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O golpe e as perdas de direitos para as mulheres

No documento O Golpe na Perspectiva de Gênero (páginas 67-77)

E l e o n o r a M e n i c u c c i *

O golpe parlamentar que retirou do poder a pre- sidenta Dilma Rousseff em maio de 2016, para além de ter sido um movimento visando interromper um processo de mudanças sociais no Brasil, tem tam- bém um componente forte de discriminação de gê- nero. Dilma foi a primeira mulher eleita presidenta em um país de cultura marcadamente patriarcal.

Assumindo o governo, não apenas continuou o programa de inclusão social iniciado pelo presi- dente Lula em 2003, mas aprofundou-o em muitos de seus aspectos, principalmente em relação às po- líticas para as mulheres. Estava dada a senha para que os opositores do projeto – o grande capital, notadamente o financeiro e a mídia, na qual três

* Professora titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Foi ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo eleito de Dilma Rousseff.

famílias detêm o controle dos principais veículos de comunicação – pusessem em marcha a engrenagem que levou ao golpe.

A esse agrupamento logo se juntaram setores majoritários da classe média, incomodados com a ascensão de milhões de brasileiras e de bra- sileiros ao que se convencionou chamar de nova classe média, ou me- lhor dito, nova classe trabalhadora, que teve o poder de compra amplia- do como nunca visto na história do Brasil. Reclamavam, por exemplo, de os aeroportos terem ficados parecidos com as estações rodoviárias já que os aumentos de salários acima da inflação e uma melhor distri- buição de renda permitiu o acesso desses emergentes às viagens aéreas. Isso acabava com a distinção e privilégio que lhes parecia natural, quase um dom divino de não pertencerem à mesma classe social dos até então excluídos. Um grande número de novos consumidores passou a ter acesso também a celulares e à internet, à compra de automóveis e bens de consumo duráveis, acesso às universidades, entre tantas outras conquistas que mudaram o panorama da vida brasileira.

Partindo dessa análise é que afirmo que estamos há um ano sob a vigência de um golpe patriarcal, machista, sexista, capitalista finan- cista, fundamentalista, mediático e parlamentar que retirou da pre- sidência da República a primeira mulher eleita e reeleita com mais de 54 milhões de votos. Ou seja, nesse caldeirão de interesses, é preciso enfatizar a dificuldade em aceitar que o poder era exercido por uma mulher. E a trataram com a falta de cerimônia, civilidade e respeito que caracterizam o comportamento machista em relação às mulheres em geral, como veremos mais adiante.

Quem são os articuladores desse golpe em vigência? São homens brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram como estrutu- rantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça e classe. A foto da posse do ministério de Michel Temer chocou a população. Não havia ali uma mulher sequer, ou uma pessoa negra. Todos se caracterizam por pertencerem à mesma classe social e aos mesmos grupos de in- teresse. E uma grande parte acusada de corrupção, hoje comprovadas por uma série de denúncias.

Em menos de um ano, com uma voracidade jamais vista, desmonta- ram as políticas sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminam direi- tos civis, sociais e trabalhistas que garantem a cidadania e privatizam bens públicos. A Petrobrás, que está sendo fatiada e vendida ao capital internacional, é um bom exemplo disso. E mais, ameaça-se vender as terras brasileiras a estrangeiros, o que é vetado até hoje. Ou a privatizar o enorme aquífero existente no subsolo nacional.

São retrocessos decorrentes da implantação das políticas em que o foco não é a inclusão social e de garantia dos direitos humanos funda- mentais. Recentemente, o Ministério da Educação publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais, que vão orientar o ensino em toda a educação básica brasileira. Elas foram fruto de um minucioso trabalho de consul- tas e discussões com todos os atores interessados durante o governo da presidenta Dilma. No entanto, a nova versão do governo golpista elimi- nou do texto todas as referências à gênero e orientação sexual. Um re- trocesso enorme nos direitos humanos, que visa atender os setores mais conservadores e fundamentalistas da sociedade.

Esse conjunto de “reformas”, com ingredientes de ordem política e social, se assenta em especial nas mudanças da política econômica, com forte desregulamentação e orientação para os interesses do mercado. O foco está em arrecadar mais recursos para o pagamento dos juros exorbitantes da crescente dívida pública. Ou seja, parte do orçamento da União é voltado para os rentistas, isto é o que se chama economia rentista. O capital financeiro aplaude e agradece. Enquanto a maioria da população brasileira, pobre, é retirada do orçamento da União.

