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O Golpe na Perspectiva de Gênero

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Academic year: 2021

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O Golpe na perspectiva de

Gênero

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u niv er sidade feder al da bahia r eitor

João Carlos Salles Pires da Silva vice-r eitor

Paulo Cesar Miguez de Oliveira assessor do r eitor Paulo Costa Lima

editor a da u niv er sidade feder al da bahia

dir etor a

Flávia Goulart Mota Garcia Rosa conselho editor ial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo

cult — cent ro de est udos multidisciplinar es em cult ur a coor denação

Leonardo Costa

vice-coor denação Renata Rocha

comissão editor ial da coleção cult

Alexandre Barbalho (Universidade Estadual do Ceará)

Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA) Gisele Nussbaumer (UFBA)

José Roberto Severino (UFBA) Laura Bezerra (UFRB)

Lia Calabre (Fundação Casa de Rui Barbosa – RJ)

Linda Rubim (UFBA)

Liv Sovik (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Mariella Pitombo Vieira (UFRB) Marta Elena Bravo (Universidade Nacional da Colômbia – Medellín) Paulo Miguez (UFBA)

Renata Rocha (UFBA) Renato Ortiz (UNICAMP) Rubens Bayardo (Universidade de Buenos Aires – Universidade San Martin) coor denador da

comissão editor ial Antonio Albino Canelas Rubim

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c o l e ç ã o c u l t L i n d a R u b i m , F e r n a n d a A r g o l o ( O r g a n i z a d o r a s )

O Golpe na perspectiva de

Gênero

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2018, autores.

Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

diagramação e arte final Marcella Felgueiras de Freitas Napoli / Maria Tarrafa revisão Hilário Mariano dos Santos Zeferino

normalização Daiane Cruz de Azevedo Sistema de Biblioteca – SIBI /UFBA

edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina, Salvador – Bahia cep 40170 115 tel/fax (71) 3283-6164 www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br

editora filiada à:

O Golpe na perspectiva de Gênero / Linda Rubim, Fernanda Argolo (Organizadoras). – Salvador: Edufba, 2018.

186 p. (Coleção Cult)

ISBN: 978-85-232-1684-9

1. Mulheres na Política - Brasil. 2. Igualdade de Gênero. 3. Direitos das Mulheres - Brasil. I. Título. II. Rubim, Linda. III. Argolo, Fernanda.

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s u m á r i o

7

“ Precis amos f alar de Gênero”

L i n d a R u b i m e F e r n a n d a A r g o l o

23

Dilma – uma mulher polític a

C é l i R e g i n a J a r d i m P i n t o

33

Incongruência s e dubiedades , deslegitimaç ão e legitimaç ão: o golpe contr a Dilma R oussef f

C l a r a A r a ú j o

51

Ima ginário, mulher e poder no Br a sil: ref le xões acerc a do impeachment de Dilma R oussef f

C l á u d i a L e i t ã o

65

O golpe e a s perda s de direitos par a a s mulheres

E l e o n o r a M e n i c u c c i

75

Uma mulher foi depost a : se xismo, misoginia e violência polític a

F l á v i a B i r o l i

85

Direitos reprodutivos , um dos c ampos de bat alha do golpe

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105

A máquina misógina e o f ator Dilma R oussef f na polític a br a sileir a

M a r c i a T i b u r i

117

Mulher, negr a , f avelada e parlament ar : resistir é pleona smo

M a r i e l l e F r a n c o

127

O golpe de 2016 e a demonizaç ão de g ênero

M a r y G a r c i a C a s t r o

147

Golpe disf arç ado de impeachment : uma ar ticulaç ão escus a contr a a s mulheres

N i l m a L i n o G o m e s

161

Sobre o golpe e a s mulheres no poder

O l í v i a S a n t a n a

177

Dilma : símbolo par a a par ticipaç ão polític a feminina

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“Precisamos falar de Gênero”

1

L i n d a R u b i m * F e r n a n d a A r g o l o * *

I n t r o d u ç ã o

“Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres, também possam, no futuro, ser presi-denta; e para que – no dia de hoje – todas as brasilei-ras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher”.

O texto acima é parte do discurso de posse da presidenta Dilma Rousseff, em 1º de janeiro de 2011, durante a celebração da chegada de uma mulher à presidência da República do Brasil, inaugurando o que se pensava que seria uma nova página da histó-ria cultural e política de um país, que, pela primeira vez, havia escolhido ser liderado por uma mulher.

* Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ). Professora dos Programas de Pós-Graduação Pós-Cultura e PPGNEIM/UFBA. Membro fundador do CULT/ UFBA, onde coordena o grupo de pesquisa Miradas.

** Jornalista, Mestre em Cultura e Sociedade. Pesquisadora do Centro de Estudos

Multidisciplinares em Cultura (CULT-UFBA), vinculada ao grupo de pesquisa Miradas.

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É inevitável que tal fato nos leve à revisitar diversos momentos da história das mulheres, nos quais o investimento desse gênero na quista de sua cidadania tem como uma das suas mais importantes con-quistas públicas, o direito político de votar e ser votada, ainda em um tempo em que as mulheres estavam cerceadas por inimagináveis obs-táculos. A conquista e consciência desse direito, também no Brasil, foi alvo de um processo longo e intenso, através de manifestações diver-sas, incluso campanhas em periódicos, que já eram produzidos por este gênero à época, como o jornal feminista “Voz Feminina”, fundado em Diamantina, Minas Gerais, por três jovens mulheres em 1900 com o explícito objetivo da defesa dos direitos das mulheres. (RUBIM, 1984) Um exemplo que pode ilustrar o envolvimento desse periódico na cam-panha pelo voto feminino é o artigo de Clélia Nícia Corrêa Rabello pu-blicado no número 18 do “Voz Feminina” em 16 de abril de 1901.

E por que não havia de ter este direito? Não somos também, como é o homem, parte componente da sociedade? Não estamos sob o jugo da lei e não temos inteli-gência, lucidez, vontade livre? Para que o governo seja democrático, é necessário que todos que estejam sob seu domínio possam também agir sobre ele. Ou então tudo é absolutismo. Para haver liberdade de um povo é evidentemente necessário que seja o seu governo criado pelo sufrágio de todo ele. Mas se apenas uma metade pode agir livremente, a outra agirá automaticamente: só a primeira é livre, a segun-da escrava. São dois povos em um mesmo país, um livre e independente que confor-me sua vontade reina sobre o segundo: os hoconfor-mens são os soberanos: a mulher con-tinua a ser a súdita. (RABELLO, 1901 apud ALVES, 1980, p. 94)

Esta, e diversas outras vozes de mulheres, de variados lugares de fala foram bastante atuantes na luta pelo voto feminino, até que finalmente em 1932, este direito foi garantido. Se por um lado tal conhecimento traduz o amadurecimento das lutas feministas e consequentemente o empoderamento das mulheres, com as conquistas dos seus pleitos, por outro é estigmatizado, e não raramente, apresentado através de

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narrativas pouco expressivas que escondem a força cultural e a impor-tância desse momento. A respeito disso, já nos anos de 1980, Branca Moreira Alves, na sua tese de doutorado sobre o assunto observa que,

a historiografia brasileira, se e quando se refere ao decreto de 1932 ou a constitui-ção de 1934, concedendo o sufrágio feminino, geralmente silencia sobre o movi-mento, deixando crer que as mulheres se tornaram eleitoras por uma dádiva gene-rosa e espontânea, sem que tivessem lutado ou demonstrado qualquer interesse por esse direito. (ALVES, 1980, p. 13)

A conquista do direito ao voto pelas mulheres brasileiras, no sentido de acontecimento, dado de realidade, é um fato irrefutável. No entanto, o olhar atento da pesquisadora sinaliza que os registros desse fato são narrativas dispersas e excludentes que invisibilizam o processo das lu-tas sufragislu-tas e, de certo modo, os sujeitos que protagonizaram aquelas lutas. Essa atitude, entretanto, não é mero silêncio, em verdade é um “silenciamento”. Atitude política, que determinadamente produz o apagamento a quem não se reconhece e legitima sujeito, com autono-mia para constituir a sua história.

É uma percepção que nos parece corroborar com a da professora Céli Regina Pinto (2007, p. 16) quando problematiza a exclusão da mulher no texto da constituição brasileira de 1891. Também para a referida profes-sora não acontece “como mero esquecimento”. A mulher não foi citada, é uma ausência na carta magna do país, porque ela simplesmente não existia, para os constituintes, como indivíduo dotado de direitos. Uma falta que rebate diretamente nas narrativas sobre as lutas das mulheres. Em consequência, a história desse gênero torna-se uma fragmentada e dolorosa saga, tecida por avanços e recuos.

