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Camponeses nacionais no Rio Grande do Sul: uma cultura marginalizada

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

FÁBIO WEILER RISTOW

CAMPONESES NACIONAIS NO RIO GRANDE DO SUL:

Uma cultura marginalizada

IJUÍ 2016

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FÁBIO WEILER RISTOW

CAMPONESES NACIONAIS NO RIO GRANDE DO SUL:

Uma cultura marginalizada

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito à obtenção do título de Licenciando em História.

Orientador: Josei Fernandes Pereira

IJUÍ 2016

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a presença da figura do camponês nacional pobre, popularmente conhecido como caboclo, no Rio Grande do Sul, na região onde a Colônia Ijuhy foi fundada em 1890, assim como sua relação com a terra, elementos da sua cultura, e de sua contribuição para a sociedade colonial da época, além de tentar explicar os motivos que levaram a sua marginalização tanto social quanto historiográfica. Para isso foram realizadas pesquisas em fontes documentais (fotografias e relatórios oficiais da época da colonização de Ijuí) e em obras de autores da historia regional, nacional e mundial. Pretendo demonstrar que o processo de marginalização dos grupos camponeses nacionais foi, por muito tempo, motivada pelo preconceito cultural e racial, muito influenciados pelo pensamento racional e científico característico do final do século XIX e início do XX, e que estes camponeses formaram, historicamente, uma das bases essenciais para o desenvolvimento do município de Ijuí, nos primeiros anos da sua fundação.

Palavras - chave: camponês nacional, caboclos, Rio Grande do Sul, preconceito racial e cultural.

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ABSTRACT

The present work aims to analyze the presence of the figure of the poor national peasant, popularly known as caboclo, in Rio Grande do Sul, in the region where the colony Ijuhy was founded in 1890, as well as their relationship with the land, elements of their culture, and their contribution to the colonial society of the time, and try to explain the reasons that led to their marginalization both socially and historiographical. For this research was carried out on documentary sources (photographs and official reports from the time of colonization of Ijuí) and works of authors of the regional, national and world history. I've intended to demonstrate that the process of marginalization of the national peasant groups was for a long time, motivated by cultural and racial prejudice, much influenced by rational and scientific way of thinking characteristic of the late 19th and early 20th centuries, and that these peasants formed historically, one of the essential foundations for the development of the city of Ijuí, in the first years of its foundation.

Keywords: national peasant, caboclos, Rio Grande do Sul, racial and cultural prejudice

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Densidade demográfica de alguns municípios no RS ... 21

Figura 2 - Caboclo em frente a um barbaquá ... 73

Figura 3 – Moradia de Caboclos ... 75

Figura 4 - Caboclo em frente a sua moradia ... 80

Figura 5 – Casal de caboclos em frente sua casa ... 81

Figura 6 – Saraquá de madeira com ponta de ferro ... 90

Figura 7 – Malhando Feijão ... 90

Figura 8 - Uma região de mata derrubada ... 92

Figura 9 - Cozinha de uma casa leta primitiva ... 96

Figura 10 - Imigrantes colhendo erva-mate ... 98

Figura 11 - Homens em um cancheador de erva-mate... 99

Figura 12 - Trilhando trigo ... 103

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Mapa da “Capitania do Rio Grande do Sul” – 1809 ...20

Mapa 2 – RS - Vegetação original - Florestas e campos nativos ...25

Mapa 3 – A região colonial e o município de Ijuí ...69

Mapa 4 - Uma picada na Colônia Cadeado - Final do século 19 ...76

Mapa 5 – A Colônia Cadeado – Início do século 20 ...77

Mapa 6 – O terceiro distrito de Ijuí – Início do século 20 ...78

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...8 1 A dinâmica da ocupação territorial do Rio Grande do Sul ...13 1.1 A formação das estâncias e a ascensão dos estancieiros como classe militar, política e econômica dominante ...16 1.2 Grandes extensões de terra e infraestrutura precárias: o atraso relativo da agricultura e o suposto isolamento econômico do Rio Grande do Sul...19 1.3 A dicotomia campo-floresta e a divisão geográfica das atividades econômicas no Rio Grande do Sul ...24 1.4 A formação das colônias de imigrantes e o início do processo exclusão de camponeses nacionais do acesso à terra ...27 1.5 O processo de privatização das matas nativas e o fim do livre acesso à terra no Rio Grande do Sul ...30 2 A marginalização econômica, histórica e cultural do camponês

nacional ...39 2.1 Aspectos étnico-culturais dos grupos camponeses nacionais e sua relação com o processo de marginalização ...40 2.2 A história como divulgadora e perpetuadora de preconceitos ...52 2.3 A ciência e o pensamento racional a serviço do preconceito cultural e racial ...59 3 A contribuição dos lavradores nacionais para o desenvolvimento da Colônia Ijuhy ...69 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...114

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INTRODUÇÃO

A cidade de Ijuí é conhecida como a terra das culturas diversificadas, pois no final do século XIX, as terras da região foram loteadas e vendidas a imigrantes europeus de várias nacionalidades. Esses imigrantes trabalharam para transformar regiões de mata nativa em lavouras e locais considerados inóspitos em propriedades rurais produtivas, no que naquela época foi denominada de Colônia Ijuhy.

Alemães, italianos, letos, portugueses, austríacos, espanhóis, suecos, libaneses, japoneses, poloneses entre outros, até hoje são conhecidos popularmente como os pioneiros responsáveis pela ocupação da região terras e pelo desenvolvimento da cidade que chamamos hoje de Ijuí.

Para comemorar e relembrar as origens ocupação e formação do nosso município e prestigiar todas as etnias envolvidas neste processo, foi criada a ExpoIjuí / Fenadi, uma das maiores feiras da região. Um parque foi construído para abrigar casas típicas; ao seu redor outras estruturas permitiram expor a produção local e regional, e receber visitantes de vários lugares para conhecer a “Terra das culturas diversificadas”. Além das etnias iniciais, existem ainda um Centro de Tradições Gaúchas, para representar o povo rio-grandense, e a casa Afro, que representa os descendentes de escravos africanos trazidos ao Brasil.

Entretanto por muito tempo, no Rio Grande do Sul, só os imigrantes europeus foram consideramos importantes para o desenvolvimento econômico, social e agrícola. Aos poucos, outros grupos foram ganhando seu reconhecimento, como os afro-descendentes e os indígenas. Os gaúchos também a muito já tinham sua representação, seus locais de reunião para divulgar e perpetuar sua cultura, os CTGs. Faltava ainda reconhecer um grupo em especial, e que estava presente na região, bem antes do processo de colonização e formação da Colônia Ijuhy: o camponês nacional.

Antes da chegada dos imigrantes europeus, habitavam estas terras os índios provenientes das extintas missões jesuíticas e camponeses pobres, conhecidos pelas elites regionais como caboclos, posseiros ou nacionais, originários do relacionamento entre portugueses, espanhóis e africanos escravos com índias; e o gaúcho, nascido do relacionamento de índios pampianos com espanhóis. Esses grupos circulavam pela região, vivendo em pequenas propriedades, da agricultora de subsistência e do extrativismo, da exploração da erva-mate (produto muito

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importante e valioso no comércio regional desde o ciclo missioneiro) e do trabalho com o gado nas estâncias do estado.

O sujeito central deste trabalho é vulgarmente chamado de caboclo, tratado também por lavrador nacional por alguns historiadores, ou simplesmente nacionais por outros, mas aqui usaremos uma definição sócioeconômica mais condizente com sua posição na história regional, que é o de camponês nacional, retirado das obras de autores como Mário Maestri, que trata sobre a formação do campesinato no Brasil, e de Paulo Afonso Zarth, que escreve sobre o desenvolvimento agrário do Rio Grande do Sul durante o século XIX, e que também chama esse camponês pobre de lavrador nacional.

Para compreendermos os motivos que levaram a memória coletiva e social a esquecer o camponês nacional; também a sua exclusão do acesso à terra; e de sua marginalização do processo histórico, precisamos entender a respeito da dinâmica social, política e econômica da ocupação das terras que compõe o Estado do Rio Grande do Sul e da mentalidade social e científica do século XIX. Isso é fundamental para compreendermos a história deste sujeito que foi muito injustiçado no decorrer do tempo na nossa região.

