A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA: dinâmicas educacionais na aldeia Escalvado.
Texto
(2) MÔNICA RIBEIRO MORAES DE ALMEIDA . A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA: dinâmicas educacionais na aldeia Escalvado. . Dissertação apresentada ao Programa de Pós graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais . Orientadora: Profª Drª Elizabeth Maria Beserra Coelho. . São Luís 2009.
(3) Almeida, Mônica Ribeiro Moraes de A construção do ser canela: dinâmicas educacionais na aldeia Escalvado/ Mônica Ribeiro Moraes de Almeida. − São Luís, 2009. 109f. Impresso por computador (fotocópia) Orientadora: Elizabeth Mª B. Coelho. Dissertação (Mestrado)‐ Univeridade Federal do Maranhão, Programa de Pós‐graduação em Ciências Sociais, 2009. 1. Educação escolar indígena 2. Rituais de iniciação 3. Mito de Awkhê 4. Canela‐ Colonialismo I. Título. . CDU: 37.018.2:572.95.
(4) Dedico esta dissertação a duas forças que me acompanham e me guiam: primeiramente a Deus, em que procurei refúgio nos momentos de aflição. E ao meu avô José Cantanhêde, in memoriam, anjo de luz que sempre acreditou em mim e vibrou com todas as minhas conquistas..
(5) AGRADECIMENTOS . Muitas pessoas contribuíram para formulação deste trabalho, tanto na dimensão pessoal quanto na intelectual. Em primeiro lugar, a minha orientadora Drª Elizabeth Maria Beserra Coelho (Beta), pessoa que me inseriu no mundo da pesquisa científica e me entusiasmou a conhecer o universo Canela, agradecimento especial não só pelas valiosas contribuições a este trabalho, mas por ter estado comigo desde o início da minha trajetória acadêmica, sempre pronta a me ajudar. Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Maranhão (FAPEMA), por ter proporcionado condições materiais para a realização do mestrado. Aos meus amigos do grupo de pesquisa “Estado Multicultural e Políticas Públicas”: Caroline Oliveira, Ernesto Basílio, Antônio Santana, João Marcelo Macena, Daniela Nunes, Jonaton Silva Jr, Katiane Cruz, Rodolpho Rodrigues Sá, Bruno Ferreira, Josinelma Rolandes (Nelma, amiga de campo), Rose Panet, Carlos Almeida Filho, que enriqueceram a minha formação com valiosas reflexões, com os diálogos travados e com as trocas de experiências. Destaco Rose e Nelma, agradecendoas também pela colaboração cotidiana. E um agradecimento carinhoso a professora Beta, pela dedicação e amor com que conduz (coordena) o grupo de pesquisa. Aos professores Horácio Antunes e Carlos Benedito, membros da banca de qualificação, que contribuíram com importantes sugestões e críticas a este trabalho. Agradeço aos funcionários do Núcleo de Apoio Local Kanela, especialmente a Raimundo Martins Franco, pela confiança e por facilitar o meu acesso a Terra Canela. No campo agradeço: À minha família Canela por ter me aceitado como um membro e por todo carinho e atenção com que me trataram. Aos professores (nãoindígenas), que me acolheram em sua casa. Em especial a Profª Socorro Feitosa (Socorrinha), pelo cuidado e preocupação de mãe que teve comigo fazendome sentir em casa; e a seu filhinho Gabriel Feitosa pelos momentos lúdicos e de ternura proporcionados. A Diretora Socorro Castro e ao Profº Edjane Silva, pelas conversas esclarecedoras e por se mostrarem sempre dispostos a dar informações. A Profª Ivaldeth Silva pelas conversas descontraídas e risadas proporcionadas. Aos professores indígenas por se mostrarem sempre abertos ao diálogo. E a todos os Canelas, que me receberam de braços abertos em suas casas. Agradeço, de modo muito especial, a minha família, especialmente a minha mãe, Clery Ribeiro e minha avó, Maria José Ribeiro, duas mulheres que são para mim exemplos de.
(6) força e determinação, que com palavras de carinho me trouxeram conforto na hora certa. Ao meu avô José Cantanhêde, exemplo de honestidade e fé. E aos meus irmãos: Camilla, Tomás e Pedro, que com amor e carinho ajudaramme a completar esta etapa da minha vida. Ao Flávio Borba, pelo amor dedicado e pelos momentos de descontração proporcionados. Agradeço as amigas Leandra Lima e Janaina Aragão pela amizade, companheirismo e pelas horas de lazer compartilhadas. Agradeço a Deus por me guiar e iluminar meu caminho..
