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Primeiramente, liberdade a Rafael Braga! O tom da democracia brasileira: direito de exercer direitos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

JOSÉ ROLFRAN DE SOUZA TAVARES

PRIMEIRAMENTE, LIBERDADE A RAFAEL BRAGA!

O TOM DA DEMOCRACIA BRASILEIRA: DIREITO DE EXERCER DIREITOS

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CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PRIMEIRAMENTE, LIBERDADE A RAFAEL BRAGA!

O TOM DA DEMOCRACIA BRASILEIRA: DIREITO DE EXERCER DIREITOS

JOSÉ ROLFRAN DE SOUZA TAVARES Monografia apresentada como trabalho de conclusão de curso do bacharelado em ciências sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Angela Mercedes Facundo Navia

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Tavares, José Rolfran de Souza.

Primeiramente, liberdade a Rafael Braga! O tom da democracia brasileira: direito de exercer direitos / José Rolfran de Souza Tavares. - 2017.

78f.: il.

Monografia (graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curso de Ciências Sociais (Bacharelado). Natal, RN, 2017.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Angela Mercedes Facundo Navia.

1. Rafael Braga. 2. Democracia. 3. Questão Étnico-racial. 4. Necropolítica. 5. Direitos Humanos. 6. Movimento Negro.

I. Navia, Angela Mercedes Facundo. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 321.7:343.41

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Dedico esse trabalho e toda a energia que há em mim à todas as pessoas que nunca desistiram de ousar sonhar por um mundo sem injustiças.

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onde começo, assim como apreensivo de não lembrar de alguém. Essa graduação foi muito difícil para mim, precisei de muitas pessoas para conseguir chegar até o final. Sou negro, pobre, gay e atrevido, sei como isso é pesado em uma sociedade racista, capitalista e heteronormativa, que nos quer reprimidos ou mortas/mortos. Com certeza não conseguiria chegar em muitos dos cantos onde cheguei se não fosse o afeto e companheirismo da rede maravilhosa de pessoas que estou inserido, juntas/juntos tecemos sonhos e estamos fazendo um outro mundo, onde o que nos machuca não faça mais sentido de existir, nossa luta já está sendo recompensada, acredito que esse trabalho é prova disso, amanhecerá melhor! Perdoe-me se você estiver nessa rede e não for citado/citada, independentemente de qualquer coisa, meu coração está com você.

A primeira pessoa que gostaria de agradecer é minha mãe (Francisca das Chagas de Souza), que em muitos momentos me apoiou nas minhas escolhas e, que mesmo nas vezes que não concordou com o que eu estava achando melhor para mim, nunca me rejeitou, sempre procurou ver formas de não se distanciar de mim, mesmo a gente tendo compreensões tão diferentes. Aprendi muito com a senhora sobre amor e persistência, eu nunca vou esquecer os seus esforços para me ver bem e poder ficar perto de mim, amo-te.

A minha orientadora (Angela Facundo), que além de uma ótima professora e pesquisadora, é um ser incrível, detentora de uma sensibilidade que eu não consigo mensurar. Eu amei suas dicas, fontes bibliográficas, os pedidos de alteração no meu trabalho e, mais do que tudo, seu cuidado comigo. Não conseguiria realizar essa pesquisa se não fosse com sua ajuda. Muito obrigado pela paciência, por todo o tempo que doou a essa monografia e por ter se dedicado a me ajudar com minha vida acadêmica. Quero seus conselhos para a vida. Saiba que foi maravilhoso ter sido seu orientando e que tenho plena consciência que se tivesse tido o prazer de te conhecer no começo do meu curso minha biografia na universidade seria muito melhor.

As/aos amigas/os que sempre foram minha fonte de alegria e segurança, me fazendo feliz apesar de tudo e sempre me dando suporte para

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casas quando estava sem canto para morar, passamos momentos maravilhosos e também difíceis juntas, em todos foi um prazer ter estado com vocês.

As/aos minhas/meus companheiras/os de movimentos sociais, que juntas/juntos não só lutamos por um amanhã melhor, como também tentamos construir o hoje que queremos. Destaco as/os militantes da Articulação Nacional de Estudante de Ciências Sociais (ANECS) e do Coletivo Acadêmico de Ciências Sociais (CACS) nesses agradecimentos, que foram muito importantes na continuidade do meu processo de formação, em especial Suzanne Freire (com quem construí o CACS durante os quatro anos de curso) e Darlaine Bomfim (que apesar de termos nos encontrado uma única vez fisicamente, a empatia dela com minha história de vida sempre a fez ser solidária comigo mesmo à distância), vocês me ajudaram muito a não perder as forças, nem sempre conseguimos vitória nos processos que entramos, mas sempre tiramos acúmulo, experiência e desenvolvemos relações afetivas com pessoas que passamos a desejar para a vida, vocês são duas dessas.

A Juliette Scarlet, a qual precisava dedicar um parágrafo, pois se encaixa em muitas categorias desses agradecimentos. É um prazer ter tido sua presença na minha vida nesses anos, espero que ainda tenhamos muita oportunidade de estar juntas e desfrutar de vários momentos. Ter você por perto é sempre bom, tanto para dividir alegrias, quanto tristezas. Podemos não sair empregados do curso, mas estamos saindo com uma parceria muito importante para continuarmos combativas. Se não der certo mudar tudo, ao menos a gente vai estremecer as coisas com nossos transtornos e quando não conseguirmos aguentar a pressão, sabemos que temos o ombro uma da outra para chorar.

A turma com a qual me graduei, que possui as pessoas que dividi os estresses e prazeres dos trabalhos, provas e seminários, assim como os enfrentamentos em sala de aula, os debates, as mobilizações do movimento estudantil e os piquetes dos movimentos paredistas. Em especial a minha amiga Edilene Dantas, com a qual eu cresci muito, tanto como acadêmico quanto como militante negro. Você é uma pessoa muito importante para mim,

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obrigado por ter me inspirado tanto.

Ao Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Diversidade do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Norte (NEGêDi – IFRN), por ter sido minha primeira oportunidade de produzir pesquisas acadêmicas e ter uma proposta de atuação tão ousada, que alia teoria e prática na busca de uma sociedade mais justa. Dedico um agradecimento especial a coordenadora Maria do Socorro e o coordenador José Matheus, por terem sido tão atenciosos, calmos e meigos, de uma maneira que conseguiram lidar muito bem com minha rebeldia e ansiedade naquela fase difícil de fim de ensino médio e começo do curso superior.

A antropóloga Jussara Galhardo, ex-funcionária do setor de etnologia indígena do museu Câmara Cascudo, com quem tive a honra de trabalhar como bolsista de extensão. Você acreditou no meu potencial e investiu bastante em mim, te devo muita da minha formação sobre questão indígena no Rio Grande do Norte, parabéns por você ser a pesquisadora e militante que é.

Aos poucos familiares que não me abandonaram porque eu não me encaixo nos padrões de masculinidade dessa sociedade patriarcal e LGBTfóbica. É muito difícil lidar com a rejeição, mas o carinho de vocês ameniza muitas dessas dores, muito obrigado por não desistirem de mim. Espero que o tempo passe e as coisas melhorem, que muita gente que não tem ideia do quanto machuca essa coisa de ser discriminado se dê conta dos seus atos, que aprendam com vocês, para assim as noções que vocês têm deixarem de ser exceção e se tornem regra. Agradeço em especial a Tia Raimunda Souza que sempre tentou me entender e, mesmo quando não concordou comigo, não me excluiu, sempre se preocupou com meu bem-estar e dividiu comigo muitas das angústias que tive por não ser aceito por nossa família. Também gostaria de dedicar um agradecimento especial ao meu irmão mais novo Rúben Eduardo (Rubinho), por ter tido a maturidade que falta em muitos adultos e ter sido um companheiro em momentos difíceis da minha vida. As/aos minhas/meus colegas de trabalho nas bolsas de apoio técnico que tive que ter na precária política de assistência estudantil da UFRN, a qual não contempla bolsa de permanência para o curso que estudei. Com vocês

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garantiu em muitos momentos fazer a resiliência que precisamos para sobreviver a despreocupação da burocracia acadêmica com permanência estudantil. Agradeço em especial aos meus coordenadores e coordenadora do setor de aulas dois Anderson César, Natercio Natanael e Rafaele Lucena por terem sido compreensivos na liberação para minhas atividades acadêmicas e políticas, sempre me tratando com respeito e nunca me assediando moralmente.