A região sul do Brasil, mais precisamente o Estado do Rio Grande do Sul, era considerada, no século XVIII e XIX, de extrema importância estratégica, por fazer divisa com a Argentina, Uruguai e Paraguai, inimigos de longa data. Portanto, fazia-se necessário protegê-la de possíveis incursões militares desfazia-ses paífazia-ses. Ainda havia a questão da ocupação do espaço que, segundo a administração do estado, era escassa em matéria de localidades e tornava o transporte de pessoas e mercadorias muito caras e demoradas e por este motivo era urgente povoá-lo para sanar esse problema.

Também tivemos no século XIX um intenso desenvolvimento intelectual e científico, cujo palco central foi a Europa, onde floresceram teorias como o Darwinismo Social, a Eugenia e o Positivismo. Essas correntes de pensamento abordaram questões sobre inferioridade e superioridade racial, étnica e cultural, que aos poucos chegaram ao Brasil e foram aceitas pela elite intelectual do país. Aos poucos, no âmbito social, foram colocadas em prática políticas baseadas no preconceito racial gerado por essas teorias criadas na Europa, e que contribuíram para a marginalização e exclusão dos grupos camponeses nacionais. A própria

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literatura da época foi muito influenciada por elementos racistas, e por isso surgiram muitas obras estigmatizando o modo de vida desses camponeses.

Viajantes, ao passarem pelo Rio Grande do Sul, descreveram-no como quase desabitado, com imensos campos e florestas despovoados, sendo as matas do estado consideradas inóspitas e habitadas por feras selvagens. Essa opinião também era partilhada pela administração do estado. Porém, as matas do Rio Grande do Sul já eram habitadas por comunidades indígenas e camponesas seminômades que ocupavam o espaço geográfico do estado a bastante tempo, mas apesar disso, eram desconsiderados nos relatos oficiais.

Os grupos camponeses que habitavam o Rio Grande do Sul, hora eram considerados um problema, ocupando ou invadindo terras públicas ou privadas sem títulos de posse, ou regiões de mata; hora eram úteis, servindo de mão de obra em estâncias criadoras de gado, ou como tropeiros, mas não serviam como ocupantes efetivos para estas terras.

Eles estiveram presentes durante a organização da Colônia Ijuhy, trabalhando ao lado dos imigrantes europeus e da Secretaria de Terras, como mão de obra, mas por motivos preconceituosos, étnicos ou até por interesses territoriais maiores, não tiveram reconhecimento e foram gradativamente esquecidos pela história oficial. Em um tempo onde a mão de obra imigrante européia, a produção agrícola intensiva, a grande propriedade e a conquista sobre as regiões de mata eram sinônimos de progresso, uma figura que vivia do extrativismo e da agricultura de subsistência não tinha lugar.

Este trabalho pretende inserir na história regional oficial, de maneira mais completa e detalhada, um sujeito que foi deixado de lado por sua origem étnica e por sua cultura, além de permitir compreender de maneira mais justa e integral, a importância de todos os indivíduos que participaram da formação, construção e ocupação da Colônia Ijuhy. Também pode demonstrar como classes sociais podem ficar fora da historiografia oficial em vista de interesses de grupos dominantes, que simplesmente não aceitavam uma cultura diferente, inferiorizada ou inadequada para uma empreitada tão importante como foi considerada a ocupação efetiva das terras do Rio Grande do Sul.

Os costumes dos camponeses nacionais, herdados de seus antepassados, em muito beneficiaram os colonos europeus que fixaram suas moradas aqui na região de Ijuí, por um motivo simples: os imigrantes que vieram para o Brasil, em sua

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grande maioria, eram provenientes de centros urbanos, e nada sabiam sobre a agricultura, ou de sobreviver em regiões de mata. Eram quase inexperientes quanto a vida em um ambiente rural ou de matas nativas. Por isso nossa região, no período em que chegaram, representava um desafio que eles não conseguiriam vencer sozinhos.

Documentos da época da colonização de Ijuí evidenciam a dificuldade dos imigrantes diante do ambiente, completamente diferente do que eles estavam acostumados na Europa, por isso muitos recursos foram despendidos para ajudar em sua adaptação. Os imigrantes europeus aprenderam com os brasileiros que viviam aqui como sobreviver na região. Aprenderam a sobre a fauna e a flora e como podiam se beneficiar delas; como escolher as árvores certas para derrubar; a épocas mais adequadas para o plantio de determinadas culturas; quais animais que podiam caçar para se alimentar; que plantas poderiam ser utilizadas para curar determinadas enfermidades.

Apesar de ser marginalizado e afastado do processo formal de produção agrícola deste estado, esse camponês não permaneceu simplesmente à margem da sociedade, ao contrário, continuou presente no cotidiano, em contato direto com imigrantes e fazendeiros, significando que eles tiveram participação ativa no processo de desenvolvimento social e econômico da região, nos trabalhos de infra-estrutura em geral que permitiram que as colônias prosperassem.

O primeiro capítulo tratará sobre a questão da ocupação e divisão das terras no Rio Grande do Sul e como isso ajudou a criar a situação delicada em que os camponeses nacionais se encontravam, já que eles não tinham a posse legal das terras que ocupavam, e viviam da agricultura de subsistência e do extrativismo. Quando o imigrante europeu chegou à região e adquiriu as terras de maneira legal, esses camponeses foram obrigados a se retirar ou se adequar a nova situação.

O segundo capítulo irá tratar da origem da figura do camponês nacional, suas raízes étnicas, ressaltando alguns aspectos importantes da sua cultura. Cultura essa que vai ser inferiorizada pelo pensamento racional/científico do século XIX, tanto por europeus quanto pelos próprios brasileiros, e também ignorada e estigmatizada pela própria historiografia.

No terceiro capítulo serão discutidas as possíveis contribuições dadas por esses camponeses ao desenvolvimento da região de Ijuí no período colonial. Ele teve uma participação ativa na formação da Colônia, trabalhando a terra, na

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derrubada e no cultivo dos locais de mata, na construção de estradas, na exploração e no processo de demarcação, além de auxiliar, com seu conhecimento da região, na sobrevivência e na prosperidade do imigrante europeus durante os primeiros anos da Colônia Ijuhy.

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1 A dinâmica da ocupação territorial do Rio Grande do Sul

A forma como ocorreu a ocupação do território que hoje compreende o Estado do Rio Grande do Sul foi decisiva para o processo gradual de exclusão sofrido pelos grupos camponeses que aqui habitavam, no final do século XIX e início do século XX. Para compreender como esse processo ocorreu, consideramos importante citar alguns pontos que foram decisivos na história deste estado.

Primeiramente tivemos o gado, introduzido nos campos sulinos pelos jesuítas. Ele vai se multiplicar facilmente, graças à abundância das pastagens nativas, propícias para sua criação. Assim entramos também na questão da geografia do Rio Grande do Sul, cujos campos foram fundamentais para o sucesso da instalação das estâncias de criação de gado. Depois temos a posição estratégica do estado, constantemente ameaçado por invasões das nações vizinhas e palco de vários conflitos, tanto nacionais quanto internacionais, e que motivaram a presença militar constante. Mais tarde vão ser justamente esses militares que irão se tornar grandes e poderosos estancieiros.

A dicotomia campo/floresta também teve destaque, pois assim como haviam extensos campos, existiam grandes áreas de mata nativa. O sucesso que a criação de gado teve no Rio Grande do Sul foi suficiente para ofuscar agricultura, que acabou sendo empurrada dos campos para essas regiões de mata, juntamente com o camponês pobre que não se sujeitou ao trabalho como peão nas fazendas de gado. Ele se dedicou a agricultura de subsistência e a extração da erva mate nas terras devolutas do estado, que eram “terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse” (FERREIRA, 2013). Praticamente todas as áreas de mata nativa, salvo os ervais públicos sob o controle dos municípios, não eram utilizadas para qualquer fim pelo estado, e por esse motivo, seu interior era ocupado por camponeses nacionais que ali fixavam moradia e plantavam suas roças.