(7) RESUMO . Esta dissertação analisa a relação dos Ramkokamekrá/Canela com a instituição escolar. A partir da forma como se organizam e se estruturam busca perceber como se reproduzem e como se articulam para atender às novas necessidades sócioculturais e ao ritmo de vida social. Assim, apresenta as formas tradicionais de educação tomando três rituais: Khêêntúwayê, Pepyê e Pepkahàk; como importantes elementos para entender como os Canelas internalizam em seus membros a sua maneira de ser, garantindo a sua sobrevivência enquanto grupo. Utiliza o mito de Awkhê como ferramenta de análise da relação: Canelas/ Escola, como elemento essencial para compreender a relação tensa que estabelecem com a alteridade. . Palavras chave: Educação, escola, rituais de iniciação, mito de Awkhê, Canela, . colonialismo..
(8) ABSTRACT . This dissertation examines the relationship of Ramkokamekrá / Canela with the school. From the way it is organized and structured search see how they reproduce and how to articulate to meet new sociocultural needs and the pace of life. So, has the traditional forms of education taking three rituals: Khêêntúwayê, Pepyê and Pepkahàk; as important elements to understand how the Canelas internalize its members in its way of being, ensuring its survival as a group. Uses the myth of Awkhê as a tool for analyzing the relationship: Canelas / School, as essential to understand the tense relationship with establishing otherness. . Keywords: Traditional education, school, rites of initiation, Canela, colonialism..
(9) LISTA DE SIGLAS . CNPQ – Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia CF Constituição Federal FUNAI Fundação Nacional do índio IAF InterAmerican Foundation MEC Ministério da Educação PCPR Projeto de Combate a Pobreza Rural SPI Serviço de Proteção ao Índio UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro.
(10) LISTA DE IMAGENS . Foto I: vista aérea da aldeia Escalvado, 1975. (foto: William Crocker)........27 Figura 1: Formação de uma classe de idade na metade Haracateye..............36 Figura 2: Formação de uma classe de idade na metade Khoikateye............ .37 Foto II: Canto no pátio visando proteção dos jovens (foto: Rose Panet).................56 . Foto III: escola na aldeia Escalvado (Foto: Mônica Almeida, 2008)............84.
(11) LISTA DE TABELA . Tabela 1: movimento mensal Setembro.....................................................93 Tabela 2: quantitativo de alunos matriculados em Fernando Falcão..........94.
(12) SUMÁRIO. . AGRADECIMENTOS RESUMO ABSTRACT SIGLAS LISTA DE IMAGENS LISTA DE TABELAS . 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................12 1.1 A pesquisa de campo.........................................................................................21 2. O POVO CANELA........................................................................................... 25 3. A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA.......................................................... 41 3.1 Instituindo o ser Canela....................................................................................44 3.2 Escolarizando o ser Canela: novo rito de instituição.....................................66 3.3 A dinâmica da escola na aldeia........................................................................84 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................102 REFERÊNCIAS ....................................................................................................105.
