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Gadamer: a linguagem dialógica na educação

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Academic year: 2021

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UNIJUI – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

EVANILDES LORENCENA

GADAMER: A LINGUAGEM DIALÓGICA NA EDUCAÇÃO

Ijuí, RS, 2012

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EVANILDES LORENCENA

GADAMER: A LINGUAGEM DIALÓGICA NA EDUCAÇÃO

Texto dissertativo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências – Mestrado e Doutorado para Defesa Final, como etapa complementar para a obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia

Ijuí, RS, 2012

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Dedico este trabalho ao Ivo e ao Vinicios, por sua paciência e por terem acreditado e confiado sempre em mim e em minha capacidade.

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AGRADECIMENTOS

Ao estimado Professor Doutor Claudio Boeira Garcia, pela paciência e sabedoria com que me guiou nesta jornada e pelo exemplo que se constitui para mim.

Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, pelo respeito e pelas longas horas de trocas de experiências que enriqueceram meu mundo.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, que, com sua eficiência e dedicação, me ofereceram todo o apoio técnico necessário durante toda a caminhada.

À minha família e amigos, pelo carinho e pela paciência durante todo o período do mestrado.

Ao Ivo, por ter permitido que eu avançasse tanto e por seu amor, minha principal fonte de energia e inspiração.

Ao meu amado filho Vinicios, por entender todas as minhas ausências e por ter me apoiado nesta difícil caminhada.

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“A linguagem mesma é uma forma de vida, e, como a vida é nebulosa, também ela sempre de novo enevoa-se. Assim nós nos movimentamos, sempre de novo, só por algum momento em um nevoeiro que se clareia, que nos envolve de novo, quando procuramos a palavra correta”.

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RESUMO

O texto dedicou-se, por um lado, a elucidar noções, proposições e questões significativas na abordagem de Hans-Georg Gadamer ao tema do diálogo, e, por outro, a destacar a relevância das mesmas no âmbito das atividades educacionais, entre elas as que seguem: no que respeita à condição humana, há uma estreita relação entre interpretação, finitude e historicidade do saber; nas circunstâncias atuais as novas formas de organização das famílias, as novas tecnologias e formas de comunicação somam-se aos elementos que dificultam a experiência do diálogo; as estratégias educacionais atuais deveriam ser pautadas no núcleo socrático da hermenêutica de Gadamer, ou seja, valorizar as experiências de diálogo capazes de mobilizar as dimensões genuinamente comunicativas da condição humana; a retórica e arte de ouvir dever ser estimulados como contraposição ao prestigio atual da racionalidade instrumental no processo educacional. Isto porque a arte do diálogo abre-nos não apenas o acesso a um determinado conteúdo, que nos desafia a rever nossas convicções; ela proporciona uma abertura ao outro, à outra pessoa, aos seus modos de agir e de pensar. Enfim, a hermenêutica de Gadamer contribui de modo significativo tanto para lançar luzes sobre o plano mais amplo das relações humanas quanto ao dos assuntos educacionais mais estritos porque renuncia à concepção de sua validade incondicional, de sua onipotência e de seu poder exclusivo de construir nosso conhecimento, contrapondo-lhe uma postura mais humilde do reconhecimento do outro que, ao vir ao nosso encontro, conta com nossa responsabilidade perante ele.

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ABSTRACT

The text was dedicated to, firstly, clarify concepts, propositions and significant issues in Hans-Georg Gadamer's approach to the dialogue subject and, secondly, to highlight their relevance in the context of educational activities, including the followings: regarding the human condition, there is a close relationship between interpretation, finitude and the historicity of knowledge, in current circumstances the new forms of family organization, new technologies and forms of communication are added to the elements that hinder the experience of dialogue; Today's educational strategies should be guided in the socratic core of Gadamer's hermeneutics, in other words, enhance the experiences of dialogue capable of mobilizing the communicative dimensions of the human condition; Rhetoric and the art of listening should be encouraged as a contrast to the current prestige of instrumental rationality in the educational process. This is because the art of dialogue open to us not only the access of certain content, which challenges us to revise our beliefs, it also provides an opening to the other, the other person, to their conduct and way of thinking. So, the Gadamer's hermeneutics contributes significantly both to shed light on the wider scope of human relations as to the stricter educational matters because it renounces the conception of its unconditional validity, of its omnipotence and its exclusive power to build our knowledge, opposing it to a more humble recognition of the other, that counts with our responsibility towards him.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 08

1 A LINGUAGEM E O ENTENDIMENTO MUTUO:... 14

1.1. O perfil de uma época e a importância do falar para a coesão social:... 16

1.2. O homem e a linguagem:... 21

1.3. O caráter hermenêutico da linguagem e a questão dos preconceitos:... 26

2 O DIÁLOGO E A EDUCAÇÃO:... 34

2.1. O diálogo como jogo... 35

2.2. Retórica e Diálogo: ... 39

2.3. Educar pelo diálogo e com autoridade:... 44

CONSIDERAÇÕES FINAIS:... 52

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INTRODUÇÃO

O texto dedicou-se a elucidar algumas noções significativas na abordagem de Hans-Georg Gadamer ao tema da linguagem, do diálogo e da educação, tais como: as dimensões que a linguagem ocupa no mundo em que estamos inseridos; a importância do falar para a coesão social; as questões intersubjetivas da linguagem; o caráter hermenêutico da linguagem; a interpretação e a experiência; a questão dos preconceitos; os tipos de diálogo e entraves ao seu verdadeiro desenrolar hermenêutico; a importância da retórica e a proposição do autor de que ela seja revalorizada, dada sua importância no contexto social, e por fim, o diálogo em relação à educação e aos desafios enfrentados pelas instituições de ensino modernas.

Em seus textos, Gadamer observa que os paradigmas de uso da linguagem se encontram numa espécie de crise que deve ser avaliada. Novas formas de comunicação estão sendo criadas e novos modelos estão se tornando cada vez mais convidativos. O que antes era comunicado pela fala ou pela escrita, agora pode ser feito em forma de imagens, de sons, de música. Todas são formas de linguagem, no entanto, como dialogar nestes diferentes espaços ou formas de comunicação no espaço escolar? Parece-nos que, cada vez mais, o diálogo face a face está desaparecendo das relações humanas, pois cada um está mais voltado para o que entende, vê ou sente em relação às coisas e fatos, não se preocupando em externalizar seus pontos de vista, confrontando-os com as ideias do outro. Podemos observar os mesmos problemas em todos os âmbitos da vida social.

Na contramão das tentativas de transformar as ciências humanas em objetos racionais e objetivos, a hermenêutica filosófica de Gadamer propõe ou apresenta-se como um esforço de construção de conhecimentos por caminhos que atendam às questões específicas das humanidades. Desta forma, o autor afirma que a realidade humana não existe como fato

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objetivo livre de interferências subjetivas e históricas. Conforme acrescenta Flickinger (2010, p.02), “fica evidente que a experiência hermenêutica tem de renunciar à idéia de uma verdade ultima e incondicionada”, pois seu campo primeiro é a experiência ontológica do encontro com o outro e a linguagem que se efetua no diálogo.

Para este autor, as concepções pedagógicas atuais deveriam ser pautadas no núcleo socrático da hermenêutica de Gadamer, ou seja, deveriam se opor aos processos educativos hoje predominantes, que se orgulham de capacitar os jovens a abrir o mais cedo possível as portas de entrada do mercado de trabalho e dar ênfase à formação máxima e mais proporcional de suas forças, visando muito mais do que a formação profissional que atende às demandas econômicas. Esta postura pedagógica partiria do potencial do educando, o que promoveria a liberdade individual e o reconhecimento de si como ser social e vinculado às leis morais e éticas da comunidade em que vive.