Houve também mudanças nas leis que regiam a aquisição de terras no Brasil. Primeiramente tínhamos o regime de sesmarias que, segundo Paulo Afonso Zarth “regulava o acesso a terra. Sob este sistema, o interessado deveria requerer ao governo a terra pretendida” (2002, p. 75). Este sistema, por muito tempo beneficiou as elites mais influentes do país, inclusive os grandes fazendeiros e militares do Rio

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Grande do Sul, na medida em que “na prática, os comandantes militares do sul é que informavam ao governo sobre o requerimento do beneficiado, de forma que a concessão era decidida em nível local” (ZARTH, 2002, p. 75). Mirian Ilza Santana nos ajuda compreender um pouco mais sobre como funcionava o sistema de sesmarias:

Somente aqueles que tivessem algum laço com a classe dos nobres portugueses em Portugal, os militares ou os que se dedicassem à navegação e tivessem obtido honrarias que lhes garantissem o mérito de ganhar uma sesmaria, tinham o direito de recebê-la.

Nem tudo era perfeito, havia vários problemas a serem sanados, entre eles pode-se citar a atitude dos sesmeiros diante da obrigatoriedade de se cultivar a terra, isso levou muitos deles a locar suas terras a pequenos lavradores – dando origem aos posseiros. Estes cultivavam as terras, porém não tinham direitos sobre elas, eram “donos” de terra adquirida de forma ilegal, muitas vezes pagando para ficar com elas e cultivá-las, prática ilegal no sistema de doação de sesmarias.

Em virtude das inúmeras irregularidades, em 1822 foram suspensas as concessões de sesmarias, só permanecendo aquelas anteriormente reconhecidas. [...] (SANTANA, [s.d.]).

Depois da extinção das sesmarias “instituiu-se o sistema de posses, pelo qual qualquer morador poderia ocupar terras de forma mansa e pacífica” (ZARTH, 2002, p. 75), e que tinha o objetivo de facilitar o acesso às terras devolutas e incentivar a agricultura pelo interior do estado, e que beneficiou os camponeses pobres. Por esse sistema não era necessário requerer a nenhuma autoridade o acesso à terra, mas ainda era preciso registrar em Paróquia ou Cartório, que a área em questão estava sendo ocupada.

Com a influência política das elites regionais, tanto civis quanto militares, que desejavam manter o acesso a terra restrito e com a decisão do Império, e mais tarde da República, de colonizar as regiões de mata com imigrantes europeus, foi decretada, em 1850, a Lei de Terras. Com essa lei teve início o processo de mercantilização das terras do estado, que daí por diante só poderiam ser adquiridas por meio de compra. Assim se iniciou a gradual expulsão dos camponeses pobres das regiões de mata, pois não tinham condições de comprar as terras que ocupavam pelo sistema de ocupação mansa e pacífica, ou então nunca efetuaram o devido registro das mesmas, garantindo a posse legal.

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Estudar o século XIX desta região significa trazer à luz a história de uma massa camponesa de origem luso-brasileira que tem sido pouco considerada e até discriminada em muitos títulos da bibliografia brasileira. Os camponeses brasileiros conhecidos como “caboclos” que ocupam, de forma esparsa, grandes áreas do país são consideradas – por uma larga lista bibliográfica – símbolo do atraso e do tradicionalismo [...]. (ZARTH, 1997, p.12).

Estes pequenos camponeses tiveram uma participação muito ativa no processo de ocupação da terra, representando uma grande parcela da população do estado no período analisado e foram um dos grupos que ajudaram a sustentar, após o ciclo missioneiro, duas das mais importantes atividades econômicas da região, a pecuária e a extração da erva-mate. Mesmo realizando atividades importantes para a economia da Região Sul, acabaram sendo excluídos do processo de distribuição e ocupação territorial.

Seu direito de acesso a terra como meio de subsistência foi negado, além de terem sido marginalizados também da historiografia da época, justamente por esta estar ligada as elites políticas e econômicas que estavam atreladas ao grande latifúndio, mais precisamente, as grandes estâncias de criação de gado. Para Zarth,

A história desses camponeses foi ofuscada pela historiografia elaborada a partir da visão dos grandes produtores de gado e, por outro lado, dos colonos, imigrantes europeus que se estabeleceram em pequenas propriedades rurais [...]. (2010, p. 01).

O poder dos produtores de gado que se constituíram como grupo dominante da província, também se fez presente na historiografia até os tempos recentes. Os historiadores colaboraram ativamente na difusão da região como uma imagem espelhada das estâncias pastoris características do bioma pampa. [..]. O mato das “feras e selvagens” era representado de forma negativa ou minimizada diante da imagem dos campos abertos dos grandes criadores de gado. Ou seja, os habitantes de mato não correspondiam a imagem do Rio Grande do Sul difundido pelo mundo afora. (ZARTH, 2010 p. 02-03).

A visão dos campos como única fonte de renda e importância real ofuscava as matas, onde viviam a maioria dos camponeses nacionais livres, e a posição da historiografia, que descrevia essas áreas como inóspitas e selvagens, contribuíram para ideia de que eram regiões desocupadas e improdutivas. A população camponesa da região sul, por causa disso passou praticamente despercebida pela grande maioria das pessoas da época, e essa falta de visibilidade acarretou em uma série de injustiças para com os mesmos.

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1.1 A formação das estâncias e a ascensão dos estancieiros como classe militar, política e econômica dominante

Até meados do século XVIII o Rio Grande do Sul foi ocupado majoritariamente por tribos indígenas, além dos missionários da Companhia de Jesus, que por aqui fundaram várias reduções jesuíticas. O império português nada via de importante a ser explorado nessa região, pois não havia ouro, prata, ou um clima adequado para o plantio de culturas de valor comercial. Segundo Zarth (2002, p. 49), “O extremo sul do Brasil atual passou praticamente despercebido durante os primeiros séculos da colonização portuguesa. As condições geográficas do Sul não eram propícias para os interesses mercantis da época”.

Esse período foi muito importante, por questões históricas, para o Rio Grande do Sul, pois “é no século XIX, considerado atrasado e sub povoado, que encontramos as origens das atuais estruturas agrária e social da região” (ZARTH, 1997, p. 12), ao mesmo tempo em que “se formaram as grandes propriedades pastoris e surgiram os primeiros camponeses sem terra, quando, paradoxalmente, haviam milhares de hectares de terras virgens” (ZARTH, 1997, p. 12).

Um fato importante que determinou de maneira decisiva o futuro da questão territorial da região foi a inserção do gado vacum1 nos campos naturais do estado, por parte dos religiosos jesuítas. Com o fim das reduções na batalha de 1756, e a expulsão dos missionários, gradativamente, camponeses nacionais ocuparam o espaço deixado pelos índios nas florestas, extraindo erva-mate; e os militares, por suas vitórias, adquiriram extensas áreas de campo para criação de gado, na forma de sesmarias, como recompensa.

O que transformou o Rio Grande do Sul numa região importante economicamente é justamente o gado trazido pelos jesuítas espanhóis, um fato que, para Zarth (1997, p. 21), “iria marcar a historia econômica do sul por muitas décadas”. Esse gado garantiu uma atividade econômica rentável para os índios Guarani que viviam nas reduções, e depois para os estancieiros da província. O estado, até o final do século XVIII vai contar com um enorme rebanho que vai fazer com que a região se integre efetivamente no circuito econômico nacional. Ainda, “Os campos sulinos a partir disso transformaram-se gradativamente em grandes

1 Gado vacum, segundo o Aulete Digital, “diz-se de gado de vacas, bois, touros e bezerros”.

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estâncias de gado. Os estancieiros formariam uma poderosa classe que dirigiria o Rio Grande do Sul de forma hegemônica até o princípio do século XX” (ZARTH, 1997, p. 21).

