixas registradoras, catracas eletrônicas, aparelhos de TV, de vídeo, de áudio, eletrodomésticos, computadores etc. Ficamos curiosos com a origem dessas coisas, e então as escolas, revistas, programas de TV, sites de internet etc. nos ajudam a entender que tudo isso veio da ciência, e que é importante dar valor a ela.

Vista mais de perto, a ciência não é exatamente como costumamos imaginar: por exemplo não oferece conhecimentos tão absolutamente seguros como imaginamos, e tudo o que ela tem são sempre teorias sobre o que deve ser a verdade, e não verdades. Mesmo assim, consegue oferecer todos esses resultados e nos impressiona bastante quando pensamos nisso.

Temos sempre uma pálida imagem, uma vaga idéia do que é a ciência, de como funciona realmente o trabalho do cientista. Mas temos pelo menos alguma idéia, e a idéia de que esse trabalho tem resultados que podemos sentir na prática, na nossa vida diária.

Com a filosofia não acontece nada disso. Por que aconteceu isso? Por que a ciência começou a gerar todos esses produtos práticos e a ser cada vez mais valorizada, e a filosofia não?

Isso começou no final da Idade Média, com o surgimento do capitalismo. o que é o capitalismo? É uma situação em que toda a economia de uma sociedade, e a vida das pessoas nessa sociedade, giram em tomo de uma acumulação de capital que não acaba nunca. O que é o capital? É o dinheiro, ou então aquilo que pode ser trocado por dinheiro — o crédito, os imóveis que uma empresa tem, a força de trabalho dos funcionários que trabalham nela, tudo isso faz parte do capital da empresa. No capitalismo, pessoas e organizações sentem a necessidade de estarem o tempo todo se esforçando para juntar mais capital — seja para poderem gastar no que é preciso para sobreviver, seja para enriquecer e poder melhorar de condições. Muita coisa na vida das sociedades de hoje depende direta ou indiretamente disso, e já veio começando a depender disso desde o fim da Idade Média.

E ocorre que esses aparelhos tecnológicos com os quais convivemos no dia-a-dia ajudam nas nossas atividades práticas, especialmente naquelas que chamamos de trabalho, e fazem com que elas tenham resultados mais eficazes, mais imediatos e que podem ser medidos e avaliados, e até previstos em geral com bastante precisão. E como é que se produz mais capital? Com trabalho. Graças a todos esses aparelhos tecnológicos, o trabalho rende mais, mais rápido e de aneira fácil de medir e avaliar, e até de prever. É possível calcular custos, fazer orçamentos, fixar preços etc. Por isso, no capitalismo, existe uma valorização muito grande dos aparelhos tecnológicos, das tecnologias e teorias aplicadas, e das ciências que estão por detrás delas.

8. A FILOSOFIA FAZ PENSAR NO SENTIDO DA VIDA.

No capitalismo, todas essas coisas que vêm da ciência têm um impacto muito grande nas nossas vidas diárias, mas é um impacto de um tipo muito muito menos transformador do que parece: é um impacto que não faz a gente sair do sentido normal da nossa vida. Para entendermos isto, vamos falar um pouco sobre uma coisa que pode parecer meio “aérea”, meio fantasiosa, mas

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não é. Vamos falar um pouco sobre o sentido da vida.

Na nossa vida, estamos fazendo coisas o tempo todo, estamos sempre agindo, nos movendo em alguma direção. As coisas que fazemos também têm alguma direção, elas têm algum sentido. Para evitar confusões, é preciso deixar bem claro o que estamos querendo dizer aqui quando dizemos que as nossas ações têm algum “sentido”. Normalmente, quando a gente diz que alguma coisa “faz sentido”, isso não parece ter nada a ver com o que a gente quer dizer quando diz, por exemplo, que uma rua “da mão em tal sentido”. No primeiro caso, estamos querendo dizer que a coisa não é absurda, que ela tem algum significado ou é coerente de alguma maneira. No segundo caso, estamos falando da direção de uma rua, dizendo que nessa rua é permitido que os carros avancem em uma tal direção. Mas aqui, quando dizemos que as nossas ações têm algum “sentido”, estamos misturando de propósito as duas coisas, os dois significados da palavra “sentido”.