(13) 1. INTRODUÇÃO . O Estado do Maranhão abriga em seu território oito povos indígenas, classificados em dois troncos lingüísticos, Macro jê e Tupi. Entre os Tupi estão os Tenetehara (Guajajara), os Awá (Guajá), os Kaapor (Urubu); e classificados no tronco Macro jê encontramse os Krikati, os Pukobiê (Gavião), os Ramkokamekrá e Apãniekra (Canela) e os Krepu’kateyê. Com exceção dos Awá; os demais estão em contato com a educação escolar, através de trajetórias e processos diversos. A introdução da escola nas aldeias coloca em confronto lógicas distintas, que se expressa em dinâmicas próprias a cada povo. No ano de 2003 iniciouse meu interesse pela educação escolar específica para povos indígenas, momento que ingressei como bolsista (CNPq) no grupo de pesquisa “Estado Multicultural e Políticas Públicas” participando em um projeto de pesquisa, sob a orientação da professora Elizabeth Maria Beserra Coelho, intitulado “O ensino fundamental nas aldeias indígenas: experiência de 5ª a 8ª no Maranhão”. Neste projeto pude mapear as diferentes experiências de escolarização destinada aos povos indígenas, desenvolvidas no Maranhão. Após o término da bolsa, continuei participando da pesquisa, quando direcionei minha investigação para uma das experiências mapeadas, a “Escola Timbira” 1 . O interesse em pesquisar mais profundamente a Escola Timbira deuse por essa constituirse uma alternativa de escolarização frente às outras experiências desenvolvidas no Maranhão. Tal escola não acontece na aldeia, mas no Centro de Ensino e Pesquisa Pinxwyj Himpeijxá , localizado no município de Carolina MA. No mestrado pretendi aproximarme mais de experiências educacionais desenvolvidas em aldeias, objetivando entrar em contado com o campo semântico produzido pelos povos indígenas a respeito da educação escolar. No momento de definição da pesquisa, estava sendo iniciada uma parceria entre o grupo de pesquisa e a Timbira Research and Education Foundation objetivando a implementação de um projeto de educação escolar junto aos Ramkokamekrá/Canela. 2 . . 1 . É uma escola pensada e executada pela Organização nãogovernamental Centro de Trabalho Indigenista, uma Ong de Antropólogos que se propõe conduzir a educação escolar destinadas a povos indígenas de forma diferente, articulandoa a outras atividades que não somente as de sala de aula. Tem como objetivo reunir os povos Timbira em uma mesma ação, tratandoos enquanto um conjunto. 2 Povo falante de língua Timbira/Jê, que vive no Maranhão, sobre o qual tratarei na segunda parte da dissertação.. 12 .
(14) Tratase de um subprojeto denominado “Educação e tradição” – articulado a um projeto maior, de desenvolvimento sustentável e educação, desenvolvido na Terra Indígena Canela pela InterAmerican FoundationIAF e a Timbira Research and . Education Foundation. O referido grupo entraria nesta parceria fornecendo instrutores para planejar e executar cursos para os professores da escola na aldeia, com conteúdos que valorizem os saberes locais. Assim, comecei a estabelecer uma relação mais estreita com os Ramkokamekrá/Canela o que me despertou o interesse por investigar mais profundamente a relação que estabelecem com a escola; além do que, o trabalho executado na aldeia facilitava o acesso a terra Canela, dando mais praticidade a realização da pesquisa. Desse modo, trato nesta dissertação do processo de escolarização, tomando como referência a experiência vivenciada pelos Ramkokamekrá /Canela, visando, sobretudo, entender qual sentido e a importância que atribuem à escola e como se da a relação entre os dois campos semânticos, o da escola e o dos povos indígenas. Começo por discutir o termo referente à educação escolar específica para índios. A categoria utilizada pelo discurso oficial é educação indígena . O discurso acadêmico oscila entre os termos educação escolar indígena, educação escolar indigenista, . educação indígena e educação para índios. A expressão Educação indígena advêm de uma modalidade de educação criada pelo MEC, inspirando, assim, as ações e os documentos formulados a partir de sua criação. Pode ser vista nos documentos oficiais Diretrizes Para a Política Nacional de Educação Indígena (1993) e o Plano Nacional de Educação (2001), este último apresentando um capítulo denominado educação indígena . Educação indigenista é uma categoria analítica explicitada por D’Angelis. Sendo a escola uma instituição nãoindígena o autor prefere a utilização do termo indigenista, justificando que em nenhum caso podese afirmar com segurança a existência de uma escola indígena: “o que temos conseguido são escolas mais ou menos, indianizadas (por vezes mais indigenizadas do que indianizadas”. Araci Lopes da Silva, por sua vez, problematiza o termo educação escolar para . índios por entender que deixa transparecer a “crença de que o índio vai/deve desaparecer na sociedade nacional, ou a crença de que ele vai/deve sobreviver” (SILVA, 1980, p.16; apud KAHN, 1994, p.137). Ou seja, para a autora, educação escolar para 13 .