Assim sendo, retornamos a Branca Moreira Alves (1980, p. 14) quan-do diz:

tratando-se da história da mulher, esse é um tema que não se esgota, num momen-to histórico definido, já que a condição de opressão contém um elemenmomen-to de

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conti-nuidade que permite criar uma ligação entre as gerações que se sucedem no inte-rior de um mesmo sistema de poder.

Uma citação que nos ajuda a perceber o quão frágeis são os tecidos de uma cultura, no que diz respeito ao direito à cidadania das mulheres. Uma cultura que não tem pudor de cultivar quaisquer atos arbitrários e conservadores em favor da dominação masculina.

Q u e s t õ e s d e g ê n e r o n o i m p e a c h m e n t d e 2 0 1 6

Oitenta e quatro anos se passaram desde a conquista do direi-to ao vodirei-to pela mulher no Brasil até a deposição da presidenta Dilma Rousseff. Optamos por fazer essa evocação de tempo, quase um século, para enfatizar o quão conturbada é a construção da história deste gê-nero, representada por avanços e retrocessos, solapada particularmente no que se refere às lutas pela constituição da cidadania.

Consonante com tal realidade, somos de opinião que a eleição da mulher Dilma Rousseff, com 55.752.483 votos dos brasileiros em 2010, representou uma mudança significativa para a história das mulheres e, particularmente para o perfil presidencial do país, até então, exclusiva-mente, dominado por homens. Tal novidade acabou mobilizando redes de tensões e expectativas, especialmente porque as instituições pre-tensamente democráticas são majoritariamente masculinas, pensadas e vividas numa cultura de e para homens. Basta observar que na cons-trução do prédio do Congresso Nacional por ocasião da conscons-trução de Brasília, não foi planejado um local para banheiro feminino. Até 2015, portanto não havia banheiro feminino no plenário do Senado Federal brasileiro. Como na Constituição de 1891, a mulher ainda é marcada pela falta. Leve-se em conta que era o tempo histórico dos revolucionários e conturbados anos 1960, na capital, ícone da modernidade, fundada por um presidente “Bossa Nova”. Mas, nem assim, entrou no repertório

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cultural do país que o Parlamento também era lugar de mulher. O que dizer sobre o fato de uma mulher presidente!

Deste modo, no primeiro mandato, os choques ocorreram e foi di-fícil suportar uma mulher no comando. “Uma mulher dura”, mas com dias contados, e que em breve iria embora. Não foi. Dilma Rousseff ou-sou o segundo mandato.

Um pouco mais protagonista do que na sua campanha em 2010, quando o presidente Lula lhe fazia sombra. E assim, o voto de 54.501.118 brasileiros lhe deu legitimidade para ocupar por mais quatro anos o Palácio do Planalto. A reincidência da ousadia daquela mulher con-quistando, mais uma vez, o direito de governar o Brasil, foi duramente contestada. Vitória que além de provocar ressentimentos com níveis de alta perversidade, em termos de preconceitos, como será discutido por alguns textos desse livro, também desvelou a imaturidade do nosso projeto democrático e, por óbvio, esgarçou duramente a famosa ban-deira de esperança, “por um mundo menos desigual e mais humano”. Palavras de ordem, que se, em algum momento, ativou a esperança de construção de um Estado menos conservador e mais igual, tornaram-se mero clichê, reminiscência nostálgica do que poderia tornaram-se tornar uma visão ampliada de uma sociedade progressista.

Enfim, o respeito às eleições como expressão de democracia foi so-terrado. A vitória da presidenta Dilma foi duramente contestada, não apenas pela oposição formal, que iniciou seu projeto de destituição concomitante com o resultado das eleições de 2014.

Sob o clima desse contexto, foi urdida a ofensiva, “fora Dilma”, ten-do como pretensa acusação “as pedaladas fiscais”, já utilizadas como procedimento de gestão pelos presidentes anteriores. Em verdade, tais palavras de ordem eram de fato a tradução do ressentimento dos polí-ticos representantes das tradicionais classes dominantes do Brasil, que tinham perdido o poder e de classes médias cada vez mais reativas a pos-sibilidade de um país menos desigual. Inflamados por uma mídia,

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Ao som das panelas, um artefato simbólico, enquanto estigma, na vida das mulheres, o impeachment em 2016, durante o segundo man-dato de Rousseff, deu um fim melancólico à passagem da primeira mu-lher pela presidência da República brasileira. E mais uma vez, ao modo de 1932, o silêncio pairou sobre as questões de gênero e sobre as con-sequências do afastamento da presidenta à participação política das mulheres. Muito foi dito e escrito sobre os vieses político, econômico e jurídico do impeachment. Mas apesar do seu grande impacto simbóli-co para as mulheres, simbóli-contingente significativo da população no país, as questões de gênero, que fizeram parte de modo contundente da campa-nha do impeachment foram minimizadas, relegadas ao status de pro-blema menor. O que sem dúvida denota mais uma tentativa de silencia-mento da história das mulheres no Brasil.

Com base nesta percepção este livro tem como objetivo resgatar os enfrentamentos de gênero que acompanharam a gestão e a crise da pre-sidenta Dilma Rousseff, as reações das mulheres à destituição da presi-denta, e problematiza os impactos do impeachment para a participação política das mulheres no Brasil.

Proposta que sofreu inicialmente certa contestação, porque havia ne-gativas de evidências do impeachment relacionadas à questão de gênero. A compreensão majoritária era de que a deposição da presidenta esta-ria fundamentalmente vinculada à crise econômica e ao desempenho político de Rousseff. Sem desprezar tais perspectivas, pois reconhe-cemos que a crise econômica foi utilizada para inflar o descontenta-mento popular cenário ideal para que a oposição atuasse politicamente pelo impeachment. Entretanto, a nosso ver, isso não anula a presença da questão de gênero como elemento de disputa durante toda a gestão da presidenta, inclusive fortemente acionada, durante a campanha po-lítico-midiática em favor do impeachment, ora de forma mais sutil, ora com gravíssima veemência.

Ao percorremos a trajetória de Rousseff na presidência da República do Brasil, evidencia-se desde o primeiro momento como a catego-ria gênero permeou a disputa pela permanência do establishment.

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A campanha eleitoral de 2010, a primeira de Dilma Rousseff como candidata, foi marcada por estratégias vulgares e desrespeitosas, que incluíam questionamentos à sexualidade dela, e representações este-reotipadas da mídia, em que Rousseff figurava como o poste de Lula. (ARGOLO, 2014)

Já eleita na cerimônia de sua posse, em 1º de janeiro de 2011, foi de-flagrada a primeira inflexão sobre questões de gênero. Diferentemente da posse dos presidentes anteriores, a presidenta Dilma Rousseff subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhada de sua filha, Paula Rousseff – configurando um fato novo, inaugurador na história dessa cerimônia no Brasil. A magnitude simbólica daquele double de mulheres à fren-te do desfile presidencial, sem dúvida estabelecia um fato jornalístico de primeira ordem. No entanto, isso não foi considerado. Como bem o demonstra a manchete do jornal O Globo: “A beleza da vice-primeira-dama rouba a cena na posse da Dilma” (SETTI, 2011). O fato jornalístico é suprimido e a atenção se desloca para a enigmática esposa do então vi-ce-presidente Michel Temer. O texto do jornal enfatiza essa opção com a morna e burlesca observação que a presidenta Dilma Rousseff “até se es-forçou”, mas que foi Marcela Temer quem capturou o olhar dos homens.

A partir da objetificação do corpo feminino, traço característico da cultura machista, o jornal banaliza o ato de transmissão de posse da presidência da República de 2011, despreza o dado jornalístico mais im-portante: a primeira vez que uma mulher assume aquele poder. Por fim, a mídia cria um cenário informativo que desconsidera um momento histórico singular para as mulheres e a nação brasileiras. Em vista de tais faltas, não tem como não pontificar esta “derrapagem” como o pri-meiro ato que desqualifica a presidenta Dilma como símbolo de poder.

Outra questão que merece atenção é o embate criado pelo uso do ter-mo presidenta, adotado por Rousseff após a sua posse. Tal fato ter- mobi-lizou a imprensa brasileira que engendrou uma série de “seminários” com especialistas em gramática para opinar sobre a correção da palavra,

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e se opôs a adotar a nomenclatura em seus conteúdos, como mais um exemplo da sua parcialidade.