Mas o gado em si não era suficiente para desenvolver a pecuária na região. Para tal era preciso que outro fator, também decisivo, estivesse presente na geografia: a abundância de pastagens nativas. A ocupação do território rio-grandense esteve muito ligada às condições geográficas, da vegetação, que eram propícias para a criação do gado e a formação de grandes fazendas, pois segundo Zarth (1997, p. 25) “As excelentes condições oferecidas pela natureza facilitavam a instalação de estâncias sem que o estancieiro se preocupasse em investir muito ou em melhorar a qualidade dos rebanhos”.

Para o autor,

o gado desenvolveu-se com facilidade no Sul principalmente em função das características favoráveis do território, coberto por vastas campinas com boas pastagens naturais. Grosso modo, a fitogeografia sulina dividia-se entre campos nativos e florestas. Este fenômeno teve grande influência na formação da estrutura agrária da província. (ZARTH, 2002, p. 51).

Esse gado, mais tarde

iria atrair milhares de aventureiros das províncias ao norte e transformar os militares em prósperos estancieiros. [...] foi a riqueza que viabilizou economicamente a ocupação européia, a partir do século XVIII, e deu origem a uma poderosa classe de latifundiários dedicados à pecuária. (ZARTH, 2002, p. 51).

Estas estâncias prosperaram, produzindo carne, couro e gado muar2 para o transporte nas Minas Gerais. Porém representaram mais tarde, um grande obstáculo ao desenvolvimento da agricultura, e também o início do fim do processo de ocupação livre das matas por parte dos camponeses que nela viviam do extrativismo e da agricultura de subsistência no estado do Rio Grande do Sul.

As estâncias “eram um estabelecimento centrado na atividade pastoril; a agricultura era secundária. [...] O gado era o carro chefe da economia e exigia

2 Segundo o site do Centro de Produções Técnicas “[...] os muares, mulas e burros, são animais

híbridos resultantes do cruzamento de um jumento com uma égua, ou de um cavalo com uma jumenta”. Disponível em: http://www.cpt.com.br/cursos-criacaodecavalos/artigos/muares-animais-de-carga-resistentes-inteligentes-de-facil-manejo-e-vida-longa. Acesso em 19 abr. 2016.

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menos trabalho e capital que a agricultura comercial” (ZARTH, 1997, p. 22). Elas foram as grandes responsáveis pelo processo de expulsão dos grupos camponeses dos campos que ocupavam, para o interior das regiões de mata nativa.

Os grandes estancieiros eram de dois tipos: militares que receberam sesmarias do império, ou tropeiros que vão adquirir propriedades por preços baixos. Ambos foram responsáveis pela criação das grandes estâncias de gado. Segundo Zarth, “As autoridades militares incentivavam a instalação de estâncias ou lavouras para os oficiais e soldados das fortificações, com o objetivo de povoar a área de garanti-la ao reino de Portugal” (2002, p. 58). Assim, o governo arbitrário dos comandantes militares tomou propriedades, principalmente nas regiões de campos e as distribuiu a outros, de sua preferência, e para Sebalt Rüdiger, “Dessa forma, os comandantes militares detinham de fato o controle sobre o processo de apropriação das terras, pois eram eles que tinham condições de julgar os pedidos dos pretendentes a posse de terras” (apud ZARTH, 2002, p. 60).

Essa foi uma característica marcante da ocupação do território sulino: muitas fazendas vão surgir da ocupação da terra por militares, sendo que eles vão adquirir terras, seja por doação na forma sesmarias, ou então se apropriando das terras de pequenos camponeses, por meio da força ou da coerção militar. A presença desses militares na região sul tinha seus motivos já que, para a coroa portuguesa, a província tinha grande importância geopolítica, pois era “a porta de entrada natural para um possível ataque castelhano ao Brasil” (ZARTH, 2002, p. 50). Não só isso, mas também uma série de conflitos na qual o RS será palco ao longo do século XVIII e XIX.

No século XVIII, contra os índios missioneiros (1756) e a dos portugueses contra os castelhanos que ocuparam Rio Grande, de 1763 até 1776. No século XIX, entre 1810 e 1828, lutas pela disputa da Banda Oriental (Uruguai) e pelo território das Missões, entre 1835 e 1845, o Sul foi palco da Guerra dos Farrapos; em 1851 e 1852, da guerra contra a Argentina, do General Rosas; e, entre 1864 e 1870, a Guerra do Paraguai, o maior conflito externo do país. Diante desse estado de guerra quase permanente, o exército constituía uma presença marcante e que muito influenciou na própria ocupação da província. (ZARHT, 2002, p. 53).

Com os conflitos no estado, os militares ganhavam prestigio e a medida que isso acontecia, avançavam as fronteiras portuguesas, ganhando como prêmio os campos conquistados, originando assim uma poderosa classe de estancieiros

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soldados e que, mais tarde, irão influenciar decisivamente no processo de ocupação e controle das terras do Rio Grande do Sul.

A partir de 1850, todas as áreas de campo nativo do Rio Grande do Sul estavam praticamente ocupadas e apropriadas e “o latifúndio pastoril estava consolidado, assim como estava consolidada uma classe militar e política fortemente instalada no poder” (ZARTH, 2002, p. 63).

1.2 Grandes extensões de terra e infraestrutura precária: o atraso relativo da agricultura e o suposto isolamento econômico do Rio Grande do Sul

As propriedades de terra no Rio Grande do Sul do século XIX, normalmente estâncias de criação de gado, atingiam enormes dimensões e, além disso, haviam poucos municípios no estado, com uma extensão territorial muito grande. Temos o exemplo da região de Cruz Alta, que vai se transformar em município e vila em 1834, e consequentemente em um centro econômico e político do planalto gaúcho por todo século XIX. Segundo Zarth (1997, p. 25) “O antigo município [...] abrangia grande parte do planalto rio-grandense e tinha uma área aproximada de 60.000 km2. Essa área corresponde a cerca de 20% do território do Rio Grande do Sul”, se formando a partir da instalação de alguns estancieiros na região.

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Mapa 1 – Mapa da “Capitania do Rio Grande do Sul” – 1809.

Fonte: Departamento Estadual de Estatística do Estado do Rio Grande do Sul. Julho, 1942.

No mapa acima pode-se observar o tamanho dos municípios que compunham o Rio Grande do Sul do início do século XIX, em comparação com o número de vilas e cidades existentes, podendo inclusive se questionar se era possível administrá-los de maneira adequada e eficiente. Veremos mais adiante que existiam muitas dificuldades provenientes da falta de infraestrutura básicas nesses municípios.

Os militares se aproveitavam de sua posição de prestígio para se apropriar de vastas extensões de campos para criar seu gado, ao mesmo tempo em que expulsavam pelo uso da força, os camponeses que habitavam estas áreas. Aqueles que se sujeitavam, acabavam se tornando peões de estância; já aqueles que não,

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se refugiavam nas regiões de mata para viver do extrativismo e da agricultura de subsistência.

Um caso extremo do exagero das propriedades do século XVIII é o do Coronel Rafael Pinto Bandeira, comandante militar e consagrado herói da expulsão dos espanhóis do Rio Grande. Este militar, nas palavras do historiador Sebalt Rüdiger, “chegou a apropriar-se de um verdadeiro feudo, medindo centenas de quilômetros, coisa que devia ter lhe dado um prestígio tremendo” (p. 89). Para tanto, o famoso coronel usou do expediente de adquirir estâncias de concessionários do Edital de 1780, as quais, somadas com as suas próprias terras, alcançavam cerca de 100 léguas quadradas. (ZARTH, 2002, p. 56).

A extensão das terras chamava a atenção até de quem vinha de fora, como foi o caso do francês Nicolau Dreyes, que em 1830

observou que uma estância típica tem “ordinariamente a extensão de uma sesmaria, as vezes de 2, 3 e mais” (1961). A própria palavra sesmaria se tornou caráter de medida agrária, equivalente a uma légua de frente por três de fundo (cerca de 13.000 ha), o que significa que era comum a posse de áreas com essas dimensões. (1961 apud ZARTH, 2002, p. 61).