Dedico um agradecimento especial também as/aos escassas/os aliadas/os que tive entre as/os gestoras/es da UFRN na busca pela construção de uma universidade mais democraticamente plural. Destaco a professora Maria das Graças Soares Rodrigues (Graça), assim como os professores Sebastião Faustino e Cesar Sanson. Muito obrigado por terem contribuído nos projetos que compus, o apoio de vocês e a seriedade nos trabalhos que desenvolvem foram fundamentais para eu enxergar alguma coisa boa na gestão dessa universidade.

Ao meu psicólogo, Josfâm Macedo, por todo suporte que me deu ao longo desses últimos anos, sendo um profissional muito sério e compromissado com seu trabalho. Com sua ajuda consegui crescer muito como indivíduo e me sentir muito melhor comigo mesmo, podendo realizar com mais plenitude minhas atividades acadêmicas e demais empreitadas da minha vida.

Agradeço a todas/todos as/os professoras/es que se dedicaram a minha formação, compreenderam minhas limitações e não desistiram de mim. Através das Professoras Eliane Tania e Sandra Fernandes Erickson. Amei as aulas de vocês, porém, mais do que isso, adorei a empatia que tiveram comigo e isso foi uma das coisas que me ajudou a não desistir do curso, tenho em vocês duas grandes referências de profissionais que posso me tornar.

Finalizo agradecendo a banca que se disponibilizou para participar da defesa desta monografia, Paulo Leite, Jota Mombaça e Luis Meza. É um prazer contar com a presença de vocês em um momento tão especial para mim, confio bastante no trabalho que todos desenvolvem e será muito satisfatório contar com suas contribuições a minha pesquisa.

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“cansada de ouvir os primeiros fora temer para além disso, quero mudanças perceptíveis que nos negou a história

fácil forjar uma atuação terrorista para um negro e analfabeto em situação de rua

para mim, primeiramente, LIBERDADE A RAFAEL BRAGA!”

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das violações que acontecem contra o povo negro desse país, utilizando como fio condutor o caso Rafael Braga. O objetivo desse estudo é problematizar as contradições no regime de governo vigente, a partir dos desrespeitos aos direitos de uma das populações que historicamente vem sendo oprimida na formação do Estado brasileiro. Para isso foi feita uma pesquisa bibliográfica, reflexões teórico-conceituais, análise de dados quantitativos e um estudo do caso Rafael Braga. Os resultados obtidos apontam que o modelo democrático em vigor no país se faz através de regimes de governo que sustentam suas políticas na retirada de direitos de setores historicamente oprimidos, em um processo que sempre reatualiza o padrão relacional colonial, demarcando assim os povos não brancos como passíveis de arbitrariedades. A consideração final dessa pesquisa é que há uma disputa em torno da pauta que deve ser defendida pelos movimentos sociais quanto ao modelo de democracia mais interessante para o país, sendo o uso estratégico do caso Rafael Braga o que tenciona os debates.

Palavras-Chave: Rafael Braga. Democracia. Questão Étnico/Racial.

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Capítulo 1 - Uma democracia que se faz nas violações de direitos do povo

negro………..19

1.1 - A invenção do Brasil e a atomização das raças……….19

1.2 - Raça: da construção da identidade nacional ao problema da desagregação em um estado que se proclamou democrática………...23

1.3 - Retorno da raça como elemento da identidade nacional, continuidade de uma democracia para alguns………...26

1.4 - Da raça à classe, as/os novas/os inimigas/os da democracia………...28

1.5 - Redemocratização para quem? A conquista de regulamentações legais e o difícil acesso a elas………...32

Capítulo 2 - Comoção seletiva………..35

2.1 - A produção do consenso social de legitimação do genocídio através do discurso da segurança pública……….35

2.2 - Casos que não viram causas………....40

2.3 - A crise da democracia institucional e a continuidade das arbitrariedades contra o povo negro………...43

Capítulo 3 – Um ódio cordial………..48

3.1 - Uma história muitos cruzamentos………..48

3.2 - O jeitinho brasileiro de discriminar e ter preconceitos………....54

3.3 - Corpo negro e o sadismo como forma de repressão……….57

3.4 - Mortes preparadas pelo estado………..62

Considerações finais………67

Referências bibliográficas...69

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INTRODUÇÃO

Entre junho e julho de 2013, durante a realização da Copa das Confederações no Brasil, estourou em todo país uma série de mobilizações que iniciaram com a luta contra o aumento do valor das tarifas de ônibus. As manifestações ganharam repercussão devido ao número significativo de pessoas tomando as ruas em repetidas ocasiões em um lapso de tempo relativamente curto e também devido à forte repressão que sofreram – com o uso desproporcional da força por parte dos agentes de segurança do Estado. No centro desse tencionamento social estavam os investimentos realizados para efetivação tanto do megaevento que estava ocorrendo, quanto dos que viriam (Copa do Mundo e Olimpíadas), a denúncia era de que os esforços aplicados em áreas sociais básicas como saúde, educação, segurança pública, direito a cidade, lazer, cultura e etc., eram radicalmente diferentes, desproporcionais e desiguais dos que foram feitos para a realização da copa. Nesse contexto, a diversidade das pautas abriu margem para várias abordagens e leituras da situação, sem pontos de convergência bem estabelecidos e com uma gama de objetivos que se cruzavam sem muito acordo. As várias agendas construídas pós-junho/julho (Não Vai Ter Copa, Plebiscito Popular Por Uma Nova Constituinte e Movimento Pró-Impeachment) deixaram nítido que a política brasileira não foi a mesma depois dessas manifestações. Foi nesse contexto que a vida de um jovem, negro, pobre, catador de produtos recicláveis também mudou radicalmente.

Muitas/muitos militantes de movimentos sociais no Rio Grande do Norte participaram das grandes manifestações do período supracitado, eu fui um deles e compus tanto os atos que aconteceram na capital (Natal) quanto na cidade onde morava (Parnamirim). Estava no meu último ano de ensino médio, as discussões que tive acesso no movimento estudantil secundarista daquela época não priorizavam os debates sobre questões raciais, esse foi um dos fatores que me impediu de entender o que estava em jogo quando alguns/algumas companheiros e companheiras chamaram de racistas os policiais que me agrediram em uma detenção que ocorreu em um ato na câmara dos vereadores de Parnamirim em 03 de julho de 20131. Essa pouca inserção no debate sobre racismo no Brasil me fez

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Um dos vídeos produzidos sobre o ato desse dia está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nXYwCVN73aA> acessado em: 30/11/2017

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entender Rafael Braga em um primeiro momento apenas como mais um militante perseguido durante os atos daquele ano, percepção que alterei conforme tive acesso a leituras no curso de ciências sociais e a grupos que priorizavam a pauta do combate ao racismo nos movimentos sociais2.

