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O discurso social e a subjetividade do indivíduo na contemporâneidade

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Academic year: 2021

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DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA– UNIJUI

SABRINA GOIS DOS SANTOS

O DISCURSO SOCIAL E A SUBJETIVIDADE DO INDIVÍDUO NA CONTEMPORÂNEIDADE

Ijuí 2016

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O DISCURSO SOCIAL E A SUBJETIVIDADE DO INDIVÍDUO NA CONTEMPORÂNEIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo.

Orientadora: Kenia Spolti Freire

Ijuí 2016

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À minha orientadora, que por este longo percurso me orientou de forma segura e competente, o que me deu a confiança necessária pra escrever e finalizar este trabalho.

À minha banca, por aceitar o convite, pelas sugestões e contribuições para com este trabalho.

À minha família, que me apoiou desde o início de minha não tão leve jornada. À minha mãe, que me ajudou “segurar a barra” quando tudo parecia difícil; à minha irmã, que sabe dar abraços de conforto; ao meu companheiro e amigo que nunca me deixou desistir; ao meu pai que, mesmo longe, me inspira com coisas sábias; à minha meia irmã menor, por ser uma criança que me ensina muita coisa.

À minha amiga e colega Alessandra, por vivenciar comigo essa caminhada, por cada sorriso e cada lágrima que compartilhamos, por estar sempre presente.

A todos aqueles que me acompanharam durante este percurso acadêmico, aos amigos de longa data, aos colegas que se tornaram amigos, amigos de outros cursos e de outras cidades que conheci, enfim, a toda essa diversidade que compõe o que eu sou hoje.

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Para dentro do homem o homem caía.

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O presente trabalho tem como objetivo investigar possibilidades de configurações de vínculos humanos pautados pelos significantes referenciais de uma época. Para isso, faz-se uma retomada histórica a partir da transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna, abordando a questão da perda dos ideais antigos pelos novos ideais, que hoje são apresentados de forma industrializada, pré-fabricados em formas de imagens-fetiches. As configurações atuais são determinadas de acordo com o discurso capitalista, que por sua vez articula a lógica do consumismo e propõe a produção humana permeada pela lógica narcisista.

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This work aims to investigate the shapes of social configurations in contemporary world and its implications in present individuals. To do this, it makes a historical retake of the transition from a traditional to a modern society, addressing the replacement of the old ideals by the new ones, that now are being presented in industrialized forms, prefabricated in fetishist forms of images. Current social configurations are ruled by a capitalist discourse, which dictates consumption and sets in motion a narcissistic logic. These are consequences of social changes suffered over the decades, wich makes human relationships more difficult.

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INTRODUÇÃO ... 13 1 A PASSAGEM DA SOCIEDADE TRADICIONAL PARA A MODERNA E SUAS CONFIGURAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE... 15

1.1 Breve discussão sobre a Modernidade ... 21 2. DAS “NOMINAÇÕES” DA MODERNIDADE À CONTEMPORANEIDADE ... 30 3. A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E A FORMAÇÃO DO VÍNCULO PERANTE AS CONFIGURAÇÃOES DA SOCIEDADE ATUAL ... 36

CONCLUSÃO ... 53 REFERÊNCIAS: ... 57

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho refere-se às mudanças sociais que ocorreram na transição da sociedade tradicional para a moderna, o que, em última e atualizada instância inclui a globalização, traço característico da contemporaneidade. Estas novas configurações sociais, que vão se modificando e surgindo com o tempo, afetam o indivíduo enquanto sua condição de sujeito e na sua relação com o social. Este se configura articulado às ordens que determinam as relações e o mercado contemporâneo: o capitalismo, o consumismo e as relações pautadas por imagens. Essas condições vêm a contribuir para o desencadeamento de uma lógica narcisista, que engloba os indivíduos deste tempo, e que se caracteriza como uma forma de designar uma possibilidade de mal-estar contemporâneo.

O interesse por essa temática surgiu através dos estudos sobre os discursos sociais, em período de Graduação Acadêmica, sobre os quais não se fazem sozinho, pois precisam que algo aconteça desencadeando novas formas dos indivíduos se organizarem socialmente. A partir disto, surgiu a necessidade de buscar o que aconteceu na história, que foi transformando a sociedade, chegando à atual situação, e pensar a condição humana referida ao contexto social contemporâneo.

Quanto à ordem de discussão teórica presente neste trabalho, foi necessário dividi-lo em dois capítulos. No primeiro capítulo é apresentada uma retomada histórica e sociológica sobre as comunidades tradicionais que sofreram alterações nos seus modos de funcionamento com o advento da modernidade. No que se discorre destes acontecimentos históricos, situa-se a contemporaneidade, a qual é problematizada a partir de estudos sociológicos acerca das maneiras que se buscam para nomear os tempos atuais. A respeito disso, utiliza-se o termo contemporaneidade para se referir ao momento atual, em imparcialidade subjetiva quanto aos diferentes posicionamentos encontrados em diferentes correntes de pensamento referentes à Sociologia e Filosofia.

O segundo capítulo começa por tratar dos conceitos utilizados por sociólogos com intuito de caracterizar e nominar o período atual, e considerações acerca dos motivos pelos quais os autores alegam não poder se chamar a contemporaneidade de pós-modernidade. O terceiro capítulo diz dos estudos

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psicanalíticos referentes à formação psíquica do sujeito, tomando pela via da importância do laço com o Outro, para se estruturar psiquicamente e formar vínculo com o social. Em seguida, discute-se brevemente sobre o mal-estar social e um questionamento sobre como na contemporaneidade impera o discurso do capitalista. Discorre-se sobre a lógica do consumo vigente nesta época perfaz o acontecimento dos laços e possíveis determinações do lugar do sujeito – tomado como aquele que consome e que, por revés da mesma lógica, se esboça como objeto às vias de ser consumível. Discute-se ainda sobre a sociedade do espetáculo, sobre o consumo de imagens-fetiches, o que leva a considerar o jogo da correspondência narcísica na produção humana deste tempo. Por fim, a discussão encerra-se com Lasch, o qual apresenta o narcisismo como forma de estar em sociedade, mas também articulador de configurações de mal-estares deste tempo.

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1 A PASSAGEM DA SOCIEDADE TRADICIONAL PARA A MODERNA E SUAS CONFIGURAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE

Sabe-se que o indivíduo contemporâneo é um sujeito que se encontra à mercê das modificações sociais do seu espaço e tempo sofridas no decorrer da história da humanidade. Modificações estas que influenciam constantemente os modos de vida atuais, bem como na singularidade do sujeito contemporâneo. Para chegar até o momento atual, a sociedade humana passou por uma trama de revoluções e evoluções que impactaram na mudança da cultura, nas artes, nas ciências, política, economia e nos pensamentos e ideias filosóficas concernentes à época.

Ao retomar os primórdios da civilidade social, fazendo um resgate histórico e sociológico da sociedade tradicional, e de como ocorreu a transição para a sociedade moderna, constata-se que houve algumas importantes mudanças sofridas neste curso, pelas quais culminou no que se chama hoje de contemporaneidade. Sobre estas reconfigurações, alguns discutem e propõem termos, tais como: modernidade líquida, modernidade radicalizada; entre outros.

A Sociedade Tradicional pode ser situada no período que corresponde historicamente à Idade Média. Essa sociedade continha em seu âmago uma miríade de particularidades que faziam jus à organização social e modos de vida da época. Neste período encontra-se uma sociedade baseada na produção agrária e organizada em feudos. As classes sociais predominantes eram constituídas principalmente por um rei, senhores feudais e seus vassalos, e o restante e maioria da população, nomeados como servos.

Os laços que constituíam esta organização eram laços de dependência, sendo que a realização do trabalho de um articulava-se em dependência ao do trabalho do outro. Portanto, “todos os membros da classe dominante, desde os menores cavaleiros até o rei, ocupavam um lugar na hierarquia feudal e possuíam laços de dependências com outros membros da sociedade feudal” (PERRY, apud. BEDIN p. 37) As classes mais baixas que procuravam os senhores para oferecer serviços, também o faziam pela “necessidade de procurar um protetor, que lhe

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garantisse a existência com um mínimo de tranquilidade e o alimento necessário para a sobrevivência” (BEDIN, 2008, p. 33).