Quando agimos, podemos dizer que havia uma certa situação antes, e a nossa ação nos

faz passar para uma outra situação, e esse é o sentido da ação: é uma ação que aponta da primeira situação para a segunda situação. Podemos imaginar até uma seta apontando da primeira situação para a segunda, representando o sentido da ação. É importante saber que quando dizemos que existem coisas “animadas” (vivas) e “inanimadas” (coisas que não são vivas), estamos usando uma palavra que deriva de uma outra muito antiga, do latim, que e a palavra anima. A palavra anima estava ligada à idéia de um sopro que faz as coisas se mexerem, terem movimento. Essa idéia era usada para se falar em um “sopro vital” ou “fôlego vital”, um sopro que existe em certas coisas — por exemplo os animais — e que dá vida a elas, um ar que corre pelo corpo e faz esse corpo estar vivo, respirando.

De qualquer modo, a palavra anima esta ligada à idéia de movimento. Um ar que move um corpo. E o que e animado (vivo), e aquilo que é movido por esse ar, por essa respiração. Daí vem a expressão “desenho animado”, por exemplo, que quer dizer um desenho que se

move como se estivesse vivo.

Então vamos imaginar a vida deste modo: feita de muitos movimentas que nós fazemos, com as nossas ações, em uma direção ou em outra. Vamos tentar imaginar assim desde o movimento que nós fazemos quando vamos até uma porta — movimento que vai no sentida da porta — o que quer dizer apenas que caminhamos naquela direção que é a da porta; até o conjunto de todos os movimentos que fazemos no sentido de dar melhores condições de vida para a nossa família, por exemplo, o que quer dizer que o significado, o que dá coerência para esses movimentos, é que eles servem para isso, para dar essas melhores condições de vida para nossa família.

Vamos pensar esse segundo tipo de “sentido” dos nossos movimentos

na vida como se fosse parecido com o primeiro tipo, isto é, como se estivéssemos falando de um movimento que aponta nesse sentida, que é o de dar melhores condições de vida para a família. Pensando desta maneira, podemos representar os dois sentidos com setas que apontam em alguma direção:

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Na nossa vida, estamos sempre fazendo uma porção de movimentos em vários sentidos ao mesmo tempo. Alguns mais importantes para nós, outros menos. Cada um deles puxa nossa vida em uma direção, alguns com muita força, outros tão pouco que nem fazem diferença. Se vou ou não em direção a uma porta, isso pode não fazer diferença nenhuma no conjunto da minha vida, mas se vou ou não na direção de dar melhores condições de vida para minha família, isso faz uma diferença enorme, minha vida acaba sendo puxada nessa direção com muito mais força, e muitos dos outros pequenos sentidos das minhas ações acabam sendo dirigidos também por esse sentido maior.

O conjunto dos sentidos de todas as nossas ações, importantes ou sem nenhuma importância, acaba formando o sentido geral que a nossa vida segue, e que é resultante de todos eles, uma espécie de média. Se a nossa vida é puxada para um lado com certa força, e para outro com outra força, acabamos seguindo por um caminho médio, uma caminho do meio, que é o caminho resultante. E é claro que esse caminho do meio está mais desviado para o lado daquilo que mais puxar a gente. Por exemplo:

Neste diagrama acima, a seta pontilhada é resultante das outras duas, ou seja, é o sentido geral que a vida dessa pessoa realmente está tomando na prática, no final das contas. E o que se pode ver pelas setas é que temos ai' uma pessoa que se dedica muito ao trabalho, e acaba dando um pouco menos de atenção para a família. Talvez até exista algum um modo de uma coisa combinar bem com a outra, de os dois sentidos não servirem de desvio um para o outro, e apontarem numa direção mais próxima, mas não é o que está acontecendo com essa pessoa do diagrama acima. Geralmente nós nem pensamos muito no sentido geral que a nossa vida está tomando.