1,4 milhões de pessoas na rua, sendo 300 mil na cidade do Rio de Janeiro (segundo matéria publicada na página virtual do jornal "O globo" em 15 de maio de 2014), marcaram o fervor que as manifestações do dia 20 de junho de 2013 - o ápice das chamadas "Jornadas de Junho" – imprimiu na história da "democracia" brasileira. A crise com as representações até então típicas no cenário dos movimentos sociais e a construção de um novo quadro de relações de poder que performava a autoridade de uma forma bem mais complexa, fundiram-se produzindo jeitos diversos e peculiares das pessoas lidarem com a revolta. Nesse contexto emergiu a figura do/da "BlackBloc", um conjunto de manifestantes que convergiam na tática da "ação direta", um método de organização de intervenções danosas as estruturas públicas e privadas de grandes capitalistas.Tal atitude se guiava pela ideia de que danificando o patrimônio símbolo do poder dos que estão exercendo a soberania, seria possível desafiar a ordem instituída e assim abrir margem para uma correlação de forças mais favorável a aceitação de pautas até então renegadas pelo poder público. Principalmente através da mídia hegemônica, a imagem da/do blackbloc foi preenchida por uma série de estigmas. Penso que nesse momento, a construção da figura da/do blackbloc como uma alteridade radical operou com os mesmos mecanismos que historicamente o Estado tem utilizado para apontar supostos inimigos/inimigas e dessa forma marcar um “nós” de existência comum ameaçado por esses “outros”.

As/os blackbloc foram assim mais duramente reprimidos e sofriam mais com a radicalização da política – que avalio como higienista – que estava em curso para reorientar os rumos nacionais segundo os interesses do capitalismo internacional, o qual olhava o Brasil com maior atenção devido os megaeventos, como sugerido no relatório “A violência Não Faz Parte desse Jogo” (Anistia Internacional, 2016). Nas trincheiras abertas entre as forças de repressão e as/os praticantes da tática cabia

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A experiência na Negrada da Articulação Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (espaço auto organizado do povo negro na entidade nacional do movimento estudantil do curso de ciências sociais) foi na minha formação como militante negro um importante ponto de ancoragem, aqui deixo registrada minha profunda gratidão por ter composto este espaço.

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qualquer um/uma das/dos indesejáveis da "nossa" nação, Rafael Braga Vieira foi um desses. No fatídico dia da sua captura (20/06/2013), segundo relato de Rafael, ele estava na rua quando a manifestação passava, tinha em seu poder alguns objetos que conseguira na realização de seu ofício, dois deles eram uma água sanitária e um desinfetante. Esses dois produtos, por absurdo que pareça para um leitor desavisado, foram usados para incriminá-lo. A leitura dos policiais que o detiveram foi a de que os produtos seriam usados na produção de uma bomba caseira para uma ação direta. Poucos meses depois, o esquadrão antibomba do Rio de Janeiro emitiu um laudo que dizia que os materiais em poder de Rafael tinham pouquíssimo poder explosivo ou incendiário3, todavia isso não foi decisivo para obtenção da sua liberdade, o mesmo foi o único condenado a prisão em regime fechado devido as manifestações desse período, tendo que cumprir 4 anos e 8 meses de pena.

O período no qual o caso Rafael Braga aconteceu é comumente entendido como um momento de estabilidade do regime democrático brasileiro, tal ordenamento político de organização do Estado se apoia em ideias liberais construídas dentro dos paradigmas da igualdade, liberdade e fraternidade herdados da revolução burguesa francesa, sistematizados sobre normas burocráticas que visam atingir uma suposta racionalidade isonômica. Esses princípios têm sofrido reformulações ao passar dos séculos com filosofias como a neoliberal, que não apenas organizam as relações políticas e as funções do Estado, mas também buscam entender as relações com os grupos considerados minoritários a partir de ópticas economicamente determinadas. As variáveis que cortam esse caso nos dão a dimensão de como certos setores da população brasileira não foram contemplados pelo ideário da democracia liberal que aqui se proclama instituído. Esse trabalho visa problematizar o modelo democrático vigente no Brasil através de uma análise do caso Rafael Braga, para com isso rastrear algumas das linhas que selam a história de pessoas/grupos que possuem marcadores sociais semelhantes aos de Rafael.

Um jovem negro, pobre, com baixa escolaridade, reincidente do sistema prisional, usuário de crack, em situação de rua, que vai parar no cárcere em uma prisão preventiva. Não é o excepcional que chama a atenção no caso pesquisado, já que segundo o Instituto de Informações Penitenciarias (InfoPen) esse perfil é a regra

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nas prisões brasileiras. Talvez o que direcione algum holofote para o episódio seja as circunstâncias ocorridas e os acontecimentos posteriores que vieram em paralelo. Entender como esse acontecimento ganhou notoriedade e quais debates ele puxou por tabela é de extrema importância para se desenvolver apontamentos para o problema dessa monografia, porém para isso entendo que preciso de um eixo norteador que possa me auxiliar nos rumos de minhas inferências, é neste sentido que recorro à noção de Necropolítica do historiador camaronês Achille Mbembe. Esse conceito sugere que nos países que passaram pela experiência da colonização foi criado um sistema político de gestão da impossibilidade de viver. Assimilando a história brasileira com seu longo período escravista e o processo de transição para sociedade de classes, a partir do trazido por Florestan Fernandes em “O negro no mundo dos brancos” (1977), posso entender como nossa sociedade localiza seus diferentes grupos nas relações de poder e quais seus objetivos políticos com tal estruturação. É com base nessas leituras que apresento a hipótese de que a criminalização e seus efeitos – principalmente o encarceramento em massa - é um dos instrumentos na produção de impossibilidades de viver para indivíduos como Rafael Braga.

Meu objetivo com esse trabalho se orienta pela necessidade de refletir sobre o modelo de organização política da atual configuração social brasileira, considerando que ela está sendo historicamente construída sob uma matriz colonial que tem sido reatualizada até o presente por meio de diferentes estratégias e tecnologias de governo. Tudo isso, levando em consideração a geopolítica na qual o Brasil se organiza internacionalmente localizado nos limites dos países de capitalismo dependente. Tomarei então, como sujeitos, os povos não brancos que estão sendo vitimados pela atualização do contexto econômico que os situa de forma negativa na gestão “biopolítica” (Foucault, 2008), estudando como essa situação ressona no encarceramento em massa e sua consequência no extermínio desses povos.

O efeito dos resultados das Jornadas de Junho trouxe à tona o debate sobre a saúde da continuidade do modelo democrático vigente no Brasil. Enquanto a agenda "Não Vai Ter Copa" foi duramente reprimida pela política nacional de segurança pública integrada desenvolvida especialmente para o período da copa pelo governo federal e a do "Plebiscito Popular por uma Nova Constituinte" se

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afogava em um processo burocrático que gastava as energias de centenas de militantes, mas dialogava pouco com a demanda urgente e cada vez mais incisiva da/do brasileira/o, a do "Impeachment"- da então presidenta Dilma - foi a que conseguiu se fixar como alternativa para questão política nacional. Dando uma saída imediatista, através de vias legais e com o apoio massivo da direita, o impeachment se apresentava paradoxalmente como uma mudança conservadora. A contradição resvalante desse paradoxo tinha como plano de fundo os interesses da elite nacional de intensificar e acelerar o projeto neoliberal no país, realizando um rompimento unilateral com a estratégia conciliadora até então implementada pelos governos petistas. Essa articulação foi denunciada como "golpista" por quase todos os partidos de esquerda, movimentos sociais, categorias de luta popular e grupos/pessoas revolucionários ou progressistas. Defendo que o que impulsionou essa narrativa foi principalmente a discussão sobre os limites da democracia instituída. No cerne desse debate se encontra um saudosismo da "estabilidade" que se tinha antes de Junho de 2013, porém o que essa noção negligencia é que as violações estruturais que esse modelo “democrático” (antes, durante e após as manifestações daquele ano) realiza encarnam a demagogia do discurso oficializado do Estado, que se rege sob regimes de governo que historicamente produzem violações contra determinadas populações para se legitimar, naturalizando sua impossibilidade de se tornar prática devido a manutenção das estruturas sociais sempre reatualizadas da colonização. Acredito que a importância desse trabalho está em questionar a própria ideia de democracia brasileira, analisando seus efeitos em um dos grupos historicamente marginalizados, criminalizados e dominados. Isso, em um momento onde o ideal da ordem democrática vem ocupando o centro das discussões nacionais.