Nesta sociedade, era costume passar as tradições do ofício da família de geração a geração, ou seja, as habilidades eram transmitidas de pai para filho ao longo de muitos anos. Antes de nascer, a criança já estava predestinada a seguir os destino inaugurado pelo patriarca da família.

Enquanto persiste o império da tradição, cada homem permanece absorvido na gregariedade da existência coletiva. Não é protagonista dos próprios atos, pensa e age coletivamente, governado por um só princípio, a tradição. Faz o que seus pais e avós faziam desde tempo imemorial. (KUJAWSKI, 1988, p. 20)

Também neste período, tem-se como concepção filosófica da época o Teocentrismo, no qual Deus é tido como o centro do universo, criador e regente de todas as coisas. Essa concepção ideológica está fielmente ligada ao predomínio do catolicismo em toda Europa, onde a Igreja, com seu poderio, mantinha um monopólio sobre todo conhecimento. Nota-se a relação entre a tradição que estava implantada na sociedade medieval com o poder da Igreja e o Teocentrismo a partir da filosofia de Tomás de Aquino, a qual aborda a determinação dos lugares dos homens na sociedade de antemão pré-estabelecidos pela essência de todas as coisas, ou seja, Deus.

[...] a essência é precisamente o que indica a cada realidade seu lugar específico na totalidade da realidade. A ordem fundamenta-se na determinação do lugar próprio de cada realidade no todo. [...] o sentido da ação humana consiste em assumir, em consciência e na vontade, o lugar do homem no todo da realidade. Seu lugar não é, porém, fruto e sua escolha: já está estabelecido por sua essência e pela essência de todas as coisas. (OLIVEIRA, 1993 p.17)

Também neste período, a sociedade seguia preceitos do Holismo, a partir do qual grupos sociais, ou então comunidades, são colocadas numa posição mais elevada do que os próprios indivíduos que os compõem. O que vale nesta organização é o bem comum de todos, do coletivo, da comunidade.

Com as Cruzadas, aconteciam eventos denominados burgos ou feiras, nos quais soldados que lutavam nas Guerras Santas traziam objetos para negociar nas comunidades. Destes ocorridos, surgiu uma nova classe social: a burguesia,

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instalando–se como um novo sistema comercial que persiste até hoje, nomeado como Capitalismo.

Essa nova forma econômica que começava a se desenhar na época não era bem vista pela Igreja, que concebia a burguesia como sendo escrava do vício e amante do dinheiro. Isso se deve à premissa tradicional da qual o homem deveria consumir apenas o que produzisse com o seu trabalho, sendo a riqueza somente reconhecida enquanto produto de herança. Junto com a criação da moeda que o capitalismo trouxe consigo, transcorreu a crise do sistema feudal e o êxodo rural da população campesina. Esta alteração no laço social e comercial produziu o declínio do estado de servidão, desencadeando um discurso à possibilidade da existência do homem livre e assalariado, nos burgos. Essas novas organizações sociais nucleares prediziam as formações das cidades.

A partir de então vão se perdendo as tradições das famílias campesinas, as quais eram passadas de pai para filho ao longo das gerações, pois o novo modo de organização social faz com que as famílias acabem se desmembrando. Há também o interesse de melhorar o modo de vida e a subsistência ao desempenhar novas funções como homens livres. A partir destes ocorridos, observa-se que:

[...] as classes trabalhadoras rompem com os processos de identificação com a terra e com os laços de dependência, passando a se identificar com as formas urbanas de sociabilidade e a aspirar a liberdade que ela insinua, e às vezes realiza. Com isso a sociedade feudal está definitivamente superada, surgindo, a seguir em seu lugar, a sociedade burguesa moderna. (BEDIN, 2008, p. 60).

Neste momento, já se pode situar o Renascimento, momento no qual a sociedade ingressa na passagem da Idade Medieval para o início da Idade Moderna. Essa transição trouxe consigo uma mudança de pensamento na sociedade, da economia e das correntes filosóficas da época, bem como vários movimentos culturais que foram se desdobrando em diversas regiões da Europa e da Ásia.

O Renascimento traz movimentos de reformas na religião, retirando então a Igreja Apostólica Romana da detenção do poder de criação de novas ideias e produção de conhecimento. Isso faz com que a Igreja adote medidas contra estes movimentos, as quais não foram suficientes para que os homens continuassem em busca de novos pensamentos e modos de viver.

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Desta revolução, a corrente filosófica antes guiada pela Igreja Católica, correspondida pelo Teocentrismo, passa então a adotar o pensamento Antropocêntrico. A partir disso, em vez de Deus ser criador e regente de todas as coisas e considerado o centro do universo, passa-se a pensar no homem como centro do universo. O Antropocentrismo reconhece o homem como um ser de inteligência, o qual seria capaz de decidir e ser responsável pelas suas ações no mundo que vive.

[...] o “fundamento da moralidade” vai ser agora a própria autodeterminação do homem enquanto liberdade. A nova instância de fundamento da vida ética vai ser o sujeito, enquanto aquele que se caracteriza pela presença a si, autoconsciência, e pela ação a partir dessa consciência. O sujeito vai interpretar-se, ao longo da modernidade, cada vez mais como “autônomo”, à medida que ele medeia e fundamenta seu próprio agir. (OLIVEIRA, 1993 p. 18)

Portanto, um pouco mais livres do poder da Igreja e pautados na decisão de suas próprias razões (ideais antropocêntricos), e em decorrência da perda dos preceitos do Holismo (pensamento no bem comum) por consequência do pré-capitalismo, os homens da transição sociedade tradicional - sociedade moderna passam a caminhar para a lógica do individualismo.

O individualismo não se trata de egoísmo, mas traz em seu âmago a exaltação do indivíduo acima da comunidade a qual pertence. O individualismo propõe ideais contrários aos ideais do Holismo, pois nesta condição o homem já não estaria com seus pensamentos voltados para o bem comum, mas para seu próprio bem, principalmente referido à subsistência.

Diante deste contexto, o conhecimento científico avança e as pesquisas humanas passam a ser baseadas na experimentação. Os centros urbanos crescem em consequência da produção da burguesia e da nova forma de economia que começava a predominar na sociedade. Houve uma significante migração dos camponeses e homens livres para as cidades, todos com intuito de poder melhorar seu modo de vida, seu status social, querendo conseguir “um lugar ao sol”.

A burguesia, já instalada e em estado de bom funcionamento, alia-se ao rei, instaurando o Absolutismo, no qual o poder era dividido entre os interesses econômicos dos burgueses e interesses políticos e jurídicos destinados ao rei. Constitui-se, desta maneira, o Estado Moderno, absolutista e unificado. Nesse

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Estado Absolutista, transcorre a normatização das leis hierárquicas, a padronização da moeda e a padronização das línguas.

A partir da padronização da moeda, que diz também sobre pesos e medidas, se buscava a facilidade nas transições econômicas e um Estado Unificado. Sobre a padronização das línguas vê-se a tentativa do poder absolutista em abolir os dialetos advindos do latim, as chamadas línguas vulgares. Esses dialetos eram praticados nas comunidades e subúrbios de grande parte da Europa. A tentativa de abolir veio a sufocar não apenas os modos de falar, mas também costumes e tradições ligadas a essas línguas locais das pessoas que viviam nesses lugares distintos, pela imposição de apenas um modo de falar. Estabelecem-se, assim, as então denominadas línguas nacionais, que correspondem ao português, inglês, francês, etc. Sobre essas línguas nacionais, também se coloca um padrão, o qual corresponde às regras gramaticais.

Com a burguesia enriquecendo e o poder unificado, começou-se a procura de novas rotas de navegação marítima, pois o mediterrâneo era controlado por turcos e italianos que cobravam altas taxas de impostos. A burguesia, então, principal interessada, começa a custear as grandes navegações, que teriam o intuito de buscar especiarias e produtos de luxo para “alimentar” a nobreza e, principalmente, a realeza.