Vamos sendo puxados para lá e para cá, pela necessidade de sustentar a família, ou pela necessidade de resolver um problema atrás do outro no trabalho, ou então por qualquer outra coisa.

Pois bem: a ciência, atualmente, só tem entrado em contato com a nossa vida através da tecnologia e das técnicas para resolver problemas e tarefas, das teorias aplicadas e principalmente dos aparelhos tecnológicos, que ajudam também a resolver problemas e cumprir tarefas do dia-a-dia. Tudo isso quase sempre tem ajudado muito a acelerar a nossa vida na mesma direção que ela já vinha tomando, mas são coisas que nos ajudam muito pouco, talvez quase nada, a pensar qual é realmente o sentido que queremos dar à nossa vida.

Todas essas coisas que nos ajudam a resolver problemas e cumprir tarefas diárias, tudo isso, vai sempre em uma direção só: a mesma que já estamos segundo, seja ela qual for. E essa direção, desde o final da Idade Média, isto é, desde o inicio do Capitalismo, no fundo tem sido quase sempre

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mais ou menos a mesma para todos os que vivem em sociedades capitalistas: conseguir capital, manter o capital, aumentar o capital — porque no capitalismo, este é o quase único jeito de se conseguir seguir pelo menos um pouquinho em qualquer outra direção que nos interesse.

Mas existem várias maneiras de se cultivar o o pensamento, os sentimentos e o espírito humano em geral. A ciência é só uma delas. A tecnologia e as teorias aplicadas são outra. A técnica é mais uma. Essas têm sido valorizadas, mas existem outras. A religião é uma das poucas formas de cultivar o pensamento, os sentimentos e o espirito humano em geral, que além de ajudarem a pessoa a parar um pouco e enxergar os caminhos que a sua vida está tomando, para refletir sobre isso com senso crítico, continua sendo uma atividade muito valorizada. Mas geralmente, uma religião costuma apresentar para a pessoa um outro caminho que é um só, uma única alternativa, e geralmente critica os caminhos da vida a partir desse ponto de vista sem fazer autocritica. Isso porque o papel das religiões não é exatamente o de fazer as pessoas pensarem criticamente, e talvez não seja correto julgar as religiões em função disso, porque não é isso o que elas pretendem. O forte das religiões é trabalhar com a fé, fazer as pessoas terem fé nessa outra alternativa, e não fazer as pessoas pensarem criticamente. Por isso, uma religião só costuma mostrar interesse em fazer a pessoa pensar criticamente quando essa critica é favorável para a alternativa que ela mesma (a religião) esta oferecendo, e às vezes até tem medo de deixar a pessoa pensar criticamente, como se isso fosse fazer a pessoa perder a fé — o que não é verdade: quando a pessoa pensa criticamente, o que acontece é que ela toma suas decisões com mais consciência e com mais firmeza, mas ao mesmo tempo percebendo o que precisa ser corrigido e melhorado no caminho que ela escolheu.

Qual é o caminho, é coisa que depende da escolha de cada um.

A filosofia e a arte também oferecem meios para a pessoa pensar sobre os rumos que está dando para a vida. Mas fazem isso com muito mais intensidade, porque esse é justamente o papel delas. A arte faz a pessoa experimentar sentimentos e sensação diferentes, e isso faz a pessoa pensar sobre o que está sentindo e experimentando na sua vida diária. A filosofia faz a pessoa raciocinar criticamente a respeito das coisas, experimentando maneiras diferentes de pensar a respeito delas; estudar filosofia ensina a pessoa a pensar em possíveis alternativas comparando-as umas com as outras e avaliando cada uma delas.

