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Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade

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Academic year: 2021

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(1)Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009. ABORDAGEM AUTOPOIÉTICA E A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS NO SISTEMA JURÍDICO FRENTE ÀS DEMANDAS DE TRANSEXUALIDADE. Simone Martins Faculdade Anhanguera de Passo Fundo smartins.faplan@ig.com.br. RESUMO O artigo aborda que os Tribunais não devem posicionar-se hierarquicamente subordinados à legislação, pois estes representam o próprio “centro” do sistema jurídico. As demandas emergentes de novos direitos, especificamente sobre a transexualidade, não é resolvida pela legislação, que assume uma posição no sistema jurídico. O paradoxo criado entre o julgar e o silêncio do legislador passa a ser solucionado pelo próprio centro operativo. Palavras-Chave: transexualidade; tribunais; paradoxo; centro operativo.. ABSTRACT The article discusses that the courts should not position themselves hierarchically subordinate to the legislation, because they represent the very “center” of the legal system. Emerging demands of new rights, specifically about transsexuality is not resolved by legislation, which takes a position in the legal system. The paradox created between the judge and the silence of the legislature shall be resolved by the center operating. Keywords: transsexuality; courts; paradox; center operating.. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Informe Técnico Recebido em: 22/8/2009 Avaliado em: 7/11/2009 Publicação: 31 de março de 2010. 169.

(2) 170. Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade. 1.. AS ESTRUTURAS HETERÁRQUICAS E O DESLOCAMENTO DO CENTRO DECISÓRIO Por meio de um paradoxo significativo, a doutrina mais longamente trabalhada exige mais trabalho que as outras e contém mais promessa de descobertas. Onde (ao que parece) tudo foi dito, tudo ainda está por dizer, onde os princípios para o bom foram estabelecidos, é onde ainda não encerramos a busca, a renovação e o aprofundamento. (Jacques Maritan). A problemática inicial que se apresenta, defende que os Tribunais não devem posicionarse hierarquicamente subordinados à legislação, uma vez que representam o próprio centro do sistema jurídico, cuja legislação posiciona-se de maneira periférica. Nesse sentido, uma abordagem sob a perspectiva sistêmica autopoiética para a formação da produção normativa, que tenha como centro operativo os Tribunais, requer a verificação da desconstrução de estruturas hierárquicas1. Precisamente, a abordagem de questões às expectativas sociais não respondidas pelo legislador, precisamente sobre a problemática das cirurgias para mudança de sexo em casos de transexualidade. Nota-se, inicialmente, que as características inerentes de uma estrutura hierarquizada rompem com o conceito de autopoiese: horizontalidade, simetria e nãoplanificabilidade de relatos inter-sistêmicos. É, pois, nessa linha, a afirmação de que locus dos Tribunais, sob a lógica sistêmica, é heterarquizado, pois ocorre um deslocamento do centro decisório na qual a legislação passa a ser a interface desse centro, em outras palavras, é no centro que se reproduzem as operações filtradas – e não filtrantes –, pela prática dos códigos e dos programas jurídicos. (CLAM, 2005, p. 133-134). Nessa leitura que Clam faz da teoria luhmanniana, os Tribunais são posicionados como o coração do encerramento operativo do sistema jurídico, por meio da interdição de denegação de justiça se exprime o vetor autopoiético do fechamento, uma vez que ele coloca o sistema sob uma auto-sujeição de reagir a toda estimulação ‘do momento em que ela toma forma jurídica’. [...] Ele realiza, assim, por encerramento operativo, sua unidade, tornando-se o lugar da atualidade de toda juridicidade. (2005, p. 135).. A crise paradoxal2 que se estabelece, neste caso, é precisamente sobre o aspecto do silêncio da norma jurídica sobre as questões de mudança de sexo para indivíduos que correspondam ao código identificativo de transexual.. 1. De Marco (2005, p. 48) afirma que “o direito precisa ser estudado como estrutura e a sociedade, como um sistema, numa relação de interdependência recíproca. 