(15) índios representa um modelo de educação que se constitui “de fora para dentro”, incluindo neste termo tanto a escola construída por agentes coloniais, referindose desde as escolas dos jesuítas até aquelas sob a administração do Estado, quanto às escolas pensadas por ONGs. Assim, o termo não só inclui modelos de educação com fins coloniais que inferiorizam a diferença, mas também aqueles modelos que ao contrário de inferiorizar a diferença, visam valorizála tentando atuar junto com os povos indígenas. No mesmo sentido Marina Kahn (1994, p.137) escreve que; “educação indígena é algo que deve ser conquistado e educação para índio é algo a ser evitado”, na medida em que a segunda expressão traz uma carga de colonialismo, sendo uma educação orientada por agentes externos a estes povos. O primeiro termo, educação indígena, está relacionado aos “processos tradicionais de controle e reprodução social do grupo”. Segundo a autora, todas as experiências de educação desenvolvidas para povos indígenas, sejam elas “alternativas”, “oficiais” ou “religiosas” “não conseguiram escapar de um modelo formal, escolar” (idem). Conclui considerando educação escolar . indígena o termo atualmente mais adequado para se referir a essas experiências. Porém, entendo o termo Educação escolar indígena por outro prisma, apesar de concordar com Kahn, de que seja qual for a experiência de escolarização que se tenha construído atualmente não conseguimos fugir de um modelo formal de educação. Entretanto, tal termo agrega aos índios uma instituição estrangeira como própria, retira exatamente o peso e a marca da escola formal transposta pelo Estado com seus modelos e regras. Os outros termos apresentam complicadores na medida em que “educação . escolar para índios” coloca os povos indígenas em uma posição de meros receptores de modelos civilizatórios. De outro modo, o termo educação indígena cria a impressão de que se trata de modos próprios de socialização ou de modelos próprios de controle e reprodução social. Entretanto, quando se trata de experiências escolares tais modelos, completamente autônomos, não se configuram na realidade. A tensão entre estas categorias foi observada por mim em campo o que me fez refletir sobre o universo da educação escolar destinada a povos indígenas e rever os. 14 .
(16) próprios termos do meu trabalho. Presenciei momentos 3 nos quais o encontro dos dois campos semânticos, dos pesquisadores e dos povos indígenas, expressava esta tensão: o pesquisador utilizando o termo educação escolar indigenista e os índios educação escolar indígena. O argumento dos índios era que a educação escolar não era para indigenistas e sim para índios. Nesta tensão pude rever a categoria educação escolar indigenista utilizada por mim. Assim, penso que a educação escolar nas aldeias nem representa uma educação exclusivamente indígena, nem indigenista. Tem sido introduzida pelo Estado e os povos indígenas estão passando por um processo de conhecimento e apropriação desta instituição, não tendo assumido as rédeas do processo de escolarização. Os índios, apesar de ainda não terem adquirido autonomia em relação à construção de suas experiências escolares, estão, de diferentes formas, segundo os diversos povos, participando do processo. De modo que me coloco dentro desta tensão e não vejo qual desses termos poderá ser usado sem prejuízo de significação. Assim, podemos perceber que o campo da educação escolar relacionada aos povos indígenas não representa um chão firme para se pisar, a contingência e a . ambiguidade dão a tônica a esse campo. Isso pode ser observado nas atuais políticas que, ao mesmo tempo em que reconhecem as diversidades culturais e asseguram a sua manifestação a submetem a seu julgo. O Estado brasileiro, após ter ignorado a composição diversa do Brasil e tentado por muito tempo incorporar os povos indígenas à sociedade nacional, reconhece a diversidade étnica e cultural presente em seu território. Este reconhecimento se deu através da Constituição Federal de 1988, que se apropria do discurso multicultural e adota políticas diferenciadas a estes povos. A educação escolar para povos indígenas esteve por muito tempo sendo utilizada como instrumento de integração destes povos à sociedade nacional. A partir da Constituição de 1988, um discurso de proteção às manifestações culturais de minorias é inaugurado, como podemos constatar no Art 215, da Carta Magna: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 3 . Reuniões do Conselho de Educação Escolar Indígena e seminários, que tinham a presenças de representantes indígenas e esta questão sempre era levantada.. 15 .
