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Doutrina do engrossamento de Graciano Neves : organização, estudo introdutório e notas para um livro eletrônico

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

RAONI SCHIMITT HUAPAYA

Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organização,

estudo introdutório e notas para um livro eletrônico

Vitória – ES 2015

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Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organização,

estudo introdutório e notas para um livro eletrônico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Línguas e Letras, Centro De Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal Do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Estudos literários Orientador: Prof. Dr. Orlando Lopes Albertino

Vitória – ES 2015

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Huapaya, Raoni 1979- L

533e

Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organização, estudo introdutório e notas para um livro eletrônico/ Raoni Huapaya. – 2015.

115 f. : il.

Orientador: Orlando Lopes Albertino.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.

1. Sátira. 2. Literatura no Espírito Santo. 3. Política. I. Albertino, Orlando Lopes. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.

CDU: 159.9

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Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organização,

estudo introdutório e notas para um livro eletrônico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Línguas e Letras, Centro De Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal Do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em 24 de março de 2015

C

OMISSÃO

E

XAMINADORA

____________________________________ PROF DR ORLANDO LOPES ALBERTINO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO ORIENTADOR

____________________________________ PROF.DR.LUÍS EUSTÁQUIO SOARES

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

_____________________________________ PROF.DRA.KARINA KLINKE

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O presente trabalho tem como objetivo oferecer uma nova edição, em formato eletrônico, de Doutrina do engrossamento (1901), de autoria de Graciano dos Santos Neves (1868 – 1922), compreendendo que a formação acadêmica em nível de mestrado pode incorporar aspectos técnicos e cognitivos que reflitam ganhos para a preservação e difusão de repertórios da Literatura Brasileira realizada no Estado do Espírito Santo. Minha proposta está divida em três momentos e dispõe-se a organizar uma publicação eletrônica e a evidenciar a presença de elementos da tradição literária no texto de Graciano, com destaque para textos da Antiguidade Clássica, do teatro de Moliére, de pensadores positivistas e da sátira inglesa vitoriana, em especial, de Thackeray (1811-1863), apontando a ocorrência de um padrão de leitura (o “humanista”) no contexto localizado da formação cultural no ES, particularmente do acionamento da tradição literária. Num primeiro momento, apresento as justificativas e as orientações gerais, detalhando as estratégias editoriais constituídas para uma padronização da organização do formato eletrônico. Em seguida, contextualizo a obra em pesquisa, traçando uma breve biografia do autor e produzindo um estudo introdutório sobre a Doutrina. Por fim, recupero o texto original e adenso a leitura com notas e iconografias.

Palavras-chave: clássicos, leitura, edição, livro eletrônico, literatura no Espírito Santo.

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1   INTRODUÇÃO ... 7  

2   PLANO DE INTERVENÇÃO EDITORIAL: O EDITOR COMO MEDIADOR DE LEITURA ... 9  

2.1   DO LIVRO AO ELETRÔNICO: O MÉTODO ABERTO ... 14  

2.2   ORIENTAÇÕES FINAIS (BRIEFING) ... 18  

3   ESTUDO INTRODUTÓRIO ... 20  

3.1   BREVE NOTÍCIA SOBRE A VIDA DE GRACIANO NEVES ... 20  

3.2   UMA APRESENTAÇÃO DE DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO 22   3.3   LITERATURA E BAJULAÇÃO ... 24  

3.4   LINGUAGEM E ESTILO DE GRACIANO NEVES ... 33  

3.5   O RISO GRACIANO ... 36   3.6   NOTA DO EDITOR-ORGANIZADOR ... 41   4   A DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO . ... 42   4.1   PREFÁCIO ... 43   4.2   AO CONGRESSO FEDERAL ... 48   4.3   ADVERTÊNCIA ... 49   4.4   INTRODUÇÃO FUNDAMENTAL ... 50  

4.5   JUSTIFICAÇAO HISTÓRICA E POLÍTICA DO ENGROSSA- MENTO...71  

4.6   A TÉCNICA DO ENGROSSAMENTO ... 85  

4.7   A ARTE DE ENGOLIR A PÍLULA ... 107  

REFERÊNCIAS...116

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1 INTRODUÇÃO

O estudo, de fato, é em si mesmo interminável. Quem conheça as longas horas de vagabundagem entre os livros, quando qualquer fragmento, qualquer código, qualquer inicial promete abrir uma via nova, logo abandonada em favor de uma nova descoberta, ou quem quer que tenha conhecido a impressão ilusória e labiríntica daquela “lei da nova vizinhança” a que Warburg submeteu a organização da sua biblioteca, sabe bem que o estudo não só pode ter fim, como também não o quer ter. (Giorgio Agambem, p.53)

Quando ingressei no PPGL com minha proposta de dissertação me deparei de imediato com a falta de materiais para realizar a pesquisa. A prévia do projeto, que havia sido construída em 2010, dispunha-se a realizar um estudo sobre o autor local, Graciano Neves, e sua obra Doutrina do Engrossamento (1901). Já no início, meu espaço de pesquisa passou a se restringir aos navegadores de internet em busca de fragmentos sobre o autor e sua obra. No decorrer do cumprimento dos créditos do programa, minha aproximação com o Neples1 e o compromisso de realizar uma intervenção literária no contexto do curso de Literatura do Espírito Santo, cátedra conduzida pelo professor Orlando Lopes, visualizei a possibilidade de um programa de pós-graduação em letras atuar de forma propositiva na construção de repertórios de uma crítica localizada e especializada e também no acesso ao patrimônio literário concebido na localidade.