Nossas reflexões se direcionam também para o que Gadamer descreve como incapacidades para o diálogo e para os fatores que contribuem para isso, que passam pelas novas formas de organização das famílias, pelo uso das novas tecnologias e pelas novas formas de comunicação que estão sendo criadas para uma monologização das relações humanas sentimentais, educacionais e de trabalho. O que antes era anormal hoje é visto como corriqueiro e o que era tradicional já não tem peso diferenciado. Isto é, as famílias passam por mudanças que culminam por acarretar dificuldades às vezes intransponíveis em relação à convivência e à harmonia que se espera existir nestes espaços. Os problemas de relacionamento também podem ser observados em outros âmbitos, seja no namoro, seja na amizade, seja nas relações de trabalho, na hierarquia de grandes empresas e na escola; isso tudo por falta de diálogo ou pela sua precariedade. Acrescento ainda que, ao trazer para este texto as ideias de Gadamer e refletir sobre elas, penso ser necessário que se dialogue com as mesmas no sentido de atualizá-las, trazê-las à contemporaneidade para entender as demandas linguísticas próprias desta geração. Nas palavras do próprio Gadamer, a proposta é reiluminar os sentidos.

No primeiro capítulo deste trabalho trago um perfil de nossa época, traçado por Gadamer e trato também da importância do falar para a coesão social. Sobre isso, Gadamer, em Verdade e Método, afirma considerar insolúvel a confusão gerada pelo domínio da ciência sobre a situação concreta da vida humana. Tudo isso, segundo ele, causa problemas relativos à convivência, ao diálogo e à comunicação e, consequentemente, à educação. O uso da técnica,

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segundo o autor, nos causa uma perda de flexibilidade no trato com o mundo e com nossos semelhantes. Temos consciência de que todos nos utilizamos da técnica, nos familiarizamos e nos encantamos com seu funcionamento, mas com isso perdemos nossa liberdade no que diz respeito ao nosso próprio poder-atuar. O poder dado à ciência, pela sua ótica, influencia perigosamente a formação de opiniões de nossa sociedade.

Ainda neste capítulo tratamos das relações homem/linguagem, que, para Gadamer, não é só mais um dos atributos concedidos aos seres humanos, mas sim algo que lhe serve de base absoluta para que tenha mundo, para que se represente nele. É, portanto, pela linguagem que o homem entende a si mesmo e ao seu mundo. Tudo isso sem a exatidão das ciências e da matemática, e, por isso mesmo, imprevisível, intersubjetiva e única. Para o autor, não se pode negar que a aplicação prática da ciência modifica profundamente nosso mundo e com ele também nossa linguagem. Isto por que não há nenhum segmento da vida social, cada um com suas pressões e particularidades específicas, que não se expresse, conscientemente, pela linguagem. Para o autor, quem fala uma língua que ninguém conhece, simplesmente não fala, por que falar é falar para alguém, é produzir sentido não somente para si mesmo, mas também para o outro com quem ele fala. Nesse sentido, o falar é da esfera do eu e do tu, ou seja, do nós.

Em Verdade e método, Gadamer estabelece uma hermenêutica filosófica através do pensamento de que todos os aspectos do entendimento humano pressupõem uma dimensão hermenêutica; neste sentido, a hermenêutica é universal. Chris Lawn, em 2007 diz que: e cito este autor: O ponto de partida para as hermenêuticas de Gadamer é o de que existe um

movimento hermenêutico constante e sempre presente na vida diária. Isso por que a dinâmica

circular entre a parte e o todo se transformou numa maneira de descrever a estrutura do entendimento humano diário (LAWN, 2007, p. 65 e ss.).

A linguagem, para Gadamer, representa o rastro da finitude do homem por que representa a marcha constante de renovação e desenvolvimento e por que é nela que se desenvolve toda a nossa experiência de mundo e em particular a experiência hermenêutica. Nesse sentido, a pessoa a quem chamamos experiente não é somente alguém que se tornou o que é através de experiências, mas também aquele que está sempre aberto ao novo, e que ser experiente não é saber tudo e nem mais que todo mundo. Tratamos também da questão dos preconceitos ou conhecimentos prévios, que é considerada pelo autor como um fenômeno hermenêutico, pois, segundo ele, são inconscientes e são a base sob a qual julgamos ou

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inferimos a respeito de algo. Isso significa que os preconceitos que guiavam nossa compreensão prévia estão em jogo também, isso é, até serem abandonados e/ou reformulados. Da mesma forma, não se pode imaginar que toda interpretação pretensamente correta não se dissolva no subjetivo ou no ocasional, pois graças ao caráter de linguagem, toda interpretação contém também uma referência a outras e por não ser possível haver fala que não vincule o falante e o ouvinte, simultaneamente.

No capítulo II tratamos das questões relativas ao diálogo, pois, para Gadamer, no diálogo existe o encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Um diálogo, a partir disso, foi pensado por ele como um processo entre pessoas e como algo que deixa uma marca nos interlocutores.

Salientamos neste capítulo alguns tipos de diálogo destacados por Gadamer, como o Diálogo Pedagógico, que a seu ver está em crise por vários fatores, inclusive pela falta de abertura de ambos os interlocutores do processo educativo, ou seja, professor e aluno. O diálogo para negociação, como o próprio nome diz, predispõe às relações comercias. O diálogo terapêutico, onde a incapacidade para o diálogo é justamente o ponto a partir do qual a recuperação do diálogo se apresenta como o processo da própria cura e o diálogo familiar, onde observamos situações de monólogo em que cada um se torna anônimo em relação aos seus familiares, cada um com suas atividades e indispostos ao diálogo e à conversação. Estes exemplos, dados pelo autor, servem para mostrar que existem situações sociais e familiares em que desaprendemos a falar; esse falar que é para alguém, responder a alguém e que chamamos diálogo.

Para Gadamer, o homem joga (faz uso da linguagem), e seu jogar é um processo natural, e o sentido do seu jogar, justamente por ser natureza, e na medida em que é natureza, é um puro representar-se a si mesmo.

A linguagem e seus usos, portanto, podem ser pensados a partir do conceito de jogo proposto por Gadamer, que foi explanado no capítulo II deste trabalho, pois a conversa autêntica jamais é aquela que queríamos “levar”. Conforme Gadamer, é mais correto dizer que desembocamos e até que nós nos enredamos numa conversação. Os rumos da conversa não são dirigidos pelos interlocutores, eles antes são dirigidos pelos rumos que ela toma.

Este capítulo dedicou-se também a trazer um pouco da história da retórica e a elucidar a visão de Gadamer sobre sua importância. O Autor citado diz que, (...) sem falar uns

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com os outros, sem entender-nos uns com os outros, e até sem entender-nos quando faltam argumentações lógicas concludentes, não existiria nenhuma sociedade humana (Ididem).

Para ele, torna-se evidente, portanto, a necessidade de se retomar, ou ainda, recobrar nova consciência do significado e do lugar que a retórica ocupa em nossa sociedade, ressaltando que os homens se desenvolvem uns para os outros, uns entre os outros e uns junto aos outros (GADAMER, 2002, p 372).

O autor afirma que a onipresença da retórica é ilimitada, e é justamente por isso que a ciência se sociabiliza, pois se fosse o contrário, o que saberíamos sobre as grandes descobertas da ciência se dependêssemos apenas dela mesma? Toda ciência que queira ser prática depende da retórica. O que não se pode negar é a função fundamental que a retórica representa na vida social.

Para finalizar este capítulo, tratamos do diálogo e da educação, pois, segundo Gadamer (GADAMER, 2000, p. 10), só se pode aprender através do diálogo. A partir disso surgem as questões: Quem é que educa? Quando começa exatamente a educação? O que é uma educação correta? Seria aquela em que a criança aprende os bons modos de se viver em sociedade, em que ele aprende a respeitar aos outros e não somente a si mesmo e seus interesses individuais? O autor chama a atenção aqui para o fato de que a aquisição de bons modos e regras de convivência social nas relações com outros seres humanos deveriam ser adquiridos na educação a cargo dos pais, isto é, no âmbito familiar. No entanto, ele salienta o fato de que também este segmento está em crise e não está dando conta desta tarefa.