(17) §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. . Podemos observar que ao mesmo tempo em que garante proteção e respeito à especificidade, referese a um processo civilizatório nacional. O Art. 210 da Constituição, que trata da educação, indica esta tensão; impõe o português como língua obrigatória no ensino fundamental, ao mesmo tempo em que afirma reconhecer o direito à especificidade, assegurando aos índios o direito de, também, usar a língua materna e desenvolver processos próprios de aprendizagem: “O ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Art 210, CF/1988). . A partir da Constituição Federal de 1988, documentos foram sendo elaborados de forma a regulamentar o que está posto na lei maior. Em 1991 a União, através do Decreto nº 26, de 4 de fevereiro, transferiu a responsabilidade da educação escolar para índios da Fundação Nacional do índio (FUNAI) para o Ministério da Educação (MEC) ficando atribuída a este órgão a competência para coordenar as ações referentes à educação indigenista, em todos os níveis de modalidade. O Art 2º dispõe que estas ações serão desenvolvidas pelas Secretarias Estaduais de Educação. Em 1993 foram formuladas pelo MEC as Diretrizes Para a Política Nacional de Educação Indígena. Este documento passou a nortear as políticas que garantam o respeito à especificidade e o direito à diferença. As diretrizes estabelecem como princípios de práticas pedagógicas a interculturalidade, o uso da língua materna, o bilingüismo, processos próprios de aprendizagem e o direito à especificidade e à diferença. Em 1999 foi elaborada a resolução nº 3, pelo Conselho Nacional de Educação, que tem por objetivo:. 16 .
(18) Estabelecer, no âmbito da educação básica, a estrutura e o funcionamento das escolas indígenas, reconhecendo lhes a condição de escola com normas e ordenamentos jurídicos próprios, fixando as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngüe, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica. (Resolução CEB nº3 de1999, art 1º). . Em suma, a resolução quer fazer garantir o cumprimento do Art 231, CF/1988, e reforçar, em seu texto, o direito dos povos indígenas a uma educação específica e diferenciada, estabelecendo o funcionamento das escolas em terras indígenas, com organizações próprias. Em 2001, foi promulgado o Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172) que apresenta um capítulo que trata da “educação indígena”. Traz em seu conteúdo a preocupação de regulamentar a escola indígena, sua “inclusão no ensino oficial”; a criação da categoria “escola indígena” e a legalização dos estabelecimentos de ensino localizados no interior das terras indígenas. Referese, também, à constituição de um cadastro nacional de escolas indígenas e a ampliação, gradativa, da oferta de ensino de 5ª a 8ª séries a povos indígenas: . Quer na própria escola indígena, quer integrando os alunos em classes comuns nas escolas próximas, ao mesmo tempo em que lhes ofereça o atendimento adicional necessário para sua adaptação, a fim de garantir o acesso ao ensino fundamental pleno. (Lei nº 10.172 de 9 de Janeiro de 2001) . Assim, posso perceber que apesar dos dispositivos constitucionais introduzirem no campo da educação destinada a povos indígenas um discurso de respeito à especificidade tornamse ambíguos, na medida em que alternam o reconhecimento de processos pedagógicos indígenas com a imposição de modelos préestabelecidos e legitimados pela sociedade nacional. A Constituição e as legislações dela decorrentes deixam transparecer muitos paradoxos, dentre os quais se encontra a imposição do uso da Língua portuguesa na 17 .
(19) escola. Esta determinação cria uma tensão ao impor a língua portuguesa em detrimento da língua materna e traz consigo muitos significados. O português, a língua do colonizador, colocase como um meio de comunicação ampliado, que poderá viabilizar a compreensão dos documentos oficiais, dos assuntos políticos e científicos afirmando se como a Língua legítima . Segundo Bourdieu (1996, p.9192): . A autoridade de língua legítima reside nas condições sociais de produção e de reprodução da distribuição entre as classes do conhecimento e do reconhecimento da língua legítima e não no conjunto das variações prosódicas e articulatórias definidoras da pronuncia refinada como sugere o racismo classista, e muito menos na complexidade da sintaxe e da riqueza do vocabulário, quer dizer, nas propriedades intrínsecas do próprio discurso. (1996, p.9192) . Um ponto que deve ser destacado, ainda, é a regulamentação da “escola indígena” pelo Plano Nacional de Educação. Este plano propõe a padronização da escola para índios, desconsiderando a diversidade cultural existente entre os povos indígenas. A transferência da gestão das políticas de “educação indígena”, da FUNAI para o MEC, representa outro paradoxo dentro do discurso de respeito à especificidade, pois retira “educação indígena” da gestão de um órgão específico aos povos indígenas, inserindoa no Sistema Nacional de Ensino. O Estado transfere o modelo hegemônico de educação para os povos indígenas, legitimandoo através de um discurso da sociedade liberal que pretende eleger necessidades básicas do ser humano. Ao colocar a escola como um direito de todos, indiscriminadamente, desconsidera as estratégias educativas próprias destes povos. A escola é apresentada como um instrumento de emancipação, na medida em que teria um papel fundamental no processo de operacionalização dos códigos ocidentais – a língua, a cultura e a história, proporcionandolhes ferramentas para que possam lidar com o mundo exterior, utilizando instrumentos legítimos da sociedade hegemônica, na defesa de direitos e garantia da sua sobrevivência.. 18 .