A propósito, o texto da filósofa Marcia Tiburi neste livro, “A máqui-na misógimáqui-na e o fator Dilma Rousseff máqui-na política brasileira”, observa, que o poder é também um jogo de linguagem. Ao inaugurar o termo, a presidenta Rousseff rompe com 121 anos de uma tradição de homens a comandar a república. E não é sem sentido que, ao ser afastada do cargo pelo impeachment, quem a substitui busca apagar, desde a linguagem até as marcas que podem condensar a memória da sua presença. Uma das primeiras ações de Michel Temer ao assumir interinamente o go-verno foi “orientar” a Empresa Brasileira de Comunicações (EBC) a não utilizar em seus conteúdos o termo “presidenta”.

Desde a primeira campanha da presidenta Dilma Roussef em 2010, o argumento de que ela não seria uma pessoa política sustenta a crítica e a narrativa da sua orquestrada desqualificação. Rotulada grosseiramen-te como “gerentona”, a presidenta foi desacreditada como liderança po-lítica. Repetia-se, recorrentemente, durante seu governo a sua falta de habilidade para lidar com o Congresso, e, mais especificamente, para “barganhar” com os congressistas. A inexperiência da mulher naquele cargo embora seja um mote não explicitamente expresso, permeia as narrativas. A professora Clara Araújo, em “Incongruências e dubieda-des, desligitimação e legitimação: o golpe contra Dilma Rousseff ”, rati-fica de forma muito interessante neste livro, como esse jogo de retórica sustentou o processo de deslegitimação da presidenta caracterizada, re-correntemente como alguém “fora de lugar”.

São narrativas que elaboram um jogo de parcialidades e estabelecem situações confusas no intuito de provar a falta de eficiência da presiden-ta no jogo político. Se uma parte delas reivindica enfaticamente a neces-sidade de reforma do sistema político do Brasil, como possibilidade de correção do alto nível de corrupção no país, em outras, a grande crítica está centrada na inépcia e falta de capacidade da presidenta para lidar com a barganha política. São discursos que se contraditam e deixam

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transparecer uma factível incoerência: se um deles parece legitimar a corrupção, como um traço determinante da cultura e do povo brasilei-ros, o outro expressa terminantemente a recusa desse modelo. Afinal qual seria o modelo de gestor que o país precisa/deseja? Alguém que tenha uma participação eficiente no jogo da corrupção, ou alguém que se recuse a seguir esse modelo?

A representação da presidenta como “aventureira” no campo políti-co serviu para manter o varejo da política brasileira em operação, políti-como bem observa Céli Regina Pinto, em “Dilma - uma mulher política”. No texto escrito para esse livro, a autora desconstrói o falacioso argumento da presidenta “não-política” e procura demonstrar como essa narrativa operou em favor da manutenção do status quo, ou seja, pela permanência de políticos comprometidos com a barganha e o favorecimento pessoal.

Políticos que têm apoiado projetos de lei que suprimem direitos das mulheres e que tentam instituir políticas agressivas de controle sobre o corpo feminino, como destaca o texto de Maíra Kubik Mano e Márcia Santos Macêdo, “Direitos reprodutivos, um dos campos de batalha do golpe”, sobre a polêmica em torno do Projeto de Lei 60/99.

A esse respeito, a professora Mary Castro, em “O golpe de 2016 e a demonização de gênero”, pontua que, nos governos Dilma Rousseff, o Congresso Nacional organizou uma ofensiva contra as políticas de gê-nero, em especial com a criação do conceito de ideologia de gênero. Os discursos de orientação machista e homofóbicos se multiplicaram nas casas parlamentares. A partir do apelo à religiosidade do povo, ressalta a autora, estimulou-se o medo e o ódio ao diferente.

Em outro patamar, a imprensa brasileira, como já dissemos antes, esquecida dos seus critérios de noticiabilidade, em parceria com o Congresso Nacional, atuou como o maior partido de oposição à presi-denta. De forma contumaz, empregou marcas de gênero em sua campa-nha de deslegitimação. Diversos estereótipos foram recuperados nesse processo simbólico de destituição: da histérica à mal-amada, para citar alguns. Flávia Biroli, em “Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política”, demonstra que a categoria gênero foi tão incisiva

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na representação simbólica da presidenta que é marca presente tanto das peças de oposição quanto das de defesa.

Deste modo, o sexismo, o machismo e a misoginia compuseram os lances mais lamentáveis e perversos da campanha do impeachment. A mídia seja abertamente, ou em articulados jogos de linguagem, utilizou

os estereótipos de gênero e double binds3 para empreender sua

elabora-da oposição a Rousseff. Mas o fato é que a presidenta rompeu estereóti-pos de gênero e apresentou-se como uma mulher que não cabe no script das instituições mais tradicionais da sociedade brasileira, incluindo a imprensa. Tanto no comportamento, quanto em aparência, a presiden-ta Dilma Rousseff – nos diz Claudia Leitão, no capítulo “Imaginário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do impeachment de Dilma Rousseff ” – esteve no sentido oposto ao que se cristalizou no imaginá-rio social como representação da mulher. A ofensiva de desconstrução e deslegitimação operou então para que ela fosse identificada como “um erro, uma disfunção”.

A rejeição ao modelo de mulher representada pela presidenta torna-se clara quando, logo após a primeira votação pela abertura do processo, de impeachment na Câmara dos Deputados, a revista Veja ofertou ao leitor a antítese de Rousseff. O que poderia ser considerado um exem-plo de mulher, devidamente enquadrada em seu devido lugar de femi-nilidade, representada pela figura de Marcela Temer, no amplamente criticado artigo “Marcela Temer: bela, recatada e ‘do lar’”. (LINHARES, 2016) A edição da referida revista não poupa seus adjetivos ao perfil do que considera ser uma “mulher perfeita”: silenciosa, bonita, vaidosa e dona de casa.

Em contraposição, em edição posterior a revista descreve a presiden-ta Dilma Rousseff como uma mulher solitária, de personalidade irascí-vel, politicamente inábil, abandonada pelos aliados e temida pelos fun-cionários. Uma mulher que não desperta sentimentos afetivos, e que, na leitura induzida pela revista, pagou caro pela ambição e teimosia de fugir do lugar social que lhe era devido. (OYAMA, 2016)

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É importante salientar que a ofensiva conservadora não se reduzia às produções da imprensa brasileira, que atingia apenas Dilma Rousseff ou o Partido dos Trabalhadores (PT). A composição do gabinete minis-terial anunciado pelo governo interino acusava a ausência de mulheres e negros ocupando o primeiro escalão da República. Dando a perceber que o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, portanto, foi mais do que uma marca simbólica para as mulheres brasileiras. Para além disso, significou também a redução da representação descritiva feminina e o fim de um ciclo de empoderamento de mulheres no Executivo Federal. Assim, consolidava-se o golpe no gênero feminino.

A s m u l h e r e s n o c e n t r o d o g o l p e : r e t r o c e s s o e r e s i s t ê n c i a

O governo de Dilma Rousseff ficou caracterizado pela maior pre-sença de mulheres nos ministérios. Durante as duas gestões foram em-possadas 18 ministras e uma presidenta de empresa pública. Houve o fortalecimento da Secretaria de Políticas para Mulheres com a indica-ção de uma ministra ligada ao movimento feminista e o aumento do orçamento da pasta em aproximadamente 18%. Em 2015, após reforma ministerial, a secretaria passaria a ter status de ministério com a criação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos.

No dia seguinte à posse do governo interino de Michel Temer, esse cenário foi reconfigurado. A foto do novo gabinete ministerial revelava a ausência de mulheres, de negros, de índios e de jovens dentre outras faces identitárias. Denotava o início de um governo misógino e con-servador e o consequente desmonte das políticas para mulheres, como bem destaca o texto da Secretária do Estado Olívia Santana, “Sobre o golpe e as mulheres no poder”. O ministro chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, justificou essa falta. As críticas cerradas ao preconceito de gê-nero especialmente conduziram Michel Temer à busca de uma mulher para assumir a Secretaria da Cultura.

