• Nenhum resultado encontrado

JURISDIÇÃO UNIVERSAL E IMUNIDADE DIPLOMÁTICA: O CASO YERODIA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "JURISDIÇÃO UNIVERSAL E IMUNIDADE DIPLOMÁTICA: O CASO YERODIA"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)

JURISDIÇÃO UNIVERSAL E IMUNIDADE DIPLOMÁTICA: O CASO

YERODIA

Carlos Henrique Barbosa 1 Vinícius Nathan de Carvalho Pereira2

Resumo: Busca-se analisar no presente artigo acerca do princípio da jurisdição universal, bem como o princípio da imunidade diplomática, focando nas especificidades do caso do Ex-Ministro Yerodia.

Palavras Chaves: Direito Internacional; Jurisdição Universal; Direito Internacional Penal; Imunidade Diplomática.

UNIVERSAL JURISDICTION AND DIPLOMATIC IMMUNITY: THE YERODIA CASE

Abstract: The purpose of this article is to analyze the principle of universal jurisdiction, as well as the principle of diplomatic immunity, focusing on the specificities of the case of former Minister Yerodia.

Key Words: International Law; Universal Jurisdiction; International Criminal Law; Diplomatic immunity.

                                                                                                                         

1Professor do Centro Universitário UNA. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica -

PUC/Minas. Advogado.

2 Advogado, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNA, Pós-Graduado em Direitos Humanos e Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas, Menção em Direito Internacional Público e Europeu pela Faculdade 2 Advogado, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNA, Pós-Graduado em Direitos Humanos e Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas, Menção em Direito Internacional Público e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Email: vini.nathan@hotmail.com

(2)

I - INTRODUÇÃO 1 - Histórico do caso 2 - A jurisdição universal 2.1 - O projeto de Princeton sobre jurisdição universal 3-Da imunidade de jurisdição penal II- CONCLUSÃO III – REFERÊNCIAS

 

I – INTRODUÇÃO

Entre os anos de 1999 e 2000, Abdoulaye Yerodia Ndombasi foi o Ministro das Relações Exteriores da República Democrática do Congo (RDC). Em abril do ano 2000, Yerodia, ainda Ministro, foi acusado por uma Corte da Bélgica de crimes contra a humanidade, em especial, a incitação ao ódio racial, sendo expedido por um tribunal belga, um mandando de prisão e extradição à Bélgica, vinculado a todos os Estados e a lista A da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol).

A decisão se baseou no princípio da jurisdição universal, no qual um Estado soberano pode reivindicar jurisdição sobre determinado crime, independentemente do local de ocorrência, desde que notório, devido à sua gravidade, fundamentando que o crime cometido é um crime contra todos.

No caso em epígrafe, dois aspetos importantes mereceram avaliações pormenorizadas, sendo, em primeiro plano, quanto à utilização da jurisdição e, em segundo, quanto à imunidade diplomática dos oficiais diplomáticos em exercício da função, pois Yerodia era Ministro das Relações Exteriores da RDC, devendo possuir a dita imunidade.

Dessa forma, o presente estudo discorrerá sobre o princípio da jurisdição universal, bem como o princípio da imunidade diplomática, focando nas especificidades do caso do Ex-Ministro Yerodia.

(3)

1 - Histórico do caso

A República Democrática do Congo já foi conhecida como Estado Livre do Congo, Congo Belga, República do Congo (Léopoldville) e República do Zaire. Entre os anos de 1965 a 1997, estava sob regime ditatorial, com o comando de Mobutu Sese Seko. Com o fim da ditadura em 1997, Laurent-Désiré Kabila assumiu o poder como presidente e retornou o nome do país para República Democrática do Congo.

Abdoulaye Yerodia Ndombasi foi um oficial de alta patente no governo Kabila, de 1997 a 1999, tendo sido diretor do gabinete para o presidente. De 1999 ao ano 2000, Yerodia foi o Ministro das Relações Exteriores. Em 2003, ele tornou-se um dos quatro vice-presidentes do governo de transição de Joseph Kabila e, em 2007, elegeu-se Senador do Congo.

Yerodia foi acusado, em abril de 2000, de ter proferido uma série de discursos durante o mês de agosto de 1998, incitando violência racial, fomentando tratamentos violentos ao grupo étnico Tutsi3 no Congo. De acordo com a denúncia, seus discursos levaram à morte de centenas de pessoas da etnia Tutsis em Kinshasa4, bem como à internações impróprias, execuções sumárias, prisões arbitrárias e julgamentos injustos dos membros desses grupos.