(20) Esta relação do Estado com os povos indígenas pode ser percebida na correlação que Bhabha (2005) estabelece entre fetiche e estereótipo. A relação dos dois produz “uma ‘identidade’ baseada tanto na dominação e no prazer, quanto na ansiedade e na defesa, pois é uma forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da diferença e recusa da mesma” (p.116). Segundo Bhabha, estes conflitos e contradições têm uma significação fundamental para o discurso colonial. O conceito de fetiche, trabalhado por Bhabha (2005), é formulado num ponto de vista psicanalítico. Esse é uma espécie de fantasia que afirma uma idéia de totalidade (em relação à identidade); funciona como uma normalização da diferença, da ausência, criando um estereótipo que, segundo ele, seria uma forma limitada de alteridade, no intuito de negar a multiplicidade e assegurar a pureza cultural. O aparato de poder e o discurso colonial são elementos que se apóiam no reconhecimento e no repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. Têm como estratégia a criação de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos por meio dos quais se exerce vigilância e legitima suas estratégias, estimulando uma forma complexa de prazer e desprazer. O discurso colonial objetiva apresentar o colonizado, baseado em argumentos raciais, como uma população de tipo degenerado, justificando desse modo a conquista e seus sistemas de administração e instrução (Bhabha, 2005). Bhabha vai além, colocando que apesar do jogo de poder no interior do discurso colonial e das posições deslizantes de seus sujeitos (por exemplo, de classe, gênero, ideologias, formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização), ele está se referindo a uma forma de governabilidade que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas esferas de atividades. O que Bhabha quer mostrar é como a polaridade colonizador/colonizado se constrói no plano discursivo e se legitima no plano político, através de uma relação que se estabelece assimetricamente entre o colonizador e o seu outro; conferindo ao primeiro uma superioridade ontológica, total, essencial uma vez que faz parte da própria construção dos termos da relação. Assim, essa polaridade ofusca aquilo que, supostamente, visa explicar, ou seja, as diferenças que ficam submersas neste outro genérico.. 19 .
(21) Nesse sentido, Bhabha compartilha com Quijano, quando esse formula a categoria colonialidade do poder. Na opinião deste autor, a espoliação colonial é legitimada por um imaginário que estabelece diferenças entre o colonizador e o colonizado. Estabelecese uma oposição hierárquica baseada na idéia de raça e esta se converte no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial, nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Os povos conquistados foram postos numa situação natural de inferioridade e, conseqüentemente, seus traços fenotípicos, suas descobertas mentais e culturais (QUIJANO, 2005). A violência epistêmica colonial está relacionada ao processo que desqualifica os conhecimentos e formas de apreensão do mundo colonizado, roubandolhes a capacidade de enunciação e torna a fala do outro, de antemão, desqualificada. (CASTRO GÓMEZ, 2005). Esse princípio de divisão e de classificação do mundo é apresentado por Mignolo como diferença colonial. É através dela que emerge a . colonialidade do poder que se constitui, também, como um espaço no sistema mundial colonial moderno onde se articulou o ocidente como imaginário do mundo colonial moderno (2003). O desconforto que impulsionou a investigação que subsidia essa dissertação derivou da observação de que no processo de escolarização de povos indígenas as diferenças culturais, lingüísticas e sociais existentes entre indígenas e nãoindígenas vêm sendo entendidas historicamente como desigualdades, hierarquização e exclusão, configurando, sistemas de verdades que vêm ao longo do tempo produzindo relações . subalternizadoras (Mignolo, 2003). Quando me proponho pensar contatos culturais na contemporaneidade exponho me a uma série de considerações que emergem da complexidade destes encontros. Estes encontros desestabilizam uma visão maniqueísta que outrora se fazia presente quando se propunha estudar a questão de pertencimento; quem dava sustentabilidade a esta visão era a noção de identidade cultural, que antes pensada como estática, vivencia o momento de desconstrução de suas essencializações, abrindo espaço para se pensar mais em termo de fluidez. Penso nestes termos através das construções analíticas de Homi Bhabha, que em seu livro O local da cultura considera que “os termos do embate cultural são produzidos performativamente”. Assim, demonstra que a representação da diferença não é 20 .
