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A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA: dinâmicas educacionais na aldeia Escalvado.

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO  CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS­ CCH  PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS  MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS . MÔNICA RIBEIRO MORAES DE ALMEIDA . A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA: dinâmicas  educacionais na aldeia Escalvado. . São Luís  2009.

(2) MÔNICA RIBEIRO MORAES DE ALMEIDA . A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA: dinâmicas  educacionais na aldeia Escalvado. . Dissertação  apresentada  ao  Programa  de  Pós­  graduação  em  Ciências  Sociais  da  Universidade  Federal do Maranhão, como requisito para obtenção  do título de Mestre em Ciências Sociais . Orientadora:  Profª  Drª  Elizabeth  Maria  Beserra  Coelho. . São Luís  2009.

(3) Almeida, Mônica Ribeiro Moraes de  A construção do ser canela: dinâmicas educacionais na aldeia Escalvado/  Mônica Ribeiro Moraes de Almeida. − São Luís, 2009.  109f.  Impresso por  computador (fotocópia)  Orientadora: Elizabeth Mª B. Coelho.  Dissertação (Mestrado)‐ Univeridade Federal do Maranhão, Programa de  Pós‐graduação em Ciências Sociais, 2009.  1.  Educação escolar indígena 2. Rituais de iniciação 3. Mito de Awkhê 4.  Canela‐ Colonialismo I. Título. . CDU: 37.018.2:572.95.

(4) Dedico  esta  dissertação  a  duas  forças  que  me  acompanham  e  me  guiam:  primeiramente  a  Deus,  em que procurei refúgio nos momentos de aflição. E  ao meu avô José Cantanhêde, in memoriam, anjo de  luz  que  sempre  acreditou  em  mim  e  vibrou  com  todas as minhas conquistas..

(5) AGRADECIMENTOS . Muitas pessoas contribuíram para formulação deste trabalho, tanto na dimensão pessoal  quanto  na  intelectual.  Em  primeiro  lugar,  a  minha  orientadora  Drª  Elizabeth  Maria  Beserra  Coelho  (Beta),  pessoa  que  me  inseriu  no  mundo  da  pesquisa  científica  e  me  entusiasmou  a  conhecer  o  universo  Canela,  agradecimento  especial  não  só  pelas  valiosas  contribuições  a  este  trabalho,  mas  por  ter  estado  comigo  desde  o  início  da  minha trajetória acadêmica, sempre pronta a me ajudar.  Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Maranhão (FAPEMA), por  ter proporcionado condições materiais para a realização do mestrado.  Aos  meus  amigos  do  grupo  de  pesquisa  “Estado  Multicultural  e  Políticas  Públicas”:  Caroline  Oliveira,  Ernesto  Basílio,  Antônio  Santana,  João  Marcelo  Macena,  Daniela  Nunes,  Jonaton  Silva  Jr,  Katiane  Cruz,  Rodolpho  Rodrigues  Sá,  Bruno  Ferreira,  Josinelma Rolandes (Nelma, amiga de campo), Rose Panet, Carlos Almeida Filho, que  enriqueceram  a  minha  formação  com  valiosas  reflexões,  com  os  diálogos  travados  e  com  as  trocas  de  experiências.  Destaco  Rose  e  Nelma,  agradecendo­as  também  pela  colaboração cotidiana. E um agradecimento carinhoso a professora Beta, pela dedicação  e amor com que conduz (coordena) o grupo de pesquisa.  Aos  professores  Horácio  Antunes  e  Carlos  Benedito,  membros  da  banca  de  qualificação, que contribuíram com importantes sugestões e críticas a este trabalho.  Agradeço  aos  funcionários  do  Núcleo  de  Apoio  Local  Kanela,  especialmente  a  Raimundo Martins Franco, pela confiança e por facilitar o meu acesso a Terra Canela.  No campo agradeço:  À  minha  família  Canela  por  ter  me  aceitado  como  um  membro  e  por  todo  carinho  e  atenção com que me trataram.  Aos  professores  (não­indígenas),  que  me  acolheram  em  sua  casa.  Em  especial  a  Profª  Socorro  Feitosa  (Socorrinha),  pelo  cuidado  e  preocupação  de  mãe  que  teve  comigo  fazendo­me sentir em casa; e a seu filhinho Gabriel Feitosa pelos momentos lúdicos e  de  ternura  proporcionados.  A  Diretora  Socorro  Castro  e  ao  Profº  Edjane  Silva,  pelas  conversas  esclarecedoras  e  por  se  mostrarem  sempre  dispostos  a  dar  informações.  A  Profª Ivaldeth Silva pelas conversas descontraídas e risadas proporcionadas.  Aos professores indígenas por se mostrarem sempre abertos ao diálogo.  E a todos os Canelas, que me receberam de braços abertos em suas casas.  Agradeço, de modo muito especial, a minha família, especialmente a minha mãe, Clery  Ribeiro e minha avó, Maria José Ribeiro, duas mulheres que são para mim exemplos de.

(6) força  e  determinação,  que  com  palavras  de  carinho  me  trouxeram  conforto  na  hora  certa. Ao meu avô José Cantanhêde, exemplo de honestidade e fé. E aos meus irmãos:  Camilla, Tomás e Pedro, que com amor e carinho ajudaram­me a completar esta etapa  da minha vida.  Ao  Flávio  Borba,  pelo  amor  dedicado  e  pelos  momentos  de  descontração  proporcionados.  Agradeço as amigas Leandra Lima e Janaina Aragão pela amizade, companheirismo e  pelas horas de lazer compartilhadas.  Agradeço a Deus por me guiar e iluminar meu caminho..