As acusações contra Yerodia foram baseadas na lei interna da Bélgica, de 16 de junho de 1993, que contêm as sanções para infrações graves ao Direito Internacional Humanitário e as Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos adicionais I e II, de 1977. A citada legislação prevê a possibilidade de se processar um agente, ainda que não exista conexões territoriais ou de nacionalidade entre o crime e a Bélgica, conjuntamente com a legislação de sanções a infrações ao Direito Internacional Humanitário.

Dessa forma, em 11 de abril de 2000, um juiz de um Tribunal de primeira instância da Bélgica emitiu um mandado de prisão internacional contra Yerodia, com a acusação de uma série de violações ao Direito Internacional Humanitário. A lei, em que esse pedido se baseava, desconsiderava a imunidade jurisdicional existente em razão do cargo exercido por um indivíduo que cometesse esses crimes, para que ela não constitua uma barreira para a ação penal, atribuindo uma competência universal aos tribunais belgas para esses crimes.

                                                                                                                         

3 Grupo étnico que possui representantes vivendo em Ruanda e no Burundi.

4 Kinshasa é a capital e a maior cidade da República Democrática do Congo. Constitui uma cidade com estatuto equivalente ao das províncias. Em 2004, contava com cerca de sete milhões de habitantes.

(4)

À época, Yerodia era Ministro das Relações Exteriores do governo do Congo e, entretanto, o mandado de prisão expunha que a posição de Ministro das Relações Exteriores não implicava em imunidade da jurisdição daquele tribunal, sendo ele, portanto, competente para expedir o mandado5.

Em outubro de 2000, o governo do Congo apresentou uma ação à CIJ, solicitando que a Corte declarasse a obrigação da Bélgica de cancelar o mandado6. Alegou que a Bélgica havia violado o Direito Internacional costumeiro, especialmente os direitos à inviolabilidade absoluta e imunidade dos Ministros de Relações Exteriores. Afirmou, inicialmente, que o juiz de primeira instância belga não poderia se colocar como competente para julgar os crimes em que Yerodia era acusado, pois ao basear-se nesse princípio da jurisdição universal violava os artºs 1º e 2º da Carta das Nações Unidas, onde um Estado não pode exercer a sua autoridade no território de outro e violava também o princípio da igualdade soberana dos Estados(RIBEIRO; COUTINHO, 2016, P. 259).

Em seguida, afirmou que a Bélgica estava exercendo sua jurisdição no Direito Internacional sem considerar as imunidades jurisdicionais dos Ministros das Relações Exteriores. Posteriormente, o Congo alterou a queixa apresentada à Corte, limitando o foco apenas na imunidade diplomática de seu Ministro.

O Congo ainda solicitou medidas saneadoras da querela à luz do artigo 48º do Estatuto7, alegando que a prisão do seu Ministro impediria o exercício de suas funções. No entanto, pouco tempo depois disso Yerodia deixou o cargo, acabando com o objeto desse pedido. Ainda assim, o processo continuou, pois, o mandado de prisão continuava em aberto.

A Bélgica alegou que a CIJ não dispunha de jurisdição para o caso em questão, pois como Yerodia não era mais Ministro do governo da RDC não havia mais o objeto da petição

inicial da RDC, sendo o caso materialmente diferente depois da saída do Ministro do cargo, não existindo mais a competência da CIJ para julgá-lo (ICJ-  Arrest Warrant of 11 April 2000;   Democratic Republic of the Congo v. Belgium, p. 35).

                                                                                                                         

5 Conforme a decisão de 11 de abril de 2000: “ès lors, la qualité de ministre des Affaires étrangères que possède à l'heure actuelle l'inculpé n'entraîne pas d'immunité de juridiction et d'exécution et le tribunal de céans est, par conséquent, pour prendre la présente décision”.

6 Conforme a decisão da Corte, no original: “The Court is requested to declare that the Kingdom of Belgium shall annul the international arrest warrant issued on 11 April 2000 by a Belgian investigating judge, Mr. Vandermeersch, of the Brussels tribunal de première instance against the Minister for Foreign Affairs in office of the Democratic Republic of the Congo, Mr. Adbulaye Yerodia Ndombasi, seeking his provisional detention pending a request for extradition to Belgium for alleged crimes constituting ‘serious violations of international humanitarian law’, that warrant having been circulated by the judge to all States, including the Democratic Republic of the Congo, which received it 34 on 12 July 2000.”