As consequências das grandes navegações foram destacadamente a descoberta do “Novo Mundo”, marcando o descobrimento das Américas, bem como a certificação da teoria do Heliocentrismo de Copérnico, considerada uma das principais ocorrências da revolução cientifica na época.

Neste período de tempo que corresponde ao Absolutismo, o qual foi marcado pela centralização do poder na figura do rei, se estabeleceu uma unidade a todas as coisas que correspondiam ao Estado: economia, leis, território e aparato burocrático. Com o poder monetário em mãos, os reis desta época geralmente cobravam impostos altos do povo e da burguesia, esbanjando-o em festas, jantares e artigos de luxo - as chamadas especiarias, trazidas de territórios com características exóticas.

Após um longo período no qual o Absolutismo, juntamente com o funcionamento da nova forma econômica capitalista e a burguesia, ficou implantado no poder, o sistema começou a entrar em colapso. A cobrança de altas taxas monetárias, o descaso para com o povo, os movimentos protestantes, a fome e a

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peste foram motivos fortes para que o poder do estado absolutista começasse a declinar, culminando em movimentos revolucionários liberais em várias partes da Europa.

Destes movimentos revolucionários, há um que se destaca, a Revolução Francesa, na qual o povo saiu às ruas reclamar por voz nas decisões políticas e econômicas. Os ideais hierárquicos do Absolutismo, que visavam privilégios para nobres e clero, foram derrubados pela massa, pautados nos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A causa em questão movimentava-se a partir do descaso do rei para com o povo, a decadência da aristocracia, bem como um período de crise e fome que assolava o país. A revolução foi baseada também em princípios do Iluminismo, que começava a surgir uma época, princípios estes contrários ao absolutismo e à intolerância religiosa.

O Iluminismo defendia o fim da intervenção do estado na economia, o que gerava consequentemente as desigualdades sociais. Para se alcançar a igualdade social considerava-se necessária a liberdade de expressão e a igualdade econômica. Lutava-se contra os privilégios feudais e de concessão de terras e propriedades.

Foi uma revolução que afetou não só a Europa, mas também a grande parte do planeta. Dela, tem como consequência a abolição dos laços familiares e comunitários fundados nos princípios de vassalagem e respeito às ordens hierárquicas predominantes na época.

Aqui, então, e com o surgimento do primeiro Estado, instaura-se um novo regime político e econômico, suplantando-se definitivamente o capitalismo. Perante a esta nova condição social, o indivíduo passa a se referir primeiramente ao Estado; e posteriormente à sua família e círculo social, sendo esta a passagem e a configuração da Idade Moderna.

Os indivíduos, nesta transição, perdem o referencial da tradição que os guiava até então – descriminada pelas relações pessoais e contratos de fidelidade e dependência uns dos outros –, passando a constituir um novo tipo de relação, pautada nas regulamentações do Estado, ou seja, nas relações de cunho burocrático e de trabalho.

Em consequência à Revolução Francesa e à constituição do Estado-Nação, há a criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, anunciada na França em 1789, a qual vai definir os direitos dos indivíduos, no âmbito coletivo e

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no âmbito individual, com perspectiva de predominância universal. A partir da Declaração dos Direitos Humanos, o slogan da Revolução Francesa se esboçou - Liberdade, Igualdade, Fraternidade -, tendo o grupo revolucionário maior apreço pela liberdade.

1.1 Breve discussão sobre a Modernidade

Em Psicanálise e Colonização, Calligaris (1999) aponta o evento das grandes navegações como uma marca importante do nascimento da Modernidade, no sentido de que “a viagem de Colombo acabou e continua sendo uma metáfora do fim do mundo fechado, do abandono da casa materna e paterna” (CALLIGARIS,1999, p. 12). O autor também aborda as grandes navegações como possíveis através do avanço dos conhecimentos adquiridos com o advento do Iluminismo, dos quais o homem se aventura para fora de seu território em busca não só dos bens materiais luxuosos para objetivo comercial, mas também pelo desejo despertado em buscar novos conhecimentos.

Este posicionamento de movimento do homem moderno, que sai de suas novas aglomerações territoriais urbanas na Europa e vai à busca do materialismo e novas ideologias, é questionado por Calligaris (1999) no que se refere à necessidade em si – traço tradicional que passa a enfraquecer com a lógica do capitalismo.

Como já explicitado anteriormente, na Idade Moderna juntamente com a implantação da burguesia e sistema econômico capitalista, foi costume dos reis e da nobreza adquirirem produtos de luxo. Esses produtos só poderiam ser adquiridos por essa classe social elevada, porém não era isto que os caracterizavam, pois podiam pertencer a esta classe social sem querer comprar esses produtos, pois era o dito supérfluo, não se constituindo uma necessidade. Mas apenas esta parcela de pessoas tinha acesso às especiarias.

O que Calligaris (1999) aponta é justamente para essa lógica, questionando o ímpeto e os motivos do homem se lançar ao mar em uma aventura sem certezas. Seria mesmo a busca por algo melhor e por subsistência, ou seria já a busca de se fazer valer através dos bens materiais? Para entender claramente essa lógica, propõe:

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Não há melhor descrição do fim da sociedade tradicional: o lugar social de cada um passa a ser decidido pelo reconhecimento que ele obtém dos outros, e os objetos de desejo passam a valer como meios para conseguir um lugar ao sol. De repente, nenhum deles pode apagar um desejo que transcende qualquer necessidade. (1999, p. 14)

Aqui insere-se de modo abrupto na discussão da lógica que se inverte na passagem da Sociedade Tradicional para a Sociedade Moderna e vai culminar na lógica que rege os dias de hoje. Infere-se, neste momento, a logica de passagem do Ser ao Ter. O Ser viria de uma lógica tradicional e estaria estritamente ligado à ideologia que predominava na época do Teocentrismo, na qual Deus era regente de todas as coisas e destino, sendo a condição e classe social de cada pessoa algo inquestionável. Ou seja, o futuro já estava pautado pelo passado, já vinha dado de geração para geração dentro de cada família. O Ser, então, era o que direcionava e limitava cada ser em suas atividades e acesso aos bens materiais.

Com a ruptura com o tradicional e todos os eventos do modernismo, a lógica se inverte no sentido de que já não é o Ser que vai dar – ou não – acesso às coisas materiais; mas sim o acesso aos produtos de luxo – não inclusos na necessidade – e o certo acúmulo dos tais é que vai assegurar a posição dos indivíduos quanto a ser alguém na sociedade.

Vê-se aqui uma das lógicas que se invertem na Modernidade. Considera-se a passagem para a Modernidade enquanto acarretada por várias mudanças ao longo da saída da Sociedade Tradicional. Arrisca-se a mencionar que um dos principais fatores dessas mudanças se dá pelo implemento de um novo sistema econômico: o capitalismo.

Giddens (1991) discute sobre esta temática que aborda a passagem ao moderno e as consequências que impactam no social, referindo novas maneiras de relação entre homens e coisas.

A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais. (GIDDENS, 2002.p. 38)

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Giddens (1991) trabalha com o conceito de desencaixe para explicar o “deslocamento das relações sociais de contexto locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (1990, p. 29). O desencaixe vem dizer sobre a ruptura produzida pelo modernismo, o que por ele é considerado como um conjunto de fatores que irão contribuir para tal. Há algumas poucas continuidades do tradicional, porém a modernidade trouxe consigo uma gama de mudanças impactantes à sociedade.

Giddens, em seu texto “As Consequências da Modernidade” (1991), analisa os discurso dos sociólogos modernos, os quais, em sua análise, colocam um ponto central para justificar o desencadeamento da modernidade. Nesta análise, coloca que Marx (apud. GIDDENS, 1991) aponta o capitalismo como fundador da modernidade; já Durkheim (apud. GIDDENS, 1991) aponta o Industrialismo que traz a divisão do trabalho e exploração industrial da natureza para produção de bens humanos. Weber (apud. GIDDENS, 1991) traz uma perspectiva que conceitua Capitalismo Racional e coloca a racionalização como organizadora do sistema capitalista através de mecanismos burocráticos e outros.