(7) RESUMO . Esta  dissertação  analisa  a  relação  dos Ramkokamekrá/Canela  com  a  instituição  escolar. A partir da forma como se organizam e se estruturam busca perceber como se  reproduzem e como se articulam para atender às novas necessidades sócio­culturais e ao  ritmo de vida social. Assim, apresenta as formas tradicionais de educação tomando três  rituais:  Khêêntúwayê,  Pepyê  e  Pepkahàk;  como  importantes  elementos  para  entender  como os Canelas internalizam em seus membros a sua maneira de ser, garantindo a sua  sobrevivência enquanto grupo.  Utiliza o mito de Awkhê como ferramenta de análise da  relação:  Canelas/  Escola,  como  elemento  essencial  para  compreender  a  relação  tensa  que estabelecem com a alteridade. . Palavras  chave:  Educação,  escola,  rituais  de iniciação,  mito de Awkhê,  Canela, . colonialismo..

(8) ABSTRACT . This dissertation examines the relationship of Ramkokamekrá  / Canela with the  school. From the way it is organized and structured search see how they reproduce and  how  to  articulate  to  meet  new  socio­cultural  needs  and  the  pace  of  life.  So,  has  the  traditional forms of education taking three rituals: Khêêntúwayê, Pepyê and Pepkahàk;  as important elements to understand how the Canelas internalize its members in its way  of  being,  ensuring  its  survival  as  a  group.  Uses  the  myth  of  Awkhê  as  a  tool  for  analyzing  the  relationship:  Canelas  /  School,  as  essential  to  understand  the  tense  relationship with establishing otherness. . Keywords: Traditional education, school, rites of initiation, Canela, colonialism..

(9) LISTA DE SIGLAS . CNPQ – Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia  CF­ Constituição Federal  FUNAI ­  Fundação Nacional do índio  IAF ­ Inter­American Foundation  MEC ­ Ministério da Educação  PCPR ­  Projeto de Combate a Pobreza Rural  SPI ­  Serviço de Proteção ao Índio  UFRJ ­  Universidade Federal do Rio de Janeiro.

(10) LISTA DE IMAGENS . Foto I: vista aérea da aldeia Escalvado, 1975. (foto: William Crocker)........27  Figura 1: Formação de uma classe de idade na metade Haracateye..............36  Figura 2: Formação de uma classe de idade na metade Khoikateye............ .37  Foto II: Canto no pátio visando proteção dos jovens (foto: Rose Panet).................56 . Foto III: escola na aldeia Escalvado (Foto: Mônica Almeida, 2008)............84.

(11) LISTA DE TABELA . Tabela 1: movimento mensal Setembro.....................................................93  Tabela 2: quantitativo de alunos matriculados em Fernando Falcão..........94.

(12) SUMÁRIO. . AGRADECIMENTOS  RESUMO  ABSTRACT  SIGLAS  LISTA DE IMAGENS  LISTA DE TABELAS . 1.  INTRODUÇÃO.................................................................................................12  1.1 A pesquisa de campo.........................................................................................21  2.  O POVO CANELA........................................................................................... 25  3.  A CONSTRUÇÃO DO SER CANELA.......................................................... 41  3.1 Instituindo o ser Canela....................................................................................44  3.2 Escolarizando o ser  Canela: novo rito de instituição.....................................66  3.3 A dinâmica da escola na aldeia........................................................................84  4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................102  REFERÊNCIAS ....................................................................................................105.

(13) 1.  INTRODUÇÃO . O  Estado  do  Maranhão  abriga  em  seu  território  oito  povos  indígenas,  classificados  em  dois  troncos  lingüísticos,  Macro  jê  e  Tupi.  Entre  os  Tupi  estão  os  Tenetehara (Guajajara), os Awá (Guajá), os Kaapor (Urubu); e classificados no tronco  Macro­  jê  encontram­se  os  Krikati,  os  Pukobiê  (Gavião),  os  Ramkokamekrá  e  Apãniekra (Canela) e os Krepu’kateyê.  Com  exceção  dos  Awá;  os  demais  estão  em  contato  com  a  educação  escolar,  através de trajetórias e processos diversos. A introdução da escola nas aldeias coloca em  confronto lógicas distintas, que se expressa em dinâmicas próprias a cada povo.  No ano de 2003 iniciou­se meu interesse pela educação escolar específica para  povos  indígenas,  momento  que  ingressei  como  bolsista  (CNPq)  no  grupo  de  pesquisa  “Estado Multicultural e Políticas Públicas” participando em um projeto de pesquisa, sob  a  orientação  da  professora  Elizabeth  Maria  Beserra  Coelho,  intitulado  “O  ensino  fundamental nas aldeias indígenas: experiência de 5ª a 8ª no Maranhão”. Neste projeto  pude mapear as diferentes experiências de escolarização destinada aos povos indígenas,  desenvolvidas  no  Maranhão.  Após  o  término  da  bolsa,  continuei  participando  da  pesquisa, quando direcionei minha investigação para uma das experiências mapeadas, a  “Escola Timbira” 1 .  O interesse em pesquisar mais profundamente a Escola Timbira deu­se por essa  constituir­se  uma  alternativa  de  escolarização  frente  às  outras  experiências  desenvolvidas  no  Maranhão.  Tal  escola  não  acontece  na  aldeia,  mas  no  Centro  de  Ensino e Pesquisa Pinxwyj Himpeijxá , localizado no município de Carolina­ MA.  No  mestrado  pretendi  aproximar­me  mais  de  experiências  educacionais  desenvolvidas  em  aldeias,  objetivando  entrar  em  contado  com  o  campo  semântico  produzido pelos povos indígenas a respeito da educação escolar.  No momento de definição da pesquisa, estava sendo iniciada uma parceria entre  o  grupo  de  pesquisa  e  a  Timbira  Research  and  Education  Foundation  objetivando  a  implementação  de um projeto de  educação  escolar  junto  aos  Ramkokamekrá/Canela. 2 . . 1 . É uma escola pensada e executada pela Organização não­governamental Centro de Trabalho Indigenista,  uma  Ong  de  Antropólogos  que  se  propõe  conduzir  a  educação  escolar  destinadas  a  povos  indígenas  de  forma diferente, articulando­a a outras atividades que não somente as de sala de aula. Tem como objetivo  reunir os povos Timbira em uma mesma ação, tratando­os enquanto um conjunto.  2  Povo  falante  de  língua  Timbira/Jê,  que  vive  no  Maranhão,  sobre  o  qual  tratarei  na  segunda  parte  da  dissertação.. 12 .