(5)

Em fevereiro de 2002, a CIJ, em conformidade com a queixa, concluiu apenas sobre a imunidade, devido a alteração procedida pelo Congo. Inicialmente, recusou as objeções de sua competência e admissibilidade alegadas pela Bélgica, baseadas na saída de Yerodia do cargo. A Corte também constatou que a jurisdição universal provida pela lei belga de 1993 não infringia qualquer padrão de legislação internacional, apenas entrava no âmbito da soberania dos Estados. (ICJ-  Arrest Warrant of 11 April 2000;  Democratic Republic of the Congo v. Belgium, p 32/115.)

Após isso, afirmou que o mandado de prisão contra Yerodia não respeitava a sua imunidade do cargo de Ministro das Relações Exteriores, tanto de jurisdição criminal quanto de inviolabilidade8, uma vez que o objetivo dessas imunidades é facilitar e permitir que os Ministros consigam exercer suas funções de forma efetiva, alegando ainda que o Direito Internacional atribuiu especial peso aos atos desses Ministros, que se presume possuírem poderes representativos, conforme o artigo 7º, nº 2 alínea a) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados. (RIBEIRO; COUTINHO, 2016, P. 260).

A Corte ressaltou que a imunidade jurisdicional dos Ministros de Negócios Estrangeiros não significa que eles ficarão impunes pelos crimes que tenham cometido, seja qual for a sua gravidade. A imunidade jurisdicional possui natureza processual, enquanto a responsabilidade criminal é referente a um direito substantivo. Assim, essa imunidade impede a acusação por um certo período ou sobre algum crime, mas não exonera a pessoa da responsabilidade criminal.

Neste sentido, a imunidade dos Ministros de Negócios Estrangeiros não impede de serem acusados em quatro situações: i) se forem acusados e julgados no próprio Estado em que são nacionais, conforme o seu direito interno; ii) se os Estados em que são nacionais renunciarem à concessão de imunidade dos atos cometidos nas funções; iii) a cessação das funções, sob os atos cometidos antes, durante ou depois, em capacidade privada; IV) em procedimentos criminais iniciados por tribunais penais internacionais, quando assim os respetivos estatutos permitirem. (RIBEIRO; COUTINHO, 2016, p. 261).

Em conclusão, constatado que Yerodia não preenchia essas exceções, a Corte afirmou que a Bélgica havia violado a sua imunidade e determinou que a Bélgica cancelasse o mandado contra o Ministro, informando as respetivas autoridades.

                                                                                                                         

8 No original: “that the issue against Mr. Abdulaye Yerodia Ndombasi of the arrest warrant of 11 April 2000, and its international circulation, constituted violations of a legal obligation of the Kingdom of Belgium towards the Democratic Republic of the Congo, in that they failed to respect the immunity from criminal jurisdiction and the inviolability which the incumbent Minister for Foreign Affairs of the Democratic Republic of the Congo enjoyed under international law”.

(6)

2 - A Jurisdição Universal

O princípio da jurisdição universal ou competência repressiva universal nasceu através da busca pelo fim da impunidade perante graves violações aos direitos humanos, protegidas pela soberania dos Estados. Dessa forma, busca-se o respeito e proteção aos preceitos fundamentais estabelecidos pelos direitos humanos, ultrapassando a soberania, com base na igualdade entre os Estados. O objetivo é impedir a impunibilidade, condenando os agentes dessas afrontas à humanidade, independentemente de quem seja. Desta forma, essa seria uma implementação indireta do Direito Internacional Penal pelos Estados. (CANÇADO TRINDADE, 2005, p.435)  

As origens da jurisdição universal remontam ao séc. XVIII, com as primeiras aplicações de uma ideia de competência universal, buscando a repressão e punição à pirataria em alto-mar que, à época, causava múltiplos prejuízos, levando à realização do Congresso de Paris, em 1856, dispondo quanto à punição ao crime, até então costumeira, para o conjunto de ações violentas contra pessoas e bens visando lucros em alto mar, conhecida como Pirataria.(FERREIRA DE ALMEIDA, 2009, p. 167)

Os crimes bárbaros cometidos durante a Segunda Guerra Mundial foram determinantes para o desenvolvimento do Direito Internacional Penal e, consequentemente, para esse princípio. A Convenção de Genebra de 1949 e protocolos adicionais I e II, trouxeram, em sequência, múltiplas inovações para a instituição de uma cooperação entre os Estados, visando a punição por graves violações humanitárias (FERREIRA DE ALMEIDA, 2009, p. 168), comprometendo as partes a julgar os acusados de violar as leis e costumes da guerra, independentemente de sua nacionalidade.