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Em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, em 15 de maio de 2016, Temer desqualificou a ausência de mulheres no seu go-verno observando que várias delas ocupariam cargos quase tão impor-tantes quanto os de ministro, pois, na reorganização dos ministérios, haveria espaço para as mulheres nas secretarias. Neste sentido, Temer enfatizou: “para a cultura eu quero trazer uma representante do mundo feminino”. (EM ENTREVISTA..., 2016)

A determinação de Michel Temer gerou um forte gesto de resistên-cia das mulheres brasileiras. Ao menos cinco das mulheres que foram sondadas para a Secretaria da Cultura, que substituiria o Ministério da Cultura extinto, segundo a imprensa, negaram veementemente o con-vite. A negativa baseava-se não apenas, no caráter explicitamente opor-tunista do convite, mas também na oposição à extinção do Ministério da Cultura (MinC). A cultura, então, foi o lugar da resistência civil ao impeachment. Artistas, intelectuais, criadores populares, animadores e militantes, de diversos segmentos realizaram um dos maiores movi-mentos de oposição ao governo interino, e conseguiram reverter a de-cisão de extinção do MinC. É preciso reforçar como a negativa das mu-lheres ao convite do presidente representou um ato feminista contra o projeto do governo de exclusão das mulheres dos espaços de poder.

A falta de mulheres na lista ministerial não foi o único meio de afas-tá-las do espaço político brasileiro. O decréscimo na representação des-critiva das mulheres tem sido feito de forma gradativa. De modo “mera-mente circunstancial”, conforme o Ministério do Planejamento, 12,13% dos cargos comissionados cortados do Executivo eram ocupados por mulheres. (PRAZERES; AMORIM, 2017)

Paralelamente a isso, o governo extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, passando suas atribuições ao Ministério da Justiça (MJ). Assim, a Secretaria de Políticas para Mulheres passou a departamento do MJ, sob o comando da ex-deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP).

De 2016 para 2017, o corte no orçamento da Secretaria chegou a 61%, e a maioria das políticas iniciadas nas gestões de Lula e Dilma

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Rousseff foram descontinuadas. As ministras da pasta no governo Dilma, Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes observam nos textos que escrevem para esse livro, “O golpe e a perda de direitos para as mu-lheres” e “Golpe disfarçado de impeachment”, respectivamente, como o desmonte da Secretaria de Políticas para Mulheres comprometeu as políticas de proteção e apoio às mulheres brasileiras, e tem marcado o retrocesso de seus direitos.

Ressaltamos que mesmo com limitações, durante o governo Dilma, desenvolveram-se políticas e ações para o enfrentamento da violên-cia contra a mulher, bem como em prol de sua autonomia financeira. Destacam-se a lei do feminicídio e o estímulo por mais autonomia na gestão da vida familiar, por meio da titularidade do “Programa Minha Casa Minha Vida” e como beneficiárias prioritárias do Programa Bolsa Família. Em 2016 elas correspondiam a 93% dos beneficiados e 84% das proprietárias das casas. (MULHERES..., 2016)

Estas medidas foram consideradas pela SPM de extrema relevância, ao processo de autonomização das mulheres dado que, por exemplo, di-minuíam as relações violentas ou abusivas, fundamentadas apenas na dependência financeira da mulher. (CEF, 2016)

O texto da senadora e procuradora da Mulher no Senado, Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), “Dilma: símbolo para a participação polí-tica feminina”, destaca a assimetria no número de parlamentares ho-mens e mulheres no Brasil, e como esse desequilibro tem comprometi-do a representação substantiva das mulheres brasileiras no Congresso. Neste sentido a senadora reafirma a preocupação quanto ao modo que as Reformas Trabalhista e da Previdência, propostas pelo atual gover-no, tratam a questão da tripla jornada das mulheres e a desigualdade salarial deste gênero.

Essas ponderações da senadora Grazziotin também estão em pau-ta para a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) em “Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo”. Ela destaca como preo-cupação da sua gestão a proposta de aumento do tempo contribuição

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previdenciária para os empregados domésticos de 15 para 25 anos, le-vando em conta que, caso isto se efetive, vai penalizar ainda mais as tra-balhadoras, visto que o maior contingente de trabalhadores domésticos no Brasil é composto por mulheres.

A esperança contra esse movimento conservador e de retrocesso nos direitos das mulheres são os movimentos feministas que vêm surgindo espontaneamente pelo país. As marcas do sexismo durante a campanha pró-impeachment e os projetos de lei que retiram direitos das mulheres geraram movimentos em redes sociais contra o machismo e o sexismo no país.

É possível identificar uma potência no ativismo digital que tem mantido a agenda feminista em debate, e que em boa medida tem pau-tado a grande mídia, apesar das posições conservadoras assumidas por ela. A tentativa do Congresso de adoção de políticas de controle sobre o corpo feminino também mobilizou as brasileiras no movimento inti-tulado “Primavera Feminista”, que levou milhares de mulheres às ruas do Brasil em protesto contra essas políticas.

Ainda é cedo para tecermos conclusões sobre a força que esses movi-mentos terão sobre a produção legislativa e a conjuntura brasileira, mas é possível afirmar que só por meio da participação política das mulheres e de sua mobilização pela igualdade será possível reverter o ciclo his-tórico e persistente da opressão de gênero. Nesse sentido é importante manter viva a disposição para “falar de Gênero”.

Boa leitura!

N o t a s

1 Esse livro começou a ser gestado ainda em 2016, durante a campanha pelo impeachment exatamente pelo incômodo da ausência de reflexões sobre o papel/a importância da questão de gênero nas ações do impeachment. Nesse sentido manifestamos a nossa satisfação pelas diversas manifestações que começam a preencher essa falta, em diversas modalidades de expressões e regiões do Brasil, assim como uma espécie de questão de ordem que se espraia pelo mundo pautando essa discussão. Com base nesse contexto é que essa publicação adota como título da apresentação deste livro a oportuna campanha do Núcleo de Estudos

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Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (NEIM/UFBA), “Precisamos falar de Gênero”.

2 Pesquisa em curso desenvolvida pelas autoras deste texto aponta a imparcialidade e a distor-ção da informadistor-ção em favor da campanha pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. 3 Kathleen Hall Jamieson (1995) discorre sobre as dificuldades de participação das mulheres

no campo político a partir do conceito de doublebinds, um paradoxo vivenciado pelas mulhe-res políticas em que qualquer que seja o comportamento adotado por elas, alguma falta será apontada. A autora classifica as principais dualidades que surgem como cobrança para elas: Profissional ou mãe?; O mesmo ou a diferença?; Silêncio ou vergonha?; Feminina ou compe-tente?; Idade e invisibilidade. As estratégias de participação das mulheres na política, portan-to, se colocam como um conjunto de ações para equilibrar os traços considerados masculi-nos e os considerados feminimasculi-nos.

R e f e r ê n c i a s

ALVES, B. M. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.

ARGOLO, F. Dilma Rousseff: trajetória e imagem da mulher no poder. 2014. 151f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (Brasil) – CEF. Mulheres são as principais contratantes do Minha Casa Minha Vida Rural. Governo do Brasil, Brasília, DF, 1 fev.2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov. br/infraestrutura/2016/01/mulheres-sao-as-maiores-contratantes-do-minha-casa-minha-vida-rural>. Acesso em: 15 maio 2016.

EM ENTREVISTA concedida a Sônia Bridi, Michel Temer diz que não tentará reeleição. Entrevistadora: Sônia Bridi. São Paulo: GloboPlay, 15 maio 2016. 1vídeo online (25 min 48 s), son., color. Entrevista concedida ao Fantástico. Disponível em: <https://globoplay.globo. com/v/5025938/>. Acesso em: 16 maio 2016.

JAMIESON, K. H. Beyond the double bind: women and leadership. New York: Oxford University Press, 1995.

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MULHERES são as principais contratantes do Minha Casa, Minha Vida Rural. Governo do Brasil, Brasília, DF, 1 fev. 2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/01/mulheres-sao-as-maiores-contratantes-do-minha-casa-minha-vida-rural>. Acesso em 15 maio 2016.

OYAMA, T. Os últimos dias de Dilma Rousseff. Veja, São Paulo, 11 maios 2016. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/os-ultimos-dias-de-dilma-rousseff/>. Acesso em: 16 maio 2016.

PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

PRAZERES, L.; AMORIM, F. Corte de cargos anunciado por Temer atingiu mais mulheres que homens. UOL, [S.l.], 3 mar. 2017. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas- noticias/2017/03/03/corte-de-cargos-anunciado-por-temer-atingiu-mais-mulheres-que-homens.htm>. Acesso em: 5 mar. 2017.

RUBIM, L. Imprensa de mulheres no Brasil. Comunicação e Política, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1-2, p. 189-205, mar./jun. 1984.

SETTI, R. Beleza da vice-primeira-dama rouba a cena na posse da Dilma. O Globo, Rio de Janeiro, 1 jan. 2011. Disponível em: <https://oglobo. globo.com/politica/beleza-da-vice-primeira-dama-rouba-cena-na-posse-da-dilma-2844111>. Acesso em: 2 jan. 2011.