(14) Trata­se  de  um  subprojeto  ­  denominado  “Educação  e  tradição”  –  articulado  a  um  projeto  maior,  de  desenvolvimento  sustentável  e  educação,  desenvolvido  na  Terra  Indígena  Canela  pela  Inter­American  Foundation­IAF  e  a  Timbira  Research  and . Education Foundation.  O referido  grupo entraria  nesta parceria fornecendo instrutores  para planejar e executar cursos para os professores da escola na aldeia, com conteúdos  que valorizem os saberes locais. Assim, comecei a estabelecer uma relação mais estreita  com  os  Ramkokamekrá/Canela  o  que  me  despertou  o  interesse  por  investigar  mais  profundamente  a  relação  que  estabelecem  com  a  escola;  além  do  que,  o  trabalho  executado  na  aldeia  facilitava  o  acesso  a  terra  Canela,  dando  mais  praticidade  a  realização da pesquisa.  Desse  modo,  trato  nesta  dissertação  do  processo  de  escolarização,  tomando  como  referência  a  experiência  vivenciada  pelos  Ramkokamekrá /Canela,  visando,  sobretudo, entender qual sentido e a importância que atribuem à escola e como se da a  relação entre os dois campos semânticos, o da escola e o dos povos indígenas.  Começo por discutir o termo referente à educação escolar específica para índios.  A categoria utilizada pelo discurso oficial é educação indígena . O discurso acadêmico  oscila  entre  os  termos  educação  escolar  indígena,  educação  escolar  indigenista, . educação indígena e educação para índios.  A expressão Educação indígena  advêm de uma modalidade de educação criada  pelo  MEC,  inspirando,  assim,  as  ações  e  os  documentos  formulados  a  partir  de  sua  criação. Pode ser vista  nos documentos oficiais­ Diretrizes Para a Política Nacional de  Educação  Indígena  (1993)  e  o  Plano  Nacional  de  Educação  (2001),  este  último  apresentando um capítulo denominado educação indígena . Educação  indigenista   é  uma  categoria  analítica  explicitada  por  D’Angelis.  Sendo  a  escola  uma  instituição  não­indígena  o  autor  prefere  a  utilização  do  termo  indigenista,  justificando  que  em  nenhum  caso  pode­se  afirmar  com  segurança  a  existência  de  uma  escola  indígena:  “o  que  temos  conseguido  são  escolas  mais  ou  menos, indianizadas (por vezes mais indigenizadas do que indianizadas”.  Araci Lopes da Silva, por sua vez, problematiza o termo educação escolar para . índios  por  entender  que  deixa  transparecer  a  “crença  de  que  o  índio  vai/deve  desaparecer na sociedade nacional, ou a crença de que ele vai/deve sobreviver” (SILVA,  1980, p.16; apud KAHN, 1994, p.137). Ou seja, para a autora, educação escolar para 13 .