Outras convenções foram feitas ao longo do tempo, trazendo a ideia de uma jurisdição universal própria onde cada uma das convenções se referia à certos crimes internacionais, como as Convenções de Haia de 1970 e a Convenção de Montreal de 1971, referentes à segurança de navegação aérea, tendo como base o princípio aut dedere aut judicare, ou seja, conforme ATREATO (2016) “extraditar ou julgar”, algo que, segundo FERREIRA DE ALMEIDA(2009, p. 168), “se erige em instrumento indispensável de concretização do princípio da jurisdição universal.”

A Convenção sobre o Genocídio de 1948 dispunha que os acusados desse crime poderiam ser julgados pelo tribunal competente do território do crime ou por um tribunal internacional, o qual as partes tiverem aderido. Porém, ainda que o direito convencional não

(7)

determine a aplicação do princípio a determinado crime, nada impede que possa ser aplicado ao Direito Internacional costumeiro, como no Caso Eichmann, relevante para esse princípio por vários aspetos.

Adolf Eichmann foi um oficial alemão durante a Segunda Guerra Mundial, acusado de crimes contra a humanidade, crimes contra o povo judeu, crimes de guerra e por participar de organização hostil. Fugiu para a Argentina ao fim da Segunda Grande Guerra, tendo sido localizado pelo serviço secreto israelense que o capturou e o conduziu, clandestinamente, para ser julgado em Israel.

A primeira observação a ser feita ao caso prende-se à ação do serviço secreto israelense em território estrangeiro, uma vez que o tribunal israelense afirmou que não poderia argumentar sobre o modo de extradição do acusado, pois não existia qualquer acordo de extradição entre Israel e a Argentina. Contudo, ainda que tenha sido mais uma violação dos direitos do Estado argentino, do que dos direitos do acusado, a Argentina se deu por satisfeita com uma resolução do Conselho de Segurança, que repudiou a ação de Israel, considerando-a uma vitoria técnica, entendendo-a como uma reparação suficiente.

A segunda observação refere-se à realização do julgamento em Israel, ainda que os crimes não tivessem sido cometidos naquele país e o acusado não fosse cidadão de Israel. Foi apresentada como justificativa que sendo fugitivo da justiça, conforme as normas de jus cogents e com base no princípio da jurisdição universal, Israel teria a competência para julgar, na medida que o crime foi grave, a ponto de atingir a todos e, em sentido nacional, pois eram vitimas israelenses. Por fim, Adolf Eichmann foi condenado à morte em 15 de dezembro de 1961, considerado culpado de crimes contra o povo judeu. Ele foi enforcado à meia-noite, entre 31 de maio e 1 de junho de 1962.

Outro caso de grande relevância, foi o Caso Pinochet, que ocorreu em 1998, quando Augusto Pinochet, ex-ditador chileno, e então Senador Vitalício do Chile, viajou para a Inglaterra com intuito de realizar uma cirurgia nas costas e, durante o período de recuperação no hospital, foi preso pela policia britânica no cumprimento de um mandado judicial advindo da Espanha, onde Pinochet era investigado por várias mortes de cidadãos espanhóis no Chile, durante um período de 17 anos em que ele havia comandando o país como ditador, em especial, na Operação Condor, realizada nas décadas de 1960 e 1970. O juiz espanhol Baltasar Garzón acusou Pinochet de genocídio, terrorismo, torturas e crimes contra a humanidade.(BANDARRA, 2014)

Augusto Pinochet foi o primeiro ex-Chefe de Estado que figurou como réu, existindo uma grande diferença do caso Eichmann, pois Pinochet deveria gozar de imunidade pelos atos