Assim, passamos a voltar nossos esforços para o trabalho organizador do editor. Trabalhamos para realizar uma operação intelectual comprometida com a mediação de leitura, que se dispusesse, em formato eletrônico, a estabelecer uma publicação de Doutrina do Engrossamento. Para isso, partíamos do pressuposto que a formação acadêmica em nível de mestrado poderia incorporar aspectos técnicos e cognitivos na medida em que garantisse a preservação e a difusão de repertórios da

1O Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo (Neples) foi criado em 1996 como órgão vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Espírito Santo. O Neples busca promover reflexões críticas sobre as manifestações literárias no Espírito Santo e organizar documentação sobre seus principais autores e obras, divulgando-os junto ao público crítico e leitor em geral. Disponível em http://www.literatura.ufes.br/pos-graduacao/PPGL/grupos-e-núcleos-de-pesquisa

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Literatura Brasileira realizada no estado do Espírito Santo. O resultado foi dividido em três momentos: no primeiro capítulo deste trabalho, detalhamos o momento inicial. Justamente o que dá o tom da intervenção, sua metodologia e possibilidades de aparato teórico.

Numa perspectiva de que a prática antecede a teoria, construímos este “plano de intervenção editorial” como uma espécie de diário, onde lançamos as ações e as impressões decorridas de nosso envolvimento com a Doutrina de Graciano Neves, sobretudo relatos que surgiram em decorrência da elaboração do segundo capítulo, que se configura como “estudo introdutório”. Este, além de exercício de crítica literária, é texto produzido para ser publicado com a versão eletrônica, abarcando uma breve biografia, uma nota editorial e uma análise que visa a realizar um pensamento sobre a obra e suas opções estilísticas. Nesse sentido, o percurso teórico assume-se como didático, na busca do leitor novel, e ampliado, na medida em que não pretende encerrar declarações definitivas. São incursões que se dispõem a realizar um claro itinerário de leitura, um caminho para a compreensão da presença de elementos da tradição literária no texto de Graciano Neves, com destaque para textos da Antiguidade Clássica, do teatro de Moliére, de pensadores positivistas e da sátira inglesa vitoriana, em especial, de Thackeray (1811-1863), apontando a ocorrência de um padrão de leitura (o padrão “humanista”) no contexto localizado da formação cultural no ES, particularmente do acionamento da tradição literária.

No último momento, recupero o texto original e adenso a leitura com notas e iconografias. Apresento a versão da doutrina, revista, atualizada, comentada e ilustrada com imagens que dão o percurso da leitura projetada. De certa forma, retomo a crença iluminista no universal, aqui apresentada no eletrônico e na sua interatividade, para a construção de projetos editoriais tencionados em promover a preservação e difusão de repertórios construídos no âmbito do Espírito Santo, esperando por apreciações críticas de especialistas e de outros mediadores, principalmente professores de literatura, em busca de futuros leitores.

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2 PLANO DE INTERVENÇÃO EDITORIAL: O EDITOR COMO MEDIADOR DE LEITURA

Este estudo, ao se dispor a preparar originais e dar orientações técnicas com vistas à publicação de Doutrina do Engrossamento, apoia-se no papel do editor de textos literários como mediador de leitura. Historicamente, coube ao editor selecionar textos, construir catálogos e fazer com que as publicações chegassem ao público leitor. Passando pelos copistas e pelos livreiros-editores surgidos com a imprensa de Gutemberg, o historiador do livro Roger Chartier posiciona, na trajetória profissional do editor, o momento atual como oriundo no início do século XIX:

Nos anos 1830, fixa-se a figura do editor que ainda conhecemos. Trata-se de uma profissão de natureza intelectual e comercial que visa a buscar textos, encontrar autores, ligá-los ao editor, controlar o processo que vai da impressão da obra até sua distribuição. (p.50)

O professor Aníbal Machado realizou estudo em que compila os vários momentos do ofício do editor no país. Em artigo intitulado Sobre o editor: notas para

sua história, Machado revisita a periodização realizada por Chartier e reforça ainda

mais o caráter emblemático da função do editor na construção e difusão da cultura letrada. Ao recuperar os conceitos presentes em duas das mais importantes obras de referência sobre o livro e o editor no Brasil2, o acadêmico apresenta o editor em uma responsabilidade capital na definição do texto literário: “todos os livros são produtos da ação combinada do autor e do editor. Às vezes gestados mais pelo autor, outras vezes criados pelo editor” (p.222). Nesse sentido, o papel da escolha daquilo que deve ser lido e de como deve ser lido, próprio daquele que medeia a leitura – ponto de ligação entre autor-obra-leitor –, passa a ser responsabilidade permanente das instituições representadas pela figura do editor.

No caso do contexto acadêmico de um programa de pós-graduação em letras, que se dedica aos estudos literários em particular, inclui-se uma participação fundamental na construção de repertórios de uma crítica localizada e especializada e também o acesso ao patrimônio literário concebido na localidade. Estas possibilidades tornam-se ainda mais representativas na realidade cultural e intelectual do Espírito Santo, quase sempre minguada pela escassez de

2

Referimo-nos aqui a Emanuel Araújo e a Antônio Houaiss, respectivamente, em suas obras

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investimentos e pela incipiência de espaços e equipamentos para difusão do texto literário. Com o intuito de mediar a leitura, dentro da lógica forjada pela indústria cultural, faltam iniciativas de sistematização de projetos editoriais de interesse documental e literário no contexto da graduação e da pós-graduação, considerando a realidade e o potencial da rede de ensino instalada no ES. O próprio objeto inicial desta pesquisa - que chegou a ser um estudo que contribuisse com noções atualizadas de interpretação, valor, sentido, força e forma - viu-se malogrado em suas expectativas por conta da ausência de estudos e publicações sobre o autor, seu contexto e sua obra. Entretanto, compreendendo que a formação acadêmica em nível de mestrado pode incorporar aspectos técnicos e cognitivos que reflitam ganhos para a preservação e difusão de repertórios da Literatura Brasileira realizada no Estado do Espírito Santo, nosso trabalho – entendido como editorial – lança possibilidades de difusão do texto de Graciano Neves para apreciações críticas de especialistas e outros mediadores, principalmente professores de literatura.