Essas colocações todas dizem do processo de modernização da sociedade, ao que Giddens (1991) refere como “os complexos institucionais da modernidade, que são compostos por quatro pilares que sustentam a base da modernidade: o Capitalismo (novo sistema econômico, visando o lucro), a industrialização (maquinofatura e novas formas de produzir), Burocracia (que diz do Capitalismo racional e novas formas de administração) e o Militarismo (ligado aos exércitos e poderio bélico da sociedade moderna).

A partir destas colocações, Giddens (1991) questiona o estudo da sociedade, que por estes sociólogos e em seus estudos se entende por sociedade sendo a moderna, ou seja, constituída como Estado-Nação “um tipo de comunidade social que contrasta de maneira radical com os estados pré-modernos” (GIDDENS, 1991, p. 22). Desta maneira, o autor discorre sobre a condição do Estado-Nação e seu problema como sendo o desencaixe ou do distanciamento tempo-espaço sofrido na transição para a modernidade.

Para isso, Giddens (1991) retoma os tempos pré-modernos para explicar como se dá o distanciamento entre tempo e espaço. As noções de tempo e espaço eram, até então, articuladas conforme o contexto social da Idade Medieval, ou seja, uma sociedade que se ordenava conforme a lógica tradicional.

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Todas as culturas pré-modernas possuíam maneiras de calcular o tempo. O calendário, por exemplo, foi uma característica tão distintiva dos estados agrários quanto à invenção da escrita. Mas o cálculo de tempo que constituía a base da vida cotidiana, certamente para a maioria da população, sempre vinculou tempo e lugar – e era – geralmente impreciso e variável. (GIDDENS, 1991, p. 28)

Pode-se entender as sociedades pré-modernas ou tradicionais como compostas por homens ligados à terra e ao trabalho da agricultura. Desta maneira, cria-se então uma espécie de confiança com o meio de trabalho; o homem se relaciona temporalmente com a agricultura através das estações, ciclos lunares, baseado em seu lugar geográfico específico, a comunidade, vila ou feudo.

Giddens coloca a invenção do relógio como sendo um dos principais mecanismos separadores do espaço-tempo: “o relógio expressava uma dimensão uniforme de tempo “vazio” quantificado de uma maneira que permitisse a designação precisa de “zonas” do dia (a “jornada de trabalho” por exemplo)”. (GIDDENS, 1991, p. 26). Ou seja, agora, com a invenção do relógio, o tempo não se encontra mais ligado a estações do ano ou fases da lua, e sim é baseado num tempo artificial, uniforme e “vazio”, sem significado. Porém essa nova noção de tempo que pode ser medida passa a ser usada para prever coisas e eventos.

O tempo ainda estava conectado com o espaço (e lugar) até que a uniforme mensuração do tempo pelo relógio mecânico correspondeu à uniformidade na organização social do tempo. Esta mudança coincidiu com a expansão da modernidade e não foi completada até o corrente século. (GIDDENS, 1991, p. 26)

Com a criação do relógio, o tempo já não vai se referir a uma localidade, pois passa a ser uma medida de tempo universal. Por conseguinte, dá-se também a padronização dos calendários e a “padronização dos tempos através das regiões”, (GIDDENS, p. 26) o que vai acarretar em diferentes marcações de tempos para regiões diferentes.

Ao falar de um “esvaziamento do tempo”, Giddens mostra este como sendo uma “pré-condição para o’ esvaziamento do espaço’”, sendo este último referido à separação entre espaço e lugar, no qual o lugar estaria relacionado às atividades sociais das comunidades pré-modernas.

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O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros “ausentes”, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distantes que determinam sua natureza. (GIDDENS, 1991, p. 27).

O mesmo autor aponta para dois fatores importantes ao desencadeamento deste espaço vazio, que são: a descoberta de novas regiões remotas a partir das grandes navegações; e o mapeamento geográfico do globo terrestre, passando a representar em um pedaço de papel à posição e ao limite da cada região, como se estas não estivessem ligadas a um espaço.

Tal noção moderna de tempo ajuda a produzir um sentimento entre os indivíduos de que o mundo está encolhendo. As distâncias passaram a diminuir a partir do momento que as comunidades começaram a calibrar seu senso de tempo com o de outra comunidade do outro lado do globo. O processo de modernização “distanciou” os indivíduos e as comunidades das sociedades tradicionais destas noções estreitas de tempo, espaço e status. A modernização “desencaixou” o indivíduo feudal de sua identidade fixa no tempo e no espaço. (SIMÕES, 24/08/2016)

Porém, a invenção do relógio e todas as padronizações e mudanças que esta veio a causar nas noções de espaço e tempo, foram, de certo modo, importantes para a reorganização referente à atividade social dos indivíduos. O tempo agora passa a ser contado e usado para estabelecer uma ordem temporal e especial que vai guiar os indivíduos em seus cotidianos. É a partir deste fenômeno que os indivíduos têm diante de si a escolha de diversas possibilidades, podendo decidir seu cotidiano, pautados em uma nova ordem espaço-tempo, libertando-se dos antigos costumes e hábitos ligados a uma localidade específica.

Um ponto abordado é a maneira como esta reorganização altera os modos de vida de muitas pessoas pelo fato de ser possível a conexão do “local com o global”, coisa impossível nas comunidades pré-modernas.

Outro fator consequente destas mudanças é apontado por Giddens (1991) no que diz respeito à historicidade: a partir desta reorganização é possível a datação da história e, por conseguinte, a “apropriação de um passado unitário” (p. 29). Esse passado unitário, possível através da recombinação entre espaço e tempo,

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permite a abordagem de uma estrutura remetida a um passado histórico-mundial de um todo globalizado.

É também através desta reestruturação de espaço-tempo que se fazem possíveis a operação dos mecanismos de desencaixe, os quais Giddens (1991) identifica como a criação das fichas simbólicas e sistemas de peritos. Entende-se por fichas simbólicas como “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular. [...] devo me concentrar aqui na ficha do dinheiro”. (GIDDENS, 1991 p. 30).

O dinheiro é abordado por Giddens (1991) e apontado em relação às teorias de Marx (apud Guiddens, 1991), nas quais o dinheiro é pensado como “um meio de troca que nega o conteúdo dos bens e serviços substituindo-os por um padrão impessoal” (p. 30). Desta maneira, entende-se que com o surgimento do dinheiro na modernidade, não se avaliará mais um produto pelo seu conteúdo ou qualidade, mas sim a partir de um estipulado valor universal, generalizando os valores de uso e troca, “devido ao seu papel de pura mercadoria” (1991, p. 30).

O dinheiro vem aqui alterar as formas de relação do homem com o produto, que antes, nas comunidades tradicionais, era obtido através dos escambos; e depois, feiras – estas últimas baseadas especificamente na impressão de uma moeda de valor local. As Fichas Simbólicas as quais se refere Giddens (1991) universalizam esses modos de troca, abolindo os antigos meios de trocas locais e particulares entre os indivíduos. Apaga-se, gradualmente, através desta prática universal e globalizada, os traços que davam características únicas às comunidades e aos seus indivíduos, propondo uma maneira padronizada para todo tipo de troca e vínculo entre os homens e as coisas.

Através das mudanças de noções de espaço-tempo, o dinheiro também passa a proporcionar uma comercialização para além das fronteiras e espaço local, para um tempo e espaço além do presentificado. Keynes (1930, apud. GIDDENS, 1991) aponta que isso se faz possível a partir das novas identificações do dinheiro e das transações econômicas, pois primariamente o dinheiro era apenas identificado como débito, ou, dinheiro mercadoria. Com a possibilidade de transações, o débito pode passar a ser privado a partir de uma intervenção padrão do Estado, o que possibilita também transações de débito e crédito. Ao abordar essas novas configurações econômicas, “Keynes relaciona intimamente o dinheiro ao tempo”,

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“pois pode-se dizer que é um meio de retardar o tempo e assim separar as transações de um lugar particular de troca” (GIDDENS, 1991, p. 32).