(8)

praticados devido ao seu cargo. Assim, inicialmente, um tribunal divisional inglês emitiu parecer alegando que Pinochet seria imune, uma vez que era ex-chefe de Estado. Este parecer foi contestado por várias organizações de defesa dos Direitos Humanos que afirmaram que a imunidade abrange apenas atos oficiais realizados pelos Chefes de Estado. Por outro lado, os advogados do Ex-Lider afirmaram que os atos alegados eram oficiais e, portanto, englobados por essa imunidade.  (BANDARRA, 2014)

A Câmara dos Lords inglesa emitiu, porém, três decisões distintas a respeito dessa imunidade. Na primeira, a Câmara impugnou a imunidade do Senador, fundamentando o entendimento que a pratica de tortura não é cabível como ato oficial. Em sequência, descobriu-se que um dos membros da Câmara, que participou da decisão, possuía relações próximas com a Amnistia Internacional, razão pela qual a primeira decisão foi derrogada.

Na terceira decisão, também se concluiu pela não imunidade de Pinochet, mas com base no princípio da dupla incriminação, onde uma pessoa pode ser extraditada para um país o qual infringiu uma lei daquele, no âmbito em que ambos os países possuíssem leis parecidas. Já sobre o alegado crime de tortura, foi considerado um crime de jus cogens, sendo assim passível de ser julgado conforme o princípio da jurisdição universal e o princípio do aut dedere aut judicare. Contudo, essa alegação foi desconsiderada, pois a Convenção Contra Tortura foi incorporada ao direito inglês em 1988, ou seja, após o cometimento dos alegados crimes.

Após essa terceira decisão, o juiz espanhol afirmou que encontrou outras 30 acusações contra Pinochet de datas posteriores à incorporação da referida convenção pela Inglaterra. Assim, a decisão coube ao Secretário para Assuntos Internos inglês, Jack Straw, que baseado nos pareceres da Câmara dos Lords sobre a imunidade permitiu, em um primeiro momento, a extradição do Senador por crimes cometidos após 1988. Porém, após a defesa de Pinochet recorrer, alegando o delicado quadro de saúde do Ex-Ditador, Straw liberou o Senador baseando-se nos vários relatórios médicos e decisões da própria Câmara dos Lords. Dessa forma, Pinochet retornou ao Chile, local onde faleceu em 2006.

Segundo a doutrina de RAMOS (2012, p. 82) a jurisdição universal se divide em dois tipos: O primeiro é a Jurisdição Universal Comum, baseada no dever de punir e no princípio do aut dedere aut judicare9, visando impedir a criação de paraísos seguros da criminalidade, estando essa forma presente na Convenção da ONU sobre Crime Organizado Transnacional. O segundo é a Jurisdição Universal Especial ou Qualificada que foca em impedir que                                                                                                                          

9 Essa disposição também está presente no artigo 11º, §3 do Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul.

(9)

indivíduos, especialmente, agentes públicos, em coerência com a lei local, violem leis internacionais basilares, como no Caso Pinochet, por exemplo.

RAMOS (2012, p. 82), coloca essa forma especial da Jurisdição Universal se subdividindo em duas formas: primeiramente, a Jurisdição Universal Qualificada Condicional exige que o acusado esteja no território do Estado julgador para que se inicie o processo. A segunda forma, conhecida como Jurisdição Universal Qualificada Absoluta ou in Absentia permite a aplicação da lei mesmo na ausência do agente do crime no território do Estado julgador. Essa forma foi a utilizada no caso Yerodia, mas, conforme demonstrado, a CIJ não considerou existir algum costume internacional que desse amparo à legislação belga, dessa forma, sem que o acusado estivesse em território belga.

Essa forma de jurisdição Absoluta também é utilizada no sistema “difusão vermelha” da Interpol, o que gera uma solicitação de prisão para uma futura extradição aos Estados-Membros da Interpol.

2.1 - O projeto de Princeton sobre jurisdição universal

Em 2001, o Projeto de Princeton10 dispõe de quatorze princípios, criando parâmetros a serem observados sobre a Jurisdição Universal. Esse projeto definiu que a Jurisdição Universal seria, no sentido de uma jurisdição, baseada solenemente na natureza do crime, que as Cortes nacionais utilizariam para processar e punir, desencorajando os atos hediondos reconhecidos como crimes graves sob o Direito Internacional. (Princeton Project On Universal Jurisdiction, 2001, p. 23.)

Segundo o Projeto, a jurisdição não deve considerar o local onde o crime ocorreu, nem a nacionalidade do acusado ou da vítima, nem qualquer outra conexão entre o Estado que exercer essa jurisdição e o crime.