De todas as formas de cultivar o pensamento, os sentimentos e o espirito humano em geral, a filosofia e a arte são as que mais permitem a pessoa repensar os caminhos da sua vida por si mesma, sem apontar necessariamente para ela um caminho só como se fosse o melhor.

Porque é justamente esse o sentido da filosofia e da arte, foi nesse sentido que essas duas atividades se desenvolveram entre os seres humanos: são atividades que servem para abrir possibilidades. A arte faz isso trabalhando principalmente com os sentimentos e as sensações. A filosofia, trabalhando principalmente com a razão. Por isso essas duas atividades às vezes dão a sensação de estarem nos colocando fora da realidade: porque estão mesmo, estão fazendo a gente enxergar a nossa realidade de um outro ângulo, que não é esse do qual estamos acostumados a vê-la. Fazem a gente parar um pouco de pensar só nos passos seguintes dentro daquele mesmo caminho que já estamos seguindo, para pensarmos no que podia ser diferente.

É claro que se os caminhos que estamos seguindo em geral é no fundo sempre o mesmo — conseguir capital, manter o capital, juntar mais capital, para conseguirmos pagar os pequenos desvios em direção a outras coisas que queremos — a filosofia e a arte não se encaixam muito bem naquilo que interessa ao capitalismo, então o capitalismo acaba encontrando um meio de isolar ou deturpar essas atividades. A arte é afastada da vida diária e trancada em museus; ou é transformada em ferramenta de marketing, e o seu trabalho com os sentimentos e sensações é direcionado no sentido de tornar produtos atraentes para a venda e o consumo; ou então é transformada em pura diversão para distrair as pessoas e fazê-las esquecerem um pouco dos problemas do dia-a-dia (mas também do maior problema de todos, que e o problema do sentido da vida). E a filosofia é

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transformada em uma espécie de luxo esquisito para gente que gosta de ficar “viajando” com o pensamento por idéias malucas que não têm nada a ver com a realidade. E não é verdade, essa é uma imagem falsa da filosofia.

Examinemos um pouco a situação em termos capitalistas. Vejamos o que se pode medir e avaliar do impacto do aprendizado de filosofia pelas pessoas, em uma sociedade, a filosofia é sim uma atividade que pode ter grande impacto na vida de uma pessoa e na vida das pessoas em geral, em uma sociedade. Um impacto muito mais amplo, mais intenso e mais profundo, aliás, que o dos aparelhos tecnológicos que mexem tanto com a nossa vida. Mas o impacto da filosofia é lento, de longo prazo, e imprevisível Não dá para saber qual será exatamente o resultado do estudo de filosofia na vida de uma pessoa e menos ainda na vida de uma sociedade, se a maioria das pessoas estudar filosofia. Não é possível prever que tipo de impacto será, a única coisa que é possível prever é que as pessoas provavelmente vão pensar mais com as suas próprias cabeças, ter mais senso critico, e ficar menos passivas e conformadas. O impacto pode ser inclusive bastante prejudicial quando se quer que as coisas continuem na mesma, porque uma pessoa com muito senso crítico e que não se conforma com facilidade diante do que acha errado, tende a exigir mudanças.

Para além disto, não é possível nem medir exatamente o grau desse impacto, só se sabe que ele geralmente ocorre — embora é claro que também tenha gente que nunca se deixa atingir pela filosofia, e que passa por esse estudo em branco, como acontece com qualquer outra matéria que se estuda. Em suma: do ponto de vista capitalista, estimular as pessoas a estudarem filosofia é um investimento de altíssimo risco. Em geral, nos dias de hoje, em cada cinqüenta pessoas que estudam filosofia porque são obrigadas a isso, pode-se dizer que umas cinco, no futuro, acabam sentindo uma diferença realmente considerável em suas vidas. Na verdade e um percentual bastante alto, e quem lida com educação sabe disto, Entre as pessoas que se interessam e começam a estudar filosofia por conta própria, só para experimentar e sem serem obrigadas a isso, parece que o percentual do impacto disso na vida delas tende a subir enormemente, e muito poucas pessoas que fazem isso acabam mais tarde esquecendo do que estudaram e deixando isso de lado.