O dinheiro passa a ser relacionado com a nova noção de tempo e espaço, sendo possível a transação entre indivíduos que vivem em diferentes lugares, como também há a possibilidade de proprietário e suas posses conviverem em espaços distantes. Desta forma, Giddens caracteriza o dinheiro como “um meio de vincular tempo-espaço, associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência.” (1991, p. 33).

Essas recentes concepções econômicas dizem sobre a relação dos indivíduos com o dinheiro, a qual só é possível, segundo Giddens (1991), se mediada pela confiança. Sobre a confiança, Giddens a descreve como:

“envolvida de uma maneira fundamental com as instituições da modernidade. A confiança está aqui revestida de capacidades não individuais, mas abstratas. Qualquer um que use fichas monetárias o faz na presunção de que outros, os quais ele ou ela nunca conhece, honrem seu valor. Mas é no dinheiro enquanto tal que se confia, não apenas, ou mesmo primariamente, nas pessoas com as quais as transações específicas são efetuadas.” (1991 p. 34)

A partir desta descrição, percebe-se mais um dos efeitos que o advento da modernidade produz às relações de seu tempo. Na Sociedade Tradicional a confiança era remetida aos valores e aos vínculos de uns indivíduos com os outros, dentro das comunidades; estes que eram mantidos por trocas de produtos uns com os outros, dentro de um espaço e tempo locais.

A modernidade outorga ao dinheiro um meio de troca de produto, que não direto, mas mediado pelas então chamadas Fichas Simbólicas. Assim, distanciam-se indivíduos e produtos, que então passam a se referir ao valor monetário configurado a tempos mais acelerados e lugares mais abrangentes. A confiança já não é remetida ao semelhante, mas desloca-se para o mediador (dinheiro) entre indivíduo – produto.

Giddens (1991) identifica esta confiança como uma forma de ‘Fé’, que por sua vez se encontra remetida a uma segurança social, fruto da modernidade – que afirma, comprova e embasa em teorias e cálculos todas as formas de possibilidades concretas referidas ao homem, a partir da evolução científica e tecnológica. Com base nesta ‘Fé’ moderna, Giddens (1991) explica os Sistemas Peritos definindo-os

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como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (p. 35).

Os Sistemas Peritos estariam referenciados diretamente ao sentimento de segurança e fé na modernidade, no sentido em que a partir dele o funcionamento de todas as coisas é ou está explicado por uma “excelência técnica ou competência profissional”, bastando aos indivíduos apenas confiarem nesta perícia, não necessitando o indivíduo por si próprio conferir algo que não compete ao seu conhecimento.

Os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe porque, em comum com as fichas simbólicas, eles removem as relações sociais das imediações do contexto. [...] Um sistema perito desencaixa da mesma forma que uma ficha simbólica, fornecendo “garantias” de expectativas através de tempo-espaço distanciados. (GIDDENS, 1991 p. 36)

A fé referenciada a estes dois mecanismos de desencaixe aponta uma segurança a qual o indivíduo constitui para poder conceber como as coisas funcionam: se algum conhecimento diz que algo opera racionalmente de certo modo é porque esse modo é correto, faz funcionar. Esse pensamento vem a substituir a ideologia do Teocentrismo da sociedade tradicional, lógica na qual as coisas eram explicadas através da existência de Deus e se assim funcionavam ‘é porque Deus assim quis’.

Para a pessoa leiga, repetindo, a confiança em sistemas peritos não depende nem de uma plena iniciação nestes processos nem do domínio do conhecimento que eles produzem. A confiança é inevitavelmente um artigo de ‘fé’. [...] Há um elemento pragmático na ‘fé’, baseado na experiência de que tais sistemas geralmente funcionam como se espera que eles o façam. (GIDDENS, 1991 p. 36)

Deste modo, Giddens (1991) supõe que estes dois mecanismos (Fichas Simbólicas e Sistemas Peritos) vão estar pautados nas relações de confiança (‘Fé’) segundo a condição moderna. O autor compara dois tipos de relação que irão se constituir na modernidade e os identifica pelos termos de “compromissos com rosto e compromisso sem rosto”, os quais explica que “se referem a relações verdadeiras que são mantidas por, ou expressas em conexões sociais estabelecidas em circunstâncias de co-presença. Os segundos dizem respeito ao desenvolvimento de fé em Fichas Simbólicas, ou Sistemas Peritos, os quais devem chamar de sistemas

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abstratos.” (p. 84). Por conseguinte, as relações modernas estariam pautadas nos ‘compromissos sem rosto’, ou regidos pelos ‘sistemas abstratos’, que estão implementados no social e são incutidos no cotidiano de cada indivíduo.

Giddens (1991) propõe pensar a modernidade através de uma gama de ‘desencaixes’ que reestruturam os modos de relação na sociedade. Segundo este autor, não existe um único fato ou uma data específica que demarque o início da Idade Moderna, e sim um conjunto de eventos que contribuíram para a passagem, levando a reorganização social, econômica, e ideológica através de diversos mecanismos e criações.

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2. DAS “NOMINAÇÕES” DA MODERNIDADE À CONTEMPORANEIDADE

A contemporaneidade é estudada por autores que nomeiam a situação social atual de diferentes formas. Kujawski (1988) identifica como um período de crise da modernidade; Guiddens (1991) propõe o atual momento como uma modernidade radicalizada; Bauman (2000) usa os termos modernidade líquida para falar da configuração da sociedade atual.

Bauman, ao abordar a modernidade no contexto da contemporaneidade, vai chamá-la de “modernidade líquida”. A liquidez a que se refere vai dizer sobre a constante mudança, a incapacidade de manter uma forma definida que não consegue se fixar a um espaço e tempo, a não ser por momentos, e por possuir considerável mobilidade e inconstância. É a partir dessas colocações que o autor vai “considerar ‘fluidez' ou ‘liquidez' como metáforas adequadas quando se deseja captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade.” (BAUMAN, 2000, p. 9)

O autor caracteriza a modernidade como um processo de liquefação desde seu princípio, como consequência do “derretimento dos sólidos”, assinalando a sociedade ‘moderna pesada’ em marcada pela tradição, por ideais de lealdade, deveres e crenças, que limitavam a mobilidade do indivíduo no social. Porém na ‘modernidade leve’, os sólidos eram realocados, ou seja, havia a confiança no melhoramento e/ou progresso, e eles eram reimplantados na sociedade respeitando a nova ordem social que esta impunha, sendo este processo chamado com “destruição criativa”.

O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).

A nova ordem instaurada, consequente da liquefação da solidez, liberta o homem de seus costumes, deveres e da imobilidade da modernidade pesada, dando

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uma sensação de liberdade e leveza. Porém o lança num sistema no qual ele não possui escolhas, num momento atual marcado pela individualização, não restando outro modo de libertação a não ser a submissão à sociedade líquida e ao poder capitalista que a rege.