Nestas terras ocupadas por estâncias de criação de gado, haviam poucos habitantes, em proporção ao tamanho das propriedades, e o detalhe é que a produção se restringia quase que completamente a derivados do próprio gado, quase inexistindo a agricultura, sendo esta voltada quase que unicamente a subsistência. A densidade demografia de municípios cuja economia girava em torno da criação de gado era bem pequena.

Figura 1 - Densidade demográfica de alguns municípios no RS. Fonte: Zarth (2002, p. 54).

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Segundo o censo realizado em 1872, que classificava a população de acordo com a raça “Os caboclos, [...], compreendiam apenas 6% da população gaúcha naquele ano. Os negros representavam 7,88% e os pardos 11,19%. Os brancos, com cerca de 75%, predominavam” (ZARTH, 2002, p. 176). Podemos perceber que, entre 1859 e 1872, os camponeses nacionais, que também eram chamados de caboclos, já eram considerados como parte da população, aqui no Rio Grande do Sul, podendo, possivelmente estarem incluídos nos números mostrados na tabela.

Em municípios como Bagé, Cruz Alta e São Borja, havia uma densidade demográfica de menos de 01 habitante por km2, levando quem passasse por esses lugares a crer que não havia pessoas vivendo na maior parte da extensão dos seus territórios, apesar das terras serem usadas, na maior parte, para a pecuária.

Representava uma grande dificuldade garantir a posse do estado no século XIX se havia uma grande vastidão de terras pouco povoadas, pertencentes a tão poucos, ao mesmo tempo em que já se falava em uma massa de camponeses sem terra, desapropriados em nome dos grandes latifúndios.

Territórios muito grandes e com densidade demográfica baixa eram difíceis de serem defendidos em caso de possíveis ataques, por isso, ao longo destas terras foram criadas colônias militares com o intuito de povoar, defender e desenvolver a agricultura. Só que os militares tiveram muita dificuldade de manter essas colônias, devido ao seu isolamento comercial. Não havia um trânsito regular de mercadorias entre essas propriedades que permitisse que se mantivessem abastecidas de víveres de que necessitavam. A falta de rotas comerciais que garantissem o abastecimento não era o único problema da região no século XIX, havendo também a questão das distâncias entre as localidades e municípios para com a capital, Porto Alegre.

A precariedade das rotas de transporte de produtos agrícolas também foi responsável pelo relativo isolamento econômico da região, com exceção, é claro, do comércio do gado, do couro e da carne, que movimentou a economia das estâncias, de maneira bem individual, e da extração de erva-mate que foi a principal fonte de renda dos habitantes das regiões de mata. Para Zarth (1997) a circulação de mercadorias de origem agrícola ficava comprometida por causa do isolamento, mas o gado não sofria deste problema pois podia se transportar sozinho.

O isolamento dos municípios e demais regiões do Rio Grande do Sul, também das fazendas, eram objeto de preocupação de boa parte dos estancieiros e dos

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chefes políticos locais. O caso era tão sério que em 1877 houve na região, uma tentativa de emancipar a área. Segue abaixo um trecho do argumento dos separatistas para justificar tal decisão:

Há 84 anos que esse território foi desmembrado do Vice-Reinado de Buenos Aires passando a incorporar-se ao Brasil, durante esse período longo com quanto tem contribuído para os cofres públicos? Com uma soma, sem dúvida, avultadíssima e cujo fato será objeto de nosso estudo e conseqüente demonstração oportuna – no entanto, quais os benefícios auferidos e que se correspondem a tão valioso concurso? O completo abandono – não temos uma ponte, uma estrada, um qualquer benefício público [...] (ZARTH, 1997, p. 30)

Como podemos perceber pelo relato da época, não haviam pontes sobre os rios, estradas ou qualquer estrutura que permitisse que eles desenvolvessem um comercio eficiente, tanto do gado quanto da erva-mate, pois esta ainda era transportada em carretas de boi e, realizar alguns trajetos como “descer a escarpa do planalto, rumo a Rio Pardo, o entreposto comercial às margens do baixo Jacuí, era algo difícil” (ZARTH, 1997, p. 30).

Do que adiantava ter uma produção agrícola satisfatória se não havia um meio efetivo, rápido e barato de distribuí-la nos centros consumidores? Ignorando os problemas de transporte e infraestrutura locais, a historiografia da época considerou a agricultura quase inexistente, e o estado a considerou atrasada e insuficiente para abastecer o mercado interno.

O latifúndio era considerado inadequado e ineficiente no que se referia ao abastecimento agrícola do estado, pois “seus estabelecimentos mal produziam para o próprio abastecimento interno” (ZARTH, 2002, p. 68). Da necessidade por produtos agrícolas para consumo interno e para ocupar o território de forma a poder defendê-lo efetivamente surgiu a ideia de colonizar as terras de matas devolutas do Estado do Rio Grande do Sul com imigrantes europeus, pois “Uma população densa daria garantia de posse do território e forneceria soldados e alimentos” (ZARTH, 2002, p. 69). Ainda segundo o autor, em 1824, “sob o novo Governo Imperial Brasileiro, foram instalados os primeiros colonos alemães nas florestas do Vale do Rio dos Sinos, sob um regime de pequena propriedade dedicada à agricultura” (ZARTH, 2002, p. 69).

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1.3 A dicotomia campo-floresta e a divisão geográfica das atividades econômicas no Rio Grande do Sul

Enquanto em outras regiões do Brasil, como no nordeste, por exemplo, o gado foi expulso para o sertão e substituído pela cana de açúcar, no Rio Grande do sul ele foi privilegiado em detrimento da agricultura, que foi expulsa para as florestas inóspitas, ficando na mão dos camponeses pobres e gerando uma divisão desigual da econômica. Segundo Zarth (1997, p. 24) “O gado no sul era a atividade nobre e o poder político era comandado pelos pecuaristas que determinavam o processo de ocupação das terras gaúchas”.

O Rio Grande do Sul, até o final do século XIX estava dividido entre as pequenas propriedades no interior das matas, representando a agricultura de subsistência e o extrativismo do camponês nacional; e a grande propriedade nos campos e pastagens, representando as estâncias de criação de gado.

A agricultura a cargo dos pequenos lavradores nas áreas florestais e a pecuária a cargo dos grandes fazendeiros nas zonas de campo formavam uma espécie de divisão do trabalho na economia local. À agricultura, nesta divisão, cabia um papel inferior diante da nobreza pastoril (ZARTH, 1997, p. 24).

Na época, no ano de 1849, o presidente da província do Rio Grande do Sul, Francisco José de Souza Soares Andréa, denunciou que

um dos obstáculos que se têm oposto nesta província ao desenvolvimento da agricultura é a existência de grandes fazendas ou antes de grandes desertos, cujos donos, cuidando só e mal da criação têm o direito de repelir de seus campos as famílias desvalidas que não têm aonde se conservar em pé... (apud ZARTH, 1997, p. 22)

Os indivíduos dos quais o presidente da província se referia na época eram justamente os camponeses pobres que habitavam as regiões de mata, também conhecidos como caboclos, ou nacionais. O fato da agricultura ser considerada uma atividade inferior também fazia com que aqueles que se dedicassem a ela também fossem considerados inferiores.

Essa agricultura não acontecia somente nas matas. Ela era realizada também no interior das estâncias pelos peões, que tinham permissão do estancieiro para ter

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sua roça, criar seus animais e prover o sustento dele e de sua família. Portanto era bastante limitada às necessidades internas das grandes fazendas.

Podemos dizer que os camponeses nacionais vão contribuir para a produção de gêneros agrícolas, não só em regiões de mata nativa, mas também em escala menor, no interior das estâncias, pois “é de se destacar que a estâncias pastoris, sedes da maior riqueza econômica do século XIX, procuravam se autossustentar de cereais e demais gêneros de subsistência, produzindo-os mediante o trabalho dos escravos e dos lavradores nacionais” (ZARTH, 2002, p. 35).

Mapa 2 – RS - Vegetação original - Florestas e campos nativos. Fonte: Zarth (1997. p. 23).