Um dos problemas decorrentes da nova realidade de organização das famílias e das novas tecnologias é a incapacidade gerada nas crianças de formar e expor juízos próprios (GADAMER, 2000, p. 20). Basta falar alguns minutos com as crianças modernas para perceber que elas preferem ganhar-nos mais com seus sorrisos sedutores do que com argumentos. E elas levam esse tipo de problema a todas as fases de sua vida.

Gadamer sugere, diante disso, que se use o modelo de dialética da hermenêutica, que se baseia na dialética platônica, isto é, na questão da pergunta e resposta, pois não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. E para perguntar, é preciso querer saber, isto é, é preciso saber que não se sabe. Perguntar significa colocar no aberto, significa que não há uma resposta fixa.

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E, por fim, nas minhas considerações, retomo os conceitos gadamerianos sob uma perspectiva “aplicativa” na área da educação, ou seja, de que forma é possível estimular o diálogo para a melhora das relações pedagógicas.

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1 A LINGUAGEM E O ENTENDIMENTO MUTUO

Neste tópico buscamos explorar as relações homem/linguagem e as dimensões que esta ocupa no mundo em que estamos inseridos. Para Gadamer (2002, p. 176), em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem. É pela linguagem que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e a nós próprios. Estamos tão habituados à linguagem e inseridos na linguagem como estamos no mundo. “A linguagem é, pois, o centro do ser humano” (ibidem).

Estar no mundo, ou o estar-aí, para o autor, é fazer parte de um mundo que é constituído pela linguagem. Ela não é só mais um dos atributos concedidos aos seres humanos, mas sim algo que lhe serve de base absoluta para que tenha mundo. É pela linguagem que nos representamos no mundo. A própria existência de um mundo só se dá através dela, e, da mesma forma, a linguagem só existe por que representa um mundo. Por “mundo” Gadamer entende o meio onde vivemos, a influência dele sobre nosso caráter e sobre nosso modo de vida e que nos confere significações sociais. Diante disso, pode-se dizer que o que realmente diferencia os homens dos demais seres vivos “é a sua liberdade frente ao mundo circundante”. (GADAMER, 2008, p. 573). E esta liberdade, segundo o autor, implica a constituição de mundo que se dá na linguagem. “Na verdade, porque está apto a elevar-se acima de seu mundo circundante contingente, e porque seu falar traz o mundo à fala, o homem está livre, desde o princípio, para exercer as variações de sua capacidade de linguagem”(ibidem). Ele pode, desta forma, viajar o mundo todo, sem, no entanto, desvincular-se de seu mundo de linguagem; pode variar e aprender outras línguas, mas não pode fugir de seu mundo “de linguagem”. Para o homem, a linguagem não é só variável no sentido de que existem outras línguas, mas também no sentido de que a linguagem é também variável em si mesma, já que lhe dispõe várias maneiras de significar a mesma coisa.

Mesmo nos casos especiais, como dos surdos-mudos, por exemplo, a linguagem não é somente de gestos, que se expressa por gestos somente, mas uma tradução que substitui a linguagem fonética articulada através do uso de gestos igualmente articulados. Em contraponto, este tipo de variação não é própria da linguagem dos

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animais, já que eles podem até entender uns aos outros, mas sempre dentro de uma regularidade incontestável, e nunca dentro de conjunturas (de mundo).

Diante disso, podemos dizer que “é só na conversação que a linguagem possui seu autêntico ser, no exercício do entendimento mútuo” (GADAMER, 2008, p. 575). Entendimento, para Gadamer, não é só um mero fazer, não é uma atividade que persegue objetivos claros e precisos, é, antes de tudo, algo que não necessita de nenhum “instrumento”, no sentido autêntico da palavra. É um processo de vida, onde se representa uma comunidade de vida.

Nesse sentido,

[...] o entendimento humano na conversação não se distingue daquele que os animais cultivam entre si. Mas a linguagem humana deve ser pensada como um processo vital específico e único, pelo fato de que no entendimento da linguagem se manifesta “o mundo” (Ibidem, p. 576).

O mundo, portanto, é o solo comum, reconhecido por todos, e que une a todos os que falam entre si, porque todas as formas da comunidade de vida são formas de comunidade de linguagem; e mais, elas formam linguagem. Isso porque a linguagem é, na sua essência, a linguagem da conversação. Quando se dá o entendimento mútuo é que ela adquire sua realidade.

A linguagem é o meio pelo qual o homem entende a sim mesmo, é entendendo o outro que nos entendemos verdadeiramente. Tudo isso sem a exatidão das ciências e da matemática, e, por isso mesmo, imprevisível, intersubjetiva e única. No entanto, não podemos negar que a aplicação prática da ciência modifica profundamente nosso mundo e com ele também nossa linguagem. Isto por que não há nenhum segmento da vida social, cada um com suas pressões e particularidades específicas, que não se expresse, conscientemente, pela linguagem.

No item que segue trago reflexões de Gadamer a respeito da cientifização das coisas e da mecanicidade que toma conta das relações humanas, educacionais e racionais de nossa época.

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1.1 O perfil de uma época e a importância do falar para a coesão social

Este tópico destaca considerações filosóficas, morais e políticas que Gadamer apresenta em Verdade e Método acerca do perfil de nossa época. Para o autor, o progresso das ciências da natureza, aliado à racionalização do seu emprego técnico-científico são fatores decisivos para a situação atual de industrialização, de controle da vida da sociedade, da condução científica da guerra, da ciência política externa, do controle científico da natalidade e das demais ciências que conduzem a vida humana, que vem trazendo, ao longo dos tempos, problemas relativos à convivência, ao diálogo e à comunicação e, consequentemente, à educação, que são examinados em vários contextos em suas obras.

Num contexto atual, observa Gadamer, costuma-se falar em ordem mundial. No entanto, mesmo sendo desejo de todos, não existe uma ordem mundial entre os povos, o que se pode constatar pelo discurso geral que aponta a importância da coexistência. Neste sentido, falar em ordem mundial e controle da sociedade como um todo é insano, pois há enorme falta de consenso do que seja, primeiramente, uma “ordem justa”. Em algumas áreas, como da saúde, do tráfego aéreo e da alimentação, pode-se até falar de uma ordem mundial, sob alguns aspectos, mas supor a partir disso que se pode progredir e ampliar esta ordem aos demais aspectos sociais agrega muitas dificuldades, já que não se pode, por exemplo, desvincular o aspecto político do econômico e também por que o “ser” é político em sua constituição.

Especificamente sobre o caso da política, Gadamer (2002, p. 185) questiona:

Será possível pensar a ideia de uma ordem política determinada que não suscite ideias contrárias? Será possível pensar ideias políticas de ordem que não favoreçam a uma ou outra das potências políticas existentes, de tal modo que o seu favorecimento implique o desfavorecimento de outras? Será que se deve dizer que a existência desses antagônicos interesses de poder constitui uma desordem? Não serão eles a própria essência da ordem política?

Para compreendermos melhor a ideia de desordem proposta por Gadamer, pensemos como ele o fez, no sentido de que é bem mais natural que as nossas representações do que é “justo e bom” sejam bem menos precisas do que as representações do “injusto e do mal”. O negativo tem, como sabemos, a vantagem de se impor por si próprio à nossa vontade de transformação, como aquilo que deve ser eliminado e negado, e justamente por isso tem

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seu significado bem mais definido. Da mesma forma, é bem mais fácil definir o conceito de desordem, para superá-lo, como algo contrário à ordem.