Meu interesse por essa temática nasceu da observação dos espaços de ação e debate dos movimentos sociais, onde percebi uma disputa sobre a palavra de ordem que deveria ser assumida no início de uma fala pública. No percurso de chegada de Temer (PMDB) à presidência (sem passar por um processo eleitoral) e na investida ainda mais acentuada contra os direitos de vários setores populares, ganharam projeção narrativas que traçavam estratégias de tornar a gestão do pemedebista ingovernável. Falar: "Primeiramente Fora Temer" se tornou comum no início de mesas, plenárias, reuniões e assembleias de militantes compromissadas/os

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com esse processo de resistência. Porém, ao passo que isso acontecia, Rafael Braga foi novamente encarcerado em uma prisão preventiva, dessa vez sob denuncia de tráfico de drogas. Notei então que algumas pessoas que priorizavam os debates anti-racistas começaram a tencionar a escolha da palavra de ordem que deveria ser evidenciada, ouvir como abertura das falas a frase: "Primeiramente Liberdade a Rafael Braga" passou a ser também consideravelmente frequente. Nesse momento, eu já tinha obtido certo acúmulo de informações sobre questões raciais, participava de algumas entidades do movimento estudantil universitário e estava contribuindo na construção de outras, em todas tinha certo protagonismo relacionado as questões do Movimento LGBTI e Movimento Negro devido a minha vivência. Isso, somado ao fato de não acreditar no Estado como a melhor forma de gerir as demandas sociais e individuais me impulsionou a somar à chamada "Primeiramente Liberdade a Rafael Braga", assim como a tentar construir espaços onde essa pauta pudesse ser melhor refletida, sobre outra perspectiva.

Um desses espaços foi a II Semana de Estudantes de Ciências Sociais (SECS-UFRN) - evento bianual realizado por militantes do Coletivo Acadêmico de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CACS-UFRN) - que problematizou a democracia brasileira a partir do genocídio e do encarceramento em massa do povo negro. Algumas semanas antes da realização da IISECS saiu a condenação de Rafael Braga, esse evento produziu uma forte agitação na comissão organizadora e em mim. Comecei então a pesquisar mais sobre o caso e foi então que me vi demarcando um campo para estudo, as incursões em websites, os levantamentos bibliográficos, as reflexões teórico-conceituais e sobre dados estatísticos vieram em conjunto, para assim conseguir realizar essa monografia.

Este trabalho está articulado em três capítulos, no primeiro será debatido o processo de construção da hipótese norteadora, através da discussão de como a formação do Brasil estruturou uma democracia que se faz nas violações de direitos das pessoas não brancas. No segundo reflito sobre o modus operandi do preconceito racial brasileiro, assim como a forma em que ele se articula com os atuais processos de violações de direitos do povo negro e sobre a maneira em que a atual crise da democracia institucional o intensificou. No terceiro capitulo, com base nas caraterísticas do caso Rafael Braga, discuto como o preconceito racial está se

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reestruturando permanentemente na sociedade brasileira e como o Estado o canaliza necropoliticamente.

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Capítulo 1 - Uma democracia que se faz nas violações de direitos do povo negro

Entendendo que no vasculhar da história podemos encontrar muitas pistas que permitem entender a forma em que se estruturaram algumas das realidades sociais atuais do povo negro brasileiro, proponho-me neste capítulo a mapear a relação entre dois elementos que desempenham um papel chave nos debates e práticas em diversos momentos da construção do Estado-nação brasileiro: a raça e a democracia. A partir deles, sugiro uma reflexão sobre como a história de Rafael Braga condensa de maneira exemplar a coexistência de dois modelos antagônicos de cidadania que não parecem engendrar uma contradição que coloque em xeque a afirmação de existência da democracia no Brasil. Como método para realização desse trabalho, exponho uma trilha de leitura possível de alguns momentos históricos do Estado brasileiro e seus respectivos regimes de governo desde o período da colonização, apoiando-me nos meus referenciais teóricos, pontuarei e problematizarei os marcadores escolhidos.

1.1 – A invenção do Brasil e a atomização das raças

Foi nas empreitadas do expansionismo europeu na modernidade que as terras banhadas pelo Atlântico, ao sul da linha do Equador, foram demarcadas como Brasil. O império colonial português, em seus anseios de aumentar suas divisas, foi um dos mentores de tal processo. Vindos do primeiro Estado moderno europeu que se estabeleceu depois das guerras de reconquista (conflito entre cristãos e mouros pelo controle da península Ibérica), os colonizadores tinham uma íntima relação com a igreja católica (que financiou a guerra de reconquista) e se construíram em um processo complexo de conflitos, mas também intercâmbios, com os povos árabes, etíopes, turcomanos, ciganos, judeus e afegãos. Esses elementos se relacionariam através de um código qualitativo cultural-moral4 com fins de produção de um sistema escravista em 1455, quando o Papa Nicolau V emite a bula Dum Diversas5 dirigida ao rei de Portugal D. Afonso V, nela é permitido a redução a servidão perpétua dos “sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo”,o que representava quase todas/todos as/os habitantes da África negra. Essa ação

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Segundo Verena Stolke (2006) é anacrônico utilizar a categoria raça para esse período histórico porque esse conceito só foi empregado para alicerçar políticas de Estado no século XIX

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disponível em: https://www.geledes.org.br/1452-55-quando-portugal-e-igreja-catolica-se-uniram-para-reduzir-praticamente-todos-os-africanos-escravatura-perpetua/ acessado em 02/10/2017

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articulou um interesse bélico de invasão, conquista e pilhagem com uma justificativa moral, que respondia a um objetivo ético cristão, de quebra ainda inscreveu na história um novo padrão de produção escravocrata. Os marcadores do “nós” e dos “outros” como elementos determinantes da escravidão moderna apresentavam nessa articulação os pilares de sua lógica a qual seria difundida extraordinariamente nos séculos seguintes.

Esse exercício de dominação religiosa e imperial europeia é o que chega em 1500 nas caravelas portuguesas junto à vontade de achar ouro, prata, pedras preciosas e outros elementos valorizados pelo metalismo do sistema capitalista mercantil da época. Todavia essas riquezas não foram encontradas nos primeiros contatos com esse lugar que seria chamado posteriormente de Brasil, o que justifica o desinteresse em um projeto colonizador massivo de imediato, o qual seria adiado por volta de 30 anos. Os diferentes povos que já viviam nas terras que Portugal agora se proclamava dono, tiveram diferentes reações com a presença portuguesa, estabelecendo assim as mais variadas formas de relações com as/os colonizadoras/es. As/os portuguesas/portugueses adotaram a denominação indígena para – de forma genérica – descrever essa infinidade de grupos com quem agora estavam tendo contato, participando das alianças e conflitos. Não houve, de imediato, uma grande investida para subjugar esses povos à escravidão porque o clero católico e o reino Português ainda não haviam acordado qual abordagem deveria ser dada a respeito deles. Após a reforma protestante que instituiu novas formas de se viver o cristianismo e fragilizou o poder Papal, a igreja com as contrarreformas deu o tom do que deveria ser feito com as/os indígenas: uma conversão em massa para se conseguir novas/novos fiéis.