2 Clam (2006, p. 43-44) define o discurso luhmanniano do paradoxo nos seguintes termos: “o paradoxo do direito só pode ser explicado a partir da paradoxologia muito rica, mas fragmentária e imperscrutável, de Luhmann. [...] A noção mais importante do que é um paradoxo seria uma contradição (lógica), uma definição definitiva do movimento lógico, o. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(3) Simone Martins. 171. Verifica-se que o Tribunal3, quando provocado no caso concreto, tem a obrigação de decidir, ao mesmo tempo em que tem a liberdade de transformar. É dessa forma, que se busca resolver o paradoxo instaurado operativamente: o Tribunal é obrigado a responder às expectativas sociais insurgentes4. Nesse viés, o paradoxo encontra-se na base do sistema, segundo esclarece Clam (2006, p. 133), o paradoxo é, portanto, a situação sem saída que se encontra na base, que só pode ser superada operativamente e cuja superação operativa precisa se consolidar num sistema. Tal sistema consiste do começo ao fim em operações e em nada mais que operações. Em lugar nenhum, a consolidação que nele se desenrola leva à formação de estruturas que desmontam a paradoxalidade que se encontra na base – a impossibilidade fundamental da identidade e unidade coerentes em si mesmas – a ponto de a suprimirem ou revogarem.5. Para Luhmann (2009, p. 101-102), “a resolução do paradoxo não é tão simples”, uma vez que a “diferença entre sistema e meio, que possibilita a emergência do sistema é, por sua vez, a diferença mediante a qual o sistema já se encontra constituído”. Percebe-se, nesse movimento uma continuidade que se auto-referencia e, possibilitada a autocriação do direito, enquanto sistema autopoiético. A sociedade, perante suas próprias demandas ao Judiciário, inicia esse movimento circular, criativo e paradoxal. É importante destacar que o impulso inicial do paradoxo é estabelecido na base, por meio do silêncio do legislador em definir as normas gerais que estabelecem os procedimentos médicos de transgenitalização. Esse movimento no sistema é dinâmico6, criativo, auto-reflexivo e, resolve-se operativamente, confirmando a afirmação inicial de que os Tribunais atuam como centro operativo da produção normativa, relegando à legislação o papel periférico.. atestado lógico da impossibilidade real de algo. O paradoxo não é o fim fatal, o fracasso definitivo da constituição ontológica. Muito pelo contrário, ele é, na nova formulação de Luhmann, o começo de uma história, um movimento de constituição sistêmica marcado por riscos e bifurcações. Paradoxos não são impossibilitadores, mas possibilitadores: neles está fundada uma gênese produtiva, a arrancada para a condensação de um sistema. [...] a paradoxalidade gera o sistema como sistema operativo. 3 Cf. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal. Apelação Cível. Direito Constitucional. Transexualismo. Inclusão na tabela SIH-SUS de procedimentos médicos de transgenitalização. Princípio da igualdade e proibição de discriminação por motivo de sexo. Discriminação por motivo de gênero. Direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade e respeito à dignidade humana. Dirieto à saúde. Força normativa da Constituição. Apelação Cível n° 2001.71.00.026279-9/RS. Apelante Ministério Público Federal e Apelado União Federal. Relator Juiz Federal Roger Raupp Rios. 14 de agosto de 2007. D.E., publicado em 23 de agosto de 2007. 4 Para Clam (2005, p. 130), “quanto mais o direito é confrontado às expectativas sociais da isomorfia de suas decisões com as configurações culturais ou políticas, expectativas que se encontrarão reforçadas pelo relaxamento da condicionabilidade e a precisão dos programas (legais), mais ele deve se curvar sobre a recursividade e assegurar uma conectividade extremamente fechada de suas operações”. 5 O autor (2006, p. 133-134) vai além, ao afirmar que “a paradoxalidade vige constantemente no sistema”. 6 Nesse aspecto, nota-se que a resolução do paradoxo “não permite aplicação a relações e arranjos estáticos, nem aos que são movidos secundariamente. Ele é correlato a um modo de incoerência que exige unicamente desmanches operativos. Cf. Clam (2006, p. 135).. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(4) 172. Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade. A partir desse eixo criativo, a própria contemporaneidade é terreno fértil para a emergência de novas demandas e de novos direitos, que terminam por não ter a resposta normativa imediata. Nesse ponto, a abordagem da transexualidade insere-se nesse âmbito.. 2.. A ABORDAGEM SOCIAL DA TRANSEXUALIDADE7 A construção de novos paradigmas nas áreas das ciências sociais e humanas teve seu impulso pelo movimento feminista na década de sessenta, principalmente pela “idéia de gênero ou a cisão do conceito de sexo em níveis distintos.” (BENEDETTI, 2005, p.26). Nessa linha, o deslocamento do conceito de gênero influenciou as relações entre homens e mulheres, tanto em nível político quanto “na elaboração teórica sobre o social.” A utilização do conceito de gênero perpassou as ciências sociais, conquistando e explorando “novos temas e objetos, imprimindo às análises novas interpretações sobre as diferenças entre homens e mulheres, sobre o corpo, o sexo e as relações sociais.” (BENEDETTI, 2005, p. 26). Concomitantemente ao desenvolvimento conceitual de gênero, pesquisas centram seus estudos na formulação do conceito de transexual, através de argumentos e razões “hegemonizantes e legitimadoras”, cuja classificação teve como fundo inspirador uma “concepção dualista de corpo e conduzindo a uma compreensão do gênero como algo essencializado e imutável.” (BENEDETTI, 2005, p. 26). Visto que essa concepção dual ainda é legitimada pelos meios midiáticos, fundante de um senso comum e, segundo apresenta Benedetti (2005), pelo próprio movimento transexual. Ao discorrer sobre o fenômeno da transformação do gênero, Benedetti (2006, p. 26) esclarece que a “fórmula alma/mente de mulher em corpo de homem é ainda corrente em boa parte da produção teórica” sobre a temática. Nos anos noventa, novos estudos sobre interpretações de “concepções do corpo, do gênero e da sexualidade”, foram responsáveis pelos “deslocamentos teóricos nas perspectivas sobre as transformações do gênero”. Entretanto, esses estudos não se concentraram em uma única abordagem teórica, mas o “objetivo de promover interpretações culturalistas” e abrir espaço para recepção de novas abordagens de orientação sexual. (BENEDETTI, 2005, p. 28).. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(5) Simone Martins. 173. Faz-se necessária a compreensão da palavra gênero, para que não se caia em ambiguidades no sentido ela atribuído. Nicholson (2000, p. 9) define gênero como: referência a personalidade e comportamento, não ao corpo. [...] “gênero” tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos “femininos” de corpos “masculinos”. Esse último uso apareceu quando muitos perceberam que a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo aparece.. A autora (2000, p. 10) fornece a descrição de Joan Scott para o sentido de “gênero” e como ele abrange o “sexo”, destacando que “gênero é a organização social da diferença sexual”, sendo que “o gênero é o conhecimento que estabelece significados para diferenças corporais”. Entretanto, não se podem visualizar as diferenças sexuais senão como uma função de próprio conhecimento sobre o corpo, ressaltando, ainda, que “esse conhecimento não é puro”, nem isolado, mas “espectro de contextos discursivos.” (NICHOLSON, 2000, p. 10). Nesse influxo, o gênero8 tem suas raízes na junção dual do pensamento ocidental moderno com base na materialidade da identidade e “da construção social do caráter humano.” (NICHOLSON, 2000, p. 10). Para Butler, ressalva Bento, a “diferença sexual pode levar a uma coisificação do gênero e a um marco implicitamente heterossexual para a descrição dos gêneros, da identidade de gênero e da sexualidade.” (BENTO, 2006, p. 76). Compreendidas as bases que fundaram o discurso e a normatização jurídica sobre a sexualidade humana no Ocidente (sexo: masculino ou feminino)9, é possível a análise sob a perspectiva autopoiética da criação normativa junto aos Tribunais sobre a questão da transexualidade. Nessa abordagem, o recorte inicial é pela tradução do argumento do próprio Tribunal10, no local de fala decisório, é imperiosa a consideração de uma perspectiva social (que diz respeito ao conteúdo e à forma das relações sociais, cujo desvendamento só se tornou possível a partir da noção de gênero), sob pena de emprestar-se solução jurídica incorreta quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa da Constituição.. 