(15) índios  representa  um  modelo  de  educação  que  se  constitui  “de  fora  para  dentro”,  incluindo neste termo tanto a escola construída por agentes coloniais, referindo­se desde  as  escolas  dos  jesuítas  até  aquelas  sob  a  administração  do  Estado,  quanto  às  escolas  pensadas  por  ONGs.  Assim,  o  termo  não  só  inclui  modelos  de  educação  com  fins  coloniais que inferiorizam a diferença, mas também aqueles modelos que ao contrário  de  inferiorizar  a  diferença,  visam  valorizá­la  tentando  atuar  junto  com  os  povos  indígenas.  No mesmo sentido Marina Kahn (1994, p.137) escreve que; “educação indígena   é algo que deve ser conquistado e educação para índio é algo a ser evitado”, na medida  em  que  a  segunda  expressão  traz  uma  carga  de  colonialismo,  sendo  uma  educação  orientada por agentes externos a estes povos. O primeiro termo, educação indígena, está  relacionado  aos  “processos  tradicionais  de  controle  e  reprodução  social  do  grupo”.  Segundo  a  autora,  todas  as  experiências  de  educação  desenvolvidas  para  povos  indígenas,  sejam  elas  “alternativas”,  “oficiais”  ou  “religiosas”  “não  conseguiram  escapar de um modelo formal, escolar” (idem). Conclui considerando educação escolar . indígena o termo atualmente mais adequado para se referir a essas experiências.  Porém, entendo o termo Educação escolar indígena  por outro prisma, apesar de  concordar com Kahn, de que seja qual for a experiência de escolarização que se tenha  construído  atualmente  não  conseguimos  fugir  de  um  modelo  formal  de  educação.  Entretanto, tal termo agrega aos índios uma instituição estrangeira como própria, retira  exatamente o peso e a marca da escola formal transposta pelo Estado com seus modelos  e regras.  Os  outros  termos  apresentam  complicadores  na  medida  em  que  “educação . escolar para índios” coloca os povos indígenas em uma posição de meros receptores de  modelos civilizatórios. De outro modo, o termo educação indígena  cria a impressão de  que  se  trata  de  modos  próprios  de  socialização  ou  de  modelos  próprios  de  controle  e  reprodução  social.  Entretanto,  quando  se  trata  de  experiências  escolares  tais  modelos,  completamente autônomos, não se configuram na realidade.  A tensão entre estas categorias foi observada por mim em campo o que me fez  refletir  sobre  o  universo  da  educação  escolar  destinada  a  povos  indígenas  e  rever  os. 14 .

(16) próprios termos do meu trabalho. Presenciei momentos 3  nos quais o encontro dos dois  campos semânticos, dos pesquisadores e dos povos indígenas, expressava esta tensão: o  pesquisador  utilizando  o  termo  educação  escolar  indigenista   e  os  índios  educação  escolar  indígena.  O  argumento  dos  índios  era  que  a  educação  escolar  não  era  para  indigenistas e sim para índios.  Nesta  tensão  pude  rever  a  categoria  educação  escolar  indigenista  utilizada  por  mim.  Assim,  penso  que  a  educação  escolar  nas  aldeias  nem representa  uma  educação  exclusivamente indígena, nem indigenista. Tem sido introduzida pelo Estado e os povos  indígenas  estão  passando  por  um  processo  de  conhecimento  e  apropriação  desta  instituição,  não  tendo  assumido  as  rédeas  do  processo  de  escolarização.  Os  índios,  apesar  de  ainda  não  terem  adquirido  autonomia  em  relação  à  construção  de  suas  experiências  escolares,  estão,  de  diferentes  formas,  segundo  os  diversos  povos,  participando do processo. De modo que me coloco dentro desta tensão e não vejo qual  desses termos poderá ser usado sem prejuízo de significação.  Assim,  podemos  perceber  que  o  campo  da  educação  escolar  relacionada  aos  povos  indígenas  não  representa  um  chão  firme  para  se  pisar,  a  contingência   e  a . ambiguidade  dão  a  tônica  a  esse  campo.  Isso  pode  ser  observado  nas  atuais  políticas  que, ao mesmo tempo em que reconhecem as diversidades culturais e asseguram a sua  manifestação a submetem a seu julgo.  O Estado brasileiro, após ter ignorado a composição diversa do Brasil e tentado  por  muito  tempo  incorporar  os  povos  indígenas  à  sociedade  nacional,  reconhece  a  diversidade  étnica  e  cultural  presente  em  seu  território.  Este  reconhecimento  se  deu  através  da  Constituição  Federal  de  1988,  que  se  apropria  do  discurso  multicultural  e  adota políticas diferenciadas a estes povos.  A  educação  escolar  para  povos  indígenas  esteve  por  muito  tempo  sendo  utilizada como instrumento de integração destes povos à sociedade nacional. A partir da  Constituição de 1988, um discurso de proteção às manifestações culturais de minorias é  inaugurado, como podemos constatar no Art 215, da Carta Magna:  O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos  culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará  e incentivará a valorização e a difusão das manifestações  culturais.  3 . Reuniões  do  Conselho  de  Educação  Escolar  Indígena  e  seminários,  que  tinham  a  presenças  de  representantes indígenas e esta questão sempre era levantada.. 15 .

(17) §1º  O  Estado  protegerá  as  manifestações  das  culturas  populares, indígenas e afro­brasileiras, e de outros grupos  participantes do processo civilizatório nacional. . Podemos  observar  que  ao  mesmo  tempo  em  que  garante  proteção  e  respeito  à  especificidade,  refere­se  a  um  processo  civilizatório  nacional.  O  Art.  210  da  Constituição, que trata da educação, indica esta tensão; impõe o português como língua  obrigatória no ensino fundamental, ao mesmo tempo em que afirma reconhecer o direito  à especificidade, assegurando aos índios o direito de, também, usar a língua materna e  desenvolver processos próprios de aprendizagem:  “O  ensino  fundamental  será  ministrado  em  língua  portuguesa,  assegurada  às  comunidades  indígenas  também a utilização de suas línguas maternas e processos  próprios de aprendizagem” (Art 210, CF/1988). . A  partir  da  Constituição  Federal  de 1988, documentos  foram sendo elaborados  de forma a regulamentar o que está posto na lei maior.  Em  1991  a  União,  através  do  Decreto  nº  26,  de  4  de  fevereiro,  transferiu  a  responsabilidade  da  educação  escolar  para  índios  da  Fundação  Nacional  do  índio  (FUNAI)  para  o  Ministério  da  Educação  (MEC)  ficando  atribuída  a  este  órgão  a  competência  para  coordenar  as  ações  referentes  à  educação  indigenista,  em  todos  os  níveis  de  modalidade.  O  Art  2º  dispõe  que  estas  ações  serão  desenvolvidas  pelas  Secretarias Estaduais de Educação.  Em 1993 foram formuladas pelo MEC as Diretrizes Para a Política Nacional de  Educação  Indígena.  Este  documento  passou  a  nortear  as  políticas  que  garantam  o  respeito  à  especificidade  e  o  direito  à  diferença.  As  diretrizes  estabelecem  como  princípios  de  práticas  pedagógicas  a  interculturalidade,  o  uso  da  língua  materna,  o  bilingüismo,  processos  próprios  de  aprendizagem  e  o  direito  à  especificidade  e  à  diferença. Em 1999 foi elaborada a resolução nº 3, pelo Conselho Nacional de Educação,  que tem por objetivo:. 16 .