Como Giddens, Bauman também propõe o começo da modernidade na questão de rearticulação de espaço e tempo, os quais “são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida [...].” (1991, p. 16)

Portanto, na modernidade o tempo passa a ter uma história, possível através de sua expansividade e velocidade, que remetem à variabilidade constantemente presente na modernidade. O espaço, com o advento moderno e tecnológico, ultrapassa limites fronteiriços, já que é possível acessar através de um celular pessoas e lugares nos locais mais remotos do planeta. Assim como também há a possibilidade de fixar-se ou abandonar um dado espaço quantas vezes quiser, pois surgem novas oportunidades em outros lugares a todo tempo. Para além dessas proposições, ele articula o tempo e espaço com o capitalismo;

Numa declaração famosa, Benjamin Franklin disse que tempo é dinheiro; pôde dizê-lo porque antes já havia definido o homem como o ‘animal que faz as ferramentas’. Resumindo a experiência de mais dois séculos, John Fitzgerald Kennedy advertia seus concidadãos norte-americanos a usarem ‘o tempo como uma ferramenta, e não como um sofá’. O tempo se tornou dinheiro depois de ter se tornado uma ferramenta (ou arma?) voltada principalmente a vencer a resistência do espaço: encurtar as distâncias torna exequível a superação de obstáculos e limites da ambição humana. Com essa arma, foi possível estabelecer a meta da conquista do espaço e, com toda a seriedade, iniciar sua suplementação. (BAUMAN, 2000, p. 142)

Neste sentido, a liquefação dos limites territoriais, acesso e domínio do espaço e a aceleração do tempo correspondem a uma ordem de poder econômico globalizante do mercado capitalista. A globalização envolve, por conseguinte, os indivíduos, que perdem a identidade referenciada a uma pátria, pois pelo fluxo de informação através dos meios de comunicação acabam pertencendo a todos os lugares, porém, sem lugar nenhum.

Bauman (2000) também apresenta o conceito de privatização articulado com o individualismo, pois na modernidade sólida ou pesada, as intimidades eram

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resguardadas ao lar, ao mesmo tempo em que se mantinha o convívio público. Na modernidade líquida, o lugar público se encontra enfraquecido, já que os indivíduos não mais o frequentam para compartilhar informações ou reflexões, causa da individualização e acesso a outros meios tecnológicos para compartilhar a vida, ocasionando uma inversão, de modo que na rede o que correspondia à vida privada vira público.

A privatização soma-se também ao mal-estar causado pelo individualismo, pois o sujeito que já se encontra ‘só’, independente e responsabilizado por suas questões quanto à própria sobrevivência e destino, encontra-se de alguma forma desamparado pelo Estado-Nação que se afasta dos seus cidadãos para salvar as grandes corporações capitalistas. O mecanismo capitalista vem ao auxílio da desvinculação dos indivíduos com a Pátria ou comunidade, ou melhor, da sua condição de cidadão, possibilitando a via do consumismo para que ele busque uma nova identificação, tornando-o um consumidor.

A partir deste contexto pautado pelo individualismo e capitalismo, o sujeito acaba por ter suas produções regidas pela possibilidade de prevalência de referência ao próprio desejo e às próprias concepções de moral; a dada modernidade líquida privilegia as subjetividades, dado que as concepções morais geridas anteriormente pelo Estado se encontram desarticuladas pelo fato deste ter voltado atenção máxima às economias corporativas.

Ao discutir sobre as nomeações da contemporaneidade, Giddens (1991) propõe discriminação de alguns termos já utilizados. O autor aponta que o termo pós-modernismo é “mais apropriado para se referir a estilos ou movimentos no interior da literatura, artes plásticas e arquitetura” (1991, p. 52); distinguindo do termo pós-modernidade, que seria o caminho para a instauração de uma diferente ordem social. Desta maneira, o pós-modernismo poderia apenas auxiliar na concepção da pós-modernidade, porém não atesta que esta exista.

Ao que se refere comumente a pós-modernidade? Afora o sentido geral de se estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o termo com frequência tem um ou mais dos seguintes significados: descobrimos que nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os “fundamentos” preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de “progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de

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preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral (Giddens, 1991, p. 52).

Giddens (1991) propõe pensar a insistência da nomeação do atual período contemporâneo de pós-modernidade como um pensamento evolutivo, bem como o contrário deste pensamento. Para o autor, ao nomear o atual momento de pós-modernidade, seria uma tentativa de situar a sociedade num determinado período de tempo e em uma história. Porém essa tentativa se mostra em vão, na medida em que na Modernidade a história se apresenta destituída da Teleologia e não encontra ponto de ancoragem na historicidade, ou, com o que se quer romper do passado.

A lógica moderna está pautada na razão e no progresso, o que seria apenas uma substituição dos ideais do Iluminismo, como Giddens explica: “um tipo de certeza (lei divina), foi substituído por outro (a certeza de nossos sentidos, da observação empírica), e a providência divina foi substituída pelo progresso providencial.” (1991, p. 54).

A contrariedade na questão na nomeação diz que, apesar de que a lógica iluminista apresente-se apenas substituída em alguns pontos na contemporaneidade, há mecanismos que conferem à Modernidade contemporânea características distintas do Iluminismo, principalmente sobre “as concepções providenciais da história, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o esvaziamento do progresso pela mudança contínua.” (Giddens, 1991, p. 56)

Dessa maneira, o autor aponta que se vive socialmente uma modernidade radicalizada, pois não se trata mais do período moderno (apesar de persistirem alguns mecanismos deste período), mas também não se pode nomear a Contemporaneidade de Pós-Moderna, pois isso seria se referir a uma ordem social diferente da atual.

Não vivemos ainda num universo social pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances de emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas [...] pode facilmente ser visto por que a radicalização da modernidade é tão perturbadora, e tão significativa. Seus traços mais conspícuos [...] nos levam a um novo e inquietante universo de experiência (Giddens, 1991, p. 58).

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Partindo de uma lógica parecida com a de Giddens (1991), na qual o momento atual se situa entre o moderno e o pós-moderno, Kujawski (1988) aponta em A Crise do Século XX, que no “século XX começou outra época e ainda não tem nome.” (p. 16). Kujawski (1988 apud Gilberto Freyre, 1973) destaca o conceito de pós-moderno como detentor de duplo sentido, pois “ora designa a continuação das tendências modernas, ora a oposição a essas tendências” (p. 17). Nesta via de entendimento, o autor mostra a modernidade pelo viés da radicalização do projeto pós-industrial, caracterizada pela maquinofatura e avanço tecnológico, o qual vem como auxílio e reforço para a concretização do sistema industrial e capitalismo vigente. Sendo assim, não houve ruptura com a modernidade ao passo em que os tempos estão mais avançados que a própria.

Aprofundando-se no raciocínio de Kujawski (1988), ele ressalta que a modernidade é um fenômeno do enriquecimento, porém não se detém ao sentido econômico de enriquecer, mas ao enriquecimento ligado às possibilidades de vida ofertadas na era moderna atual. Segundo o autor, “a modernidade – o enriquecimento – coloca em questão todo o repertório de crenças tradicionais, já não se oferecendo como instância segura para o pensamento, os sentimentos e a conduta do homem” (p. 20). Perante isso, o homem tradicional se vê liberto das crenças e tradições, e cabe a si decidir sobre sua vida, implicando a individualidade, a qual vai ser sustentada na racionalidade e leis internas do homem moderno.

É através do racionalismo que o homem buscará explicação para todas as coisas, como também usá-la para as revoluções e ideais de progresso; sendo principalmente o último responsável pelo afloramento do utopismo. O utopismo se caracteriza como a busca pelo melhor, desconsidera passado, tem o presente como degrau para um ‘estágio superior’ e aposta suas fichas no futuro, com o intuito de buscar a ‘perfeição’ e paraíso terrestre. Kujawski (1988) aponta que:

O homem moderno vem perdendo toda a pertinência presente, toda a ligação com a circunstância, passando a errar sem pátria e sem lar, perdido ao desabrigo nos descaminhos do tempo e do espaço. A aceleração crescente do progresso transforma a civilização em produto biodegradável, incapaz de servir de apoio estável para a vida humana, sem o qual esta não se pode construir. (1988, p. 24).

Desta forma, o autor coloca a descontinuidade da modernidade no fato de que esta continha ainda um valor unitário quanto aos ideais de progresso. Porém o

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progresso que se mostra hoje não tem “vigência coletiva universal” e ganhou mais potência com o avanço dos aparatos tecnológicos. O progresso não se perde neste tempo; o que se perde, segundo o autor, é a crença nele, que de alguma forma era unitária. Passa a dividir os homens a partir do surgimento de várias ideologias, desvalendo assim o utopismo como uma das características modernas.