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Dilma – uma mulher política

C é l i R e g i n a J a r d i m P i n t o *

“Eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos”. Dilma Rousseff1

No dia 17 de abril de 2016, a Câmara de Deputados, com mais de 90% de homens, autorizou a abertu-ra do processo de impeachment contabertu-ra a presidenta Dilma Rousseff. No dia 31 de agosto do mesmo ano, o Senado Federal, com mais de 85% de homens, vo-tou e aprovou o seu impeachment. Não há nenhuma garantia de que a ausência de mulheres nestes dois cenários tenha tido qualquer influência no resul-tado. Entretanto, esta mesma ausência escancara a condição subalterna das mulheres na política. Se, por

* Doutora em Ciência Política. Professora Titular do departa-mento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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um lado, não se pode atribuir o impeachment de Dilma Rousseff ao fato de a esmagadora maioria dos representantes no Congresso Nacional ser formada por homens, por outro, isto não afasta a presença das questões de gênero na trajetória de vida política da primeira presidenta mulher no Brasil, desde sua militância, ainda na adolescência, até o impeachment.

Quando se analisa a presença das mulheres na política, o Brasil é um dos países menos igualitários do mundo. Segundo dados da União Interparlamentar, atualizados em 1º de março de 2017, o Brasil ocupa o 153º lugar entre 194 países pesquisados, quanto à presença de mulheres nos parlamentos. (IPU, 2017) É também muito pequeno o número de prefeitas e governadoras eleitas ao longo da história. O total de mulhe-res efetivamente eleitas nas Assembleias Legislativas, somadas às elei-tas na Câmara de Deputados em 17 legislaturas, de 1950 a 2014, é de 564.

Destas, apenas 184 chegaram à Câmara de Deputados, neste período.2

Desde 1997, com a chamada Lei das Cotas (Lei 9504/1997), os partidos são obrigados a garantir 30% de mulheres em suas listas de candidatos para as eleições proporcionais, uma vez que a lei impede mais de 70% de candidatos de um mesmo sexo. (BRASIL, 1997) Tem havido muita dificuldade para o cumprimento desta cota nos partidos, independente de ideologia e tamanho. Mesmo quando ela é cumprida, não tem mu-dado significativamente o quadro do resultado eleitoral. São muitos os estudos que analisam esta ausência no Brasil, mas é generalizada a identificação de duas causas que ajudam a explicar as dificuldades de as mulheres chegarem a esta esfera pública: o sistema político partidário e a manutenção de profundas desigualdades nas relações de gênero. Em relação ao primeiro, cabe destacar o sistema de listas abertas, a oligar-quização das burocracias partidárias, o alto custo das campanhas elei-torais. As mulheres não encontram espaço neste cenário, mas também estão ausentes os negros, os índios e os trabalhadores das classes popu-lares. Nas duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional, assenta-se uma robusta maioria de homens brancos, de classe média

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alta ou da burguesia, tanto urbana como rural. Na questão específica das mulheres, soma-se ainda o sexismo generalizado da sociedade bra-sileira que perpassa classes, raças, etnias, posições políticas e ideológi-cas. As assustadoras estatísticas da violência contra a mulher no país são o retrato mais nítido destas relações desiguais.

Quanto mais conservadora for a postura política de um partido ou de uma organização da sociedade civil, mais sexistas e preconceituosos serão seus membros em relação à igualdade das mulheres e de outros grupos excluídos. Entretanto, não é necessariamente verdade que pos-turas políticas progressistas sejam, por natureza, não sexistas. E aqui habita um dos mais graves problemas relacionados às dificuldades que as mulheres enfrentam na política. Foi neste cenário que se desenvol-veu a trajetória política da presidenta Dilma Rousseff.

Quando Lula indicou Dilma como candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) para as eleições à presidência da república, as pri-meiras reações foram de que Lula, naquele momento com alta popula-ridade, elegeria qualquer um, uma mulher como Dilma, ou um poste. Como havia sido secretária do município em Porto Alegre, secretária de estado no Rio Grande do Sul, ministra de Minas e Energia e da Casa Civil no governo Lula, não era possível desqualificá-la completamente, então se passou a considerá-la uma técnica, não uma política. Vale ob-servar que esta qualificação não estava diretamente relacionada ao fato de Dilma nunca ter concorrido a cargos eletivos, mas a sua propalada falta de tato para conversar e atender à classe política e aos interesses privados que chegavam até ela na condição de ministra.

Ora, não é preciso uma observação muito atenta para entender que as pessoas podem ser tecnicamente competentes ou não, mas não exis-te possibilidade de cargos políticos, da importância dos assumidos por Dilma, serem preenchidos por pessoas não envolvidas na política. O famoso técnico competente apartidário sabemos que não existe, que foi uma invenção dos governos militares do Cone Sul, retomado re-centemente pelo fundamentalismo neoliberal. Também sabemos que

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as atividades e os comprometimentos políticos vão muito além de car-gos eletivos e, quando se trata de mulheres, que encontram todo o tipo de dificuldade para se elegerem, a militância fora da disputa eleitoral é muito recorrente. Possivelmente a crítica a Dilma, por parte de alguns homens que faziam política em Brasília, era devida a um alargado con-ceito do que é ser político, que inclui troca de favores e favorecimentos entre agentes públicos e entre agentes públicos e privados.

A trajetória de Dilma Rousseff é um contraponto a esta forma de fa-zer política, como revela uma breve recorrida por sua biografia. Ela co-meça sua militância na escola secundária (atual ensino médio) com 16 anos. Isso não é excepcional, estudos sobre carreiras políticas no Brasil apontam, tanto para mulheres como para homens, a política estudan-til como costumeira porta de entrada. Nascida em 1947, seu envolvi-mento com a política ocorreu um ano antes do golpe militar que desde a primeira hora reprimiu, censurou, prendeu e torturou. A vida política legal dos jovens foi, pois, violentamente interrompida, e fez com que muitos deles continuassem militando em organizações clandestinas. Dilma Rousseff militou na Comando de Libertação Nacional (Colina) e posteriormente na Vanguarda Armada Revolucionária de Palmares (VAR – Palmares). Há uma discussão conservadora e moralista sobre o fato de ela ter ou não pegado em armas. Entretanto, a questão que im-porta, do ponto de vista da análise histórica e da análise de trajetória, é entender que haviam sido fechadas todas as portas para a vida política democrática no país e que a luta armada foi uma alternativa, inclusive de altíssimo risco de vida de seus militantes, que a resistência encontrou para lutar contra a ditadura militar. Os muitos grupos que lutavam na clandestinidade não foram tão fracos e desorganizados como um certo senso comum tenta impor, foram sim desbaratados por uma repressão violenta e cruel, que prendeu, torturou e matou. Consequência disto, Dilma foi presa e torturada em 1970, tendo ficado na cadeia até 1973.

Quando saiu da prisão, era uma jovem mulher com uma formação política sólida. Sobre este tempo, o depoimento mais contundente é o

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da própria Dilma, décadas depois, em 2008, como chefe da Casa Civil à Comissão de Infraestrutura do Senado, o qual dá a dimensão de seu comprometimento político. O diálogo ocorreu entre o inquisidor, se-nador Agripino Maia, e a então ministra. Enquanto Dilma, como vi-mos, entrou na política ainda adolescente e logo foi obrigada a ir para a clandestinidade devido ao golpe militar, Agripino Maia entrou na política como prefeito de Natal, nomeado por seu primo, o governador Lavoisier Maia Sobrinho, do Rio Grande do Norte, também nomeado pelo general presidente Ernesto Geisel.

Agripino, pondo em dúvida a veracidade das informações que a mi-nistra estava dando à Comissão, acusa: “que lembranças a senhora guar-dou dos tempos da cadeia? Vª. Exª. responde: ‘A prisão é uma coisa onde a gente se encontra com os limites da gente... nos depoimentos a gente mentia feito doido, mentia muito, muito mesmo’, o que me preocupa...”