(18) Estabelecer, no âmbito  da educação básica, a estrutura e  o  funcionamento  das  escolas  indígenas,  reconhecendo­  lhes  a  condição  de  escola  com  normas  e  ordenamentos  jurídicos  próprios,  fixando  as  diretrizes  curriculares  do  ensino  intercultural  e  bilíngüe,  visando  à  valorização  plena  das  culturas  dos  povos  indígenas  e  a  afirmação  e  manutenção  de  sua  diversidade  étnica.  (Resolução  CEB  nº3 de1999, art 1º). . Em suma, a resolução quer fazer garantir o cumprimento do Art 231, CF/1988, e  reforçar,  em  seu  texto,  o  direito  dos  povos  indígenas  a  uma  educação  específica  e  diferenciada,  estabelecendo  o  funcionamento  das  escolas  em  terras  indígenas,  com  organizações próprias.  Em  2001,  foi  promulgado  o  Plano  Nacional  de  Educação  (Lei  nº  10.172)  que  apresenta  um  capítulo  que  trata  da  “educação  indígena”.  Traz  em  seu  conteúdo  a  preocupação  de  regulamentar  a  escola  indígena,  sua  “inclusão  no  ensino  oficial”;  a  criação  da  categoria  “escola  indígena” e  a  legalização  dos  estabelecimentos  de  ensino  localizados  no  interior  das  terras  indígenas.  Refere­se,  também,  à  constituição  de  um  cadastro nacional de escolas indígenas e a ampliação, gradativa, da oferta de ensino de  5ª a 8ª séries a povos indígenas: . Quer  na  própria  escola  indígena,  quer  integrando  os  alunos  em  classes  comuns  nas  escolas  próximas,  ao  mesmo  tempo  em  que  lhes  ofereça  o  atendimento  adicional necessário para sua adaptação, a fim de garantir  o acesso ao ensino fundamental pleno. (Lei nº 10.172 de  9 de Janeiro de 2001) . Assim, posso perceber que apesar dos dispositivos constitucionais introduzirem  no  campo  da  educação  destinada  a  povos  indígenas  um  discurso  de  respeito  à  especificidade tornam­se ambíguos,  na  medida  em  que  alternam  o  reconhecimento  de  processos  pedagógicos  indígenas  com  a  imposição  de  modelos  pré­estabelecidos  e  legitimados pela sociedade nacional.  A  Constituição  e  as  legislações  dela  decorrentes  deixam  transparecer  muitos  paradoxos,  dentre  os  quais  se  encontra  a  imposição  do  uso  da  Língua  portuguesa  na 17 .

(19) escola. Esta determinação cria uma tensão ao impor a língua portuguesa em detrimento  da  língua  materna  e  traz  consigo  muitos  significados.  O  português,  a  língua  do  colonizador, coloca­se como um meio de comunicação ampliado, que poderá viabilizar  a compreensão dos documentos oficiais, dos assuntos políticos e científicos afirmando­  se como a Língua legítima . Segundo Bourdieu (1996, p.91­92): . A  autoridade  de  língua  legítima  reside  nas  condições  sociais de produção e de reprodução da distribuição entre  as  classes  do  conhecimento  e  do  reconhecimento  da  língua  legítima  e  não  no  conjunto  das  variações  prosódicas  e  articulatórias  definidoras  da  pronuncia  refinada como sugere o racismo classista, e muito menos  na complexidade da sintaxe e da riqueza do vocabulário,  quer  dizer,  nas  propriedades  intrínsecas  do  próprio  discurso. (1996, p.91­92) . Um  ponto  que  deve  ser  destacado,  ainda,  é  a  regulamentação  da  “escola  indígena”  pelo  Plano  Nacional  de  Educação.  Este  plano  propõe  a  padronização  da  escola  para  índios,  desconsiderando  a  diversidade  cultural  existente  entre  os  povos  indígenas.  A transferência da gestão das políticas de “educação indígena”, da FUNAI para  o MEC, representa outro paradoxo dentro do discurso de respeito à especificidade, pois  retira  “educação  indígena”  da  gestão  de  um  órgão  específico  aos  povos  indígenas,  inserindo­a no Sistema Nacional de Ensino.  O Estado transfere o modelo hegemônico de educação para os povos indígenas,  legitimando­o  através  de  um  discurso  da  sociedade  liberal  que  pretende  eleger  necessidades  básicas  do  ser  humano.  Ao  colocar  a  escola  como  um  direito  de  todos,  indiscriminadamente,  desconsidera  as  estratégias  educativas  próprias  destes  povos.  A  escola é apresentada como um instrumento de emancipação, na medida em que teria um  papel fundamental no processo de operacionalização dos códigos ocidentais – a língua,  a  cultura  e  a  história,  proporcionando­lhes  ferramentas  para  que  possam  lidar  com  o  mundo exterior, utilizando instrumentos legítimos da sociedade hegemônica, na defesa  de direitos e garantia da sua sobrevivência.. 18 .