O projeto, em seu princípio nº 2, dispõe o que se entende por crimes graves para efeitos dos princípios: a pirataria, a escravidão, os crimes de guerra, os crimes contra a paz, os crimes contra a Humanidade, o genocídio e a tortura11, que, em conjunto com os crimes sujeitos à competência do TPI, conforme o Estatuto de Roma: genocídio, os crimes de guerra,

                                                                                                                         

10 Projeto realizado em 2001 pela Universidade de Princeton, New Jersey, EUA.

11 Princeton Project On Universal Jurisdiction, 2001, p. 29 “Principle 2: Serious Crimes Under International Law 1. For purposes of these Principles, serious crimes under international law include: (1) piracy; (2) slavery;(3) war crimes; (4) crimes against peace; (5) crimes against humanity; (6) genocide; and (7) torture.”

(10)

a agressão e os crimes contra a Humanidade, equivalem à um “verdadeiro código criminal internacional”. (ROCHA, 2008)

O projeto elabora ainda, conforme o princípio 10º, bases legais para um Estado se negar a extraditar um acusado, nos casos em que existir o risco de pena de morte, tortura, tratamentos desumanos ou qualquer outro tratamento cruel ou de o acusado ser submetido à um julgamento falso e não existir garantias do contrário.

3 - Da imunidade de jurisdição penal

A busca pela proteção de agentes diplomáticos não é algo recente. Em 1815, foi estabelecido o Règlement de Viena, classificando-se os tipos de agentes diplomáticos, tornando uma convenção às regras que, até então, eram regidas unicamente pelos costumes. (REZEK, 2005, p.167)

Em 1961, foi realizada a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas que demonstrou a necessidade da existência das imunidades diplomáticas para auxiliar na cooperação e desenvolvimento entre os Estados, fortalecendo a eficácia das missões diplomáticas pelos representantes dos Estados, conforme dispunha em seu preâmbulo:

“(...) Estimando que uma Convenção Internacional sobre relações, privilégios e imunidades diplomáticas contribuirá para o desenvolvimento de relações amistosas entre as Nações, independentemente da diversidade dos seus regimes constitucionais e sociais; Reconhecendo que a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas, sim, a de garantir o eficaz desempenho das funções das Missões diplomáticas, em seu caráter de representantes dos Estados”.

(Preâmbulo da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas 1961)

Em sequência, em 1963, houve a Convenção de Viena sobre Relações Consulares que dispôs, em seu preâmbulo, sobre a utilização das imunidades para se aumentar a eficácia das funções consulares dos Estados:

“(...) Persuadidos de que uma convenção internacional sobre as relações, privilégios e imunidades consulares contribuiria também para o desenvolvimento de relações amistosas entre os países, independentemente dos seus regimes constitucionais e sociais, Convencidos de que a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas assegurar o eficaz desempenho das funções dos postos consulares, em nome dos seus respectivos Estados (...).”(Convenção de Viena sobre Relações Consulares, 1963)

Observa-se nessa evolução uma busca contínua, tanto da doutrina, quanto da jurisprudência dos Estados, em proteger a imunidade de jurisdição penal dos agentes dos

(11)

Estados, não sendo passíveis de serem investigados por autoridade judicial ou policial ou por nenhuma autoridade judiciária, válido para atos realizados tanto no exercício da função, quanto privados, enquanto estiverem no cargo. A própria Convenção de Viena de 1961 enfatizava essa imunidade em seu artigo 31, §112.

Dessa forma, verifica-se que as Imunidades Diplomáticas não possuem como objetivo a criação de privilégios e sim a necessidade de auxílio na cooperação entre os países e, consequentemente, na eficácia das relações consulares dos mesmos.

Não se espera que o agente obtenha impunidade quanto aos crimes praticados, mas sim que ao retornar ao seu Estado de origem seja julgado pelos crimes praticados em outros países. A imunidade não impede também que a polícia do local dos crimes investigue e obtenha informações e provas, objetivando a sua utilização no país de origem do agente com imunidade diplomática. (REZEK, 2005, p.172). No Tratado de Roma, o Tribunal Penal internacional (TPI) trouxe, a partir de 2002, uma exceção à essa imunidade, nos casos em que agentes diplomáticos pratiquem crimes graves.