Um retrospecto da linha do tempo do golpe, que teve seu início com as manifestações de 2013, deixa claro que o capital que rege os envol- vidos aproveitou e financiou as manifestações de direita, conhecidas como coxinhas. A primeira delas se deu com a violência sexual explícita contra a presidenta na abertura da Copa do Mundo em 2014, quando torcedores ricos e da direita gritaram contra ela palavras de baixíssi- mo calão e de significado sexual – “Ei, Dilma VTNC”. Manifestação

amplificada com indisfarçável prazer pela mídia. E continuou ao longo do processo que culminou com o impedimento da presidenta.

Esse período ficou marcado por manifestações de rua que brada- vam contra a corrupção – embora até os adversários reconhecessem que Dilma não era corrupta. E, ainda, com slogans nitidamente fascistas, racistas e misóginos. Ainda provoca imensa indignação, por exemplo, a lembrança de adesivos fartamente distribuídos mostrando Dilma com as pernas abertas para serem colados nos tanques de gasolina dos veí- culos. Quando tal tipo de agressão seria cometida contra um homem? Ainda causa vergonha e revolta nas pessoas sérias, ainda que de oposi- ção ao governo Dilma, a sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o afastamento da presidenta. Nesta sessão um deputado, no momento em que votava, homenageia um dos maiores torturados de nosso país.

Foi muito mais uma sessão de horrores e deboches, quando depu- tados e deputadas se manifestaram pelo sim em nome da família, da propriedade, da pátria e da tortura. A maioria deles e delas notoriamen- te corruptos e de passado pouco recomendável. Interessante notar que nenhum apresentou argumentos que comprovassem as acusações que pesavam contra a Presidenta. Tal demonstração de baixeza e falta de de- coro político seria o suficiente para anular o resultado da sessão. O que não ocorreu, porque o golpe já estava em processo, independentemente de comprovação das acusações, pois elas interessavam muito pouco.

O protagonismo das mulheres na luta da resistência, na luta contra o golpe, teve, sem dúvida alguma, um primeiro motivo. Na eleição e na reeleição da presidenta Dilma, as mulheres brasileiras se sentiram muito representadas. Era uma mulher igual a elas, uma mulher divorciada, não era mulher laranja, era uma mulher com a retidão de vida – ética, honesta e sempre com a vida pautada na luta pela democracia e pela justiça social. Então elas pensaram: eu posso também. Nesse eixo simbólico, sentiam que o que estavam fazendo com Dilma também era feito com elas. E re- sistiram, mandaram-lhe flores, abraçavam-na quando a encontravam.

São dois fatores estruturantes desse protagonismo. O primeiro, ine- quívoco, que é do valor simbólico – “mexeu com uma, mexeu com todas”. O segundo é agora, porque na época do golpe o retrocesso era de gênero, retirar uma mulher e 11 ministras do poder. Agora, na resistência, com essa avalanche de medidas retroativas, de crueldade que o governo gol- pista está implementando, as mulheres viram que, além desse simbóli- co, há a perda de direitos concretos. As mulheres conquistaram com a Constituição Federal de 1988 o direito de aposentadoria com cinco anos a menos de idade e com cinco anos a menos de contribuição. Com essa reforma da previdência tudo vai se igualar, elas terão que trabalhar 49 anos para receber 100% da aposentadoria. E isso foi determinante para que elas estivessem na linha de frente da resistência ao golpe até hoje, independentemente de partido. Houve o carnaval do Fora Temer e mar- chas com milhares de participantes no 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a palavra de ordem, de novo, foi o “Fora Temer”. A greve geral contra as perdas de direitos, as grandes manifestações pelas “Diretas Já”, tudo isto está num crescente tomando as ruas do nosso país.

Na verdade, as mulheres experimentaram durante os governos Lula e Dilma, conquistas importantíssimas com a implementação de polí- ticas sociais, que beneficiaram e beneficiam a população mais pobre do nosso país. E quem são os pobres? A população negra e a população feminina. Foram tirados 40 milhões de pessoas da pobreza. O Bolsa Família passa a ser visto pelas mulheres como um acesso à cidadania, porque o cartão para saque do benefício estava em seu nome; a entrega de mais de 1 milhão de documentos de identidade a trabalhadoras ru- rais, até então sem qualquer registro civil; as cisternas para trazer água para as casas da região Nordeste do país, constantemente assolada pela seca. Nesse caso, a principal beneficiária é a mulher, porque tradicional- mente cabia a elas andar quilômetros para buscar água que abastecesse a casa e a família.