7. Cf. Martins (2009) para uma melhor compreensão do sentido da transexualidade e as condições de produção de sentido que lhe possibilitou um campo a se questionar uma construção identitária aberta. 8 Cf. Facchini (2005, p. 31), que apresenta a concepção de gênero, segundo o entendimento de Judith Butler, na qual o “gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (concepção jurídica)”. 9 Cf. Martins (2009) para compreender como o movimento feminista vem a contribuir para a formação de novos direitos. 10 Cf. nota 4.. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(6) 174. Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade. A partir da compreensão do código “gênero” incluído na análise criativa do Tribunal, verifica-se o conteúdo e a forma de novas relações sociais, bem como novas expectativas sociais trazidas para o direito. A operação inicial é pelo processo de desconstrução do transexual universal, e que coaduna com o objetivo deste trabalho: a possibilidade de construção social e à resposta pela via do Direito da realidade, por meio da produção normativa do centro decisório. Perceba-se que “a desconstrução do caráter patologizante atribuído pelo saber oficial à experiência transexual”, necessariamente inicia “pela problematização da linguagem que cria e localiza os sujeitos que vivem essa experiência.”11 (BENTO, 2006, p. 43). Bento (2006, p. 44) pontua a nomenclatura oficial do “transexualismo” para uma definição das “pessoas que vivem uma contradição entre o corpo e a subjetividade”. Destaca que “o sufixo ‘ismo’ é denotativo de condutas sexuais perversas”. É toda uma construção lógica de patologização, uma vez que “o saber oficial nomeia as pessoas que passam pelo processo transexualizador de mulher para homem, de ‘transexuais femininos’, e de homem para mulher, de ‘transexuais masculinos’”. Nessa racionalidade, apesar dos transexuais submeterem-se a todos os procedimentos para a “construção de signos corporais socialmente reconhecidos como pertencentes ao gênero de identificação”, subjetivamente não se deslocam “do destino biológico, uma vez que o gênero que significará ‘transexual’ será o de nascimento.” (BENTO, 2006, p. 44). Segundo apresenta a socióloga, não se pode afirmar que exista uma “identidade transexual”, mas “posições de identidades organizadas” por meio de redes de identificações complexas. Essas posições se efetivam “mediante movimentos de negação e afirmação aos modelos. disponibilizados. socialmente para, assim, definir o que seja um/a. homem/mulher de ‘verdade’”. (BENTO, 2006, p. 201). É, pois, nessa linha de construção de uma identidade aberta que os Tribunais são provocados a dizer o direito ou, mesmo, a negá-lo. O que não deve acontecer é um “cego servilismo à lei”, ou seja, que a justiça se atenha ao “espartilho da lei” (CUNHA, 2007, p.. 11. Rocha (p. 1054-1055) destaca que a “Comunicação, para Luhmann, é uma síntese entre a informação, o ato de comunicação e compreensão. Esta síntese é possível dependendo da forma como os meios de comunicação permitem a produção de sentido. Assim, a comunicação não derivaria de suas pretensões de racionalidade consensual. Uma tal. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(7) Simone Martins. 175. 89) sem possibilidades de o sistema abarcar às (reais) expectativas da sociedade12, em outras palavras, que o silêncio negue as novas emergências de direitos.. 3.. O SILÊNCIO LEGISLATIVO E A PRODUÇÃO CRIATIVA DOS TRIBUNAIS Perceber a omissão constitucional quanto à referência da expressão transexual ou transexualismo não significa desproteção jurídica. Os princípios que abarcam a Constituição Federal de 1988 são de ordem universal, inerente a um Estado Democrático, que emerge com fins a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento e a justiça”. Nesse sentido, o referencial é a valorização suprema “de uma sociedade pluralista e sem preconceitos.” (BORDAS; RAYMUNDO; GOLDIM, 2000, p. 172). A tutela específica, em análise no corpus decisório, relaciona-se diretamente ao direito fundamental à