A Imunidade de Jurisdição Penal divide-se em dois tipos: i) as imunidades funcionais, ratione materiae; e ii) as imunidades pessoais, ratione personae. A primeira protege os agentes face aos tribunais estrangeiros quanto aos atos realizados no exercício de suas funções, levando em conta a ideia de que o ato é praticado pelo Estado o qual ele representa e não pelo agente, não sendo assim esse agente passível de ser processado por outros Estados, pois seria considerado um ataque à igualdade, soberania e em si mesmo uma ingerência. (FERREIRA DE ALMEIDA, 2009, p. 373-401) Contudo, embora os próprios Estados possuam imunidades, os mesmos podem ser responsabilizados internacionalmente por esses atos. (SANTOS, 2005, p.18)

Essa imunidade possui aplicação erga omnes, pois, conforme o princípio da não-ingerência13, essa imunidade pode ser invocada por qualquer Estado, salientando que a não ingerência nos assuntos internos é imposta a todos os Estados. (SANTOS, 2005, p.20)

Por outro lado, as imunidades ratione personae buscam que determinados representantes estatais exerçam as suas funções sem obstáculos, incidindo em todos os atos do funcionário do Estado, independentemente de serem atos privados ou em exercício de funções, antes ou depois de assumir as funções em representação do Estado. Contudo, essas

                                                                                                                         

12 Conforme disposto no preâmbulo da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961): “art. 31 §1: O agente diplomático gozará de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado.”

13 O Principio da Não-Ingerência é o que estabelece o respeito mútuo entre Estados soberanos e entre outros membros da sociedade internacional, visando a não-interferência nos assuntos internos de cada país conforme: UNITED NATIONS. Resolution 2625 (XXV, 24 October 1970).

(12)

imunidades penais não prevalecem ao fim da função que esse agente exerce, sendo estes passíveis de punição por crimes cometidos ainda que no cargo. Tal constatação foi feita em vários casos de destaque, como no caso Pinochet e no Yerodia, onde houve o reconhecimento de que ele não poderia ser processado ou preso por crimes internacionais os beneficiários das imunidades, enquanto na função, podendo ser processados, com o fim da função. (SANTOS, 2005, p.19) Ressalta-se que a proteção diplomática é um direito do Estado, cabendo a este dispor dele ou não.

II – CONCLUSÃO

O presente estudo elucidou sobre a Imunidade de Jurisdição Penal e a Jurisdição Universal, com as suas formas e caraterísticas, especialmente sobre o caso Bélgica versus Congo, onde existiu a tentativa de utilização de uma das formas desse princípio.

A compreensão do histórico da Jurisdição Universal no mundo e seus principais casos, como o caso Eichmann e o caso Pinochet, foram de grande contribuição para o desenvolvimento do trabalho, propiciando o entendimento do caminho percorrido até aos dias atuais e seus principais pontos.

Neste sentido, encontramos as formas de Jurisdição Universal Comum e Qualificada, especificando os subtipos da última, que se dividem em Jurisdição Universal Qualificada Condicional e Jurisdição Universal Qualificada Absoluta, elucidando as suas principais caraterísticas quanto as imunidades diplomáticas e a persecução quanto ao cometimento de crimes em Estados estrangeiros.

No mesmo enfoque, constata-se a importância das contribuições trazidas pelo Projeto de Princeton sobre Jurisdição Universal, que criou parâmetros e limites à esse princípio, bem como excludentes de extradições com base em suas diretrizes.

Por fim, a presente pesquisa propiciou visualizar a dimensão histórica desse princípio e a sua importância para o Direito Internacional, colocando em primazia a proteção aos Direitos Humanos e demonstrando a necessidade de fornecer instrumentos legais para que crimes graves contra a humanidade não acabem impunes sob a proteção diplomática dos agentes dos Estados, prevalecendo, dessa forma, uma justiça mais eficiente.

(13)

ALMEIDA, Francisco António de Macedo Lucas Ferreira de. O Princípio Da Não Ingerência e o Direito Internacional Humanitário. Coimbra: Separata do Boletim da Faculdade de Direito, Vol. 71, pp. 373-401, 1995.

______. Direito Internacional Público. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

______. Os Crimes Contra a Humanidade no Actual Direito Internacional Penal. Coimbra: Almedina, 2009.

ARRONDISSEMENT DE BRUXELLES TRIBUNAL DE PREMIERE INSTANCE. PRO JUSTITIA: Mandat D'arret International Par Defaut Dossier n° 40/99, Notices n° 30.99.3787/99 En Cause De Monsieur Abdulaye Yerodia Ndombasi. Bruxelas: abril de 2000.