Para isso, na escolha do suporte, levamos em consideração as limitações decorrentes da fragilidade da indústria do livro no ES. Nosso próximo passo é lançar a discussão metodológica sobre a utilização do ciberespaço como interface de trabalho. Nossa intervenção consiste em editar Doutrina do Engrossamento em formato eletrônico. Assim, convém ao editor dissociar a forma do suporte: livro e literatura não são uma entidade única. Vivem sem depender um do outro. Da invenção da imprensa, como houve a passagem gradual do manuscrito ao impresso, hoje vivemos a passagem do livro como objeto de acesso à cultura letrada para a tela de eletrônicos e suas variações:

Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim. [...]antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre os seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro já estarão reduzidas ao mínimo. (BENJAMIN, citado por Bragança, 2005, p.234)3

As palavras de Benjamin podem ser entendidas como proféticas para justificar nossa escolha pelo eletrônico e suas possibilidades de integração de variadas mídias. Entretanto, servem de alerta para ausência de novidade em nossa proposição, que se dispõe a ser uma primeira incursão teórica em busca da garantia

3 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. S. Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas II)

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de materialidade, valendo-se do ciberespaço como proposição. Nesse sentido, uma operação intelectual centrada na proposta de uma nova edição da Doutrina requer a elaboração conceitual da figura do autor e do papel das várias maneiras de ler no processo que dá sentido aos textos. Com esse intuito, tomemos o hipertexto como oposição ao texto linear clássico, ou seja, um sistema que executa, ou ativa ou potencializa infinitas combinações e interações com as quais o leitor próprio o alimenta. Provavelmente, o futuro da cultura letrada é tal como anunciara Benjamin: o que se tem a priori é um leitor em tela muito mais ativo do que o leitor em papel. Portanto, o ciberespaço, a digitalização e as novas formas de apresentação do texto só nos interessam porque dão acesso a outras maneiras de ler e de compreender (LÉVY, 1996, p. 46).

O trabalho do editor se atualiza e se amplifica diante das possibilidades do digital. Ora, numa avaliação dos requisitos técnicos para nova edição em tela, recordamo-nos que, na história ocidental da cultura letrada, papiros propunham uma forma de ler; já com os codices, as páginas foram numeradas, houve novas entradas de dados, controladas por sumário, e possibilidades de notas explicativas de rodapé, de cabeçalhos, de layout fixo na página, etc. A nova forma de escrita que se configurava no lugar da epopeia e do verso trazia consigo uma escrita em prosa para uma leitura silenciosa e organizada para outras formas de raciocínio. Assim, o ciberespaço e também a cibercultura, como essa convivência e comunicação mediada por computadores, devem ser parâmetros para atualização e reavaliação de estratégias de ação/intervenção na literatura e na formulação de caminhos para mediação de leitura, sobretudo aquela conduzida pelas instituições educacionais. Ambientes eletrônicos de difusão de criações literárias promovem mudanças industriais que transformam os artistas e suas abordagem estéticas, trazendo responsabilidades ao poder público na promoção desses conteúdos. Nessa toada, as formas de circulação do texto literário operam novo contexto de formação de leitores.

Ressalta-se, entretanto, que a intenção maior não é nos tornarmos entusiastas da atual “revolução digital”, mas sim massa crítica e ativa nesse complexo mundo das infovias. Cabe aqui a ressalva de que o “ciberespaço e suas experiências virtuais vêm sendo produzidos pelo capitalismo contemporâneo e estão necessariamente impregnados das formas culturais e paradigmas que são próprias do capitalismo global” (Santaella, 2003, p. 75). Trata-se, portanto, de terreno

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arenoso, em que a lógica do capital parece também lançar a sua utopia de conquistar o infinito. Acerca disso atesta o pensador Nestor Garcia Canclini:

Observa-se há muito tempo que a tendência para mercantilizar a produção cultural, massificar a arte e a literatura e oferecer os bens culturais com apoio de vários suportes ao mesmo tempo (por exemplo, filmes não só em cinemas, mas também na televisão e em vídeo) tira autonomia dos campos culturais. A fusão de empresas acentua essa integração multimídia e a sujeita a critérios de rentabilidade comercial que prevalecem sobre a pesquisa estética. Um dos exemplos mais citados é o grupo Time: dedicado à mídia impressa, uniu-se ao mega-produtor audiovisual Warner. Transformados, assim, nos maiores fabricantes de espetáculos e conteúdos (Time-Warner), em 2000 aliaram-se a um mega-provedor da Internet (AOL). Por outro lado, a empresa Cobis Corporation, de Bill Gates, ao comprar mais de vinte milhões de imagens fotográficas, pictóricas e de desenhos, acrescenta, a seu controle digital de edição e transmissão, a gestão exclusiva de uma enorme parte da informação visual sobre arte, política e guerras. Logo, essas corporações concentram a capacidade de selecionar e interpretar os acontecimentos históricos. (CANCLINI, 2008, p.20)

Essas reflexões sobre o texto literário e a sua intrínseca relação com a indústria cultural já provêm de longa data. Cumpre relembrar que foram os livreiros-editores que, no século XVIII, a partir da necessidade de limitar os direitos sobre as cópias dos livros, que determinaram a intervenção do Estado no Ocidente para a privatização dos direitos do autor. Além disso, mais recentemente, o historiador Armando Petrucci (1999, p. 205) nos dá notícias que nos Estados Unidos consolidou-se e difundiu-se progressivamente a ideologia tipicamente anglo-saxônica da public library como instrumento fundamental da democracia. Na esteira destas reflexões históricas, apoiando-se em princípios de preservação de direitos e liberdade de acesso, consolidaram-se políticas públicas no mundo ocidental que foram fundamentais para bem montar a lógica de atuação da indústria editorial.