A resposta de Dilma é uma das peças mais importantes do discurso político brasileiro sobre o que aconteceu na ditadura militar:

Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode partir de quem não dá valor à democracia brasileira. Eu tinha 19 anos, fiquei 3 anos na cadeia e fui barbaramente torturada, Senador. Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida de seus iguais, entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, Senador, porque mentir na tortura não é fácil. Agora, na democracia, se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira. Isto faz parte, Senador, e integra mi-nha biografia, da qual eu tenho um imenso orgulho. Eu não estou falando de heróis, feliz do povo que não tem heróis desde tipo, Senador, porque aguentar a tortura é algo dificílimo, porque todos nós somos muito frágeis, somos humanos, nós temos dor. E a sedução, a tentação de falar o que ocorre, dizer a verdade, Senador, é muito grande. A dor é insuportável, o senhor não imagina quanto é insuportável. Eu me orgulho imensamente de ter mentido, porque eu salvei companheiros da tortura, da morte. Não tinha nenhum compromisso com a ditadura, eu estava em um cam-po, eles estavam em outro. (DILMA..., 2010)

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A pergunta que se impõe frente ao diálogo entre estas duas pessoas é: quem é político? O senador ou Dilma Rousseff? Um homem premia-do pela ditadura, que só pulou fora de suas fileiras quanpremia-do se deu conta de que o barco estava afundando, ou Dilma, uma mulher que se for-jou na luta contra a opressão dentro e fora da cadeia? É Maia, o homem branco, rico e oligarca, o político? E Dilma o poste? A técnica perdida em Brasília? O que significa, para a elite política brasileira, para a mí-dia e até para alguns setores da esquerda, ser político? É ter lábia, é ser matreiro, é ser homem? Que qualidades teria Agripino Maia para ser considerado político e quais os defeitos de Dilma para ser qualificada como poste e técnica?

Entre sua prisão pelas forças da ditadura até seu depoimento no Senado, arguida por um dos que se tornou figura política graças às be-nesses de generais, Dilma teve uma vida política ativa. Foi uma das fun-dadoras do PDT, junto com Leonel Brizola. Sua saída do partido foi uma decisão de quem pensava politicamente o futuro da esquerda no país. Secretária de Estado de Minas e Energia do governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, licenciou-se do PDT em 2000 para apoiar Tarso Genro, do PT, que disputava em segundo turno a prefeitura de Porto Alegre com Alceu Collares.

Em 2001, Dilma se filiou ao PT e, no mesmo ano, participou da cam-panha eleitoral de Lula para a presidência da república, quando teve um papel importante nas proposições de políticas para Minas e Energia, tornando-se, após as eleições, ministra da pasta. Em 2005, no segundo governo de Lula, assumiu a chefia da Casa Civil, sendo a primeira mu-lher a ocupar o cargo. Porque teria Dilma ocupado estes cargos durante o governo do presidente Lula, um governo com uma preocupação clara no crescimento econômico, na infraestrutura, nas políticas sociais, mas também eminentemente político, no sentido de ter de administrar uma coalizão de partidos com interesses distintos e, inclusive, perspectivas ideológicas muito distantes entre si? Dilma possuía uma capacidade técnica indiscutível e necessária para o governo, mas tinha posições

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políticas muito claras sobre economia, que se contrapunham frontal-mente ao neoliberalismo. Singer assim qualifica o que chama de Plano Dilma:

A desobstrução de caminhos para a retomada industrial, os esforços pela industria-lização integral do país, a crença no papel indispensável do Estado no planejamen-to, a descrença nas forças espontâneas do mercado, a decisão por parte do Estado dos setores que devem se expandir e o papel estatal no financiamento destes esti-veram todos presentes no que se poderia também denominar de “plano Dilma” (SINGER, 2015, p. 45)

Portanto, a presença de Dilma no governo Lula e, posteriormente, sua atuação como presidenta da República têm uma clara perspecti-va política. Não é admissível pensar sua trajetória no governo federal como a de uma técnica. Dilma, por sua própria história política, tinha uma perspectiva mais política e esquerdizante que o próprio Lula.

Dilma nunca esteve de favor em nenhum dos cargos que assumiu, nunca foi agraciada por ser filha, irmã, sobrinha, ou em troca de favores. Enfrentou resistências de todas as ordens: a primeira e a mais radical, quando lutou contra a ditadura; depois, quando chegou ao PT vinda do PDT. Era uma mulher com tradição trabalhista sem pertencer a nenhum dos grupos que formaram historicamente o partido. Dilma nunca teve um grupo para chamar de seu dentro do PT, nenhum que a defendesse, que a protegesse. O PT só abraçou Dilma quando se deu conta, através dela, de que as forças conservadoras do país pretendiam varrer o partido das disputas eleitorais.

Apesar de toda a sua longa vida política, de sua integridade na luta pela democracia, Dilma novamente teve de enfrentar o sistema quan-do decidiram que ela seria deposta quan-do poder através de um estratagema legal que uniu quatro forças: as políticas, lideradas pelo então vice-pre-sidente, que estavam mais profundamente ameaçadas pelas inves-tigações da polícia federal; os representantes do capital, tristemente

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sintetizados na figura de um pato de plástico, o que deu a dimensão da pobreza política e intelectual desta classe; uma classe média, igualmen-te inculta e confusa politicamenigualmen-te, mas muito conscienigualmen-te de que a con-tinuação de um governo de esquerda poderia lhe ameaçar privilégios; o judiciário, extrapolando suas funções e se tornando um poder polí-tico, que se estende deste a primeira instância até o Supremo Tribunal Federal (STF).

Durante a campanha a favor do impeachment, levada a efeito nas redes sociais por grupos conservadores, e nas manifestações de rua lideradas por uma classe média urbana elitizada, a questão de gênero aflorou da forma mais primária possível. Deixou de ser um preconcei-to contra mulheres na política para ser simplesmente um preconceipreconcei-to contra a mulher. A sociedade brasileira mostrou todo seu primarismo, toda a sua ignorância, cultivada nos bairros e nos colégios de elite das principais cidades do país. As ofensas sexuais, em adesivos e nas redes sociais, bem como os palavrões dirigidos a Dilma Rousseff, melhor do que qualquer pesquisa de opinião, são parâmetros do nível de educação cívica e de preconceito contra a mulher no país.

A crise que resultou no impeachment aflorou a grande contradição da vida de Dilma na política: por um lado, uma mulher que, desde os 16 anos, estava profundamente envolvida em política; por outro, adversá-rios e companheiros acusando-a de não ser política, de não ter sabido conversar com os deputados, de não ter sabido negociar. Somou-se a isto o grito preconceituoso das ruas. Em que os que apontaram o dedo para Dilma estavam pensando, quando a acusaram de não ser política? Hoje, quando o presidente da República e seus ministros se dedicam quase integralmente a articular manobras para se salvarem das investigações da Lava Jato, a pergunta que não quer calar é: isto é ser político? Quem era visto como verdadeiro político nas rodas de homens brancos, ricos, conservadores e mesmo não tão ricos, nem tão conservadores? Dilma ou Sergio Cabral? Dilma ou Eduardo Cunha? Dilma ou Romero Jucá? Dilma ou Renan Calheiros? Dilma ou José Dirceu? Dilma ou Eunício

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de Oliveira? Dilma ou Moreira Franco? Dilma ou Delcídio do Amaral? Dilma ou Antonio Palocci?

O último ato de Dilma como presidenta foi a arguição feita pelos Senadores, por 14 horas seguidas, antes da votação do impeachment. Todos que estavam envolvidos naquele evento, todas as cidadãs e to-dos os cidadãos medianamente informato-dos sabiam que aquela sessão de arguição era uma farsa e havia uma única pessoa que não estava fin-gindo: Dilma Rousseff. Sem se alterar, respondeu a todos os questiona-mentos, respondeu para a história, não para os protagonistas da farsa. Os senadores da República, sob a presidência de Renan Calheiros, de posse de um parecer emitido pelo senador tucano Antônio Anastasia, em sessão dirigida pelo diminuído ministro presidente do STF, sabiam que não havia crime, mas que Dilma deveria ser cassada, seu mandato tinha de ser interrompido, para que o fundamentalismo neoliberal fos-se implantado.

Era fácil derrubar Dilma, era uma mulher, não um cacique do PT. Depois de tudo que aconteceu, ainda se ouvia, entre detratores e mes-mo entre militantes da esquerda, que ela era dura, ela não tinha jogo de cintura, ela não negociava, ela não cedia às tramas necessárias, ela não era política. Ela era apenas uma mulher. Mulheres não sabem fa-zer política, elas podem militar desde 16 anos, ser brutalmente tortu-radas, ocupar os principais cargos da República, mas serão ditas como não políticas, serão no máximo técnicas competentes, que caem porque não sabem compactuar. Definitivamente, a política está precisando de muitas mulheres como Dilma Rousseff, uma mulher dura em meio a homens meigos e dobráveis, nem sempre aos mais nobres interesses da República.