Disponível em: <

http://www.haguejusticeportal.net/Docs/Miscellaneous/Yerodia_mandat_arret_11-4-2000.pdf>. Acesso em: 1 de junho de 2017.

ATREATO, Danilo. Extradite ou Processe. Disponível em: < https://daniloandreato.com.br/tag/aut-dedere-aut-judicare/> Acesso em: 17 de maio de 2017. BANDARRA, Leonardo Carvalho Leite Azeredo. Princípio da “jurisdição universal” no caso Pinochet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n.º 4020, 4 jul. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28590>. Acesso em: 20 de maio de 2017.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. International law for humankind: towards a new jus gentium (I): general course on public international law. Haia: Martinus Hijhoff Publishers, 2005.

CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES CONSULARES. 1963. Disponível em: <https://docentes.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/FPC_MA_16049.pdf>. Acesso em: 07 de maio de 2017.

CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS. 1961. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D56435.htm>. Acesso em: 07 de maio de 2017.

FREIRE E ALMEIDA, D. Relações Internacionais, Diplomatas, Cônsules E Os Tratados Internacionais. USA: Lawinter.com, abril, 2005. Disponível em: <www.lawinter.com/62005hridfalawinter.htm >. Acesso em: 13 de maio de 2017.

GARCIA, Wander (coordenador). Super-Revisao Concursos Juridicos - Doutrina Completa. 4ª Ed. São Paulo: FOCO, 2016.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Arrest Warrant of 11 April 2000 (Democratic Republic of the Congo v. Belgium). Disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/files/121/8304.pdf. Acesso em: 01 de junho de 2016.

PRINCETON PROJECT ON UNIVERSAL JURISDICTION. The Princeton Principles on Universal Jurisdiction. Princeton: Princeton University, 2001.

(14)

RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional De Direitos Humanos. 2. ed., São Paulo : Saraiva, 2012.

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 10 ed., São Paulo: Saraiva, 2005.

RIBEIRO, Manuel de Almeida; COUTINHO, Francisco Pereira. Jurisprudência Resumida do Tribunal Internacional de Justiça (1947-2015). Alfragide: D. Quixote, 2016.

ROCHA, Manoel Leonilson Bezerra. Crimes contra o meio ambiente estão acima da soberania do país. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-abr-10/crimes_meio_ambiente_acima_soberania>. Acesso em: 22 de maio de 2017.

SANTOS, Felipe Correira. Imunidades dos Chefes de Estados. Dissertação de Mestrado, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2005.

SICARI, Vincenzo Rocco. O Direito das Relações Diplomáticas. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

UNITED NATIONS. Resolution 2625(XXV, 24 October 1970): Declaration On Principles Of International Law Concerning Friendly Relations And Cooperation Among States In Accordance With The Charter Of The United Nations. Disponível em: <https://documents-ddsny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/348/90/IMG/NR034890.pdf?OpenElement>. Acesso em: 1 de junho de 2017.

Referências

Documentos relacionados

A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se baseia no fato de que uma

Explorando as questões relativas às comunidades disciplinares e epistêmicas, o artigo de Tânia Beraldo e Ozerina Oliveira, “Comunidades Epistêmicas e desafios da

RESUMEN: Este texto analiza una decisión inédita de la Corte Suprema de Brasil según la cual los actos ilícitos cometidos por Estados extranjeros en violación de los derechos

A relativização da imunidade de jurisdição Seguindo a lógica da Corte Europeia de Direitos Humanos de que a imunidade só seria uma limitação válida ao direito de acesso

PNMFA = Parque Natural Municipal Fazenda Atalaia; EEEP = Estação Ecológica Estadual do Paraíso; MC = Mata do Carvão; IMBE = Região do Imbé; IMBAU = Região do Imbaú; MRV =

Como é inegável que os meios magnéticos, produtos da moderna tecnologia, são hoje de fundamental importância para a realização desse mesmo objetivo, a

Estudos recentes têm demonstrado que a maturação e a função da camada de muco são fortemente influenciadas pela microbiota intestinal, enquanto os tipos de açúcares encontrados

TST, Brasília, vol... TST,