Por outro lado, o ensino de literatura pouco tem contribuído para formar leitores, justificando-se a busca por novas metodologias de abordagem e difusão do texto literário. Reflexões teóricas, como as trazidas pela estética da recepção, deslocando o foco da leitura para o leitor, vêm abrindo caminho para se pensar um ensino que tenha como eixo a vivência do leitor com as obras e não a assimilação de um ensinamento e a introjeção de interpretações autorizadas. O diálogo entre textos, culturas, tempo e espaços diversos poderá ser instrumento dinamizador do trabalho com o texto literário, numa perspectiva que valorize a experiência do leitor e favoreça o papel da mediação de leitura. E a possibilidade do digital pode ser uma forma catalisadora disso. O que queremos ponderar enfim é que não nos

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encontramos necessariamente numa era emancipadora, mas que é possível assim mesmo, em meio à vanidade daquilo que muitas vezes é (re)produzido pela cibercultura e à ineficiência das práticas de ensino de literatura, vislumbrar uma reviravolta de meios interacionais entre tudo aquilo que é transmitido e construído nos espaços virtuais.

Ora, essas ponderações, numa argumentação que pretende discutir e justificar a compatibilização de uma edição e estratégias de mediação de leitura, representam uma preocupação permanente em não se idealizar as possibilidades de incremento da leitura do literário. Ao contrário, visa a incorporar comportamentos e ambientes virtuais já consolidados e avançar para um terreno do ciberespaço que a teoria contemporânea acostumou a chamar de livro eletrônico. Nesse sentido, é compromisso capital dos autores literários e editores do século XXI, então, reconhecer o potencial comunicativo e hipermidiático do ciberespaço para que se opere um preenchimento de vãos que se mostram abertos e à espera da multiplicidade e da diversidade da interação e do conhecimento que podemos propor.

Logo, defendemos que o moderno da digitalização e das infovias reside em trazer para o espaço contemporâneo novos gêneros textuais, vinculados ao hipertexto, cuja essência esteja na interatividade. Aqui está o ponto central: surge aí um leitor-editor, capaz de conduzir e produzir o conhecimento a partir de seu contato com os gêneros textuais presentes no ciberespaço. Entendemos que a leitura no computador é uma montagem singular, recorte que resulta da intervenção direta do leitor-editor, combinação dinâmica e infinita de intenções, conexões e interações. Portanto, imaginamos uma prática editorial que pretende buscar o caminho do hipertexto em forma leitura-edição-escrita. Nesta tríade que transpõe ler, editar e escrever, não se pode insistir em sustentar a materialidade estável da letra no papel, onde o autor é quase sempre sinônimo de autoridade. Na realidade virtual, toda variedade de práticas inclusas na comunicação via redes constituem um sujeito múltiplo, instável, mutável, difuso e fragmentado, enfim, uma constituição inacabada (POSTER, 1995, p. 30), sempre um projeto e, por isso tudo, vai onde o editor pode propor sua prática, lugar em que escrita e leitura não sejam objetos de cognição, mas produto de redes de conhecimento estabelecidas:

se falamos de internauta, fazemos alusão a um agente multimídia que lê, ouve e combina materiais diversos, procedentes da leitura e dos

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espetáculos. Essa integração de ações e linguagens redefiniu o lugar onde se aprendiam as principais habilidades — a escola — e a autonomia do campo educacional. (CANCLINI, 2008, p.22)

Em suma, o que pretendemos afirmar é um mundo em transformação em que o ciberespaço não pode ser negligenciado e a comunicação mediada eletronicamente precisa ser pensada como parte de nosso ecossistema e de nossa responsabilidade. Cooperação, inovação e serviços são valores para um novo século e que precisam ser revisitados pela prática editorial, sob pena de a literatura ficar subjacente às grandes forças do capital na sociedade contemporânea.

2.1 DO LIVRO AO ELETRÔNICO: O MÉTODO ABERTO

Nossa proposta de intervenção editorial inicia-se com a construção de um uma problemática de trabalho que antecedeu à construção de um projeto editorial: partindo da obra de Graciano Neves, como propor uma edição capaz de articular o encontro da crítica literária, do suporte da leitura - neste caso, o digital - e as maneiras de ler a Doutrina do Engrossamento? Nosso movimento teórico obteve para esta problemática as contribuições do já citado Roger Chartier. Primeiramente, a proposta foi estudar os projetos editoriais da Doutrina que antecederam ao nosso. A primeira constatação foi identificar na própria concepção da obra parte do jogo ficcional, que havia sido perdido em outras edições e presente na original, de 1901: a estratégia de criação em que um ex-deputado federal, lido por eminente senador, dedicando ao Congresso, apresenta aos jovens do país uma doutrina do bajulador com vistas à carreira política. Em nosso projeto, a ironia deste arranjo é recuperada, com a indicação da proposta original e a fixação do prefácio de 1935 como um texto anexo ao primeiro exercício de publicação. Assim, o leitor contemporâneo consegue refazer o pacto inicialmente proposto pelo escritor para a obra.