Para Gadamer (2002, p.185), é comum pensarmos a existência de países subdesenvolvidos como desordem. Da mesma forma se pensa em desordem quando há um crescimento exagerado da população, ou ainda quando há a dilapidação dos recursos naturais, ou o desperdício de riquezas, etc. No entanto, afirma ele, todas essas representações específicas sobre uma ordem formam o tecido da política mundial. E por suas determinações antagônicas e diversas é que ele considera impossível que uma determinada ideia de ordem consiga alcançar unanimidade geral.

Por mais bem-sucedida que seja uma política de planejamento, nada garante que ela seja fundamento para uma ordem racional do mundo, pois a cientifização encobre a incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da configuração do mundo em objeto de seu planejamento, elaborado e controlado cientificamente.

O verdadeiro problema de ordem mundial, pensa ele, é saber como se deve avaliar o significado do processo civilizatório possibilitado pela ciência e conciliá-lo com as tradições religiosas e morais de nossa época. O fato é que somos aprisionados por uma ciência moderna que sempre e somente gira em torno de seu próprio círculo, tendo em mente somente os métodos e possibilidades de controle das coisas, como se não houvesse desproporção entre o âmbito dos recursos e possibilidades e as normas e finalidades da vida. O pensamento científico renega e torna supérflua a pergunta pelos fins, em nome do progresso e do “controle” de recursos (GADAMER, 2002, p. 188).

O que parece insolúvel é a confusão gerada pelo domínio da ciência sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. “Fato é que as ciências sociais modernas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins” (Ibid, p.192). Isso não quer dizer que não haja outro ideal moral ou político a não ser a adequação à ordem social vigente e aos seus parâmetros, mas que toda a decisão concreta do indivíduo é codeterminante para a validade universal.

É de grande pertinência a comparação que Gadamer faz entre os impasses relativos à razão, em relação à técnica, com o uso da linguagem. Tal comparativo diz respeito ao uso correto e justo da mesma. Neste caso existem também regras que dizem o que é válido

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ou não e cada sociedade cria seus próprios códigos, e apesar das diferenças, ela sobrevive, pelo constante reformular de seus usos, enfim, sobrevive pela ação de cada indivíduo. Não é por acaso, sugere o autor, que, em contextos semelhantes, usamos expressões metafóricas como a da necessidade de “colocar-nos na situação” a fim de afastar generalizações e ponderar sobre o que é factível e possível. As situações não tem caráter de objeto, portanto, não basta o conhecimento dos dados objetivos para alcançar a “verdade” da mesma. Dizendo de outro modo, e nas palavras do autor “encontrar-se numa situação possui sempre um momento inalcançável para o conhecimento objetivante” (GADAMER, 2002, p.193).

Encontramo-nos seguidamente diante de situações em que temos que ponderar sobre a possibilidade mais correta, pois não nos encontramos diante de um saber que pudesse reivindicar uma validade universal. Conforme Gadamer (2002, p. 198),

[...] trata-se de [uma] deliberação-consigo-próprio, feita pelo individuo (ou também pelo grupo) diante da situação que exige uma decisão. Aqui não cabe o saber do especialista, que vai ao encontro dos outros como quem já sabe, e sim de um saber de que se precisa e que nenhuma ciência pode fornecer.

Este tipo de deliberação, que dá a palavra ao outro e confronta-se com ele, é capaz de, verdadeiramente, produzir um estado de solidariedade que une a todos. Isto é, obviamente, um contra-senso no que diz respeito à técnica que preconiza a ciência moderna. Precisamos admitir, conforme o autor, que a ciência tem um amplo futuro nas relações desta ordem, o que não se pode permitir é que ela expulse ou sufoque todas as outras formas de ordenação e entendimento humanos, pois o que “é factível não é simplesmente o possível ou, dentro do que é possível, simplesmente o mais vantajoso” (GADAMER, 2002, p. 193)

Num mundo pretensamente globalizado, os seres humanos necessitam de uma tomada de consciência, de maneira cada vez mais lúcida, de que não são apenas as diferenças de desenvolvimento econômico e tecnológico o que divide os povos e que não é apenas a superação que irá uni-los, mas que são justamente as diferenças insuperáveis entre eles, suas diferenças naturais e históricas, que os ligam como seres humanos.

O exposto até aqui sobre as ideias do autor de forma alguma obscurece ou apaga a difusão exagerada do uso da técnica e a consequente perda da flexibilidade no trato com o mundo e com nossos semelhantes. Ao contrário, tomamos consciência de que todos nos utilizamos da técnica, nos familiarizamos e nos encantamos com seu funcionamento, e com isso perdemos nossa liberdade no que diz respeito ao nosso próprio poder-atuar. Gadamer,

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diante disso, pergunta: Para quem a ciência trabalha? Até que ponto o uso da técnica está a serviço da vida? “A partir daí delineia-se de uma nova maneira o problema de toda civilização moderna, que é o problema da razão social” (GADAMER, 1983, p. 43). Isso desencadeia, segundo o autor, um desencantamento e uma desmitologização ou ainda, uma eliminação de correspondências antropológicas apressadas, e isso se converte num poder social cada vez mais forte por parte das tecnologias economicamente rentáveis. Tal poder influencia perigosamente a formação de opiniões de nossa sociedade. É um jogo de forças sociais, em que de um lado estão os verdadeiros artesãos da vida social (especialistas) e de outro aqueles que ocupam seu lugar de forma desonesta e sem convicção. Cria-se, a partir disso, uma seleção de informações que podem ser acessadas e que criam uma espécie de tutela e uma manipulação de espíritos. Isso representa, para Gadamer, uma perda da razão, pois se observa, mesmo nos órgãos que deveriam regular democraticamente as informações disponibilizadas, uma total apatia.

Mesmo que houvesse um aumento no grau ou na qualidade das informações disponíveis tecnicamente, isso não significaria um fortalecimento da razão social, pois quando o indivíduo se sente, dentro da sociedade em que vive, dependente e impotente frente às normas de vida que lhe são proporcionadas pela técnica, ele se torna incapaz de constituir sua identificação. O que acontece, nesse caso, é uma adaptação, e é aí, segundo Gadamer, que reside o grande perigo, pois está se criando uma sociedade que não toma decisões por si mesma. O fato é que o ser humano está sendo condicionado dentro de um processo em que suas possibilidades de ascensão dizem respeito única e exclusivamente à sua capacidade de se adaptar à função de administrador de uma tarefa específica, isto é, a moderna sociedade industrial está conduzindo o ser humano a uma objetividade perigosamente coercitiva (GADAMER, 1983, p. 44 e ss).

Diante disso, retomamos a questão da linguagem, que dá ao ser humano a capacidade de se distanciar em relação ao presente e que o torna capaz de atuar na escolha de meios para fins determinados e dos próprios fins. Gadamer, em Verdade e Método II (2002, p.371), questiona: “Como se apresenta, em nossa civilização, marcada pela ciência, isso é, pela ciência empírica moderna, o legado da antiga retórica e portanto, a possibilidade de uma fundamentação e justificação científica do saber sobre o homem transmitido por ela?” Quando falamos hoje a palavra retórica, muitos a associam a uma arte antiga, ou ainda a algo depreciativo, não objetivo e estranho. No entanto, Gadamer propõe que se devolva a ela o seu

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valor e seu verdadeiro alcance, pois ela abarca qualquer forma de comunicação baseada na capacidade de falar e é o que dá coesão à sociedade humana. Ele diz ainda que, “sem falar uns com os outros, sem entender-nos uns com os outros, e até sem entender-nos quando faltam argumentações lógicas concludentes, não existiria nenhuma sociedade humana” (GADAMER, 1983, p.372).