Mas vivemos em tempo de capitalismo, e a filosofia está fora de moda. Hoje em dia, quando alguém diz que estuda filosofia, as pessoas ficam admiradas: “Oh! Filosofia!”. Acham mesmo admirável, como se fosse uma coisa muito difícil e grandiosa, mas admirável desde que os estudos filosóficos fiquem bem longe da vida no dia-a-dia, como se fossem pinturas penduradas em uma parede de algum museu bem velho. Quando o filósofo se mete a pensar a respeito da vida, as pessoas ficam perturbadas, e logo querem fugir para as tarefas cotidianas e os pequenos problemas do dia-a-dia. No melhor dos casos, querem exigir que a filosofia se comporte como a ciência: que ela produza resultados que sirvam para resolvermos melhor os problemas e cumprirmos melhor as tarefas da vida diária, isto é, para seguirmos melhor no mesmo caminho que já estamos seguindo, sem precisarmos pensar muito a respeito. Mas este não é o papel da filosofia, querer que a filosofia faça isso, é não querer filosofia.

A filosofia incomoda porque é parece uma atividade preguiçosa, as pessoas acham que têm mais o que fazer do que ficarem pensando na vida. Mas o fato e que as pessoas têm preguiça de serem filosoficamente preguiçosas, porque têm preguiça — e na verdade, mais do que preguiça, muitas vezes têm até um pouco de medo — de pensar. E que essa tal “preguiça” filosófica na verdade é extremamente trabalhosa: exige um grande e constante esforço do pensamento, e não oferece nada pronto, não oferece nenhuma resposta segura e definitiva para nada: obriga a gente a escolher os nossos próprios caminhos e a construir, com o nosso próprio raciocínio, as nossas próprias decisões e nossa própria segurança a respeito dessas decisões, que às vezes podem mexer com toda a nossa vida.

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9. A ESTRUTURA DA FILOSOFLA É DIFERENTE DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA.

Quando comparamos a estrutura da Ciência como um todo, com todas as suas teorias, com a estrutura da Filosofia como um todo, também com todas as suas teorias, podemos levantar um diagrama para representar essa comparação, que seria mais ou menos assim:

Nesse diagrama, os círculos representam teorias coerentes e bem-estruturadas e as manchas de forma menos simétrica e definida são regiões com pontos de acordo entre os pesquisadores, mas acordos que não chegam a formar uma teoria. Quanto mais escuros o círculos e manchas, mais gente no conjunto dos pesquisadores dessa área está de acordo com a teoria ou participando dos acordos que fazem parte da mancha. As setas (não importa a cor) representam os desacordos, as discordâncias. O que esse diagrama quer mostrar é o seguinte: nas ciências exatas, como a Matemática, e nas ciências que estudam a natureza, costuma existir uma grande teoria com a qual quase todos os pesquisadores da área concordam. É o que se chama de “teoria standard”, ou “teoria padrão”. Por exemplo a teoria do átomo: é difícil encontrar químicos que discordem que todas as substâncias químicas são feitas de átomos e moléculas formadas por esses átomos. Em uma ciência que estuda os fenômenos da natureza, podem existir teorias que discordam dessa teoria geral, mas costumam ser poucas e pequenas. Para crescerem e ficarem fortes, essas pequenas teorias discordantes tentam conseguir a aceitação e a concordância de mais gente na área. Se nenhum outro cientista da área concorda com uma teoria, ela não e valorizada, pouca gente dá importância para ela.