Depois disso, para realizar a leitura, buscaram-se classificações da obra para além das convenções de gênero. Apresentamos uma possibilidade de leitura do texto como ensaio e até mesmo como paródia - em função da sua temática – dos atuais manuais de autoajuda, mas fixamos nosso olhar crítico na sátira. Todas essas possibilidades com os mais variados gêneros reconstroem o modo como o leitor da

Doutrina consome, interpreta e se apropria do texto:

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sua pertinência teórica não é essa: é a de funcionar como um esquema de recepção, uma competência do leitor, confirmada e/ou contestada por todo texto novo num processo dinâmico. (COMPAGNON, 2007, p. 157)

Para isso, construir para a Doutrina este esquema de recepção para as possibilidades de gênero presentes na obra aponta três condições: a organização de um circuito de reconhecimento social; a montagem de contextos que projetem uma tentativa de diálogo entre textos que se apropriaram de uma postura combatente no cenário político finissecular dos oitocentos; e a aplicação de conceitos que valorizem a experiência do leitor e do livro como gesto histórico para intermediar relações locais e nacionais com a representação das instituições políticas de seu tempo.

Para tanto, considerar as práticas sociais de leitura e as “comunidades de interpretação” foi possível com a aplicação de conceitos de montagem e imagem como paradigma (Didi-Huberman/ Benjamim), com a representação das instituições na construção do passado com contornos estéticos e também políticos. Aqui, a montagem como paradigma da pesquisa de imagens que ilustram a edição, diante de um mundo que não é plano, encontra os tempos imbricados, revê estereótipos e atesta que o pensar como montagem e imagem tornaram-se um método revelador nos processos de estudos práticos e teóricos dos artistas e dos pesquisadores nos séculos XX e XXI (Georges Didi-Huberman):

Fazer um atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo enfim: deslocá-lo aí onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supúnhamos que havia fronteiras. Arthur Rimbaud recortou um dia um atlas geográfico para consignar a sua iconografia pessoal com os pedaços obtidos. Aby Warburg já tinha entendido que qualquer imagem — qualquer produção de cultura em geral — é um encontro de múltiplas migrações. São numerosos os artistas contemporâneos que não se conformam apenas com uma paisagem para contar-nos a história de um país: são a razão pela qual coexistem, numa mesma superfície — ou lâmina de atlas — diferentes formas para representar o espaço. (HUBERMAN, 2011)4

Com o filósofo francês Georges Didi-Huberman define-se o conceito de atlas aplicado a esta edição, ou seja, uma montagem como uma forma de ver o mundo e de percorrê-lo segundo pontos de vista heterogêneos associados uns aos outros pelas possibilidades de leitura de Graciano Neves.

Trata-se, no sentido editorial, de uma operação intelectual centrada na reconfiguração de espaço de leitura e na curadoria de imagens que se dispõem a

4 Conferência de Georges Didi-Huberman realizada no seminário de antropologia do visual da EHESS de Paris (INHA, auditorium,2 rue Vivienne 75002,Paris. Em 2010/2011). Publicado posteriormente como apresentação da exposição Atlas no Museu Reina Sofía (Espanha).

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traçar um itinerário para o leitor. Assim, encerra-se a linha da intervenção, que reside finalmente na categoria representações e apropriações, a fim de entender o surgimento de um autor na província e sua forma de dialogar com o leitor ilustrado da época.

Certos de que não existe técnica neutra, nossa opção política e estética em combinar o processo de montagem no ambiente eletrônico atende aos anseios de inquirir sobre as relações literárias de Graciano Neves e sua posição frente às relações de produção da época. Walter Benjamin, com seu olhar criterioso de quem observa os rumos da cultura letrada, assim observa sobre “as relações sociais de produção”:

Designei com o conceito de técnica aquele conceito que torna os produtos literários acessíveis a uma análise imediatamente social, e portanto a uma análise materialista. Ao mesmo tempo, o conceito de técnica representa o ponto de partida dialético para uma superação do contraste infecundo entre forma e conteúdo. (2012, p.131)

Nossa técnica de leitor-editor acena para contribuir no desafio que Chartier apresentou-nos como posto ao pesquisador disposto a realizar “o cruzamento inédito de enfoques temporalmente distantes uns dos outros (a crítica textual, a história do livro, a sociologia cultural)”:

compreender como as apropriações concretas e as invenções dos leitores (ou dos espectadores) dependem, em seu conjunto, dos efeitos de sentido para os quais apontam as próprias obras, dos usos e significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação e das concorrências e expectativas que regem a relação que cada comunidade mantém com a cultura escrita.”(2009, p. 43)

Depois de estabelecido o texto e suas notas, as formas e as estratégias de leitura, os elementos para montagem encontram-se em anexo, como diagrama semântico para a versão digital de Doutrina, dissociando livro de literatura, numa abordagem do texto literário que desvincula relações temporais e propõe o georreferenciamento de elementos da edição: imagens, audiovisual, planos como estratégia de mediação do texto literário, todos como elementos levantados para o trabalho do programador:

Mas, todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma circunstância, uma forma específica e, mesmo quando não tem consciência disso, o investimento afetivo ou intelectual que ele nela deposita está ligado a este objeto e a esta circunstância. Vemos portanto que, de um lado, há um processo de desmaterialização que cria uma categoria abstrata de valor e validade transcendentes, e que, de outro, há múltiplas experiências que

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são diretamente ligadas à situação do leitor e ao objeto no qual o texto é lido. (CHARTIER, 1998, p. 70-71)

A versão eletrônica proposta tem sua arquitetura organizada em três planos. Camadas de texto literário, notas (e comentários) e imagens. O caminho é estruturado para que o leitor contemporâneo possa refazer o percurso do editor-organizador. Quanto às notas e seus comentários, são entradas e saídas para o texto. Obra aberta, cartografada sem rigor científico, mas como uma mostra de itinerário de um circuito de reconhecimento social, realizando uma tentativa de diálogo entre textos (imagens) que se apropriaram de uma postura própria do espírito realista então vigente:

Ao permitir uma nova organização dos discursos históricos, baseada na multiplicação das ligações hipertextuais e na distinção entre diferentes níveis de textos (do resumo das conclusões à publicação dos documentos), o livro eletrônico é uma resposta possível, ou ao menos apresentada como tal, à crise da edição nas ciências humanas. (CHARTIER, 2009, p.60) A proposição é trazer o texto literário acompanhado de proposta mediadora, misto de edição crítica e experimentação literária, que não encontra espaço nas prateleiras sustentadas pela indústria editorial. É preciso valorizar a experiência do leitor e do livro como gesto histórico com a experimentação que permite recuperar conceitos e materialidade de edições anteriores. Também é preciso fazer uso do potencial do virtual para refletir sobre a questão da tradição literária e do olhar histórico:

Aquilo que está em jogo em todo empreendimento enciclopédico dá uma força particular ao texto eletrônico. Pela primeira vez, no mesmo suporte, o texto, a imagem e o som podem ser conservados e transmitidos. Imediatamente, toda a realidade do mundo sensível pode ser apreendida através de diferentes figuras, de sua descrição, de sua representação ou de sua presença. Existe aí uma força própria da mídia eletrônica para o projeto enciclopédico. Na mesma proporção, no suporte eletrônico, pode-se encontrar uma tradução da inspiração que caracterizou os grandes projetos enciclopédicos: tornar-se possível a disponibilidade universal das palavras enunciadas e das coisas representadas.

Além disso, nos projetos enciclopédicos, havia a ideia da organização, da classificação e da ordem. Também aí, graças aos instrumentos de pesquisa existentes nos textos, nas imagens ou nos sons eletrônicos, estas funções são bem mais seguras que aquelas dos livros de ordem comum da Renascença ou das árvores enciclopédicas como o que abre o “Tableau

des connaissances” na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. (CHARTIER,

1998, pp. 134-137)

De Chartier trazemos as expectativas do livro eletrônico e o desafio de constituir as “comunidades leitoras”. Quais imagens que nos foram selecionadas?

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Como foram montadas? Como a tradição literária acionada por Graciano Neves pode ser acessada pelo leitor? Quais as possibilidades de apropriação do novo suporte? Como o humor e a ironia são descodificados? Guiamos a prática editorial por instruções abertas ao desafio da experimentação, ou seja, prática pensante na perspectiva deleuziana: “Pensar é sempre interpretar, ou seja, explicar, desenvolver, decodificar, traduzir um signo.” (citado por Willians, 2013, p.114). Walter Benjamin observa que a noção de causa é capaz de introduzir no olhar histórico um conforto sem par (OLIVEIRA, 2006). Isso implica um radical comprometimento histórico lançado em nossa intervenção. A contribuição benjaminiana de história nos dá consciência do modo pelo qual se organiza a percepção humana; assim, o trabalho historiográfico leva a literatura e suas forças e formas – aí se inclui o trabalho do editor – a constituírem-se também como movimento de ruptura, de autocrítica, em busca de novos perceptos.

2.2 ORIENTAÇÕES FINAIS (BRIEFING)

Metadados: O editor deve preparar para lançar seu conteúdo em um repositório, biblioteca, acervo. Para isso, é preciso pensar cuidadosamente nos metadados que serão construídos para garantir acesso ao texto literário. Assunto, área de interesse, classificação, contribuições críticas, literatura comparada, são exemplos de metadados a serem disponibilizados em uma obra que se apresenta para edição em formato eletrônico. Os termos-chave definidos para esta edição de

Doutrina do Engrossamento são: prosa, ensaio, doutrina, sátira, ironia, positivismo,

República Velha, Espírito Santo, Graciano Neves, bajulação, adulação, engrossamento, política, literatura, século XIX.

Fonte: A escolha da fonte obedece a referências históricas: para promover uma imersão, recomenda-se Garamond Bold – ou Regular – no miolo; e Gable Antique Condensed em títulos. A orientação garante boa legibilidade e aspecto imersivo de aproximação com a primeira edição. Propõe-se transportar o leitor para o fim do século XIX e início do século XX, numa curadoria de conteúdos.

Imagens para montagem no corpo do texto: Foram organizadas quatro lâminas, a serem dispostas antes de cada capítulo que compõe a obra. Na lâmina 1, antecedendo a “Introdução Fundamental”, temos 4 imagens que insinuam o turbilhão histórico que marcava a publicação da obra - conflitos armados, “voto de cabresto”,

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eloquência estilo belle-époque dos governantes, decadência do Império. Já na segunda lâmina, são três imagens que expressam tematicamente doses de servilismo, a saber: cão, que sugere a polissemia de flatter; servos em reverência a seus senhores; bajulador acompanhado de “esnobe”. Uma terceira lâmina traz estampas de caricaturas do século XIX, extraídas de periódicos como o Punch vitoriano e o carioca Don Quixote, além de referências a cartolas, casacas e barbas excêntricas. Por fim, uma última lâmina, com retratos cristalizados de influências literárias explícitas na obra: Teofrasto, Diderot, Molière, La Bruyère e Thackeray. Demais imagens que devem compor o texto já foram lançadas no corpo da obra e têm suas referências no anexo deste trabalho.