Torna-se evidente, portanto, a necessidade de se retomar, ou ainda, recobrar nova consciência do significado e do lugar que a retórica ocupa em nossa sociedade. A grande pergunta feita por Gadamer é de como se concilia essa nova ideia da cientificidade com a antiga ideia de que os homens se desenvolvem uns para os outros, uns entre os outros e uns junto aos outros (GADAMER, 2002, p 372). Ele questiona a partir disso sobre o que seriam as chamadas ciências do espírito, seriam elas somente as ciências “inexatas”, capazes somente de competir com a moderna ciência tecnológica em termos de prognósticos para o futuro?

Para tentarmos esclarecer um pouco estas questões pensadas por Gadamer, convém trazer aqui o que ele pensa sobre o que são as ciências do espírito. O essencial para elas, segundo ele, não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. Ele diz ainda que uma complementação do ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade é o ideal de participação. “Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuram na arte e na história” (2002, p. 374). Para Gadamer, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta dele nas teorias das ciências do espírito.

É neste ponto que Gadamer reconhece e esclarece que o modelo de diálogo se caracteriza pelo seu caráter de decisão e de estrutura, isso é, como base para que ocorra efetivamente a participação. “Isso por que o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado, que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha”. (GADAMER, 2002, p. 374).

Neste caso, trata-se de encontrar uma base comum, além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científico-moderna que tende a objetivar absolutamente tudo. Trata-se de levar em conta o conceito de formação proposto por Gadamer, que a concebe estreitamente ligada ao conceito de cultura e designa, antes de tudo, a maneira especificamente humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. (GADAMER, 2008, p.45). Na formação proposta pelo autor haveria uma

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apropriação daquilo em que, ou através do que, alguém é instruído. Há um processo de integração e de assimilação, e nesse processo nada se perde, tudo é preservado.

Segundo Gadamer, o ser humano nunca é aquilo que, por natureza, deveria ser. Isso por causa de suas propensões à rupturas, à ir contra, daí a necessidade de ser “formado”. “Cada indivíduo, portanto, que se eleva de seu ser natural a um ser espiritual encontra no idioma, no costume e nas instituições de seu povo uma substância prévia de que deve se apropriar, como o aprender a falar” (GADAMER, 2008, p.50). É neste sentido que podemos pensar que cada indivíduo está sempre a caminho da formação e da superação da sua condição natural, na medida em que o mundo que o acolhe é formado humanamente de linguagens e costumes.

1.2 O Homem e a linguagem

Enquanto seres finitos, estamos sempre chegando de muito longe e também nos estendemos para muito longe.

(Hans-Georg Gadamer).

Quando pensamos o homem, pensamos em um “ser de linguagem”. Segundo Gadamer, é de Aristóteles a definição do homem como ser vivo que possui logos (logos aqui significa, sobretudo: linguagem). O ser humano é um animal racional e aquele que se distingue de todos os outros animais pela sua capacidade de pensar e pelo uso da linguagem como forma de comunicação. Desta forma, lhes é possível viver em sociedade, na medida em que informam uns aos outros sobre aquilo que é útil ou prejudicial, sobre o que é justo ou injusto (GADAMER, 2002, p. 173). Esta capacidade diferenciada lhe dá a prerrogativa de sobrepor-se ao atual, de dar sentido para o futuro, pois ao tornar visível algo ausente, pela linguagem, está comunicando ao “outro ser” aquilo que ele mesmo vê e que pode ser concebido por aquele, de forma que possam pensar o comum, para que possam viver em sociedade sem atos instintivos e prejudiciais ao convívio social. No entanto, Gadamer salienta que

[...] a relação fundamental de linguagem e mundo não significa, portanto, que o mundo se torne objeto da linguagem. Antes, aquilo que é objeto do conhecimento e do enunciado já se encontra sempre contido no horizonte global da linguagem. O caráter de linguagem da experiência humana de mundo como tal não tem em mente a objetivação do mundo (GADAMER, 2008, p. 581).

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Conforme o autor, quando um cientista reconhece as leis de um processo da natureza, este pode tentar reconstruí-lo, no entanto, o que ocorre na linguagem é algo totalmente diferente, pois o falar de modo algum significa tornar as coisas disponíveis ou calculáveis. Os enunciados e/ou juízos formulados representam somente uma forma do comportamento humano, complexo e imprevisível. O significado do “poder falar” é, portanto, muito mais do que uma simples forma de comunicação, é na verdade a forma pela qual o “ser” se constitui enquanto tal, pois, ao nascer, ele já nasce em um mundo de linguagem.

No entanto, e conforme o autor, a história da linguagem como fenômeno inerente ao ser humano nem sempre foi reconhecida como este “lugar de constituição”. A essência da linguagem, na verdade, está na narrativa do Antigo Testamento, quando Deus outorgou aos homens o domínio do mundo, dando-lhe a permissão de nomear os seres conforme a sua vontade. A história da Torre de Babel também atesta o significado fundamental da linguagem para a vida do homem. No entanto, foi a própria tradição religiosa que paralisou o pensamento sobre a linguagem, pois acreditava-se que era criação divina e portanto, não havia muito que se pensar sobre ela. O grande e verdadeiro passo para o avanço nos estudos que concederam à linguagem o estatuto que tem hoje foi o fato de se pensar nela não como criação divina, mas como algo natural do homem, como algo inerente à sua natureza. Por este viés, não podemos separar homem e linguagem, pois não se pode conceber o homem num estado anterior à linguagem.

Foi a partir dos estudos de Humboldt (GADAMER, 2002, p. 175) que a linguagem adquiriu o estatuto de filosofia ou ciência da linguagem. Como seu objetivo era investigar os idiomas dos diferentes povos, foi possível admitir que culturas diferentes possuíam a mesma faculdade de organização gramatical e sintática e que a ciência da linguagem, como qualquer outro fator pré-histórico, representa a pré-história do espírito humano . A partir daí se pôde estudar a essência do homem e sua evolução na história. No entanto, a tradição cartesiana de pensar a consciência como autoconsciência fez com que se continuasse pensando na linguagem como se a partir do conhecimento dela o ser humano pudesse conhecer-se a si mesmo. Na verdade o verdadeiro enigma em que se constitui a linguagem jamais poderá ser totalmente desvendado, pois não se pode analisá-la a não ser dentro deanalisá-la mesma. Segundo Gadamer (2002, p. 175 e 176), “só podemos

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pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe a pensar”.

Da mesma forma que não podemos pensar a linguagem como algo exterior ao homem, pelo simples fato de que não podermos nos colocar fora dela; num estado anterior à ela; também não podemos pensá-la como um instrumento. A língua é a ferramenta e a palavra é o signo; estes são dois instrumentos que fazem parte da caracterização natural do homem, no entanto, não podemos fazer uso da linguagem (lançando mão das duas) e depois que serviu ao seu objetivo, a deixarmos de lado. Não se pode usar as palavras num contexto e a seguir deixá-las voltar ao vocabulário de que dispomos, pelo simples fato de que, em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem. É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e a nós próprios. Gadamer afirma que já estamos tão habituados à linguagem e inseridos nela como estamos no mundo. “A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos” (GADAMER, 2002, p. 176 a 182).

Da mesma forma, é ilusão pensar que a criança fala sua primeira palavra e a partir daí está inserida num mundo de linguagem, pois mesmo não pronunciando nenhum som inteligível, ela já faz parte deste mundo de linguagem em que foi inserida. Podemos pensar nisso a partir do que chamamos de balbucios, que as mesmas pronunciam nos primeiros meses de vida e que para nós não tem sentido, mas que para elas possui significado, pelo simples fato de que existe o pensamento. Antes mesmo de a criança pronunciar as primeiras palavras, ela já está inserida no mundo da linguagem, pelo pensamento. Ela entende as coisas, aprende as palavras e o significado delas antes mesmo de dizê-las, pois os conceitos comuns das coisas lhe são apresentados desde seu nascimento.