Em outros programas importantes, como o “Minha Casa, Minha Vida” que beneficiou milhares de famílias pobres. A titularidade é, em

muitos casos, para as mulheres, porque, em casos de separação conju- gal, quando elas ficam com a responsabilidade pelos filhos, é impor- tante garantir a moradia da família. No Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) elas responderam pela maioria das matrículas. O interessante é a mudança do perfil de frequência aos cursos. Elas optaram, em grande número, não por conhecidos cursos para as mulheres – manicure, cabeleireira, costureira – e sim pelas pro- fissões que lhes permitiriam trabalhar nas plataformas de petróleo, na direção de veículos pesados, mecânicas, eletricistas, em profissões na construção civil e no conserto de produtos da indústria branca (gela- deiras, máquinas).

A Secretaria de Políticas para as Mulheres com status de Ministério, criada no governo Lula, avançou demais no governo da Dilma, nas po- líticas de enfrentamento à violência, com programas importantíssi- mos, como o Mulher Viver sem Violência no valor de 360 milhões de reais, com seis ações para o enfrentamento à violência contra as mu- lheres: construção de 27 Casas da Mulher Brasileira, uma em cada es- tado para reunir, em um só espaço físico, todos os serviços necessários para acabar com a via sacra das mulheres que foram agredidas e estu- pradas. Inauguramos três casas (Campo Grande, Brasília e Curitiba) e deixamos em processo de construção mais seis (São Paulo, Salvador, Fortaleza, São Luiz, Boa Vista e Porto Velho).

Hoje é lamentável que as três que já existiam não estejam mais fun- cionando. A de São Paulo, que foi entregue no final de 2016, encontra-se fechada envolta pelo mato, sem nenhuma satisfação da informação so- bre o que foi feito com os recursos públicos repassados. Também foram entregues 54 ônibus para percorrerem áreas rurais levando atendimen- to às mulheres vítimas de violência; o disque 180, os barcos onde estão?

Este é um dos maiores exemplos do desmonte das políticas públi- cas para as mulheres.

Também foi sancionada a Lei do Feminicídio, Lei nº 13.104/2015, pela presidenta Dilma, que tipifica a morte de mulher por questão de gênero, como crime hediondo variando a pena de 12 a 30 anos.

Feminicídio é um crime de ódio e seu conceito foi desenvolvido na década de 1970 para reconhecer e dar visibilidade à morte violenta de mulheres resultante da discriminação, opressão, desigualdade e vio- lência sistemáticas.

Na área da Saúde, a presidenta sancionou uma portaria para uni- versalizar o atendimento às mulheres em situação de violência e de estupro, com oferta da contracepção de emergência e aborto, nos casos previstos em lei. Registre-se, ainda, a aprovação da proposta de emen- da à constituição, que incluiu as empregadas domésticas no acesso aos benefícios já concedidos às outras categorias profissionais. Sancionada pela presidenta, essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC), ficou conhecida como a PEC das Trabalhadoras Domésticas. Vale lembrar que mais de 90% de trabalhadores domésticos são mulheres. A maioria ne- gras e de baixa escolarização.

Foram avanços enormes e a maioria deles foi estancado, desestru- turado ou paralisado. Em momentos de crises, Simone de Beauvoir já disse que os cortes acontecem primeiro nas ações voltadas para a vida das mulheres. Isso porque o patriarcado é o sustentáculo do capitalis- mo, o sustentáculo das políticas neoliberais. Estamos vivendo, portan- to, muitos retrocessos e perdas de direitos. Se a reforma da Previdência Social (que regula a pensão e aposentadoria de todas as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros) for aprovada será a mais cruel e a mais trágica para toda a população, mas, sobretudo, para as mulheres. Do ponto de vista do ensino, a aprovação da reforma do ensino médio com a inclu- são na base nacional do currículo da perspectiva da Escola Sem Partido, sem as disciplinas críticas, a exemplo sociologia, filosofia e educação física, o objetivo é formar cidadãos e cidadãs adestradas. São impactos que provocam retrocessos e colocam as mulheres em lugares dos quais já saíram, que são o tanque, a cozinha e o fogão, século XX. É muito re- trocesso e muita perda de direito, isso não pode ser aceito.