Para conseguir que outros cientistas concordem com uma teoria nova e muito diferente, um cientista precisa seguir certos critérios de validação quando constrói essa teoria. Precisa seguir certas regras que são aceitas por toda a comunidade dos cientistas dessa área, regras que determinam como uma boa teoria deve ser construída. Em geral, e preciso que a teoria passe por experimentos em laboratório que sejam muito bem controlados e examinados, e por cálculos lógicos e matemáticos que mostrem se o cientista está raciocinando direito quando faz previsões ou quando

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tira suas conclusões a partir desses experimentos. Os outros cientistas vão checar com muito cuidado se ele fez tudo direito antes de decidirem se concordam com sua teoria ou não. Mas a teoria só passa a ser considerada válida depois que foi checada e que a comunidade dos cientistas da área passou a concordar com ela, ou pelo menos a concordar que ela tem boas chances de ser verdadeira.

Quando vamos passando do campo das ciências exatas e ciências da natureza para o campo das ciências humanas — aquelas que estudam fenômenos ligados aos seres humanos e à sua forma de pensar, sentir, viver e conviver uns com os outros — percebemos que as ciências humanas já se estruturam de uma maneira um pouco diferente: dificilmente existe uma teoria só com a qual todos os estudiosos de uma mesma área de humanas, ou pelo menos a maioria deles, concorde. Em geral existem algumas grandes teorias igualmente importantes, mas que não concordam muito umas com as outras, e os estudiosos se dividem, alguns preferem uma delas, outros preferem outra. Continuam existindo muitos pontos de acordo entre essas teorias, mas eles já não são tão sólidos e seguros, e não chegam a se articular de maneira coerente e a formar uma “teoria padrão” para todos os estudiosos da área. Então, como essas grandes teorias não concordam umas com as outras, os debates começam a se intensificar. Em ciências humanas há muito mais discordância, e discordâncias muito mais profundas, do que nas ciências exatas ou naturais. Por isso também há muito mais debate nas áreas de humanas, e muito menos informações que são consideradas inquestionáveis. Existe mais espaço para questionar e discutir as coisas, mas também menos certezas e menos segurança.

Pelo diagrama, pode-se notar que a estrutura das ciências humanas parece estar no meio do caminho entre a estrutura das ciências exatas e naturais e a estrutura da filosofia. Então, comparando as ciências exatas e naturais com as ciências humanas, fica um pouco mais fácil entender a filosofia: ela tem uma estrutura que se parece bem mais com a das ciências humanas, e tem mais ou menos as mesmas diferenças em relação à estrutura das ciências exatas e naturais. Só que na filosofia, essas diferenças aparecem em um grau muito mais alto, as diferenças são muito mais radicais.

Em filosofia, os pontos de acordo existem, mas são poucos e muito vagos, e nem sempre parecem muito importantes. Não existe nenhuma teoria padrão que todos aceitam, e pelo contrário, existem muitas e muitas grandes teorias — na verdade uma enorme quantidade delas — todas muito importantes, e que não concordam em quase nada umas com as outras. O que se destaca e aparece mais são as discordâncias entre as teorias. Há sempre muitas discordâncias e muito profundas entre elas. O clima normal da filosofia é o de um debate interminável entre as teorias.

A filosofia se estrutura, então, como se fosse uma enorme rede de debates que vão se desenvolvendo ao longo da história, um verdadeiro campo de batalhas intelectuais. Mas o que a faz especialmente diferente das ciências, e que uma teoria filosófica não precisa ser aceita pela comunidade dos filósofos para ser considerada válida. Para ser valorizada, ela não precisa que a maioria dos filósofos concorde com ela, nem mesmo que concordem que ela tem muita chance de ser verdadeira. Existem filosofias para as quais o fato de uma teoria ser “verdadeira” ou não tem a menor importância3, porque o que um filosofia procura não é necessariamente isto, embora possa

também procurar isso.

3 Por exemplo: a filosofia de um pensador do século XIX (e considerado bastante atual) chamado Nietzsche, considera a própria vontade de se encontrar uma verdade como algo que precisa ser criticado e diz que o papel da filosofia não e o de buscar verdades, mas repensar os valores morais. E existe já desde a antiguidade uma filosofia chamada “ceticismo

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