Apesar disso, nenhum ser humano é totalmente consciente de sua fala, pelo simples fato de que uma total consciência é impossível, visto que a linguagem tem características singulares que fazem com que ela adquira sentidos diferentes, dependendo do contexto em que é utilizada. É comum pensarmos à vezes se um termo é adequado ou não para propor um sentido, mas não podemos viver constantemente em torno desta reflexão, o que causa, em diversas situações, dúvidas quanto ao entendimento do outro em

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relação àquilo que pretendíamos dizer. São os lapsos e equívocos inerentes ao uso da linguagem, que é viva, e os atos de linguagem adquirem também esta característica.

Para Gadamer (2002, p. 179), quem fala uma língua que ninguém conhece simplesmente não fala, por que falar é falar para alguém, é produzir sentido não somente para si mesmo, mas também para o outro para quem ele fala. Neste sentido, o falar é da esfera do eu e do tu, ou seja, do nós. A verdadeira essência do falar está no diálogo. No entanto, em todo diálogo pode haver o que o autor chama de espírito bom ou ruim, que promove o diálogo1 fluente entre o eu e o tu, ou o paralisa e/ou enrijece.

A linguagem, para Gadamer, representa o rastro da finitude do homem por que representa a marcha constante de renovação e desenvolvimento e por que é nela que se desenvolve toda a nossa experiência de mundo e em particular a experiência hermenêutica. Palmer (1969), afirma que a experiência é algo que acontece aos seres humanos possuidores de vida e de história e que

[...] uma pessoa que tenha realmente experiência, que tenha sabedoria e não só conhecimento, aprendeu as limitações e a finitude de todas as expectativas. A experiência ensina-lhe não tanto armazenar fatos que lhe permitam resolver melhor o mesmo problema de uma próxima vez, como a esperar o inesperado, a estar aberto a novas experiências. Em resumo, ensina-lhe a pobreza do conhecimento, comparada com a experiência (p. 233).

Gadamer (2008, p. 454), em Verdade e método I, afirma que o conceito de experiência é um dos menos elucidados em seus trabalhos, pelo fato de a ciência tentar torná-la tão objetiva a ponto de anular nela qualquer elemento histórico e por querer garantir que as experiências, baseadas em aparatos metodológicos, possam ser repetidas ou experimentadas por qualquer pessoa

Quando se considera a experiência na perspectiva de seus resultados, passa-se por cima do verdadeiro processo da experiência (GADAMER, 2008, p. 461). O autor reitera esta concepção dizendo que o que acontece na linguagem são dois tipos de experiência. De um lado estão as experiências que correspondem às nossas expectativas e as confirmam, e de outro a experiência que efetivamente “se faz”. Essa, a verdadeira experiência,

1

O tema do diálogo será tratado no capítulo 02 deste trabalho, quando trataremos especificamente de suas características e os fatores que causam seu enrijecimento.

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[...] é sempre negativa. Quando fazemos uma experiência com um objeto significa que até então não havíamos visto corretamente as coisas e que só agora nos damos conta de como realmente são. Assim, a negatividade da experiência possui um sentido marcadamente produtivo. Não é simplesmente um engano que é visto e corrigido, mas representa a aquisição de um saber mais amplo (Ibid, p. 462).

A experiência, portanto, e conforme Gadamer, é algo que transforma todo o nosso saber e que advém de uma negação determinada, a que o autor chama de dialética. A dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. A verdade da experiência, para Gadamer, remete sempre a novas experiências. Nesse sentido, a pessoa a quem chamamos experiente não é somente alguém que se tornou o que é através de experiências, mas também aquele que está sempre aberto ao novo, e que ser experiente não é saber tudo e nem mais que todo mundo. Ao contrário, aquele que é experimentado evita os dogmatismos e, por ter feito tantas experiências e aprendido com elas, está amplamente capacitado a fazer novas experiências e a aprender ainda mais (GADAMER, 2008, p.465).

Esta experiência, para Gadamer, faz parte da essência histórica do homem e cada um deve constantemente adquirir e da qual ninguém pode se poupar. Ele reitera dizendo que embora os objetivos limitados da educação levem ao ato de poupar alguém de fazer certas experiências, como fazem alguns pais em relação a seus filhos, a experiência não é algo que possa ser poupado a alguém, pois a experiência pressupõe frustrações necessárias, o que não significa que seja negativo, mas que leve sempre a novas experiências, ao autoconhecimento, ao discernimento e à perspicácia.

A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude (GADAMER, 2008, p. 467). É nela que a capacidade de fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontram seu limite e põe por terra a ideia de que pode-se dar marcha-à-ré à tudo, de que há sempre tempo pra tudo e a de que, de um modo ou de outro, tudo retorna. Nesse caso, reconhecer o que é não quer dizer dar a ultima palavra, mas perceber os limites dentro dos quais ainda há possibilidade de futuro para as expectativas e os planos; ou ainda, reconhecer que toda expectativa e toda tentativa de planificação dos seres finitos, é, por sua vez, limitada e finita. A verdadeira experiência, portanto, é experiência da própria historicidade.

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Conforme o autor,

[...] quando conseguimos superar os preconceitos e barreiras de nossa experiência atual de mundo e penetrar em universos de línguas2 estranhas, isso não significa, de modo algum, que abandonamos ou negamos nosso próprio mundo. Como viajantes, sempre voltamos para casa com novas experiências (GADAMER, 2008, p. 578).

Lawn, em sua obra Compreender Gadamer (2002, p.87), parafraseia o autor do seguinte modo: em encontros hermenêuticos genuínos somos surpreendidos e insatisfeitos de maneira única e irreverente. Expectativas são frustradas quando as “certezas” dos padrões normais diários confrontam o inesperado (p. 87). A verdade, segundo Gadamer, é revelação, aquilo que se manifesta no encontro entre o familiar e o desconhecido.

No tópico seguinte tratamos do caráter hermenêutico da linguagem, que perpassa pelo conceito de experiência hermenêutica, que será aprofundado, e procuramos entender, também, como Gadamer expõe a questão dos preconceitos para a compreensão.

1.3 O caráter hermenêutico da linguagem e a questão dos preconceitos

O ser que pode ser compreendido é linguagem. (Gadamer)

Em Verdade e método, Gadamer estabelece uma hermenêutica filosófica através do pensamento de que todos os aspectos do entendimento humano pressupõem uma dimensão hermenêutica; neste sentido, a hermenêutica é universal. “O ponto de partida para as hermenêuticas de Gadamer é o de que existe um movimento hermenêutico constante e sempre presente na vida diária”. Isso porque a dinâmica circular entre a parte e o todo se transformou numa maneira de descrever a estrutura do entendimento humano diário (LAWN, 2002, p. 65 e ss.).

Segundo Gadamer (2002, p. 283), há que se buscar compreender tudo que pode ser compreendido. Nesse sentido, vale o princípio de que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”. O caráter de linguagem da experiência humana de mundo proporciona um

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Gadamer exemplifica o aprendizado de uma língua estrangeira como uma experiência que, apesar de nos levar a lugares estranhos e desconhecidos, se constitui numa experiência de ir e voltar ao próprio mundo de linguagem.

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horizonte mais amplo à experiência hermenêutica. O universo linguístico próprio em que vivemos não é uma barreira que impede o conhecimento do ser em si, mas abarca basicamente tudo aquilo a que a nossa percepção pode expandir-se e elevar-se.

Gadamer afirma, em sua obra, que a verdadeira conversa é aquela que está livre, sem direcionamento de vontades por parte dos interlocutores. É dessa forma que ocorre a conversação autêntica, quando nos deixamos enredar por sua teia de argumentos e sentidos, quando cada palavra puxa outra, quando os pontos de vista são defendidos, não por seus interlocutores, mas pela própria conversa, e quando não se sabe de antemão o que surgirá da mesma. O acordo ou o fracasso da conversação é algo que se realiza em nós. Ele diz ainda que a linguagem é o meio em que se realizam o acordo entre interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão.