identidade sexual, que sem o acesso à cirurgia não é possível ser exercido em sua plenitude13. Há todo um silêncio legislativo nesse aspecto, desde questões de adequação documental pós-cirurgia de redesignação sexual, como o estabelecimento das diretrizes que pontuam a própria questão cirúrgica.14 Segundo apresenta Dias, “o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle”, estabelece no “nascimento uma identidade sexual, teoricamente imutável e única”, entretanto, “a determinação do sexo não decorre exclusivamente de características físicas exteriores.” (DIAS, 2006, p. 119). No discurso jurídico da dignidade humana não pode haver brechas a sentidos que violem esse princípio, nem tampouco propagar a idéia de isonomia, cujo efeito imparcial do julgador venha a ignorar toda essa contradição que é própria de normas de caráter principiológico.. postura permite afirmar que as funções pragmáticas da linguagem nos processos de decisão jurídica, podem e devem ser redefinidas somente no interior dos sistemas”. 12 Cf. Cunha (2007) e sua crítica ao positivismo jurídico e aos procedimentos usuais no Direito real (Law in action) em contraponto ao Direito teórico (Law in the books). 13 No que se refere à necessidade da adequação à identidade sexual, deflagra-se situações embaraçosas e constrangedoras, que passam desde uma simples apresentação de documento de identidade para um caixa de supermercado até a exposição pública quando tem o nome chamado numa fila de espera, são provas de que estas pessoas sofrem diariamente com restrições de direitos fundamentais. 14 Em entrevista à Revista Psique: Ciência & Vida, a advogada Tereza Vieira reforça a importância do Direito para a inserção social pós-cirurgia de redesignação sexual, entendendo a “necessária a adequação de seus documentos, pois sua manutenção impede a inserção social e profissional do indivíduo.” Cf. Melo (2007, p. 79).. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(8) 176. Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade. Não é coerente um discurso jurídico que estabeleça como centro a dignidade e que não responda as produções emergentes sobre “questões como identidade, tolerância, hibridismo,. multiculturalismo,. alteridade,. complexidade. e. heterogeneidade”.. (LINHARES DA SILVA, 2004, p. 278). Verifica-se que silêncio legislativo apresenta-se como uma formação discursiva, uma vez que ao mobilizar a noção de silêncio desenha-se um espaço de (não) identificação do transexual como sujeito de direito. Nesse ponto, identifica-se o paradoxo anteriormente abordado, pois é na própria mobilização da noção de silêncio que se constrói a posição do transexual. Ao legislador cabe a posição tradicional de instituir a lei, distribuir as “identidades” e definir as responsabilidades na vida social. Mas essa mediação criativa não pressupõe uma neutralidade, o que se identifica no próprio silêncio em não responder às expectativas sociais. O legislador faz eco das regras da organização social, atuando como fonte primária (leia-se, tradicional) dessas regras. Por fim, pode-se perceber que é pela estrutura heterarquizada dos Tribunais, enquanto subsistema judiciário em comunicação com o subsistema legislativo, que se opera a desparadoxalização entre o “silêncio” da lei frente às expectativas identitárias transexuais e a “obrigação” do Judiciário em responder a essa expectativa. Nesta produção normativa dinâmica, constrói-se o espaço de inclusão do transexual de forma a dar sentido a sua própria história, graças à comunicação e operatividade destes dois subsistemas do Direito.. 4.. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da mesma forma que a língua, o corpo está submetido à gestão social, enquanto objeto histórico, permeado de normas e de condutas materializadas, cuja indisciplina é controlada, em diversos momentos, pelo silêncio do legislador no que se refere a nãoresposta às expectativas sociais sobre o próprio corpo. Neste espaço, buscou-se a possibilidade de construção da identidade transexual em um locus distinto dos até então designados a ele, por meio do esforço teóricometodológico sistêmico, cuja construção de sentido dá-se pelo deslocamento da lei como centro produtivo normativo para um novo centro: os Tribunais.. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(9) Simone Martins. 177. A partir de uma base teórica em Jean Clam, por meio de uma (re)leitura do sistema autopoiético em Luhmann, pode-se pensar em posições normativas, tendo impulso inicial a formação do discurso legal – que repercute na ausência de tutela específica – para o discurso criativo normatizador sobre a sexualidade humana pela fala do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o que possibilitou a análise sob a perspectiva autopoiética da criação normativa junto aos Tribunais sobre a questão da transexualidade. É possível recusar-se, assim, o conceito de identidade generalizante e universal da experiência transexual, pela construção da diferença emancipatória, vista sobre a operatividade desparadoxalizante dentro do subsistema judiciário em comunicação com o subsistema legal. Conclui-se, ainda, que os paradoxos que se formam no interior de cada subsistema do Direito não encerra como num filme sem desfecho final, uma vez que, o próprio sistema do Direito, por meio da renovação de seus códigos alimenta o programa e apresenta, nessa estrutura hierárquica, a solução à expectativa demandada. Com isso, a multiplicidade emergente de novos direitos não fica a mercê da criação legiferante, ou de novos âmbitos produtivos e espaços regulatórios. O paradoxo se resolve no próprio sistema pela centralização dos Tribunais como criador e vinculador de novos conteúdos jurídicos.. REFERÊNCIAS BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. CLAM, Jean. A autopoiese no direito. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ________. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo, sóefetuação. São Leopoldo: Unisinos, 2006. (Coleção Díke). CUNHA, Paulo Ferreira da. A constituição viva: cidadania e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. DE MARCO, Anelise. Os princípios constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro e a aplicação da teoria dos sistemas. In: SCHWARTZ, Germano. (Org.). Autopoiese e constituição: os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis, Rio de Janeiro: 2009. MARITAN, Jacques. Sete lições do ser. (Prefácio). 3. ed. São Paulo: Loyola, 2005. (Leituras Filosóficas).. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

(10) 178. Abordagem autopoiética e a posição dos tribunais no sistema jurídico frente às demandas de transexualidade. MARTINS, Simone. A produção discursiva de um novo paradigma sexual: a transexualidade. Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 42, p. 91-97, jul./set., 2008. ________. Realidades, memória, tensões sociais e direito. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 44, p. 81-88, jan./mar., 2009. MELO, Anna. Transexualidade: um drama existencial. Psique: Revista Ciência & Vida. Ano II, n.22, p. 72-80, 2007. NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista de Estudos Femininos, v. 8, n. 2, Santa Catarina: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2000, p. 9-41. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal. Apelação Cível. Direito Constitucional. Transexualismo. Inclusão na tabela SIH-SUS de procedimentos médicos de transgenitalização. Princípio da igualdade e proibição de discriminação por motivo de sexo. Discriminação por motivo de gênero. Direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade e respeito à dignidade humana. Dirieto à saúde. Força normativa da Constituição. Apelação Cível n° 2001.71.00.026279-9/RS. Apelante Ministério Público Federal e Apelado União Federal. Relator Juiz Federal Roger Raupp Rios. 14 de agosto de 2007. D.E., publicado em 23 de agosto de 2007. ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativa ao construtivismo sistêmico. In: Studia Jurica. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, n. 190, p. 1033-1065. Simone Martins Advogada, Mestranda em Direito Público no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, linha de pesquisa em Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização. Pesquisadora do CNPq em Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição. Professora da Faculdade Anhanguera de Passo Fundo (RS).. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 169-178.

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