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No mapa acima podemos ver a extensão original das regiões de mata e de campos nativos do RS. Nos campos se concentravam as estâncias de gado, e nas matas nativas, os camponeses nacionais, praticando o extrativismo e a agricultura de subsistência. Na mesma proporção em que haviam extensas regiões de campos a serem explorados, existiam muitas regiões de mata, como o mapa sugere, e que eram ocupadas pelos indivíduos chamados na época de nacionais, ou caboclos, e por indígenas. Nessas florestas “encontra-se a erva-mate, pequena árvore de grande importância econômica” (ZARTH, 1997, p. 25), e que representava uma importante fonte de renda para os camponeses nacionais.

A coleta de erva-mate nativa vem desde os tempos dos sete Povos das Missões e era atividade importante para o povo guarani. Após a guerra guaranítica e a desarticulação das Missões, o extrativismo foi tocado por pequenos lavradores que penetravam nas florestas, localizavam os ervais e recolhiam o mate. Com o aumento de ervateiros e o expressivo valor econômico do mate, as Câmaras Municipais passaram a regulamentar a atividade, tomando por base os costumes dos extrativistas em relação ao acesso aos ervais. (ZARTH, 2010, p. 04).

Todo o trabalho realizado pelos camponeses pobres, fossem eles peões nas estâncias, lavradores nas regiões de mata ou coletores de erva mate, até a chegada dos imigrantes, foi historicamente desconsiderado. Historiadores e cronistas da época ignoraram a existência do trabalho do camponês nacional, e exaltaram a figura do imigrante. Este último foi privilegiado pela bibliografia regional, sendo retratado como figura de extrema importância no processo de ocupação da terra e no desenvolvimento da agricultura da região sul.

Paulo Zarth cita o exemplo do geógrafo alemão Leo Waibel, citando que seu estudo sobre a Região Sul “[...], remonta apenas a 1890, quando os primeiros colonos imigrantes chegaram. Os habitantes precedentes são desconsiderados” (ZARTH, 1997, p. 31). A historiografia da época considerou os primeiros responsáveis pela ocupação do território sulino os grandes latifundiários, criadores de gado, estancieiros e, mais tarde os imigrantes europeus. Em nenhum momento foi dada importância à participação na dinâmica econômica e ocupacional do estado ao pequeno camponês. Segundo Zarth (1997, p. 33),

Os habitantes que já viviam nesse espaço estão condenados ao atraso, por estarem imbuídos do espírito do tradicionalismo. Tal é o que efetivamente se observa, quando ao estudarmos as áreas de fronteira, vemos a expulsão desses homens ocorrer de forma inexorável.

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Com o tempo, a medida que as matas foram sendo medidas, loteadas e vendidas aos imigrantes europeus, os camponeses nacionais foram considerados intrusos na região.

1.4 A formação das colônias de imigrantes e o início do processo exclusão de camponeses nacionais do acesso à terra

No processo de ocupação da terra, primeiro o camponês foi expulso das terras que ocupava - as regiões de mata nativa - quando estas foram adquiridas legalmente por grandes estancieiros e outros membros das elites locais, e depois foi considerado símbolo do atraso agrícola e econômico da região, justificando sua substituição pelo imigrante europeu, e conseqüentemente, um tratamento excludente por parte da histografia oficial durante quase todo século XX.

Era consenso entre as autoridades do período da necessidade de se ter um abastecimento satisfatório de produtos agrícolas no Brasil, pois este era bastante precário devido “as causas naturais, o desvio de braços da agricultura de subsistência para monocultura de exportação; o desvio da produção de alimentos para mercados mais atrativos e os desestímulos de ordem burocrática e fiscal” (ZARTH, 2002, p. 37). A forma como a própria estrutura produtiva do Brasil estava organizada era responsável pela crise no abastecimento interno de produtos agrícolas.

Na época, José Bonifácio “criticava o latifúndio afirmando que este atrapalhava o desenvolvimento da agricultura” (ZARTH, 2002), na medida em que, por ser quase auto-suficiente, não ajudava a desenvolver um circuito efetivo de mercadorias de origem agrícola no Estado. O problema então não estava no trabalho do camponês livre, que não era satisfatório, ou que não supria as necessidades básicas, mas estava em fazer com que esses produtos chegassem aos centros consumidores de forma eficiente e rápida. Por isso tinha-se a impressão de que era uma agricultura insuficiente, atrasada, quando na realidade haviam problemas estruturais maiores.

O governo desejava a colonização européia, mas os latifundiários tinham uma ressalva: não mexer com os campos nativos. As lideranças dos municípios do Rio Grande do Sul, que em sua maioria estavam do lado dos estancieiros, aceitaram esses termos e, como alternativa, propuseram a ocupação das regiões de mata.

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[...] a câmara de Cruz Alta, no Planalto, cujo território era coberto por campos nativos mas também com uma enorme área de florestas, descreve com detalhes as áreas possíveis de colonizar fazendo elogios ao solo e ao clima. As áreas indicadas num Relatório minucioso, evidentemente, são as florestas e não campos nativos. A Câmara de Cruz Alta iria insistir constantemente para que o governo enviasse colonos paras matas do município, coisa que aconteceu somente em 1890 [...]. (Gazeta Serrana, 19/10/1890 apud ZARTH, 2002, p. 72).

O discurso de quem merecia ou não ser considerado um pioneiro era uma postura muito discriminatória que acompanhou todo o processo historiográfico da época. Para Zarth (1997, p. 31)

A bibliografia regional, de modo geral, tem caracterizado o planalto gaúcho do século XIX como área atrasada, que teria passado à condição de zona de fronteira no final do século, quando fundaram-se várias colônias oficiais e particulares, com imigrantes que passaram a ser denominados de “pioneiros” da região.

Ainda,

a elite gaúcha, formada pelos criadores de gado e charqueadores, tratou de manter intactas as estâncias pastoris, mas promoveu um processo de distribuição de terras florestais – privadas ou devolutas não utilizadas pela pecuária – para imigrantes europeus, sob um sistema de pequenas propriedades familiares. Nessas áreas e com esses camponeses europeus resolveu-se, em grande parte, o problema do abastecimento internos, sem desviar áreas e pessoal da pecuária tradicional. Esse projeto tem um sentido mercantil, à medida que a colonização se tornou um lucrativo negócio através da venda de terras e porque possibilitou uma forte acumulação nas mãos de comerciantes que realizavam a circulação da produção colonial. (ZARTH, 2002, p. 33)

Atendendo aos pedidos dos municípios, as regiões de mata foram ocupadas por colonos europeus, sem interferir nos campos nativos, que continuariam com a criação de gado. Assim a agricultura foi desenvolvida como se desejava inicialmente, através da criação de pequenas propriedades nas regiões de mata nativa, até que todas tivessem sido completamente ocupadas. O efeito colateral mais grave dessa política foi a expulsão dos antigos habitantes dessas regiões, dando origem a uma grande massa de camponeses pobres e sem-terra.

Em contrapartida, ao imigrante europeu foi atribuído o desenvolvimento da agricultura no RS, desconsiderando a produção agrícola de camponeses nacionais. A própria historiografia da época colocava os imigrantes como os únicos a desenvolver a agricultura, e ignoravam que os nacionais também a realizassem,

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mesmo que de uma forma menos intensiva, mais voltada para a subsistência. Segundo Zarth (2002, p. 35)

o fenômeno do descaso pela agricultura de subsistência fora dos núcleos coloniais é decorrência do fato de não aparecer nas fontes globalizantes normalmente consultadas pelos autores. Esse fato é agravado quando se lê, nos relatórios de presidentes de província, da década de 1840/50, que a agricultura era alvo de severa crítica e apresentada como praticamente inexistente. Com a chegada de novos e constantes imigrantes, a partir de 1850, pode-se observar, nos relatórios oficiais, uma série de informações sobre a produção agrícola e muitos elogios aos colonos e seu trabalho. Por isso, tem sido natural o raciocínio de que apenas os colonos se dedicavam à agricultura.