A escala de violência desse processo se alterou conforme a aceitação da nova religião entre esses povos, tendo momentos críticos quando esteve entre o fogo cruzado das vontades dos colonos (que em sua maioria defendiam a escravidão das/dos indígenas), a resistência indígena e a determinação dada pelo clero. João Pacheco (2016) no livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios” descreverá cinco regimes de alteridade produzidos pelo Estado para compreender os povos tradicionais brasileiros, dois deles acho pertinente para entender o período colonial: a imagem das/dos indígenas como nações (que depois passaram a ser vistas/os como primitivas/os) e a como uma polarização entre índio/a colonial e

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índio/a bravo/a; com essas caracterizações dá pra se entender alguns dos porquês dos mecanismos de dominação terem operado como descrito no parágrafo anterior.

O tripé constituído por: interesses portugueses, a subjugação à escravidão de negras/negros e a dominação dos povos que vivem nas terras que Portugal estava reivindicando, foi a base da construção da colônia a qual sempre se viu estremecida por movimentos de resistência como os representados pelos quilombos. O que resvala nisso é a pergunta do que diferencia esses grupos humanos e o que legitima que essas diferenças pudessem ser usadas como argumento para uma série de processos em relação ao outro. Conforme Stolke (2006), a religião é em um primeiro momento o lócus dessa ética de distinções; posteriormente, o uso político da classificação biológica fenotípica que a/o europeu faz através da raça ganha centralidade como caráter definidor de acesso a determinadas posições.

Apesar da coroa portuguesa – devido à forte influência da igreja – ter produzido um padrão de moralidade no qual determinadas culturas não-cristãs foram passíveis de serem submetidas a degradações sociais (como a escravidão), no novo mundo o efeito desmoronante da alteridade e o projeto de dominação colonial foram dois dos mais importantes fatores para alterar esse padrão. Mbembe (2011) defenderá que nesse contexto colonial é que foi gestada pelo colonizador a ideia de risco biológico, já que essa mistura de surpresa e desejo de subjugação move os europeus a produzirem tecnologias de restrição e morte contra esse “outro” que se quer reduzir. Esse modelo será exportado posteriormente para as metrópoles e se relacionará diretamente com a construção dos "estados bipolíticos" europeus (Foucault 2005), os quais usarão a raça como um dos cortes “entre o que deve viver e morrer" (Idem).

O percurso dessa norma surge, em um primeiro momento, como um ponto diferenciador religioso que marca a polarização entre segmentos humanos que têm práticas diferentes para trabalharem sua espiritualidade e marcarem seu pertencimento social, onde o catolicismo – entendendo-se como única religião legítima e portadora de verdades universais – tentou através da força converter esses “outros” e, em caso de recusa, castigar severamente qualquer forma de resistência. Nesse período, as diferenças entre culturas cristãs e não cristãs eram apontadas com o objetivo de determinar status sociais que legitimavam projetos de dominação, mas – no processo expansionista das potências europeias na

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modernidade – o conceito se transformou em uma poderosa máquina de classificação e produção de sujeitos e subjetividades. Passou a ser, desse modo, um "dispositivo" (Foucault 2005) que buscou classificar e alinhar sociedades nas funções pertinentes aos interesses dessas potências, fazendo posteriormente do racismo a chave para essa atuação.

Com os projetos do darwinismo social em alta, o determinismo racial do século XIX pode ser apontado como um dos elementos mais importantes para se compreender a forma em que a humanidade foi concebida cientificamente. Usando esse instrumento a Europa se proclamou o auge da humanidade e entendeu os lugares que estavam sendo colonizados por ela como estágios anteriores. Foi se consolidando um sistema em que os países colonizadores europeus criavam formas diversas de sujeição e de subjetivação de quem era colonizada/colonizado. Esses enquadramentos já estavam em curso antes do século XIX, porém o que me chama a atenção é que “foi nele que ganharam o respaldo das ciências” (Seyferth 1995, p. 177) e viraram uma matriz de produção das políticas de Estado. O racismo científico veio para tentar superar um paradoxo da noção europeia no período: o de como gerir a soberania dos Estado-nações no contexto biopolítico, já que esse propunha o governo da espécie maximizando a vida o que pulverizava fronteiras e dificultava determinações de espaços de legitimidade do poder estatal. As ações a partir do determinismo racial surgem, então, como o "meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer" (Foucault 2005). Recorrendo ao conceito de biopoder – que é o exercício do poder soberano através da biopolítica – de Foucault (2005), sugiro que é ele que faz o manuseio da concepção de raça operando em cooperação com os controles disciplinares que projetam no corpo o seu foco de atuação, Foucault nesse mesmo trabalho relatará que na interseção dessa articulação (biopoder mais poder disciplinar) se encontra a “norma”, sendo ela o que padroniza o que deve ser entendido como normal e – por tabela – descredibiliza o restante renegando como anomalia, acredito que nessa lógica é que foi desenvolvida a escala evolucionista que as "sociedades da normalização" usaram para através do racismo cientifico do século XIX pensar as relações de colonização.

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1.2 – Raça: da construção da identidade nacional ao problema da desagregação em um estado que se proclamou democrático

É o compasso da assunção da vida pelo poder que marca o ritmo da estatização do biológico (Foucault 2005) e o reino independente brasileiro produziu a letra da música que deveria ser audível, nessa composição a raça é um alvo perfeito para norma, já que – como já mostrei – nela se encontram pontos de controle disciplinar (os corpos) e populacionais (os grupos étnicos/sexuais, etários, etc). Toda a estilização nacional seguiria rascunhada por esse modelo, podendo ser identificado até nas simbologias que os governos do país remetem a si, como Schwarcz chamará a atenção dizendo que:

"Não é acidental o fato de a monarquia brasileira, recém-instalada, investir em uma simbologia tropical, que mistura elementos das tradicionais monarquias europeias com indígenas, poucos negros e muitas frutas coloridas. Parecia complicado destacar a participação negra nesse momento, já que ela lembrava a escravidão, mas nem por isso a realeza abriu mão de pintar um país que se caracterizaria por sua coloração racial distinta" (Shwarcz, 2012, p.27)

O que parece se destacar nesse fetiche pela demonstração de diferentes tipos raciais se juntando numa nova produção sui generis é a suposta possibilidade de relacionamentos pacíficos entre raças distintas. Os mitos nacionais em torno do mulato floresceriam nesse solo fertilizado pela suposta abertura para relações interétnicas. Isso colocava o Brasil em uma posição diferente do resto do mundo ocidental naquele período, pois os projetos darwinistas sociais – que acreditavam na existência de uma aptidão natural para a evolução racial – alavancados pela eugenia (ideia de que existiam raças que nasciam melhores que outras) eram compreendidos, por maior parte dos países, como sendo contrários à miscigenação já que defendiam que ela provocava degeneração. Fazendo uma busca para entender o porquê dessa diferença no Brasil, compreendo que – apoiando-se em Gobineau (o teórico eugênico mais influente) que via na miscigenação de forma controlada utilidade para formação das civilizações – a noção do colonizador “considera o tipo lusitano como um branco produto de bem-sucedida mistura de raças ocorrida na Península Ibérica. ” (Seyferth 1995, p. 183), sendo essa compreensão firmada em uma lógica que Seyferth pensará como sendo formulada pelo português da seguinte maneira:

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“Se o português é um produto branco de mestiçagem bem sucedida, inclusive com mouros (no sentido dado por Gobineau), serve como fato para considerar viável a hipótese de formação de um tipo histórico-racial brasileiro bem definido, num futuro preferencialmente não muito remoto” (Idem).