N o t a s

1 Ainda como chefe da Casa Civil e já na condição de candidata à presidência da república Dilma falou de sua condição de mulher: “Em condições de poder, a mulher deixa de ser vista como objeto frágil e isso é imperdoável”, afirmou. “Aí começa a história da mulher dura. É verdade: eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos”. (NOSSA, 2009)

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2 Este dado considera apenas as deputadas realmente eleitas nos pleitos, não as suplentes que assumiram mandatos.

R e f e r ê n c i a s

BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 1. out. 1997. Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index. jsp?jornal=1&pagina=1&data=01/10/1997>. Acesso em: 23 mar. 2017. DILMA Rousseff e a resposta que demoliu o senador Agripino Maia (DEM-RN). [S.l.]: drrosinha, 2010. 1 vídeo online (4 min), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Tiyezo1fLRs>. Acesso em: 20 mar. 2017.

DILMA Rousseff no Jô Soares: entrevista completa. [S.l.]: j p souza, 2015. 1 vídeo online. (71 min), son., color. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=V8m2ZL-MOP4&feature=youtu.be>. Acesso em: 29 mar. 2017.

INTERNATIONAL ORGANIZATION OF PARLIAMENTS – IPU. Women in national parliaments. New York, 2017. Disponível em: <http:// www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Acesso em: 29 mar. 2017.

MOURA, R. M.; PIRES, B.; BULLA, B. ‘Não dá para prever duração de julgamento da chapa’, dizem ministros. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 2017. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/ geral,nao-da-para-prever-duracao-de-julgamento-da-chapa-dizem-ministros,70001718936>. Acesso em: 29 mar. 2017.

NOSSA, L. ‘Sou uma mulher dura cercada de homens meigos’, diz Dilma. Estadão, São Paulo, 10 mar. 2009. Disponível em: <http://politica. estadao.com.br/noticias/geral,sou-uma-mulher-dura-cercada-de-homens-meigos-diz-dilma,336414>. Acesso em: 29 mar. 217. SINGER, A. V. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio

desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). Novos Estudos, São Paulo, n. 102, p. 43-71, jul. 2015.

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Incongruências e dubiedades,

deslegitimação e legitimação:

o golpe contra Dilma Roussef f

C l a r a A r a ú j o *

I n t r o d u ç ã o

O golpe parlamentar de 2016, consubstancia-do no impeachment da presidenta Dilma, levará algum tempo até que seus efeitos sejam mais bem dimensionados. E isto é válido também para aná-lises que tentam compreendê-lo a partir de pers-pectivas de gênero. Há múltiplas vertentes a serem observadas quando se pergunta como e com qual intensidade o gênero perpassou e interferiu no pro-cesso que culminou no impeachment da presidenta. De antemão, pode-se dizer que a história do golpe

* Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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será contada, também, como a história do forte conservadorismo pre-sente na sociedade brasileira, relacionado com dimensões de gênero. Independentemente das posições políticas professadas, do apoio ou de críticas à presidenta, ao seu partido ou ainda à sua coalizão gover-namental, o fato é que se torna difícil para pessoas com um mínimo de compromisso com a igualdade de gênero, negar a presença dessa face, que antecedeu em muito o impeachment em si, vale registrar.

Argumentos de que os registros da presidenta sobre os preconceitos e a discriminação que sofreu se constituem em mera figura de retórica

não se sustenta à luz de um levantamento geral das notícias na mídia.1

Desnecessário mencionar aqui aspectos mais brandos de coberturas de mídia, como desfile de estereótipos de gênero nas observações sobre roupas, cabelos, modos e estilos de vestimentas, entre outros. Os con-teúdos midiáticos em reportagens e editoriais são registros públicos. Por ora basta destacar a capa e a matéria da revista Isto É de nº 2417, de 06 de abril de 2016, talvez o exemplar icônico dessas abordagens.

Entre os pontos que aparecem como recorrentes, e não só na grande mídia, mas também nessa arena hobbesiana que se tornou a internet, está o da desqualificação como deslegitimação. Embora a intensidade e o peso efetivo que tal aspecto adquiriu só possam ser melhor analisados com mais tempo, a indicação aqui cumpre o propósito da edição desta coletânea: explorar os indícios, levantar as hipóteses e pensar o proces-so. Nessa perspectiva, o ensaio reflete sobre alguns exemplos de como

o gênero teria operado como variável importante na deslegitimação2

de Dilma Rousseff para legitimar o golpe parlamentar. Tal caminho de deslegitimação, porém, precedeu o processo da crise e do impeachment e ocorreu mesclado com outras dimensões da crise política em si.

A tentativa de deslegitimação como forma simbólica parece ter acompanhado a trajetória de Dilma desde o momento em que seu nome começou a ser veiculado como possível candidata à presidência; fez-se prefez-sente no processo direto do golpe (BISCAIA, 2016; BOITEUX, 2016); e pôde ser notada mais de um ano após o golpe (maio de 2017).

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Tratou-se de processo ambíguo, vale sugerir. De um lado tais investi-das, aparentemente, não surtiram muitos efeitos, ao menos eleitorais, inclusive após a exacerbação dos ataques à presidenta, a partir de junho de 2013.

Na eleição de 2014 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi incisivo no cumprimento da Lei de Cotas e no preenchimento das mesmas, elevando, finalmente, para 30% a porcentagem de candidatas. O tema “mulheres no poder” estava mais presente na agenda política. Dilma ganhou as eleições e sua aprovação após junho de 2013 cresceu um

pou-co mais entre as mulheres.3 Em outras palavras, a presença de uma

mu-lher no cargo mais elevado da República parecia indicar o que a litera-tura denomina de “efeito da representação simbólica” durante parte do tempo em que Dilma esteve na presidência: mulheres no poder tendem a estimular outras mulheres a pleitear ou a considerarem “normal” e possível disputar cargos. De outro lado, o trabalho sistemático, direto e indireto de deslegitimação foi de tal monta que parece ter dissolvido o que poderia existir de simpatia por partes desses setores da popula-ção em relapopula-ção à experiência e presença de uma mulher na presidência. O simbolismo inicialmente positivo (se é que de fato houve) se dissol-veu e, parece, teve seu sinal invertido: de positivo para negativo.

É sob este prisma que o texto faz uma reflexão inicial: parte de al-gumas manifestações explícitas e de outras nem tanto enfáticas, para pensar aspectos da desqualificação política com viés de gênero, que te-riam operado antes e durante o processo de impeachment. A prática,

como sabemos, não é nova e tampouco peculiar à figura da presidenta.4

De fato, o novo está no processo, na raridade de mulheres ocuparem a presidência; de ser atinente à primeira mulher a ocupar a presidência no Brasil; e, mais raro ainda, dessa presidência sofrer um impeachment.

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Vejamos, pois, alguns episódios ou momentos nos quais o gênero pare-ce ter operado como variável interveniente no propare-cesso.

S o b r e p r e m i s s a s e c o n t e x t o s d a d e m o c r a c i a , d o p r e s i d e n c i a l i s m o e d a l i d e r a n ç a n o B r a s i l

Como se sabe, nas democracias representativas a formação do Executivo pode ocorrer via mecanismos plebiscitários diretos – o voto do cidadão para presidente – ou de modo indireto, via parlamento, mas este é legitimado anteriormente através do voto do cidadão para eleger os parlamentares. No parlamentarismo a sobrevivência e a possibilida-de possibilida-de governo possibilida-depenpossibilida-dem do apoio direto do Legislativo na formação do Executivo, ao passo que no presidencialismo o foco da legitimidade está diretamente no eleitor. A negociação e apoio do congresso continuam a fazer parte desse processo e o governante tem autonomia para nomear ministros e cargos estratégicos, mas o poder do presidente passa pelo voto direto do cidadão na eleição. Diferentemente do sistema parla-mentarista, no presidencialismo o dirigente do Executivo não sai do poder caso não consiga formar um governo. Sua legitimidade está asso-ciada ao voto, e, claro, também ao compartilhamento de poder com par-tidos, via distribuição de cargos, número de deputados que o apoiam, concessão de emendas, entre outros aspectos. (BATISTA, 2016)

No Brasil vigora o que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”, um formato peculiar ao país: a presidência necessita nego-ciar e compartilhar os cargos entre partidos de uma coligação que ele-geram parlamentares e ter base parlamentar para seguir governando, já que a aprovação de medidas no congresso é fundamental. Esse presiden-cialismo e suas “distorções” há muito são objeto de críticas de diversos setores: os interesses partidários teriam se tornado apequenados; há ex-cessivo número de partidos com os quais negociar e muitos partidos “de aluguel”; e há peso excessivo em negociações individuais, prevalecendo os interesses particulares de parlamentares, uma prática distorcida do

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exercício da representação. Haveria, assim, uma complexidade da enge-nharia eleitoral. O indivíduo-candidato e depois indivíduo-parlamentar tenderiam a ocupar espaço indevido e em excesso, em detrimento dos partidos e dos interesses coletivos. Neste ambiente, os “atributos” do lí-der como negociador tenlí-deriam a ser bem importantes. Haveria maior necessidade de liderança e carisma não só frente ao eleitorado, com vistas à eleição, mas também na relação com os atores dos legislativos e nas negociações constantes para a obtenção de votos parlamentares, através de liberação de emendas e ocupação de cargos.