Entendimento, para este autor, não é um mero fazer, não é uma atividade que persegue objetivos, como por exemplo, a produção de signos pelos quais eu comunicaria minha vontade a outros. E mais, entendimento, enquanto tal, não precisa de nenhum instrumento, no sentido autêntico da palavra. É um processo de vida, onde se representa uma comunidade de vida (GADAMER, 2008, p. 575).

Sobre a conversação, que é o processo do acordo, Gadamer argumenta que

[...] toda verdadeira conversação implica nossa reação frente ao outro, implica deixar realmente espaço para seus pontos de vista e colocar-se no seu lugar, não no sentido de querer compreendê-lo como essa individualidade, mas compreender aquilo que ele diz (Ibid, p. 499).

Dentro desta proposta, e para que haja o acordo, o autor defende o respeito pela objetividade da opinião do outro. E ainda, não se pode levar em conta a individualidade do interlocutor, mas sim sua opinião, e confrontá-la com nossas próprias opiniões. Este processo é descrito pelo autor como uma fusão de horizontes entre texto/leitor ou entre interlocutores, e guia seus estudos no pensamento central de “que esta fusão de horizontes que se dá na compreensão é o genuíno desempenho e produção da linguagem”. Para Gadamer, ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver para além do que está próximo e muito próximo, não para abstrair dele, mas precisamente para vê-lo melhor, em um todo mais amplo e com critérios mais justos (GADAMER, 2008, p. 403).

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Dessa forma, quando alguém lê um texto, fica subentendido, não simplesmente fazendo sentido das palavras da página, mas permitindo que o horizonte do texto se misture com o horizonte do leitor de tal forma que o leitor seja afetado pelo encontro com o texto (LAWN, 2002, p. 95). A compreensão do caráter de tradição da linguagem também é essencial para a hermenêutica, já que a linguagem (escrita), por não possuir um caráter de imediatez, chega até nós não como vestígios do passado, mas como algo que nos é dito e transmitido, pois todos os signos, incluindo aí os mitos, a lendas, os usos e costumes, tradicionalmente destinam-se a todo e qualquer leitor que esteja em condições de lê-los.

“Na escrita a linguagem se liberta do ato de sua realização. Na forma da escrita, todo o transmitido está simultaneamente presente para qualquer atualidade”. (GADAMER, 2008, p. 505). Na linguagem, portanto, coexistem passado e presente, pois na medida em que o leitor tem a possibilidade de estar aqui e acolá ao mesmo tempo, tem a possibilidade de avançar os limites e ampliar seus horizontes, enriquecendo, assim, seu próprio mundo.

Para o autor, a verdadeira espiritualidade da linguagem é alcançada através da escrita. A consciência leitora é necessariamente histórica, é consciência que se comunica livremente com a tradição histórica. O início da história pode ser entendido como o surgir da vontade de tradição, de permanência e de recordação. Para Gadamer, existiria mundo sem escrita, por persistir a vontade de permanência e de sobrevivência, mas é só a partir da escrita que se pode remontar à outra existência, completando-a.

O portador da tradição não é um manuscrito como uma parte do passado, mas a continuidade da memória. Um exemplo disso são os monumentos mudos, sem linguagem, aos quais não podemos chamar de história por não possuírem a tradição da linguagem. Traços sem sentido, quando interpretados como escrita, de repente se tornam passiveis de compreensão. Estes monumentos não escritos se tornam um problema de interpretação, e não de compreensão e decifração de sua literariedade. Por isso o processo de compreensão se move inteiramente na esfera de sentido mediada pela tradição da linguagem.

Compreender os escritos literários deixados não significa reconstrução de uma vida passada, mas a participação atual no que foi dito. Quando compreendemos, este “já dito” presentifica-se. Para Gadamer (2008, p. 507) “a escrita ocupa o centro do fenômeno hermenêutico, na medida em que, graças ao escrito, o texto adquire uma existência autônoma, independente do escritor ou do autor, e do endereço concreto de um destinatário ou leitor”.

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Não se pode pensar que o caráter escrito da linguagem possa ser secundário, pois é justamente aí que está a essência do discurso. Esta ideia repousa sobre o fato de que o próprio discurso participa da idealidade pura do sentido que comunica. Um texto, deste modo, não pode ser entendido como manifestação da vida, mas como aquilo que diz. “O escrito é a idealidade da linguagem” (op. cit., p. 508). Neste sentido, compreender pela leitura não é repetição de algo passado, mas participação num sentido presente.

A tarefa do compreender aparece de modo muito claro quando se reconhece a debilidade de todo escrito. Gadamer remete ao exemplo de Platão, que dizia que ninguém vem em auxílio do discurso escrito quando este sucumbe a mal-entendidos deliberados e involuntários. Por este viés, na arte de falar se dá uma correspondência mútua entre uma arte da simulação e uma arte do pensar verdadeiro, e na escrita ocorre do mesmo modo, isto é, haveria também uma dupla arte, em que uma serviria a um pensamento e outra ao outro. Assim como a arte da escrita pode vir em auxilio do pensar, é a esta mesma arte (da escrita), que se deve a arte da compreensão. “Todo o escrito é na verdade uma espécie de fala alienada, que necessita de uma conversão de seus signos à fala e ao sentido” (GADAMER, 2008, p. 509). Através da escrita o sentido sofre uma espécie de auto-alienação, isto é, o sentido do que foi dito precisa voltar a ser enunciado unicamente com base na literariedade dos signos escritos. A diferença da interpretação de escritos em relação à interpretação é que, enquanto a palavra escrita não tem nenhum auxílio, a não ser sua própria literariedade, a palavra falada praticamente interpreta a si mesma, pelo modo de fala, o tom, a cadência e também pelas circunstâncias.

No entanto, o êxito hermenêutico fica comprometido quando a arte de escrever está “mal formulada” ou confusa, pois, neste caso, ela não representa um fim em si mesma. São casos de insegurança interpretativa, quando o sentido perde sua univocidade. Todo escrito, segundo Gadamer, tem a pretensão de autonomia de sentido e de ganhar vida através da fala. Isto é bastante problemático, pois até numa leitura de um poema pode haver diferentes modos de interpretá-lo. Se o que verdadeiramente importa é o “sentido verdadeiro” de um texto, este deve ser visto como idealidade plena, sem contingências. Desta forma, e precisamente por desvincular totalmente o sentido do enunciado daquele que enuncia, a fixação por escrito permite que o leitor que compreende possa defender sua própria pretensão de verdade. Justamente por isso, o leitor experimentou a validez daquilo que lhe fala e daquilo

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que ele compreende. O que ele compreendeu é sempre mais do que uma opinião estranha, já é sempre uma possível verdade. (2008, p, 510).

Por isso, todo o texto escrito é objeto da hermenêutica, mas não se configura numa transposição psíquica, isto é, um texto não pode ser interpretado a partir do horizonte de sentido do escritor para chegar ao horizonte de sentido do destinatário, o que acontece, nesse caso, é uma reiluminação, por parte do tradutor, das nuances de sentido, é um destacar de pontos que ele considera importantes, é um tomar partido e dizer claramente como “compreende” o texto.

Da mesma forma que numa conversação nos colocamos no lugar do outro com objetivo de compreender seu ponto de vista, também o tradutor procura pôr-se por completo no lugar do autor. Desta forma, não se produz um verdadeiro acordo, pois na conversação há o acolhimento do estranho e do adverso, o que não acontece na tradução, quando o tradutor assume um papel receptivo em relação ao que interpreta. Não há aí o intercâmbio de opiniões, a transferência de pontos de vista. O que ocorre, neste caso, é uma conversação em que os pensamentos do intérprete estão presentes, mas não como um ponto de vista próprio, e sim como uma possibilidade que o ajuda a apropriar-se verdadeiramente do que diz o texto. O acordo que ocorre neste caso é o de que a “coisa” ou o texto em questão não é somente do autor ou de seu intérprete, mas uma coisa comum a ambos.