Temos o exemplo de Jean Roche, que segundo Zarth (1997, p. 31) é

um dos mais consultados sobre a colonização do Rio Grande do Sul. Ele dá muito destaque para a qualidade dos colonizadores [...], e, ao referir-se aos antigos habitantes, deixa explícita a ideia de tradicionalismo. Neste discurso, o colono europeu seria o legítimo portador do espírito de progresso do capitalismo ao passo que o caboclo brasileiro estaria representando o tradicionalismo, o atraso.

Discursos como o de Jeah Roche eram comuns no final do século XIX, e início do XX e expressavam

uma postura discriminatória em relação a uma camada da população que geralmente é excluída. A exclusão desses habitantes, que diversos autores consideram intrusos, obscurece a compreensão da própria dinâmica do processo de ocupação da terra e da formação dos grupos sociais (ZARTH, 1997, p. 33)

Para aumentar a mão de obra livre nacional nas propriedades do RS, foram tomadas medidas, legais e ilegais, utilizando mecanismos de expropriação de propriedades dos nacionais, normalmente localizadas nas regiões de mata ou em ervais públicos. A historiografia da época, ligada as elites regionais, interessadas na comercialização da terra, vai ignorar completamente a figura dos camponeses pobres, tratando-os como indivíduos inferiores economicamente e culturalmente. A ocupação das terras florestais por colonos europeus acarretou na exclusão deles do acesso a propriedade. A política em favor da colonização, ao mesmo tempo que vai garantir a produção agrícola no Estado, também vai garantir controle da terra por parte das elites, por meio do comércio das terras.

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1.5 O processo de privatização das matas nativas e o fim do livre acesso à terra no Rio Grande do Sul

Antes de 1850, existiam duas formas de adquirir terras no RS: uma delas era requerê-las na forma de sesmarias, ou comprando da administração dos territórios, conforme a lei da época. Nesse processo de sesmarias, ainda dependia-se de chefes militares para vender as terras por preços baixos.

Encontramos informações semelhantes para o caso da ocupação do território das Missões, áreas ocupadas após a conquista portuguesa, em 1801. A Câmara de Cruz Alta, numa correspondência de 16 de janeiro de 1850, informa com detalhes como foram apropriados os campos da região. de acordo com essa fonte, a região passou a ser habitada por portugueses depois da conquista das Missões e as terras eram vendidas pelos administradores do território, que se julgavam com direitos de fazer esse tipo de negócios. Esse expediente, de compra, era mais fácil do que requerer as terras sob a forma de sesmarias, conforme a lei vigente, processo que exigia demorada tramitação e que, no final dependia dos mesmos chefes militares que vendiam as terras por preços bastante baixos. Fica claro aqui o procedimento ilícito dos chefes militares, bem como o poder que detinham. (ZARTH, 2002, p. 61)

Com a independência, o regime de sesmaria foi abolido e o sistema de posses instituído no seu lugar, onde qualquer individuo pode ocupar uma terra devoluta, desde que de forma “mansa e pacífica”. Esse regime de terras veio em favor dos camponeses pobres que não tinham como adquirir terras por meios econômicos. Mas apesar desse novo regime de aquisição terras, os camponeses pobres tiveram dificuldades, esbarrando nos interesses dos mais ricos e influentes membros dos municípios da região sul. Segundo Zarth (2002, p. 77),

as terras iam sendo ocupadas a partir de um centro, ao redor das poucas vilas nas quais se encontrava segurança [...], mercado para produtos agrícolas e condições de transporte e comunicações. Nessas áreas é que os moradores mais influentes, do ponto de vista político, militares ou financeiro, adquiriam grandes extensões de terras em detrimento dos lavradores pobres. Estes deveriam sujeitar-se à condição de agregados, peões ou, então, emigrar para áreas inóspitas onde a lei de posses lhes permitia ocupar terras.

Para Zarth, esse processo de expropriação das terras dos camponeses nacionais “mostra que a separação do camponês de seu pedaço de terra o obriga a trabalhar para aqueles que detêm a propriedade da mesma. Em outras palavras,

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esta seria uma condição para transformar o camponês em assalariado típico do capitalismo” (2002, p. 45).

O sistema de posses também beneficiou os grandes estancieiros dos campos que se utilizaram dele para adquirir grandes extensões de terra. Para Cirne Lima (apud ZARTH, 2002, p. 75) “o sistema de posses logo se impregnou do espírito latifundiário que a legislação de sesmarias difundira e fomentara, lembrando que as posses passaram a abranger fazendas inteiras e léguas a fio”.

Esse sistema permitiu também que grandes estancieiros se apropriassem de terras devolutas, mas além delas, de terras já ocupadas por famílias de camponeses, por meio de sua influência militar e política. O que visava garantir uma maior ocupação do espaço no estado com fins de garantir uma produção agrícola significativa, diminuir a influência do latifúndio e garantir o povoamento geral do território por nacionais, acabou por não gerar o resultado desejado.

Com intuito de regularizar a situação das terras adquiridas anteriormente pelo sistema de sesmarias, que por vezes tinham seus limites mal-definidos, e de controlar o acesso às terras nas regiões de mata nativa, que estavam em vias de ocupação por imigrantes europeus, foi decretada a Lei de Terras, em 1850.

A Lei de Terras de 1850 “permitiu que as elites do sul determinassem a política de ocupação das terras florestais, inclusive excluindo lavradores nacionais pobres do acesso à propriedade, em favor da política de colonização [...]” (ZARTH, 2002, p. 47), permitindo controlar o livre acesso ao solo tanto de imigrantes europeus quanto de camponeses nacionais.

Esse controle de terras na região sul, garantiu o comércio lucrativo das mesmas, que eram compradas por preços baixos e vendidas por preços muito altos; mas, ao mesmo tempo, foi usada por políticos para tentar corrigir a exagerada concentração de terras nas mãos dos latifundiários.

Não existem informações que permitam afirmar que foi sequer cogitada a possibilidade de utilização do camponês nacional para introdução do regime de pequena propriedade agrícola. Um possível motivo estaria na sua própria cultura, no modo como viam o uso da terra e de como realizavam a agricultura de subsistência, que não produziria o suficiente para suprir as necessidades do mercado interno da região.

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Alguns autores (por exemplo, Truda, 1930, p. 114-115) sugerem, ainda, que a colonização européia teria como objetivo introduzir povos brancos para contrabalançar com negros e mestiços, considerados raças inferiores. [...]. Quanto à agricultura, o problema maior devia-se ao fato de os moradores dedicarem-se principalmente à pecuária e ao autoconsumo em grandes estabelecimentos. (ZARTH, 2002, p. 69).

Ainda segundo Zarth (2002, p. 73), “Com a Lei de Terras de 1850, que mercantilizou o solo agrícola, e com os incentivos governamentais, ocorreu uma forte expansão das colônias particulares”.

A apropriação das terras brasileiras sempre obedeceu a uma legislação, mas os caminhos legais tinham muitos desvios. Eram muitas as formas de legalizar as terras através de mecanismos fraudulentos. Durante o governo português, o regime de sesmarias regulava o acesso a terra. Sob este sistema, o interessado deveria requerer ao governo a terra pretendida, mas, na prática, os comandantes militares do sul é que informavam ao governo sobre o requerimento do beneficiado, de forma que a concessão era decidida em nível local. (ZARTH, 2002, p. 75).

A Lei de Terras de 18 de setembro de 1850 é apontada, pela historiografia, como um meio criado para impedir ou dificultar o acesso a terra por parte da população pobre, principalmente, por parte dos imigrantes que deveriam vir ao Brasil como substitutos dos escravos africanos, cujo tráfico foi extinto justamente naquele ano. Esta lei foi fruto de longos debates no parlamento e acabou obedecendo a uma tese muito em moda na época, segundo a qual deveria-se dificultar o acesso a terra como forma de obrigar os homens sem-terra a trabalhar como empregados dos grandes proprietários. Esta tese foi inspirada em Edward Gibbon Wakefield, que a elaborou em seus escritos sobre a colonização da América do Norte. (ZARTH, 2002, p. 76).