Carisma e negociação são parte dos processos políticos, como

des-tacava Max Weber.5 Segundo ele, formas de legitimação do poder e da

dominação seriam sempre necessárias. A dominação legítima passaria, também, pelo carisma como parte da construção da liderança. Por sua vez, o carisma como a capacidade de negociação se torna mais relevante nas democracias representativas, notadamente nos regimes presiden-cialistas. Com efeito, carisma, habilidade, compromisso, experiência, competência, entre outros aspectos, compõem esse cardápio legitima-dor das disputas político-eleitorais e da condução político-administra-tiva governamental. Atributos e carisma, por sua vez, fazem parte do capital político de quem disputa cargos, em particular o cargo de presi-dente da República. Resta-nos, porém, refletir se o peso do carisma in-dividual seria um indicador de “qualidade da democracia” e de firmeza de suas instituições ou, ao contrário, de regimes que ainda dependem mais de pessoas individuais do que de suas instituições. E ainda, em um ou outro caso, refletir sobre quais seriam os atributos de fato relevantes em cada situação... Mas este é assunto para outro texto.

O primeiro dos pontos a destacar neste ensaio é, então, que, em se tratando de mulheres que ocupam ou tentam ocupar esse tipo de espa-ço político de poder – cargos elevados no Executivo –, o que irá consti-tuir carisma pesam mais em comparação com os homens; os atributos aparentemente neutros para o exercício da liderança, como “competên-cia” e “experiên“competên-cia”, tenderão a importar sobremaneira; não são de fato

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expressões neutras; e tendem a ser submetidos ao crivo público mais intenso, em comparação com os homens.

No caso em lume – Dilma Rousseff como figura política desde a campanha até o impeachment – ao que parece, não foi suficiente que o carisma como “qualidade” estivesse ausente na pessoa da presiden-ta. Tampouco foi necessário afirmá-lo como atributo e referência para marcar o que é ser líder e exercer uma presidência. Somaram-se vários aspectos. E alguns refletiram questões inegáveis e específicas ao con-texto do país. Por exemplo, a referência temporalmente muito próxima do carisma incomum do presidente Lula, o papel desse “atributo” no presidencialismo, bem como o contexto da cultura política brasileira, no qual a figura do líder ainda revela o peso das pessoas vis-à-vis o das instituições. O problema, pode-se sugerir, é que em Dilma, a ausência de carisma constituiu mais do que uma referência e um contraponto negativos marcados e lembrados. Tornou-se a falta constante que aferia todo tipo discurso, para (des)qualificar qualquer que fosse a sua mensa-gem e o conteúdo de sua fala. A presidente Dilma não foi só destacada como não-carismática, mas como aquela cujos discursos ultrapassavam o vazio do apelo e do conteúdo e eram sempre objeto de chacota e da

fal-ta dessa “qualidade” para governar.6 Não que isso não tivesse ocorrido

com Lula, por sua linguagem, sua escolaridade, entre outros aspectos, mas em Dilma foi também a sua associação com “mulher burra” que fala “besteira” e não sabe o que diz.

Ao lado do carisma, o segundo exemplo de desqualificação a des-tacar neste tópico é o das dinâmicas de negociações entre Executivo e Legislativo; de como a presidenta e seus apoiadores conduziram-nas, se de forma hábil ou inábil, mais ou menos apropriadas politicamente. Como é sabido, dadas as várias distorções e problemas de funcionamen-to do sistema político, as formas de negociação e a cultura política brasi-leira têm como uma das suas bases importantes o “negócio” parlamen-tar individual ou o que denomino de “varejo”. Ou seja, a negociação do

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interesse particular do deputado, de pequenos grupos a partir de bases locais, ou de demandas eventualmente pouco republicanas. A nature-za problemática do “varejo” reside, entre outros aspectos, na expressão de seu antirrepublicanismo, já que, em geral, pautaria interesses muito

particulares, sem falar de práticas corruptas.7 O “varejo” tem sido

ob-jeto de questionamentos e críticas constantes de vários setores da po-pulação, incluindo atores políticos organizados, intelectuais e também parte da grande mídia. Registre-se que parte das críticas não ocorre em decorrência da natureza pouco republicana dessa prática e, nesse sen-tido, por ser condenável e anti-política. Advém da negação da própria política. Nessa linha, o “varejo” torna-se a substância da política, numa associação indiferenciada e perversa com a ação política e com a figura do representante político em geral.

Em ambas as situações o “varejo” se nos apresenta como um proble-ma, e seria, portanto, uma prática condenável. No primeiro caso, seria atitude antirrepublicana, porque o representante ou o indivíduo-de-putado se locupleta com a coisa pública, e não está preocupado com o bem-estar coletivo. Logo, atitudes para evitar esse tipo de negociação poderiam ser consideradas como virtude política. No segundo caso, a partir de uma percepção mais distorcida e simplificadora, o varejo es-taria “no sangue” e o político seria alguém por natureza envolvido com seus próprios interesses, que só entra na política para se locupletar e sua ação estaria sempre ferindo o interesse do indivíduo-cidadão, que seria prejudicado frente ao Estado e à política. Neste caso, a recusa a agir de tal maneira poderia ser vista, então, como algo positivo no mar de inte-resses escusos “dos políticos”.

À presidenta Dilma se atribuía dificuldade de lidar com o “vare-jo” das negociações nas relações Legislativo-Executivo. Costumavam ser destacadas a sua falta de habilidade e de “apetite” para conduzi-las. Seria de se esperar, então que daí pudesse advir alguma nota positiva, ou mesmo que fosse ressaltada a sua virtude de não se apequenar, de

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não se sujeitar ou praticar essa via de negociação. Mas parece que tal leitura não se fez presente no cenário. A “falta” e o “deslocamento” da presidenta desse campo das práticas políticas do varejo são os aspectos destacados quanto ao seu estilo de negociar. Isto ora parece decorrer de sua inexperiência política, ora de sua inapetência para a função, ora à sua inabilidade, ou ainda aos três aspectos juntos. A ética como elemento constantemente acionado no discurso midiático, também não contou, nesse caso. Não se registram outras leituras possíveis, como por exem-plo, a de que tal resistência poderia ser uma janela de oportunidade para estimular ou desnudar a forma viciada de negociação, abrindo caminho para outro formato de prática política.

O ápice foi o episódio do processo contra Eduardo Cunha. A “inabi-lidade” de Dilma ou dos parlamentares de seu partido ficou associada ao fato de recusarem-se a negociar com o então presidente da Câmara dos Deputados a sua absolvição, na votação para abertura de inqué-rito parlamentar que atingia o deputado. O ultimato fora dado como um xeque-mate: ou a bancada da presidenta recusa seu processo ou o deputado aceitaria pedido de impeachment contra a presidenta. Os re-sultados são sabidos. E em que pesem todas as imputações de negocia-tas, chantagens e outros aspectos da prática rotineira do então deputa-do Eduardeputa-do Cunha, nos comentários da grande mídia ou nos diversos blogs de movimentos politicamente contrários à presidenta, não foram identificados quaisquer tipos de méritos no seu ato. No arco crítico em relação à sua falta de habilidades e negociações, alinharam-se setores da direita e também setores de esquerda. A pergunta que fica então é se a mesma leitura poderia ser feita caso a presidência fosse ocupada por um homem. Talvez... Não se pode errar em política. Errando, é melhor que seja alguém “do ramo”. Mas “ser do ramo” pode significar muita coisa... De início é difícil fugir à impressão de que houve forte viés de gênero nessa ênfase desqualificadora. Viés dúbio, registre-se, pois o que fora execrado como problema se inverte e passa a ser lido como fal-ta e ausência de Dilma. Como diz Chapman (1993), qualquer que seja a

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