O que se inverte na contemporaneidade é o culto ao progresso da modernidade, que se descarrilou e fez entrar em pertinência a famosa frase de Marx de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, ou seja, “aquilo que deveria ser a solução de nossos males – o progresso – degenera no pior problema e no pior dos males” (KUJAWSKI 1988, p. 24). Estes pressupostos vêm indicar que não se vivencia a modernidade esuas características intrínsecas no momento atual, se bem que o atual momento é resultado do desdobramento da própria modernidade, o que não indica uma ruptura para ser nomeada a contemporaneidade de pós-moderno. Já não é vivida a modernidade, porém ainda não há um distanciamento que permita denominar o momento de pós-moderno; desse modo, este se configura como um momento no qual “as fronteiras entre o moderno pós-moderno perdem totalmente a nitidez, e a distinção entre ambos se faz ociosa.” (1988, p. 27). Como explica Kujawski:

Perdemos os padrões de pensamento e ação da modernidade e ainda não encontramos seus substitutos equivalentes para estabilizar e organizar efetivamente a nossa vida. Este interregno, este hiato abissal entre o mundo que perdemos e o mundo que ainda não ganhamos, é, precisamente, o lugar no qual se instaura a chamada crise do século XX, que se identifica, como se vê, com a crise da modernidade” (1988, p. 28).

Dessa forma, Kujawski (1988) caracteriza a contemporaneidade como um momento púbere da modernidade, em que a era atual já não é moderna nem pós-moderna, constituindo o momento atual como de crise da modernidade vivenciada na contemporaneidade. Como pensar então a articulação dos vínculos humanos na atualidade?

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3. A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E A FORMAÇÃO DO VÍNCULO PERANTE AS CONFIGURAÇÃOES DA SOCIEDADE ATUAL

A palavra vínculo deriva etimologicamente do latim –vinculum – que possui significados como laço, ligação, liame, fazendo referência a uma ligação invisível de caráter moral ou afetivo. A teoria psicanalítica trabalha com a temática da constituição psíquica, referindo a formação de vínculo enquanto processo determinado e determinante ao advir de um sujeito, ao passo em que se perfaz a constituição da subjetividade. O indivíduo só se estrutura como sujeito mediante ao seu vínculo e relação humanizante com o Outro, o que possibilita a inscrição na linguagem e nos laços que configuram a inserção na cultura, no social.

Freud, pautado em suas experiências e postulados teóricos acerca do tratamento analítico com adultos, propõe pensar os sintomas de seus pacientes como frutos das fantasias que foram construídas baseadas nas vivências da primeira infância. Desta forma, é necessário remontar aos primórdios da estruturação psíquica na infância para entendermos como se dá o processo de vinculação com o Outro que possibilita surgir o sujeito de linguagem.

Segundo Jerusalinsky, a criança recém-nascida encontra-se em estado de “infans, ou seja, aquele que ainda não fala e, portanto, que é ainda incapaz de contar a sua própria história.” (2002, p. 37). Porém, antes de vir ao mundo, a criança já é inserida no campo simbólico dos pais que já vão tecendo pensamentos, uma imaginação sobre a criança que está por vir, preparando o ambiente e comprando o enxoval conforme o sexo do bebê, sendo esses “aspectos da cultura que já esperam esse bebê desde o nascimento” (BERNARDINO, 2008, p. 31), e que vai receber essa criança já num contexto de linguagem. Ou seja, quando a criança vem ao mundo, vem sendo apenas um pedaço de carne, dotada apenas do aparelho orgânico biológico; porém logo que nasce é recebida num ‘mundo simbólico, que foi de antemão preparado pelos pais, principalmente pela mãe desde a gestação.

Desta maneira, quando a criança nasce já se encontra num mundo já começado, e se depara com uma estrutura de linguagem já organizada, da qual terá que se apropriar aos poucos. É deste encontro entre o que se apresenta como apenas aparelho biológico, com a organização cultural estruturada simbolicamente

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que o espera, é que o recém-nascido vai encontrar subsídios para a constituição do seu aparelho psíquico.

Compreende-se que a inserção da criança no mundo simbólico se dá aos poucos, e depende totalmente das figuras parentais neste processo, pois estas serão responsáveis pelas essenciais funções de humanização, as quais a psicanálise aponta como função paterna e materna e que podem ser exercidas por qualquer pessoa, pois não diz especificamente dos pais biológicos, sendo apenas importante que alguém faça essas funções.

A função materna se mostra como a mais essencial nos primeiros meses de vida, pois dela depende os cuidados básicos para com o bebê, cuidados estes que vão assegurar a sobrevivência do infans. Essa sobrevivência não diz respeito apenas do corpo biológico, mas também diz de um afeto que essa relação entre mãe-bebê vai gerar e que se mostra essencial para sua sobrevivência psíquica. Essa relação vai ser permeada por um afeto que envolve a fala da mãe para com o filho, o toque no corpo da criança, o olhar que a mãe transfere a ele, criando assim uma espécie de ambiente aconchegante e seguro para o bebê. Bernardino (2008) explica que:

[...] esse ‘a mais’ que a mãe está dando, além daquilo que permite a sobrevivência física do bebê, é o que vai permitir sua sobrevivência psíquica. Vai começar a se construir um mundo mental nesse bebezinho, porque a mãe vai lhe oferecendo olhar, vai lhe oferecendo palavras, vai lhe oferecendo toques carinhosos, num vai e vem de presenças e ausências, e isso vai construindo no bebê, a partir das inscrições psíquicas dessas experiências, uma vida mental. Esse bebezinho, além de estar vivendo experiências de satisfação de necessidade, também estará vivendo experiências que tem significação, a partir do que o outro materno vai passando para ele como experiências boas ou experiências ruins. Isso vai permitir que o bebê se desenvolva em termos físicos e se estruture em termos mentais. (p. 60)

Desta relação mãe – bebê é perceptível que a figura materna oferece a criança não só a sustentação através de seu próprio corpo, pois também se encontra implicado neste vínculo o desejo da mãe. Isto irá fazer com que toda a ação dirigida à criança esteja permeada por significações, fruto da total presença materna na relação. Bernardino explica que “para que uma mãe possa estar presente, é necessário que ela tenha na sua vida, na sua história, um lugar para este filho”, e que nesta relação “ela possa transmitir os valores da cultura, os valores simbólicos, e não só seus desejos pessoais” (2008, p. 61)

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Para Winnicott (1988), a relação mãe – bebê é considerada, no que consta sobre o primeiro ano de vida da criança, uma relação visceral, pois a criança considera a mãe como sendo uma extensão, um prolongamento do seu próprio corpo, pois ainda não houve a divisão do “não-eu” e do “eu” do bebê. Neste contexto, para que a constituição psíquica da criança ocorra de forma saudável, é necessário que tanto o ambiente quanto a mãe sejam suficientemente bons.

A implicação da mãe (Outro) também é trabalhada por Lacan (1966) na teoria do Estádio do Espelho, na qual o autor defende não bastar à maturação orgânica para a constituição do eu, pois a criança encontra-se num estado de fetalização humana, e sim que o processo passa pela confusão da identificação da imagem da própria criança com a imagem mãe, fazendo do corpo infantil um corpo fragmentado, causando angústia à criança. No entanto, esta experiência se faz necessária, visto que é um processo simbólico a partir do qual a criança estruturará seu eu, sua imagem própria totalizante, de corpo unificado a partir do olhar materno.

A metáfora é compreendida salientando-se que a imagem corporal tem um papel crucial na constituição do sujeito, visto que é a partir desta que há a possibilidade da criança instaurar uma relação do eu com a realidade. É a partir da apropriação de uma imagem especular (que não mais uma cópia da mãe) se instaura a possibilidade da criança adentrar no complexo de Édipo através da falta da imagem materna.

Freud em seus postulados teóricos sobre o complexo de Édipo explica que se trata de um momento de internalizações de limites colocados pelos pais à criança. Lacan retoma Freud desenvolvendo o complexo de Édipo comportando três tempos: no primeiro tempo a criança encontra-se identificada com o objeto de desejo materno (Outro), ou seja, seu desejo é ser o objeto do desejo da mãe, ficando assim identificada com o falo. Lacan (1995) explica que “é na medida em que a criança assume inicialmente o desejo da mãe (...) que ela se abre para se inscrever no lugar de metonímia da mãe, isto é, (...) como assujeito” (p. 208). A posição de assujeito da criança nesse momento diz de uma total objetalização da mesma frente ao desejo materno.