A república velha no Brasil trouxe consigo uma superdosagem nos projetos da modernidade6, a medicina e o urbanismo foram as principais ferramentas de construção de políticas públicas. O controle dos corpos e espaços que essas ciências possibilitaram permitiram um tipo particular de gerenciamento populacional, logo após a abolição da escravidão e adoção do sistema “democrático” em um estado de direito que se propôs a ser construído nos ideais liberais. O modelo de produção econômica havia mudado e a alocação de vários indivíduos agora “livres” ainda não tinha sido pensada com seriedade pelo estado. Enquanto isso as oligarquias do café (São Paulo) e do leite (Minas Gerais) dividiam o controle político do país, fazendo do processo eleitoral um jogo de cartas marcadas operado por intermédio do voto de cabresto (método de coerção de pessoas dependentes financeiramente de alguém para direcionar seu voto para a determinação de quem estão dependentes). A raça já vinha sendo problematizada como componente de construção de um caráter nacional, todavia no período pós-escravidão a ausência de reparação para as/os ex-escravizados e escravizadas e a política propositalmente ambígua de integração para umas/uns (as/os que cabiam nos desejos eugênicos) e afastamento para outras/outros, fez com que os povos não brancos, quase em sua totalidade, fossem atingidos pela desagregação da dinâmica do estado brasileiro (Fernandes, 1979). Contudo essa situação não seria apresentada como segregação, mas alardeada como coexistência pacífica.

Os caminhos encontrados para solucionar os problemas do período seguiram hegemonicamente os discursos racistas da época, arrisco-me a dizer que a ideia de segurança urbana da atualidade viu aí o seu primeiro relance de inteligibilidade. A/o não incluída/incluído nas atividades institucionalizadas nacionalmente passou a ser lido como anomalia que precisava ser corrigida. A higienização social encontrava o

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As revoltas populares desse período, como a guerra de canudos, revolta da vacina, guerra do contestado e a revolta da chibata (essa última liderada por João Cândido, conhecido como almirante negro) denunciavam que esses projetos não atendiam as demandas das pessoas pobres da sociedade brasileira, todavia a violência com que foram reprimidos deu a cifra do modelo “democrático” que estava em curso.

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seu alvo. O extermínio, ou transformação ou desterro, das raças entendidas como inferiores agora era a preocupação da vez; o caminho que seria trilhado para isso era bem peculiar, já que ele não se centrava apenas, nem prioritariamente, na eliminação física, mas sim em projetos de impossibilidades de se conseguir continuar vivendo (Munanga, 2003, p.2). Com o desfrute das benesses do Estado só podendo ser alcançado por umas/uns, a possibilidade de existência como sujeito de direitos não consegue se materializar nos ditames regulamentados, assim, a “democracia” começava em relação direta com a restrição ao exercício de direitos das/dos que estavam excluídas/excluídos dos aspectos positivos do poder estatal.

A miscigenação com objetivos evolucionistas para o branqueamento da população foi a alternativa apontada por boa parte das elites intelectuais dessa fase (Schwarcz 2012, p.20-29). A declaração do diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, no I Congresso Internacional das Raças, realizado em Julho de 1911 em Londres, previa o desaparecimento das/dos mestiços – consequentemente das/dos negras/negros e indígenas também – em no máximo cem anos. O método para isso era o processo biotecnológico de “aperfeiçoamento populacional” através do branqueamento (Schwarcz 2012, p.25), o quadro que foi usado por Lacerda para ilustrar sua fala – “Redenção de Cam” (Broncos 1895)7

que mostrava três gerações diferentes de cruzamentos entre negras e brancos que finalizava com um bebê que apesar de ser neto de uma escrava tinha se tornado branco pela miscigenação – projetava como o estado estava pensando a extinção dos não-brancos para efetivação da nação dentro dos seus ideais de desenvolvimento e democracia (Seyfeth 1995, p.185). A política de incentivo à imigração para pessoas brancas está intimamente relacionada com esse processo, pois traz a possibilidade de dissolução das demais raças na branquitude dos imigrantes. Os giros posteriores na compreensão da diversidade racial brasileira darão – ao menos no plano discursivo oficializado – um lugar além da expectativa de desaparecimento para os povos não-brancos, porém o que me interessa não se limita a isso, mas também a como as políticas públicas direcionadas a raça dentro dos sistemas políticos em vigência foram operacionalizadas.

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1.3 - Retorno da raça como elemento da identidade nacional, continuidade de uma democracia para alguns

A "revolução" de 30 interferiu radicalmente no controle das oligarquias conseguindo desarticular muitas delas. O poder do estado se concentrou nos mandos de Getúlio Vargas e mudanças profundas foram efetuadas tendo base no tripé industrialização, trabalhismo e nacionalismo, esse último seria o motor para repensar as concepções raciais no Brasil. Com o objetivo de integrar o país, foi postulada a necessidade de valorizar e difundir uma série de atributos peculiares à brasilidade. Para isso, empreendeu-se uma ressignificação da miscigenação resgatando o mito das três raças8 e impulsionando manifestações artísticas populares de fácil aceitação em amplos setores sociais. Essas manifestações dentro de um novo projeto de mestiçagem cultural, foram um elemento chave para o propósito integrador de uma “população brasileira”. A construção desse padrão integrador fez da mestiçagem uma verdade nacional (Shwarcz 2012, p.47) dotando-a de conteúdos culturdotando-ais concretos que termindotando-ardotando-am de enrdotando-aizdotando-ar o mito ddotando-a democracia racial.

Conforme Florestan Fernandes (1979), o conceito de democracia racial é fruto de uma distorção do movimento que acontecia na casa grande, particularmente nos estados canavieiros do atual Nordeste. No período escravista, pessoas miscigenadas podiam ocupar posições menos degradantes no seio das "grandes famílias", através de um mecanismo de "mobilidade vertical por infiltrações" (Florestan 1979, p.26). Todavia, o autor sustenta que não se pode afirmar que esse mecanismo produziu democracia, pois não se combinava com o combate à estratificação social, pelo contrário, foi uma boa jogada para perpetuar o processo de escravidão já que dividia as pessoas escravizadas em classificações de valor diferentes apesar da subjugação ao sistema escravista continuar da mesma forma. Nesse sentido, o cientista social segue afirmando que a miscigenação é na verdade uma tecnologia de poder para garantir a manutenção do domínio branco, equilibrando relações raciais através de mecanismos de diferenciação, geridos dentro da lógica da moralidade branca, que propagava a possibilidade de se melhorar a/o negra/negro e a/o tornar mais próximo das/dos senhoras/senhores.

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"A fábula das três raças é uma espécie de ladainha contada desde os tempos coloniais" (Schwarcz, 2012, p.124), através dela se tenta explicar tanto as diferenças sociais quanto as fenotípicas e como elas se relacionam no processo de formação do Brasil.