Coleção: trabalhos de natureza de divulgação se fortalecem na medida em que facilitam a publicação em série de novos títulos. Assim, sugere-se uma coleção que edite novos autores que realizaram sua produção num contexto localizado do Espírito Santo e apresentam coincidência teórica com alguns dos metadados descritos. As futuras edições precisam conter estudo teórico que reflita sobre a forma da obra – sua linguagem e estilo –, caracterize o contexto histórico e a repercussão com os leitores, eleja forças de influências e apresente condições para estudos comparatistas. Deve-se ainda sugerir pesquisa de imagens para ilustrar o suporte e organizar notas com contribuições críticas.

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3 ESTUDO INTRODUTÓRIO

O meu coração de moço exulta de entusiasmo, por assumir hoje a administração do Estado, o distinto espírito-santense dr. Graciano Neves. Salve, pois, o ilustre paladino do progresso!

Deocleciano Coelho.5

3.1 BREVE NOTÍCIA SOBRE A VIDA DE GRACIANO NEVES

Graciano dos Santos Neves (1868 – 1922). O autor de Doutrina do

Engrossamento nasceu em São Mateus, no Espírito Santo, em 12 de junho de 1868.

De família abastada e influente no Norte capixaba, Graciano Neves realizou os estudos preparatórios na Corte carioca e formou-se médico em 1889. Trilhando vida política e literária, recém-formado, retorna à província e estabelece em 1891, com o empresário Fausto de Oliveira, o jornal Norte do Espírito Santo. Como editor do periódico, foi crítico voraz do despotismo estabelecido pelo Marechal Deodoro da Fonseca – a quem chamava “tirano vulgar” – e atacou duramente o estadista quando da dissolução do Congresso. Membro do Partido Republicano Construtor, com a ascensão de Floriano Peixoto, contando ainda 23 anos, obteve rápida ascensão política quando foi indicado como parte da Junta Governativa do Estado, que governou do fim de 1891 a 1892. Mais tarde, em consulta popular, foi eleito presidente do Estado e empossado em 23 de maio de 1896. Assumindo em meio a grave crise econômica e política, realizou vários cortes orçamentários e interrompeu investimentos iniciados por Muniz Freire, seu antecessor e correligionário. A instabilidade em seu grupo político levou-o à renúncia em setembro de 1897. Graciano não desistiu da vida pública e, em 1906, foi eleito deputado federal. Foi diretor do Jardim Botânico no ano de 1912 e, neste mesmo ano, assumiu a cátedra de botânica na Escola Superior de Agricultura, onde seguiu a carreira de docente até a sua morte. Faleceu aos 53 anos, no Rio de Janeiro, em abril 1922.

5 Publicado em 23 de maio de 1896 no jornal O Estado do Espírito Santo, por ocasião da posse de Graciano Neves à presidência da província.

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Figura 1 Fac-símile do artigo escrito por Graciano em combate ao "generalíssimo" Deodoro da Fonseca.

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3.2 UMA APRESENTAÇÃO DE DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO

O início do século XX foi marcado por inúmeros conflitos na recém-empossada república brasileira. As marcas das instabilidades decorridas das agitações políticas que sacudiram os primeiros anos de proclamação da República – como se via em revoltas como a da Armada, no Rio de Janeiro (1893-94), a Federalista, no sul do país (1893-95), e a Guerra de Canudos (1896-97), na Bahia –, associado com a presença de importantes intelectuais na liderança política do país, fizeram das letras um importante instrumento de ação política no Brasil que se apresentava ao novo século.

Em meio ao fervor intelectual dos grandes debates que ocupavam o modo de pensar das elites brasileiras, Graciano Neves forjou-se autêntico representante do período realista, contribuindo significativamente como autor da ilustração positivista em vigor. O historiador Ivan Lins6, ao estabelecer História do Positivismo

no Brasil (1967), trata-o como “um dos mais brilhantes aderentes do Positivismo no

Espírito Santo”. Sob essa influência, surge uma produção literária madura, marcada por singular talento verbal e por referências que partem de autores da Antiguidade Clássica, herdeiros de uma tradição menipeia-luciânica7 de risos sem censura, e chegam à sátira moralizadora de Thackeray na Inglaterra vitoriana.

Personalidade histórica na província do Espírito Santo, para além de sua contribuição intelectual, Graciano teve intensa participação na cúpula política do seu estado e, satirizando a fundo as práticas governistas da época, construiu um ensaio de pouco mais de 120 mil caracteres sobre a bajulação e seu uso na política:

Doutrina do Engrossamento. Declaradamente um manual de puxa-saquismo, a obra

foi publicada inicialmente em 1901 pela casa de livros Laemmert, desde o segundo reinado a mais importante editora em funcionamento no Brasil. Pelo menos outras três edições em curtas tiragens difundiram o texto em leitura, a saber: 2ª edição, Flores & Mano, Rio de Janeiro, 1935, com prefácio de Madeira de Freitas; 3ª edição, Artenova, Rio de Janeiro, 1978, numa edição pouco cuidada, que circulou um bom tempo em determinados grupos sociais do Espírito Santo como um souvenir dado

6 O compêndio positivista reforça a contribuição literária de Graciano para o período: “Também no interessante volume Doutrina do Engrossamento é evidente a marca positivista do espírito de Graciano Neves” (p.227)

7 Menipo e Luciano de Samósata desenvolveram na Antiguidade o diálogo satírico, em oposição aos famosos diálogos filosóficos.

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por empresários a seus clientes; e a 4ª edição, mais recente (1999), num esforço de resgate feito pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, que, sem difusão planejada, ficou restrita a círculos acadêmicos de alcance imediato do IHGES.