(20) Esta relação do Estado com os povos indígenas pode ser percebida na correlação  que  Bhabha  (2005)  estabelece  entre  fetiche  e  estereótipo.  A  relação  dos  dois  produz  “uma  ‘identidade’ baseada  tanto  na  dominação  e  no  prazer, quanto  na  ansiedade  e  na  defesa, pois é uma forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da  diferença e recusa da mesma” (p.116). Segundo Bhabha, estes conflitos e contradições  têm uma significação fundamental para o discurso colonial.  O conceito de fetiche, trabalhado por Bhabha (2005), é formulado num ponto de  vista  psicanalítico.  Esse é  uma  espécie  de  fantasia  que  afirma  uma  idéia  de  totalidade  (em relação à identidade); funciona como uma normalização da diferença, da ausência,  criando  um  estereótipo  que,  segundo  ele,  seria  uma  forma  limitada  de  alteridade,  no  intuito de negar a multiplicidade e assegurar a pureza cultural.  O  aparato  de  poder  e  o  discurso  colonial  são  elementos  que  se  apóiam  no  reconhecimento  e  no  repúdio  de  diferenças  raciais/culturais/históricas.  Têm  como  estratégia  a  criação  de  um  espaço  para  “povos  sujeitos”  através  da  produção  de  conhecimentos  por  meio  dos  quais  se  exerce  vigilância  e  legitima  suas  estratégias,  estimulando  uma  forma  complexa  de  prazer  e  desprazer.  O  discurso  colonial  objetiva  apresentar o colonizado, baseado em argumentos raciais, como uma população de tipo  degenerado,  justificando  desse  modo  a  conquista  e  seus  sistemas  de  administração  e  instrução (Bhabha, 2005).  Bhabha vai além, colocando que apesar do jogo de poder no interior do discurso  colonial  e  das  posições  deslizantes  de  seus  sujeitos  (por  exemplo,  de  classe,  gênero,  ideologias,  formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização), ele está  se  referindo  a  uma  forma  de  governabilidade  que,  ao  delimitar  uma  “nação  sujeita”,  apropria, dirige e domina suas esferas de atividades.  O  que  Bhabha  quer  mostrar  é  como  a  polaridade  colonizador/colonizado  se  constrói no plano discursivo e se legitima no plano político, através de uma relação que  se  estabelece  assimetricamente  entre  o  colonizador  e  o  seu  outro;  conferindo  ao  primeiro uma superioridade ontológica, total, essencial uma vez que faz parte da própria  construção  dos  termos  da  relação.  Assim,  essa  polaridade  ofusca  aquilo  que,  supostamente,  visa  explicar,  ou  seja,  as  diferenças  que  ficam  submersas  neste  outro  genérico.. 19 .

(21) Nesse  sentido,  Bhabha  compartilha  com  Quijano,  quando  esse  formula  a  categoria  colonialidade  do  poder.  Na  opinião  deste  autor,  a  espoliação  colonial  é  legitimada  por  um  imaginário  que  estabelece  diferenças  entre  o  colonizador  e  o  colonizado. Estabelece­se uma oposição hierárquica baseada na  idéia de raça e esta se  converte no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial, nos  níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Os povos conquistados  foram  postos  numa  situação  natural  de  inferioridade  e,  conseqüentemente,  seus  traços  fenotípicos, suas descobertas mentais e culturais (QUIJANO, 2005).  A violência epistêmica colonial está relacionada ao processo que desqualifica os  conhecimentos  e  formas  de  apreensão  do  mundo  colonizado,  roubando­lhes  a  capacidade  de  enunciação  e  torna  a  fala  do  outro,  de  antemão,  desqualificada.  (CASTRO ­ GÓMEZ, 2005). Esse princípio de divisão e de classificação do mundo é  apresentado  por  Mignolo  como  diferença  colonial.  É  através  dela  que  emerge  a . colonialidade do poder  que se constitui, também, como um espaço no sistema mundial  colonial  moderno  onde  se  articulou  o  ocidente  como  imaginário  do  mundo  colonial  moderno (2003).  O  desconforto  que  impulsionou  a  investigação  que  subsidia  essa  dissertação  derivou  da  observação  de  que  no  processo  de  escolarização  de  povos  indígenas  as  diferenças  culturais,  lingüísticas  e  sociais  existentes  entre  indígenas  e  não­indígenas  vêm  sendo  entendidas  historicamente  como  desigualdades,  hierarquização  e  exclusão,  configurando,  sistemas  de  verdades  que  vêm  ao  longo  do  tempo  produzindo  relações . subalternizadoras (Mignolo, 2003).  Quando me proponho pensar contatos culturais na contemporaneidade exponho­  me a uma série de considerações que emergem da complexidade destes encontros. Estes  encontros desestabilizam uma visão maniqueísta que outrora se fazia presente quando se  propunha estudar a questão de pertencimento; quem dava sustentabilidade a esta visão  era  a  noção  de  identidade  cultural,  que  antes  pensada  como  estática,  vivencia  o  momento de desconstrução de suas essencializações, abrindo espaço para se pensar mais  em termo de fluidez.  Penso nestes termos através das construções analíticas de Homi Bhabha, que em  seu livro O local da cultura  considera que “os termos do embate cultural são produzidos  performativamente”.  Assim,  demonstra  que  a  representação  da  diferença  não  é 20 .