Todas essas políticas exigiram um debate pesado com o Congresso Nacional, por ser uma das legislaturas mais conservadoras que já

passaram pelo congresso. Foram duríssimos os embates, sendo que o debate sobre o aborto como uma questão de saúde coletiva nunca pôde ser feito.

Esse retrocesso, no plano político, é representado, por exemplo, pelo número irrisório de ministras (apenas duas em 27 ministérios). E no desmonte de programas que garantiriam a emancipação e a igualdade de gênero. No aspecto referente à mulher na sociedade, o símbolo é a exaltação da primeira dama como o exemplo de mulher “bela, recatada e do lar”, em clara oposição à imagem da presidenta Dilma. Ainda nesse campo, o pronunciamento de Michel Temer na solenidade em homena- gem à mulher no dia 8 de março foi elucidativo, particularmente quan- do enalteceu o que vê como qualidades e responsabilidades das mulhe- res: educação das crianças e pelo bem estar da família. E culminou com a lembrança de que elas podem ter grande participação na economia, porque “ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no su- permercado do que a mulher”. (AMARAL, 2017)

Os movimentos feministas e de mulheres reagem e denunciam tal rebaixamento nas redes sociais e nas manifestações de rua. Uma emis- sora poderosa de televisão, em uma semana, teve que responder a essa reação. Puniu um ator consagrado, afastando-o das novelas por assédio sexual a uma funcionária, e eliminou um concorrente de um programa de entretenimento chamado Big Brother Brasil, por agressão à namora- da na casa onde os participantes ficam confinados.

Duas situações são emblemáticas da permanência e consolidação, porque não falar legitimação da cultura da violência e do estupro: a mi- nha condenação, por exemplo, emitida por uma juíza, a pagar a um de- terminado ator 10 mil reais por eu ter criticado a sua postura numa rede de TV, alegando que ele fazia apologia do estupro; a outra, recentemen- te contra a deputada Maria do Rosário, agredida por um humorista que divulgou via internet, gestos de violência sexual contra ela.

Também fazendo contraponto ao retrocesso, o jornal digital Brasil 247, lembrou em artigo que “um ano depois do golpe, Dilma dá palestras na Europa e nos Estados Unidos, enquanto Michel Temer mal consegue sair

do seu palácio, mas a mulher brasileira foi rebaixada”. (GOLPE..., 2017) Nesse contexto, é de se lamentar, embora não seja de se estranhar, que o Ministério da Mulher tenha sido rebaixado ao nível de uma secretaria na- cional, terceiro escalão da Secretaria Geral da presidência da República, sem autonomia e sem recursos para implementar minimamente projetos que atendam às necessidades e reivindicações das mulheres.

Do ponto de vista de avanços ou de manutenção dos direitos con- quistados, tudo isso é muito ruim. E a perspectiva é piorar. É consolidar a perda dos direitos. E acredito que se as mulheres não estiverem nas ruas com informações para reivindicar, para protestar, para mostrar o que perdemos e o que vamos perder, será muito difícil retomarem uma questão fundamental: a democracia. Porque, como militante contra a ditadura militar depois presa e torturada, sei quanto sangue a minha geração derramou para reinstaurar a democracia no nosso país.

Hoje o cenário brasileiro se apresenta como um dos mais perigosos da história do Brasil: a judicialização da política, a crescente crimina- lização dos movimentos sociais e dos partidos do campo de centro es- querda, a explicitação total do grupo que liderou o golpe que hoje está no executivo, no consórcio dos três grandes grupos da mídia, no judi- ciário, no tucanato e grandes empresários.

R e f e r ê n c i a s

AMARAL, Luciana. “Temer diz que só mulher é capaz de iniciar

‘desastres’ de de preço no mercado”. G1 Online, 08 mar. 2017. Dispo´nivel em: < https://g1.globo.com/politica/ noticia/mulher-ainda-e- tratada- como-figura-de- segundo-grau-no-brasil-diz- temer.ghtml>

GOLPE misógino rebaixou a mulher brasileira. Brasil 247, [S.l.], 10 abr. 2017. Disponível em: <https://www.brasil247.com/pt/247/ brasil/289739/Golpe-mis%C3%B3gino-rebaixou-a-mulher-brasileira. htm>. Acesso em: 19 nov. 2017.

No documento O Golpe na Perspectiva de Gênero (páginas 67-77)