A diferença entre a linguagem de um texto e a linguagem do intérprete não é uma questão secundária. Se configura em problemas de compreensão, pois se todo compreender é interpretar, é essencial que o objeto significante, tanto do autor quanto do intérprete, seja o mesmo. Existe uma convenção da razão hermenêutica segundo a qual não se pode introduzir nada que não possa estar na mente do autor, já que os textos não devem ser compreendidos pela expressão de vida e de subjetividade do autor. Isto na verdade não se constitui o principal problema, pois mesmo na pretensão de ser objetivo, o próprio leitor não consegue se colocar numa verdadeira contemporaneidade com o autor, ficando somente numa delimitação acidental quanto a isso. A própria definição de “leitor contemporâneo” se constitui num problema hermenêutico, já que os leitores de anteontem e os de depois de amanhã também são contemporâneos.

Isso envolve a definição de leitor originário, que segundo o autor, está envolta em uma idealização que, por vezes, passa despercebida, pois quem copia e quem transmite tem na

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mira sempre e novamente seus próprios contemporâneos e a opinião do autor ou a compreensão do leitor representam um lugar vazio que se preenche na compreensão, dependendo da ocasião. Ele diz ainda: “O que se fixa por escrito desvinculou-se da contingência de sua origem e de seu autor, liberando-se positivamente para novas relações”. (GADAMER, 2008, p. 512).

Partindo do postulado de que a compreensão já é sempre interpretação porque constitui o horizonte hermenêutico no qual ganha validade a intenção de um texto, trazemos a questão da dialética de pergunta e resposta a partir de outro aspecto, considerado fundamental para colocar a questão da pergunta como fenômeno hermenêutico. Ora, se o intérprete (ou historiador) escolhe os conceitos através dos quais descreve seu objeto, sem levar em conta sua origem e justificação e sem levar em conta que está comparando o que lhe é familiar com o que lhe é estranho, está de certa forma submetendo-o a seus próprios conceitos prévios. Gadamer considera que enquanto o historiador não reconhecer esta sua ingenuidade, estará incorrendo no erro de tentar entender o objeto única e exclusivamente pelos conceitos da época que quer compreender, ou pior ainda, pensando que pode se “desvestir” dos conceitos de sua época para isso. Na verdade, pensar historicamente implica sempre uma mediação entre os conceitos e o próprio pensar, significa justamente colocar em jogo os próprios conceitos prévios, para com isso trazer à fala a opinião do texto.

A questão dos preconceitos ou conhecimentos prévios é considerada pelo autor como um fenômeno hermenêutico , pois, segundo ele, são inconscientes e são a base sob a qual julgamos ou inferimos a respeito de algo. Isso significa que os preconceitos que guiavam nossa compreensão prévia estão em jogo também, isso é, até serem abandonados e/ou reformulados. “A força incansável da experiência consiste em formar sempre uma nova compreensão prévia - ou novos preconceitos” (GADAMER, 2002, p.288, grifo nosso) e é isso que nos possibilita novas perguntas e possibilita progressos na investigação de conceitos históricos.

Desta forma, tanto no diálogo quanto na interpretação de textos, o que está em jogo sempre é uma coisa polêmica que está sendo defendida por ambas as partes. Do mesmo modo que entramos num diálogo tomados por nossos preconceitos inconscientes, nosso interlocutor ( ou texto) também traz os seus próprios. O que propicia o verdadeiro diálogo fecundo é aquele em que entra a boa vontade e que reconhece o outro naquilo que pensa.

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Quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias que acabam por não se confirmar nas próprias coisas. Não queremos dizer que elas são negativas ou que devam ser “deixadas de lado” no momento da compreensão, pois conforme Gadamer,

[...] quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias. O que se exige é simplesmente a abertura para a opinião do outro ou para a opinião do texto. Mas essa abertura implica sempre colocar a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas (2008, p. 358).

Aquele que se dispõe a entender, portanto, não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto de maneira obstinada, pois quem quer realmente compreender deve estar disposto a deixar que o texto lhe diga alguma coisa. A consciência hermenêutica criada desta forma deve, desde o início, se mostrar receptiva à alteridade do texto. Isso não quer dizer que se deve ser “neutro” com relação à coisa em questão e nem que haja um anulamento de suas próprias opiniões, mas sim de deixar o texto apresentar-se em sua alteridade e assim, confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.

Gadamer afirma que o conceito de preconceito recebeu o matiz negativo que agora possui no iluminismo e que, na verdade, deve ser visto como um juízo que se forma antes do exame definitivo de todos os determinantes da coisa em questão e o que o mesmo não significa, de modo algum, falso juízo, já que pode ser sempre revisto e reformulado.

Almeida (2000, p. 208) ressalta que Gadamer leva a historicidade também à função de princípio hermenêutico, por que segundo ele, o que no sentido de “conhecimento” chamamos “ciência”, são, na verdade, conhecimentos da experiência. E, estes conhecimentos, baseados na experiência, como vimos no tópico anterior, não podem levar a nenhum saber absoluto.

Desta forma, segundo Gadamer (2008, p. 514) “a vida histórica da tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre novas”. Uma interpretação correta, “em si” seria desprovida de pensamento, que desconhece a essência da tradição e da acomodação às situações hermenêuticas a que pertence o ato interpretativo.

Gadamer explica que

[...] ter senso histórico é superar de modo consequente a ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual,

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adotando a perspectiva de nossas instituições, de nossos valores e verdades adquiridos. Ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo (1998, p. 18)

É obvio que não se pode imaginar que toda interpretação pretensamente correta se dissolva no subjetivo ou no ocasional, pois graças ao caráter de linguagem, toda interpretação contém também uma referência a outras e por não ser possível haver fala que não vincule o falante e o ouvinte, simultaneamente. Fala-se, portanto, de interpretação quando o significado de um texto não é compreendido de imediato, neste caso, faz necessária uma interpretação; ao contrário de um texto em que o sentido é evidente. Sobre isso, Gadamer ainda escreve que

a interpretação, tal como hoje a entendemos, se aplica não apenas aos textos e à tradição oral, mas a tudo que nos é transmitido pela história: desse modo falamos, por exemplo, da interpretação de um evento histórico ou ainda da interpretação de um comportamento, etc. Em todos esses casos, o que queremos dizer é que o sentido daquilo que se oferece à nossa interpretação não se revela sem mediação, e que é necessário olhar para além do sentido imediato a fim de descobrir “o verdadeiro” significado que se encontra escondido (1998,p. 19).

Segundo Gadamer, Nietzsche ressalta que todos os enunciados são suscetíveis de interpretação, pois seus sentidos vem sempre mascarados ou deformados por ideologias. Esta concepção surgiu diante da postura científica de que as fontes ou os vestígios do passado devem ser interpretados de forma crítica. No entanto, e como já dissemos anteriormente,

[...] o que interessa ao conhecimento não é saber como os homens, os povos, os Estados se desenvolvem em geral, mas, ao contrário, como este homem, este povo , este Estado veio a ser o que é; como todas essas coisas puderam acontecer e encontrar-se aí (GADAMER, 1998, p. 24).

Para Gadamer, apesar de ser compreendido cada vez diferente, o texto continua sendo o mesmo texto, que se apresenta cada vez diferente e que compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios (GADAMER, 1998, p. 57). Significa apreender o valor intrínseco dos argumentos que estão nele, e isto da maneira mais completa possível, sem levar em conta a subjetividade do autor, pois não se trata de uma comunicação entre almas, e sim de revelar o milagre da compreensão, pois “compreender é o participar de uma perspectiva comum”.

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