(22) apreendida de forma descuidada “como resultado de traços culturais ou étnicos . preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição”. Para o autor, a articulação social da diferença é uma negociação complexa, que procura conferir autoridade aos híbridos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. E este direito de expressão não é fruto da persistência da tradição, mas da capacidade da tradição se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade dos que estão na . minoria . (Bhabha, 2005; p.20). Para Bhabha o hibridismo não é uma adaptação, mas uma forma dos sujeitos revisarem os seus próprios sistemas de referência, normas e valores. Fazem isso através do distanciamento que estabelecem com as suas regras habituais. O hibridismo, em Bhabha, proporciona a percepção de que as culturas são construções e as tradições são invenções, sempre prontos a novas construções desterritorializadas. Assim, objetivo neste trabalho perceber como os Canelas revisam seus sistemas de valores para se adaptar aos novos contextos trazidos pelo contato com o nãoíndio, neste caso mais especificamente a relação que estabelecem com a escola. Entretanto, para entender como se constrói esta relação com a escola e o sentido que a ela atribuem, fazse necessário buscar os instrumentos de educação Canela e entender em que medida estão articulados aos instrumentos de educação escolar. . 1.1 A pesquisa de campo. . Ao fim de um século de pesquisa de campo, parece haver hoje certo consenso de que os dados de pesquisa não são apenas “observados”. Eles oferecem a possibilidade de que se possa revelar, não ao pesquisador, mas no pesquisador, aquele “resíduo” incompreensível, mas potencialmente significativo, entre as categorias nativas apresentadas pelos informantes e a observação do etnógrafo, inexperiente na cultura estudada e apenas familiarizado com a literatura teóricoetnográfica da disciplina. (PEIRANO,1992 p.7). 21 .
(23) Começo relatar a minha experiência de campo inspirada em Peirano. Ao entrar em contato com os Canelas pela primeira vez, tinha em mente apenas o desejo de entender como davase o cotidiano escolar na aldeia Escalvado. Entretanto, fui instigada, pelo campo, a ampliar meu olhar. Assim, compartilho a frase proferida por EvansPritchard na qual revela: “Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para terra Zande, mas os Azande tinham; de forma que tive que me deixar guiar por eles” (178, p.300; Apud, PEIRANO). De modo que, as teorias e pressupostos levantados antes de ir a campo foram alterados no contato com os Canelas, quando pude entender que a escola está inserida na própria construção do ser Canela, e relacionada a vários elementos socioculturais. De forma que a relação que mantêm com a escola revela como lidam com o diferente, ou o estranho, a Forma Timbira (AZANHA, 1984). Estive entre os Canelas em dois momentos. Primeiramente por ocasião do curso “Educação e tradição”, já citado, realizado na aldeia para os professores (tanto indígenas quanto nãoindígenas), permanecendo em campo de 21 de julho a 1 de agosto, de 2008, sendo que somente nos dias que compreendem o intervalo entre 22 a 28 de julho estive desenvolvendo atividades do referido curso. A segunda estadia ocorreu sem intermediação, indo apenas com o intuito de realizar pesquisa, permanecendo por um mês entre os Canelas, no período de 17 de novembro a 17 de dezembro do mesmo ano. A relação construída no primeiro momento de contato foi essencial para que eu pudesse retornar a campo. Procurei construir laços de amizade e confiança. Considero o meu batismo 4 um elemento crucial para meu retorno, um gancho para retomar os laços anteriormente estabelecidos. E, foi a partir das casas da “minha família” que a maioria das observações sobre o cotidiano e as decisões políticas do pátio foram colhidas. Pois a permanência em uma casa abre a possibilidade de acompanhar a dinâmica em várias casas de um seguimento residencial, já que as mulheres da mesma linha materna estão sempre juntas. Além do que as decisões que estão sendo tomadas no pátio chegam rapidamente até a elas. . 4 . A forma que lidam com o diferente, subjugandoo as suas regras. Faz parte da cultura Timbira batizar pessoas que irão permanecer por um tempo dentro da aldeia, dandolhes uma família e submetendoas as regras locais.. 22 .