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Esse esquema – ainda segundo Florestan – é o que cria o “negro de alma branca” o qual, dentro dessa encenação, projeta a figura do colonizador como a única existência passível de dignidade e esse paradoxo só fortalecia a segregação existente. A respeito disso Fernandes dirá que:

“Nenhum “negro” ou “mulato” poderia ter condições de circulação e mobilidade se não correspondesse a semelhante figura [negro de alma branca]. Daí o paradoxo curioso. A mobilidade eliminou algumas barreiras e restringiu outras apenas para aquela parte da “população de cor” que aceitava o código moral e interesses inerentes à dominação senhorial. Os eixos desses círculos humanos não beneficiaram o negro como tal, pois eram tidos como obra da capacidade de imitação e da “boa cepa” ou do bom exemplo do próprio branco” (Fernandes, 1979, p. 27-28)

Bebendo na fonte do projeto miscigenador e comendo na árvore carregada do nacionalismo Varguista, Gilberto Freyre lançou em 1933 a obra que o eternizou: “Casa Grande e Senzala”. Nela, o autor fará uma revisão sobre a importância da miscigenação recorrendo a uma reconstrução do Brasil durante o período escravocrata; centrando-se, porém, nas relações entre escravas/escravos domésticas/domésticos e senhoras/senhores, relações essas que eram menos conflituosas do que com as/os escravas/escravos da lavoura. Essa escolha lhe permitiu romantizar a escravidão usando como artifício a generalização da suposta docilidade de alguns relacionamentos (Schwarcz, 2012, p. 48-52). O panorama escolhido por Freyre para trabalhar a questão racial se utiliza de um discurso de igualdade muito latente nos ideais do seu tempo, tanto ele quanto esse ideário são desonestos na avaliação das possibilidades materiais de efetivação dessa igualdade. Entretanto, a construção discrepante do que se defende e do que se põe em prática é útil a um país que se quer unificar, mas que deixa esse processo nas mãos de uma elite que não está interessada em modificar as relações de dominação que caracterizam o modelo social.

A gambiarra da dita: igualdade+sem efetivação e sem expectativas de se fazer a equalização = a todas as raças juntas discursivamente, mas separadas nas possibilidades de equidade de direitos, hoje, à primeira vista, já se percebe que não faz sentido, porém não foi a lógica objetiva que desmantelou os postulados dessa narrativa, mas sim a possibilidade de outros elementos ganharem evidência e

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desestabilizarem a hegemonia do que estava posto. O movimento negro que começou a se articular no fim dos anos 20 indo até meados da década de 40 no ceio do centro industrial do período (São Paulo) denunciou a forma em que se deu o processo de abolição e exigiu a inserção do povo negro nas instituições do estado. Essas exigências podem ser pensadas com um dos elementos-chave para evidenciar as trincas da noção oficial de democracia do estado brasileiro (Fernandes, 1979, p.266). Foi explicitando publicamente que "a abolição e as tendências de desenvolvimento do sistema de trabalho livre engolfaram o elemento negro em uma crise irremediável de superação muito difícil" (Ibdem, p.267) que o movimento negro desse período denunciou as bases do mito da democracia racial, construído sobre os princípios da igualdade e da liberdade. Contudo, ao mesmo tempo em que era desmascarada essa incoerência, uma situação paradoxal era posta, pois ao passo que as/os militantes negras/os apontavam o desatino existente, tinha como margem de ação e reivindicação a ordem instituída do estado: um ordenamento que em si mesmo não dispunha de possibilidades de adequação para comportar as reivindicações feitas (Ibdem, p.272-275). Apesar de ter conseguido polarizar e disseminar o contrassenso sobre o mito da democracia racial, esse movimento se dissolveu entre os ideais da ínfima classe média negra que conseguiu ascender socialmente, em boa parte graças à atuação dele. Todavia os próximos períodos fariam com que outras mobilizações negras fossem tocadas de forma bem mais audaciosa se orientando por outros parâmetros.

1.4 - Da raça à classe, as/os novas/os inimigas/os da democracia

A guerra fria promoveu um maniqueísmo de projetos políticos em vastas regiões do planeta através da divisão entre os ideais comunistas da União Soviética e capitalistas dos Estados Unidos. Boa parte das ações sociais movidas por indivíduos ou coletivos dentro dos espaços nacionais eram avaliadas, pelos governos que aderiram a essa lógica, como sendo vinculadas aos interesses de um país ou de outro. Com isso, as discussões de classe (que tinham URSS à frente) e de livre mercado (encabeçadas pelos EUA) polarizavam as possibilidades de compreensão de qualquer conflito existente. Todavia, internacionalmente, o debate racial – por mais que supostamente superado com a vitória sobre os nazistas e o repúdio as atrocidades do holocausto - continuava sendo latente. Por exemplo, as lutas contra o apartheid na África e a luta por direitos civis nos EUA colapsarão a

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dicotomia socialismo versus capitalismo, ambos os movimentos tinham um caráter nacionalista reivindicando apenas um outro jeito do seu país organizar as políticas de estado.

Estando inserido nessa dinâmica, da esquerda à direita o Brasil se desorienta no fim dos anos 60 e começo dos 70 ao ver a chegada da Black Music através do Movimento Soul no Sudeste e a formação de um bloco negro na Bahia – Ilê Aiyê – promover novos padrões de sociabilidade entre as/os negras/negros9. A valorização da estética do fenótipo remetido à negritude que ganhava força no movimento Black Power norte-americano intercambiava valores com as expressões musicais negras que se projetavam – através ou tendo impulso – com os grupos supracitados, nisso, o novo jeito da/do negra/negra se ver produzia uma autoimagem diferente das homogeneizações que as ideias de "povo brasileiro" anunciadas pelo mito da democracia racial queriam fixar.

Essas novas percepções eram formadas ao passo que as forças armadas tomavam o poder através do golpe de 64 que instaurou uma ditadura de 21 anos. A política de estado que conduzia a gestão pública tinha o padrão de obediência à hierarquia típica da militarização, sendo pouco aberta ao diálogo e, menos ainda, à ampla defesa do contraditório. Essas circunstâncias colocavam qualquer uma/um que divergisse em uma situação arriscada, principalmente porque as prisões, torturas e assassinatos de opositoras/opositores eram uma prática recorrente no regime militar. O uso desproporcional da força era legitimado porque os ditadores anunciavam um estado de sítio que julgavam necessário devido à “ameaça comunista”.

A nova identidade do povo negro encontrou aí um duplo encurralamento: de um lado pelos ideais de um estado que queria a continuidade da existência do silêncio das raças que um dia escravizou – amordaçadas em um projeto de mestiçagem cultural que espetacularizava algumas das suas manifestações artísticas e físicas de forma estigmatizante10 – e, de outro, por um regime que existia para conservar os ideais da elite, barrando – inclusive pela eliminação física –

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Informações adquiridas a partir do documentário "Questão racial - da ditadura à democracia" (Beatriz Abreu 2014)

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Em uma propaganda cívica de 1979 a ditadura militar, através de uma animação, apresentava um jingle ufanista com personagens estigmatizados de diferentes raças e gêneros, assim propagandeava o tom do regime em rede nacional. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SVmQ-YPM4KI

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qualquer divergência que apontasse para a superação de problemas nacionais que afetassem os setores populares. A ditadura reprimiu radicalmente a oposição, muitos grupos viram seu direito à livre expressão cassado, esse direito não foi tirado do povo negro pois se quer ele ainda o tinha conseguido de forma ampla11. Todavia, o regime trouxe novos motivos para cercear e isso se deu no momento em que a negritude se arrojava enquanto sujeito reivindicador de espaço cultural e político, essa trama desembocaria em bofetadas ainda mais violentas como, por exemplo, as batidas policiais no fim das festas de Soul e nos ensaios do Ilê Aiyê.