(22) apreendida  de  forma  descuidada  “como  resultado  de  traços  culturais  ou  étnicos . preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição”. Para o autor, a articulação social  da diferença é uma negociação complexa, que procura conferir autoridade aos híbridos  culturais  que  emergem  em  momentos  de  transformação  histórica.  E  este  direito  de  expressão  não  é  fruto  da  persistência  da  tradição,  mas  da  capacidade  da  tradição  se  reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade dos que estão na . minoria . (Bhabha, 2005; p.20).  Para  Bhabha  o  hibridismo  não  é  uma  adaptação,  mas  uma  forma  dos  sujeitos  revisarem os seus próprios sistemas de referência, normas e valores. Fazem isso através  do  distanciamento  que  estabelecem  com  as  suas  regras  habituais.    O  hibridismo,  em  Bhabha, proporciona a percepção de que as culturas são construções e as tradições são  invenções, sempre prontos a novas construções desterritorializadas.  Assim, objetivo neste trabalho perceber como os Canelas revisam seus sistemas  de valores para se adaptar aos novos contextos trazidos pelo contato com o não­índio,  neste  caso  mais  especificamente  a  relação  que  estabelecem  com  a  escola.  Entretanto,  para entender como se constrói esta relação com a escola e o sentido que a ela atribuem,  faz­se necessário buscar os instrumentos de educação Canela e entender em que medida  estão articulados aos instrumentos de educação escolar. . 1.1 A pesquisa de campo. . Ao fim de um século de pesquisa de campo, parece haver hoje  certo  consenso  de  que  os  dados  de  pesquisa  não  são  apenas  “observados”.  Eles  oferecem  a  possibilidade  de  que  se  possa  revelar,  não  ao  pesquisador,  mas  no  pesquisador,  aquele  “resíduo”  incompreensível,  mas  potencialmente  significativo,  entre  as  categorias  nativas  apresentadas  pelos  informantes  e  a  observação  do  etnógrafo,  inexperiente  na  cultura  estudada  e  apenas  familiarizado  com  a  literatura  teórico­etnográfica  da  disciplina. (PEIRANO,1992 p.7). 21 .

(23) Começo relatar a minha experiência de campo inspirada em Peirano. Ao entrar  em  contato  com  os  Canelas  pela  primeira  vez,  tinha  em  mente  apenas  o  desejo  de  entender  como  dava­se  o  cotidiano  escolar  na  aldeia  Escalvado.  Entretanto,  fui  instigada,  pelo  campo,  a  ampliar  meu  olhar.  Assim,  compartilho  a  frase  proferida por  Evans­Pritchard  na  qual  revela:  “Eu  não  tinha  interesse  por  bruxaria  quando  fui  para  terra  Zande,  mas  os  Azande  tinham;  de  forma que  tive  que  me  deixar  guiar  por eles”  (178, p.300; Apud, PEIRANO).  De  modo  que,  as  teorias  e  pressupostos  levantados  antes  de  ir  a  campo  foram  alterados no contato com os Canelas, quando pude entender que a escola está  inserida  na própria construção do ser Canela, e relacionada a vários elementos socioculturais. De  forma que a relação que mantêm com a escola revela como lidam com o diferente, ou o  estranho, a Forma Timbira  (AZANHA, 1984).  Estive entre os Canelas em dois momentos. Primeiramente por ocasião do curso  “Educação e tradição”, já citado, realizado na aldeia para os professores (tanto indígenas  quanto não­indígenas), permanecendo em campo de 21 de julho a 1 de agosto, de 2008,  sendo que somente nos dias que compreendem o intervalo entre 22 a 28 de julho estive  desenvolvendo  atividades  do  referido  curso.  A  segunda  estadia  ocorreu  sem  intermediação,  indo  apenas  com  o  intuito  de  realizar  pesquisa,  permanecendo por  um  mês entre os Canelas, no período de 17 de novembro a 17 de dezembro do mesmo ano.  A relação construída no primeiro momento de contato foi essencial para que eu  pudesse retornar a campo. Procurei construir laços de amizade e confiança. Considero o  meu batismo 4  um elemento crucial para meu retorno, um gancho para retomar os laços  anteriormente estabelecidos.  E, foi a partir das casas da “minha família” que a maioria  das observações sobre o cotidiano e as decisões políticas do pátio foram colhidas. Pois a  permanência  em  uma  casa  abre  a  possibilidade  de  acompanhar  a  dinâmica  em  várias  casas de um seguimento residencial, já que as mulheres da mesma linha materna estão  sempre  juntas.  Além  do  que  as  decisões  que  estão  sendo  tomadas  no  pátio  chegam  rapidamente até a elas. . 4 . A forma que lidam com o diferente, subjugando­o as suas regras. Faz parte da cultura Timbira batizar  pessoas que irão permanecer por um tempo dentro da aldeia, dando­lhes uma família e submetendo­as as  regras locais.. 22 .