No segundo tempo, o pai aparece intervindo nesta relação privando a mãe da criança e assim castrando-a de seu falo. Lacan (1995) afirma que “é na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se torna, pura e simplesmente,

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objeto de desejo da mãe” (p. 210). Nesse estágio há o primeiro aparecimento da lei, que vai desligar a criança da identificação com o falo e fazê-la se deparar com a falta. O pai surge aqui enquanto a função do Nome-do-Pai, vindo a substituir o significante do desejo da mãe. A criança se depara, através da função paterna, com a questão de ser ou não ser o falo da mãe, e toma o pai como rival, pois o mesmo também a castra de modo a dizer: “não te deitarás com tua mãe”.

A mãe, com suas ausências, causa na criança a constatação que ela não a preenche, mostrando-se assim um desejo que não é por ela, está para além da criança. São essas ausências que vão permitir a entrada da criança no campo simbólico. É desta simbolização das ausências e presenças da mãe que Freud fala em Além do Princípio do Prazer (1980) ao descrever o jogo fort-da, da qual seu neto brincava;

[...] o que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo em que o menino proferia seu expressivo 'ó-o-o-ó'. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre 'da' ('aqui'). Essa então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. (p.26)

No terceiro tempo do complexo de Édipo, há a instauração da metáfora paterna, a partir da qual o pai se torna potente e possível doador do falo como aquilo que falta. Lacan (1995), sobre a instância paterna, explica que: “Já não é nos vaivéns da mãe que ele está presente, e, portanto, ainda semivelado, mas aparece em seu próprio discurso. De certo modo, a mensagem do pai torna-se a mensagem da mãe, na medida que agora ele permite e autoriza” (p. 212). A criança então sai da dialética do segundo tempo de ser ou não ser o falo, e passa a de ser ao ter o falo, identificando-se com a instância paterna e aceitando a lei ou castração que instaura a falta e situa o sujeito como desejante. O declínio do complexo de Édipo diz da ordenação do falo, enquanto simbólico, na construção de uma identidade sexual da criança, o que independe da anatomia.

Supondo assim, a partir da castração sofrida pela criança no final do complexo de Édipo, se instaura a lei e uma falta, a partir das quais ela poderá se articular no social como sujeito, detentor de uma subjetividade singular, não mais espelhado nas figuras parentais.

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Podemos abordar, ainda, a constituição do sujeito do ponto de vista de um movimento dialético entre a alienação e a separação. Para isso, partamos do pressuposto de que a criança é um sujeito à espera e que há de haver uma operação de causação do sujeito; o sujeito deverá ser provocado, invocado no bebê. Lacan (1964) considera dois tempos desta causação: o tempo da alienação e o tempo da separação. Vejamos: o tempo da alienação pode ser entendido como o tempo em que a mãe "empresta" ao seu bebê uma imagem própria, um desejo, um significante, um lugar discursivo, portanto. É o momento em que a criança é falada, é desejada, em que ela é aquilo que desejam que ela seja, e a isto ela responde. O momento seguinte, o da separação, é o do deslocamento das marcas maternas e da possibilidade de impressão de outras marcas, a paterna, por exemplo. A possibilidade de surgimento de um sujeito - diferente da mãe e diferente do pai, apesar das profundas marcas de ambos - aparece exatamente no intervalo entre a alienação e a separação. Lacan considera que o primeiro momento da alienação é o tempo de estabelecimento do primeiro significante e o tempo da separação é o momento do surgimento do segundo significante, que possibilitaria ao sujeito formar sua cadeia significante e, portanto, ocupar, ele próprio, um lugar discursivo. É o momento em que poderia dizer: "O que posso ser daquilo que fizeram de mim?" (JARDIM, 2000, p. 57-58)

A criança desde o seu nascer já está referida às figuras parentais, é pensada, planejada e desejada por estas. No decorrer do desenvolvimento, há a pulsionalização do corpo e a aquisição da linguagem, que só são possíveis nessa relação da criança com a função materna e paterna. E é nessa relação e seu desenrolar complexo, que a criança vai sendo inserida num mundo de significantes, de valores, que estão referidos à cultura, ao social.

É ao final da trama edipiana que a criança, constituída como sujeito faltante marcada pela perda do objeto primordial e, então, referida à lei do desejo, estando referenciada a um hiato daquilo que se mostra o desejo e aos significantes parentais, poderá por si mesmo fazer seu próprio percurso, suas escolhas, e recriar novos significantes. Sobre isso, Lacan explica que:

É desde a relação imaginária primitiva, aquela por onde a criança é doravante introduzida a este mais-além de sua mãe, que o sujeito vê, toca, experimenta o fato de que o ser humano é um ser privado e um ser abandonado. A própria estrutura que nos impõe a distinção entre experiência imaginária e a experiência simbólica que a normatiza, mas unicamente por intermédio da Lei, implica que muitas coisas se conservem dela (...) (LACAN, 1999, p. 218-219)

O declínio do Édipo demarca um novo lugar para a criança, lugar esse que vai estar referenciado ao social, mas que nem por isso não carregue em seu âmago as marcas e significantes parentais, pois foi através destes sujeitos constituídos na

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cultura que se possibilitou nela a entrada da criança. Jerusalinsky exemplifica isso dizendo que:

Porque o humano tem a característica de não necessariamente estar destinado ao útil. Sucede que a cultura começa, precisamente, quando, na primeira vasilha modelada em argila ou na pedra, se traça um desenho. Um desenho que certamente não influi em nada na capacidade de a vasilha conter água, mas põe ali a marca de um autor. (JERUSALINSKY, 1999, p. 61)

É a passagem pelo complexo de Édipo que permite que o sujeito possa ter acesso à cultura através da sua entrada na linguagem a partir de sua relação com o Outro. O que a trama edipiana vem a instaurar no sujeito é uma Lei. A Lei e sua complexidade são explicadas por Freud no texto Totem e Tabu a partir do mito da horda primeva, na qual o pai priva seus filhos de possíveis relacionamentos incestuosos (tabu). Os filhos descontentes reúnem-se numa ordem fraterna e matam o pai (totem), mas arrependendo-se do feito internalizam (simbolicamente) “pedaços” desse pai para que prevaleça o mínimo de ordem na sociedade.

É desta lei que Freud fala em totem e tabu que se refere à lei da trama edípica, pois ela é uma lei fundante no sentido que é estruturante, dando ao sujeito acesso à linguagem e consequentemente à cultura.

O fim do complexo de Édipo é correlativo da instauração da lei como recalcada no inconsciente, mas permanente. É nessa medida que existe algo que responde no simbólico. A lei não é simplesmente, com efeito, aquilo sobre o que nos perguntamos por que, afinal, a comunidade dos homens nela é introduzida e implicada. Ela também está baseada no real, sob a forma desse núcleo deixado atrás de si pelo complexo de Édipo, que a análise mostrou, de uma vez por todas, ser a forma real sob a qual se inscreve aquilo que os filósofos até então nos haviam mostrado com maior ou menor ambiguidade, como a densidade, o núcleo permanente da consciência moral (...) (LACAN, 1999 p. 216)

De todos os atravessamentos da constituição psíquica que o indivíduo passa para então se fazer sujeito, subjetivo e singular, adentrar na linguagem e fazer laço social, há sempre a dependência e a referência a outro para isso ser possível. Molina (2008) explica que o laço social vai se der a partir do laço parental;

O que é laço social? Trata-se de uma “atadura humana” que vai sendo montada pela via do significante investido efetivamente e que se constitui por traços identificatórios, ordenados por um código moral, ético e estético. Laço, atadura, que situa, ordena e refere o sujeito, abrindo-lhe, portanto um leque de possibilidades ou de limitações psíquicas (sintomas) que

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