Durante a ditadura seria marcado também o começo mais pragmático das discussões sobre genocídio e encarceramento em massa do povo negro, o marco que institui esse giro é o mesmo da reorganização do movimento negro: as mobilizações em 7 de julho de 1978 para evidenciar a barbaridade da morte de Robson da Luz (jovem negro morto pela polícia por roubar frutas), nela

“Militantes de grupos negros, estudantes, atletas, artistas e representantes de organizações culturais realizam em São Paulo uma grande manifestação contra o racismo. Em frente às escadarias do Teatro Municipal, mais de 2 mil pessoas protestaram indignadas contra episódios recentes de violência contra negros. O ato foi o marco da criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), depois rebatizado simplesmente de MNU”. (Memorial da Democracia)

Essa organização influenciaria nacionalmente os processos de luta contra a ditadura e tencionaria, não só as políticas de estado instituídas e pouco acessadas pela população negra, mas também a própria concepção de estado que se efetivava através da sequência das políticas coloniais readaptadas aos interesses da elite (antigas/antigos senhoras/senhores escravocratas). Tais questionamentos desnorteiam qual ação a ditadura deveria tomar, pois como era do interesse do regime militar seguir com as ideias míticas de democracia racial, não fazia sentido reprimir expressões negras que se organizavam no combate ao racismo, esse receio também era muito influenciado pelo medo da ditadura de que a discussão racial

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O que aconteceu com a imprensa negra é digno de atenção, pois a repressão não a reprimiu na mesma intensidade que outros meios de comunicação do período, segundo a historiadora Ana Flávio Pinto, isso pode ter se dado devido a subestimação da intelectualidade das pessoas negras (Questão racial – da ditadura à democracia, 2014, 13mim24-15mim48).

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tivesse notoriedade por todo o Brasil e houvesse investidas por direitos tão enérgicas quanto as que estavam havendo nos Estados Unidos. O processo de afirmação identitária negra – através do protesto massivo negro – conseguiu sair por alguns instantes da mira do estado ditatorial, porém não demorou muito para a ditadura achar um caminho fácil de perseguição às pessoas negras que não atacava diretamente as mobilizações e encontrava justificativas morais dentro dos ordenamentos já deliberados antes do regime: as prisões para averiguação por crimes contra a propriedade, visto que a imagem do cárcere estava muito vinculada a esse perfil de preso, o que fazia os movimentos contestatórios não criarem comoção com essas percas de liberdade.

As prisões racistas foram um dos focos do MNU desde sua fundação. Apontando o fim da tortura nos presídios no “Programa Mínimo do Movimento Negro Unificado Contra Discriminação Racial” essa organização não fazia uma distinção dos presos por oposição à ditadura e dos presos por terem nascido com a pele preta. Para ela, ambas as prisões eram políticas e contestáveis, pois as duas denotavam existências que o estado queria impossibilitar. Essa foi a tese defendida pelo grupo no 1º Congresso Nacional pela Anistia em novembro de 1978, porém ela não foi bem recebida, pois a percepção hegemônica até entre as/os perseguidos políticos idealizava um horizonte limitado de modelos políticos socialistas, ainda pensados de brancos para brancos. Foi isso o que fez com que figuras negras importantes como Osvaldão (militante comunista integrante da guerrilha do Araguaia) fossem quase apagadas do imaginário sobre as vítimas da ditadura. Isso deixa nítido que os apagamentos do negro na história seguiram em sintonia antes, durante e até nos espaços que contestavam o regime militar. De maneira similar também foram apagadas as memórias da repressão contra LGBTIs e indígenas, tanto quanto sua participação em processos de resistência, suas propostas diferenciadas sobre as formas em que deveria se configurar a luta e formulações sobre a ideia de nação.

A ditadura, no começo de julho de 1969, deixaria para a atualidade a militarização da polícia com a instituição do decreto-lei 667, isso representaria um novo jeito de lidar com a segurança pública que agora fazia uso de estratégias militares para o controle de civis. Esse modelo de gestão das polícias é típico em territórios ocupados em períodos de guerras ou de instabilidades internas, tal

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momento é conhecido como estado de exceção e sua lógica de operação se organiza além de parâmetros regulamentados, sendo delimitado quando um risco extremo desestabiliza determinada localidade e tendo uma ação temporalmente demarcada até a anulação dessa imponderação.

A novidade assustadora que se instalou com a lei 667 é o objetivo de não instituir limites para o estado de exceção ter fim. O objetivo do regime com isso acaba se mostrando como sendo a legalização de um braço armado dentro do território brasileiro para lidar com dilemas da vida cívica. As violações contra a vida do povo negro através do genocídio e encarceramento em massa que o MNU já vinha denunciando, agora encontravam na PM a abertura na legalidade para mais uma forma de exercício do racismo de estado, desta vez com mais poder letal. Ainda mais aterrorizante do que esse casamento com objetivos de massacre da negritude, é ver que ele seguiu sendo aperfeiçoado mesmo com o restabelecimento da “democracia”.

1.5 - Redemocratização para quem? A conquista de regulamentações legais e o difícil acesso a elas

No mesmo ano que era marcado o retorno da “democracia” com a promulgação da nova constituinte, os protestos do povo negro – denunciando as falácias da abolição (que fazia seu centenário naquele ano) – ocupavam as ruas de Brasília e exigiam a reparação histórica que não havia sido feita no pós-escravidão. A constituição que havia sido produzida em 1988 fora disputada por vários segmentos da população não-branca, o clima político do país estava menos hostil e pautas populares tinham menos dificuldade de serem postas na mesa.

Porém, as ambiguidades demagogas do “jeitinho brasileiro” que camufla relações de poder ao mesmo tempo que deixa passar arbitrariedades contra grupos historicamente reprimidos, ainda eram um elemento muito forte no caráter cultural do país; prova disso foi a anistia para os assassinos e torturadores da ditadura. Isso reverberou no texto do mais importante documento nacional e, principalmente, no compromisso do comprimento do que ele assegurava. No âmbito das discussões sobre a negritude, tanto as leis que asseguram direitos sociais (que incidem diretamente sobre as/os negros, já que são a maioria da população em vulnerabilidade socioeconômica) quanto as de criminalização do racismo e a de

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posse de terras para povos tradicionais me chamam a atenção, pois, apesar de sua existência, até hoje elas têm poucas aplicações. Para essas leis serem efetivadas, elas necessitam de um esforço exaustivo e algumas vezes têm que ser defendidas contra os ataques, principalmente ligados aos interesses econômicos do grande capital, o que parece denotar que as leis da constituinte conseguem superar na sua redação muitos problemas já descritos, porém sua aplicação ainda é um elemento em disputa, muitas vezes tendendo à derrota.

As dificuldades de materialização da constituição cidadã, além do etnos brasileiro, teriam também como impasse as influências do neoliberalismo no contexto social latino-americano. O Consenso de Washington é um passo ímpar que oficializa esses ímpetos, produzido por profissionais alinhados aos discursos das grandes potências capitalistas na convenção de Washinton (1989), ele impunha 10 medias para países subdesenvolvidos alcançarem um melhoramento na sua economia, sua prioridade é a inserção desses Estados no mercado internacional, todavia ele desconsiderava várias questões sociais da dinâmica local, fazendo com as ações ordenadas mais um alinhamento aos interesses de quem domina o mercado do que uma possibilidade para desenvolvimento dos países que cederem à sua adoção. Em outras palavras, o que falo quando descrevo as inferências do neoliberalismo nos direitos assegurados em 1988 é de um processo golpista internacional contra a soberania nacional e o que ela estava se propondo a fazer.

Foucault (2008) se ocupou da relação entre o gerenciamento da vida pelo mercado e as sociedades neoliberais. O percurso das suas reflexões o levam a compreender que as noções neoliberais colocam o trabalhador como “um sujeito econômico ativo” (Foucault, 2008, p. 308), isso significa dizer que nessa lógica o trabalho não seria visto como uma “análise de um mecanismo relacional entre coisas ou processos, do gênero capital, investimento, produção, em que, nesse momento, se encontra de fato inserido somente a título de engrenagem”, mas sim como um comportamento humano dotado de racionalidade (Ibdem, p. 307). Essa ótica, para o autor, orientou a noção de capital humano, que seria entendida como o conjunto de capacidades inseridas em cada ser humano que deve ser administrado para objetivos lucrativos. Nessa filosofia, os países deveriam indagar e regular os capitais em termos de corpos e vidas úteis para assim poderem fazer investimentos para aumentar suas divisas.

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