(24) Foi também um ponto chave para que eu fosse olhada com menos desconfiança e discriminada positivamente por muitos. Alguns que vinham conversar comigo, ao final da conversa, declaravam que eu poderia voltar quando quisesse, sem pedir autorização. Por ser batizada lá, ali também era a minha casa. Entretanto, tais discursos só foram proferidos depois de um tempo de convívio na aldeia, pois na primeira semana eu era bastante observada e muitas indagações me eram dirigidas pelos índios. Só com o tempo foram estabelecendo diálogos menos questionadores. A confiança nasceu especialmente do convívio estabelecido. Nos primeiros contatos pareceu não ter havido um diálogo, pois estava cheia de categorias acadêmicas, sobrepondo, no diálogo, a minha lógica. Além de falar uma língua diferente, também dispunha de outro capital cultural. Só então pude observar efetivamente o narrado por Cardoso de Oliveira (2000): o trabalho de campo é constituído e atravessado por eventos de linguagem, e às vezes os nossos dados não são constituídos em condições discursivas dialógicas. Cardoso de Oliveira (2000) dissertou sobre a relação delicada, fruto da etnografia. Considerou que ”no ato de ouvir o informante, o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionarse como observador o mais neutro possível...” (p.23, grifos do autor). Este poder, subjacente às relações humanas, se torna mais grave nesse tipo de relação, pois cria um ambiente impróprio para obtenção de dados. Impede a interação entre “nativo” e pesquisador, cria apenas um campo ilusório de interação. Assim, procurei privilegiar a observação antes de estabelecer um diálogo mais intenso, que visasse a coleta de informação, intencionando apreender um pouco o seu campo semântico e seus códigos lingüísticos. Não só procurei entendêlos, mas procurei formas de me fazer ser entendida. No momento em que transformamos o informante em interlocutor, uma nova modalidade de relacionamento passa a existir. Transformar a relação de entrevista em uma relação dialógica é possibilitar que os campos semânticos se abram um ao outro, “de maneira a transformar tal confronto em um verdadeiro encontro etnográfico” (200, p. 24). Tal relação será possível no momento em que o pesquisador se habilite a ouvir “o nativo” e por ele igualmente ser ouvido. 23 .
(25) Clifford Geertz (1978) apresenta o método etnográfico como uma descrição . densa , em que o pesquisador faz uma descrição profunda da cultura como teias de significados. Os indivíduos constroem, na vida em sociedade, os valores que regem o seu mundo, criando seu próprio texto, cabendo ao pesquisador fazer a interpretação da interpretação. Assim, acredito que a etnografia não pode se tornar apenas um texto antropológico sobre o pesquisado, como se um pudesse expressar a essência do outro. O texto precisa se constituir por meio de um diálogo, não apenas na experiência etnográfica, mas também em sua materialização. Não só no estar lá (Geertz), mas também no estar aqui. Não só no olhar e no ouvir, mas também no escrever (Oliveira, 2000). Entretanto, como tornar o trabalho de campo legítimo? Como dados produzidos a partir de múltiplas dimensões podem resumirse a uma versão individual sobre um mundo totalmente outro? De modo que, entre as múltiplas dificuldades do trabalho etnográfico está a de apresentar os dados e a experiência vivida em uma narrativa escrita. Como apresentar as múltiplas dimensões sensíveis do campo, decorrentes de olhares, gestos, silêncios, alterações de voz, euforias, que fazem parte, também, da construção dos dados, mas que não são facilmente apreendidas em uma narrativa linear? Minha narrativa é, portanto, limitada por todas essas dificuldades. O que apresento aqui é o que me foi possível captar e elaborar de forma articulada, procurando registrar um recorte da percepção Canela sobre a escolarização. Organizei a narrativa em três partes. Na primeira apresento o povo Canela e a forma em que estão estruturados e organizados socialmente, para entender quais mecanismos são utilizados para manutenção da ordem social e como lidam com as mudanças. Na segunda parte procuro demonstrar como essa organização e estruturação social articulamse na construção do ser Canela. Assim, apresento as formas tradicionais de educação, e, considero quatro rituais: Khêêntúwayê, Pepyê, Pepkahàk, Tepyalkhuea ; como importantes elementos para entender como os Canelas se reproduzem e internalizam em seus membros a sua maneira de ser, garantindo a sua sobrevivência enquanto grupo. Na terceira parte trago outra dimensão do ser Canela, tentando perceber como as formas tradicionais articulamse as novas necessidades sócioculturais e ao ritmo de vida social. Essa sociedade teve que se articular e desenvolver outros mecanismos de 24 .
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