(24) Foi também um ponto chave para que eu fosse olhada com menos desconfiança  e  discriminada  positivamente  por  muitos.  Alguns  que  vinham  conversar  comigo,  ao  final  da  conversa,  declaravam  que  eu  poderia  voltar  quando  quisesse,  sem  pedir  autorização. Por ser batizada lá, ali também era a minha casa.  Entretanto, tais discursos só foram proferidos depois de um tempo de convívio  na  aldeia,  pois  na  primeira  semana  eu  era bastante  observada  e  muitas  indagações  me  eram  dirigidas  pelos  índios.  Só  com  o  tempo  foram  estabelecendo  diálogos  menos  questionadores. A confiança nasceu especialmente do convívio estabelecido.  Nos primeiros contatos pareceu não ter havido um diálogo, pois estava cheia de  categorias  acadêmicas,  sobrepondo,  no  diálogo,  a  minha  lógica.  Além  de  falar  uma  língua  diferente,  também  dispunha  de  outro  capital  cultural.  Só  então  pude  observar  efetivamente  o  narrado  por  Cardoso  de  Oliveira  (2000):  o  trabalho  de  campo  é  constituído e atravessado por eventos de linguagem, e às vezes os nossos dados não são  constituídos em condições discursivas dialógicas.  Cardoso  de  Oliveira  (2000)  dissertou  sobre  a  relação  delicada,  fruto  da  etnografia. Considerou que  ”no ato de ouvir o informante, o etnólogo exerce um poder   extraordinário  sobre  o  mesmo,  ainda  que  pretenda  posicionar­se  como  observador  o  mais  neutro  possível...”  (p.23,  grifos  do  autor).  Este  poder,  subjacente  às  relações  humanas,  se  torna  mais  grave  nesse tipo de  relação, pois  cria  um  ambiente  impróprio  para obtenção  de  dados.  Impede  a  interação  entre  “nativo”  e pesquisador,  cria  apenas  um campo ilusório de interação.  Assim, procurei privilegiar a observação antes de estabelecer um diálogo mais  intenso,  que  visasse  a  coleta  de  informação,  intencionando  apreender um pouco o seu  campo semântico e seus códigos lingüísticos. Não só procurei entendê­los, mas procurei  formas de me fazer ser entendida.  No  momento  em  que  transformamos  o  informante  em  interlocutor,  uma  nova  modalidade de  relacionamento  passa  a  existir.  Transformar  a relação  de  entrevista  em  uma relação dialógica é possibilitar que os campos semânticos se  abram um ao outro,  “de maneira a transformar tal confronto em um verdadeiro encontro etnográfico” (200,  p. 24). Tal relação será possível no momento em que o pesquisador se habilite a ouvir  “o nativo” e por ele igualmente ser ouvido. 23 .

(25) Clifford  Geertz  (1978)  apresenta  o  método  etnográfico  como  uma  descrição . densa ,  em  que  o  pesquisador  faz  uma  descrição  profunda  da  cultura  como  teias  de  significados. Os  indivíduos  constroem,  na  vida  em  sociedade, os  valores  que  regem  o  seu mundo, criando seu próprio texto, cabendo ao pesquisador fazer a interpretação da  interpretação.  Assim,  acredito  que  a  etnografia  não  pode  se  tornar  apenas  um  texto  antropológico sobre o pesquisado, como se um pudesse expressar a essência do outro. O  texto  precisa  se  constituir  por  meio  de  um  diálogo,  não  apenas  na  experiência  etnográfica,  mas  também  em  sua  materialização.  Não  só  no  estar  lá  (Geertz),  mas  também no estar aqui. Não só no olhar e no ouvir, mas também no escrever (Oliveira,  2000). Entretanto, como tornar o trabalho de campo legítimo? Como dados produzidos  a  partir  de  múltiplas  dimensões  podem  resumir­se  a  uma  versão  individual  sobre  um  mundo totalmente outro?  De modo que, entre as múltiplas dificuldades do trabalho etnográfico está a de  apresentar os dados e a experiência vivida em uma narrativa escrita. Como apresentar as  múltiplas  dimensões  sensíveis  do  campo,  decorrentes  de  olhares,  gestos,  silêncios,  alterações de voz, euforias, que fazem parte, também, da construção dos dados, mas que  não são facilmente apreendidas em uma narrativa linear?  Minha  narrativa  é,  portanto,  limitada  por  todas  essas  dificuldades.  O  que  apresento aqui é o que me foi possível captar e elaborar de forma articulada, procurando  registrar  um  recorte da  percepção  Canela  sobre  a  escolarização.  Organizei  a  narrativa  em  três  partes.  Na  primeira  apresento  o  povo  Canela  e  a  forma  em  que  estão  estruturados e organizados socialmente, para entender quais mecanismos são utilizados  para manutenção da ordem social e como lidam com as mudanças.  Na  segunda  parte  procuro  demonstrar  como  essa  organização  e  estruturação  social articulam­se na construção do ser Canela. Assim, apresento as formas tradicionais  de educação, e, considero quatro rituais: Khêêntúwayê, Pepyê, Pepkahàk, Tepyalkhuea ;  como  importantes  elementos  para  entender  como  os  Canelas  se  reproduzem  e  internalizam  em  seus  membros  a  sua  maneira  de  ser,  garantindo  a  sua  sobrevivência  enquanto grupo.  Na terceira parte trago outra dimensão do ser Canela, tentando perceber como  as formas tradicionais articulam­se as novas necessidades sócio­culturais e ao ritmo de  vida  social.  Essa  sociedade  teve  que  se  articular  e desenvolver  outros  mecanismos  de 24 .

Referências

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