As elites, tanto intelectuais como políticas da época, compraram ideias vindas de fora e as colocaram em prática, sem se importar, ou se importando de outras maneiras com os impactos sociais que isso causaria nas populações nacionais mais pobres.

A Lei de Terras de 1850 exigia que as terras devolutas fossem adquiridas unicamente por meio de compra.

É nítida a intenção de limitar o acesso a terra para quem não tivesse dinheiro para comprá-la; e, ao mesmo que o preço fosse irrisório, os camponeses pobres do Brasil dos anos oitocentos dificilmente teriam recursos para pagá-la e, menos ainda, para custear as despesas legais inerentes ao processo de requerer e legitimar os terrenos. (ZARTH, 2002, p. 76).

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Fraudes nas aquisições de terra eram comuns, sendo que a mais realizada pelos usurpadores de terras era a seguinte:

aproveitando-se das possibilidades oferecidas pela própria Lei de 1850 que permitia a compra de terras de um posseiro que tivesse ocupado uma área de forma mansa e pacífica antes daquela data. Caso o posseiro não tivesse feito o registro obrigatório em 1855, bastava pagar uma multa irrisória e, assim, garantir a propriedade do imóvel. (ZARTH, 2002, p. 78).

Um traço cultural dos camponeses nacionais, que colaborou muito para os abusos e para a expropriação de suas terras, era o fato de que eles davam pouca ou nenhuma importância para a documentação legal, para o titulo de posse da terra. Segundo Thomas Holloway “Para eles, o importante era a posse da terra, porque lhes dava a subsistência: onde a terra funcionava primariamente como um fator de produção, mais do que uma mercadoria em si, a posse era a consideração mais importante” (apud ZARTH, 2002, p. 85). Para os camponeses, estar ocupando e produzindo era mais importante que ter um documento que lhe garantisse o direito sobre ela. Era uma questão cultural.

O governo do Rio Grande do Sul era favorável aos colonos, oferecendo vantagens na obtenção de suas terras, oferecendo o transporte até elas, a hospedagem, e a sua manutenção nos primeiros anos antes das safras. Em contrapartida, não existem muitas referências do mesmo governo auxiliando os camponeses nativos a regularizar suas terras, impedindo que estas fossem expropriadas de maneira ilegal ou abusiva.

[...] o governo do Rio Grande do Sul criava condições muito favoráveis [...]: pagava para os colonos terem suas propriedades. [...] As vantagens oferecidas pela lei provincial nº 229, de 4 de dezembro de 1851, incluíam a concessão gratuita de terras, despesa de transporte desde o porto de Rio Grande até as colônias, ferramentas e sementes, liberdade religiosa e pagamento de uma gratificação de três patacões, para cada imigrante entre 7 e 35 anos [...]. (ZARTH, 2002, p. 79).

Tal benevolência não foi vista igualmente para com os camponeses nacionais no RS, que tiveram as terras que ocupavam a muito tempo, loteadas e vendidas as esses imigrantes, muito menos foram apontadas soluções para resolver o problema dos muitos sem-terra que surgiram dessa política de colonização. Em nenhum momento da época se coloca o camponês nacional como um protagonista capaz de

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ajudar suprir as necessidades agrárias do Rio Grande do Sul. Falava-se em ocupar as regiões de mata com tanta convicção como se fossem regiões desabitadas.

A Lei de Terras permitia adquirir terras de camponeses nacionais por meio de compra legitima. Segundo Zarth (2002, p. 86), “Com a mercantilização da terra, os próprios lavradores nacionais acabariam vendendo seus lotes para imigrantes europeus, conforme se pode observar em vários locais”. Isso ajudou a difundir a ideia de que o camponês nacional tinha perdido o gosto pela agricultura, cabendo ao imigrante reerguê-la.

A desapropriação, expulsão e ocupação das regiões de mata foi uma ação preocupante, pois muitos camponeses ficaram sem ter para onde ir, formando uma legião de sem-terras. As elites locais e regionais se aproveitavam da ignorância desses indivíduos para tomar posse das terras que eles ocupavam, nitidamente demonstrando que os consideravam inferiores. Usavam do poder econômico e da influência política para obter vantagens diante dos órgãos legais, isso quando não usavam de coerção física para conseguir as terras que desejavam.

É difícil quantificar o número de lavradores expropriados direta ou indiretamente, pois, em geral, esses homens não possuíam títulos legais das terras que ocupavam; nem tinham recursos para efetuar as medições e registros oficiais exigidos pela lei. A prática costumeira de utilizar a terra, sem considerar os aspectos formais, deixava-os vulneráveis diante dos juízes, comissários e usurpadores poderosos. A pura e simples coerção física deveria ser um expediente comum numa sociedade violenta e autoritária e, como é comum nesses casos, a versão dos lavradores pobres, que não deixam testemunhos escritos, é difícil de observar. (ZARTH, 2002, p. 87)

Por volta de 1850, todos os campos nativos estavam privatizados, restando, porém, uma enorme área de florestas. Com a Lei de Terras de 1850 e o crescente processo de colonização das matas por imigrantes, estas áreas também passaram, gradativamente, ao controle privado. A privatização das áreas florestais atingiu os lavradores nacionais que tinham como alternativa a ocupação das terras devolutas, onde poderiam sobreviver como camponeses independentes. Deste modo, na década de 1850 mais ou menos, deu-se início ao fechamento do livre acesso a terra para os lavradores pobres. ( ZARTH, 2002, p. 83).

Encontrar documentos que demonstrem a real dimensão desse problema é muito difícil, visto que as vozes oprimidas têm pouco eco das páginas da documentação histórica, principalmente desse período. O lavrador nacional faz parte de um grupo social pouco conhecido na historiografia, sendo alvo de preconceito por parte de outros grupos sociais de melhores condições econômicas.

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A medida que as regiões de mata nativa vão sendo loteadas e vendidas aos imigrantes europeus, depois da entrada em vigor da Lei de 1850, “os lavradores passaram a ser processados judicialmente como invasores de terras, sempre que realizassem sua roças em áreas vazias, como de costume, tanto em áreas públicas como privadas” (ZARTH, 2002, p. 84). Na época houve todo um movimento para que áreas florestais, consideradas “desertas e devolutas”, fossem ocupadas, em sua totalidade, pelos imigrantes.

A Lei de Terras, junto com o incentivo governamental, acarretou em uma forte expansão das colônias particulares, em detrimento das populações nativas que habitavam as regiões de floresta, que mais tarde seriam demarcadas, loteadas e vendidas.

Com a maioria das terras que costumavam ocupar quase completamente sob o controle da iniciativa privada ou de imigrantes, os ervais públicos se tornaram o “último reduto dos caboclos rio-grandenses que ali se foram instalando durante o século XIX até serem alcançados pelas colônias de imigrantes já no final do século” (ZARTH, 2002, p. 87).

Os ervais públicos ainda eram uma importante fonte de renda, tanto para os municípios, como para os camponeses nacionais e por isso, estes lutavam para que não fossem privatizados. Mesmo assim “Os conflitos entre coletores de erva-mate e usurpadores de terra intensificaram-se logo após a regulamentação da Lei de Terras” (ZARTH, p. 88).

A partir do momento em que as terras onde ficavam os ervais eram privatizadas, eles deixavam de ser públicos, e o acesso a erva-mate ficava restrito aos novos donos, acabando com a ideia de uso comum do erval, expressado pelo código de posturas criado em 1835 pela câmara municipal de Cruz Alta. No artigo 41 do respectivo Código de Posturas estava escrito que “são considerados como públicos todos os ervais deste município que estiverem descobertos ou possam se descobrir em terrenos devolutos, onde se poderá colher a erva-mate [...] (1875 apud ZARTH, 2010, p. 04-05). O camponês ervateiro deixa de ter livre acesso aos ervais e os municípios começam a perder o controle sobre uma de suas principais fontes de renda a partir do momento que os ervais passam a ser privatizados.

Foram vários os casos em que os ervateiros se reuniram para tentar exigir seus direitos sobre os ervais públicos nos quais faziam a extração da erva-mate e que estavam sendo medidos e privatizados de maneira ilegal.

Referências

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