Doutrina do Engrossamento apresenta um conteúdo estruturado numa sofisticada estratégia ficcional. Trata-se de um volume organizado em quatro capítulos, a saber: 1) “Introdução fundamental”; 2) “Justificação histórica e política do engrossamento”; 3) “A técnica do engrossamento”; 4) “A arte de engolir a pílula”. Com relação à sua orientação, o termo doutrina (do latim, doctrína,ae) quer dizer ensino, instrução dada ou recebida; e cabe, ironicamente, ao fim que se presta a obra: formar jovens no refinado ofício do engrossamento. Ironia, aliás, elemento linguístico e expediente literário que sustenta a obra em sua forma e conteúdo. Inicialmente publicada sob o pseudônimo do Dr. M. Guedes Júnior, “ex-deputado federal”, o arranjo, em tom de blague – não por acaso – inicia seus ensinamentos com uma dedicatória um tanto irônica “Ao Congresso Federal”. A “cortesia”, feita em espaço à parte, de forma laudatória e com a “pena da galhofa”, já aparece como uma oferta de gosto duvidoso, que faria o leitor mais atento desconfiar da homenagem: “o autor daria uma prova antecipada e flagrante de insinceridade e incoerência, se não colocasse as suas humildes doutrinas sob a inovação de uma entidade ilustre e poderosa” (p.48).

O pacto ficcional com o leitor se estabelece por meio de um diálogo dúbio, permanentemente irônico, em que a voz enunciadora assume a condição de político teórico, responsável com o progresso e conhecedor das práticas cotidianas de adulação, e assume também o tom da sátira denunciadora dos vícios da República:

Seduzir o governo em vez de atacá-lo é o único meio certo de alcançar as mais apetecíveis posições, e a mais aprazível forma de concorrência democrática, que – uma vez consagrada pela filosofia da História – há de extinguir os mais pudibundos escrúpulos e inaugurar para a Federação Brasileira um sólido regime de Ordem. (p.69)

Propondo uma reflexão implacável sobre a história de seu tempo, Graciano Neves encerra sua estratégia literária ao batizar o texto, esclarecendo-nos quanto aos limites teóricos e práticos do opúsculo ora apresentado:

O indivíduo que conhecer solidamente os princípios do Engrossamento político está aparelhado para exercitar com superioridade todas as minúcias engrossatórias empregáveis no exercício das outras profissões; e, mesmo

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quando ele veja malogradas todas as suas aspirações políticas, nem assim foi um tempo desperdiçado o que empregou na espécie engrossatória respectiva, porque as manhas adquiridas servem para triunfar num outro ofício.

Por isso só tratamos, nesta obra, do Engrossamento Político. (p.49)

Definido o escopo da obra, dando continuidade à compreensão da estruturação dos modos didáticos da Doutrina, o leitor que então nos apresenta e valida a leitura da obra é o pseudo “senador Melício de Seixas”. Homem de letras e de política, conhecedor da necessidade de se estabelecer a “ordem” numa república incipiente, no prefácio, o senador exalta – executando as mais peritas formas de engrossamento – as virtudes do deputado escritor, e atesta os argumentos defendidos mais à frente no desenvolvimento da doutrina:

É tal convicção de minhas ideias sobre as vantagens da doutrina engrossatória que, se tivesse a suprema honra de dirigir qualquer dos estados da república, por delegação espontânea de meus concidadãos, não teria a menor dúvida em fazer o adotar o importante trabalho na instrução pública, iluminando o espírito da mocidade das escolas com o faixo brilhante desses princípios vitoriosos. (p.46)

3.3 LITERATURA E BAJULAÇÃO

Graciano Neves dirigiu o estado do Espírito Santo e a lição alcançada parece ter sido refinadamente elaborada ao “espírito da mocidade”. A Doutrina do Engrossamento dispõe de um arranjo textual montado com fins “pretensiosamente” didáticos, envolvendo o leitor no jogo ficcional que ambiciona realizar uma sátira dos meios políticos ligados a uma república frágil e clientelista.

Num primeiro contato com a Doutrina, o leitor mais desavisado pode compartilhar da compreensão de resenhistas que costumam atribuir ao autor um talento desiludido com a coisa pública após sua curta passagem na presidência da província do Espírito Santo. Entretanto, o que o leitor realmente vai encontrar é que o gênio criador de Graciano mostrou-se constantemente combatente e atuante. Sua contribuição literária aponta, na prática, para um riso político, devidamente engajado contra o establishment mantido pelas oligarquias latifundiárias do país que descaracterizavam o processo democrático implantado com a república. Prova disso são os inúmeros artigos em periódicos da época, em que o autor assume o combate

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político pela imprensa, denuncia fraudes e corrupções8.

No caso da Doutrina, vemos então que riso e ironia preparam a ambientação de uma obra marcada por engajamento, numa literatura comprometida com o espírito realista vigente. Apresentando-se como voz ativa num momento em que “os debates parlamentares, o início da democracia, a liberdade de imprensa criam as condições ideais para um grande debate de ideias em que a ironia é chamada a desempenhar um papel essencial” (MINOIS, 2003, p. 482), a posição social do autor e a opção de construção pela ironia configura-se como único arranjo possível para se realizar um verdadeiro combate político e para garantir sua circulação crítica no decorrer do século XX.

Concluída uma visão geral da obra, questiona-se como sua estratégia e estrutura podem interferir no sistema literário brasileiro finissecular. Quais ganhos terá o leitor que empreender o conhecimento da Doutrina do Engrossamento? Debruçando-se cinicamente sobre o esforço orientador e didático-teórico de fundamentar os ensinamentos sobre a bajulação, Graciano encarna o ethos positivista austero que influenciou o direito e a política brasileira. Seu repertório eclético afasta-o de rótulos estigmatizantes e dá-lhe atributos de um rigor intelectual humanista. O crítico Alfredo Bosi, em ensaio sobre ideologia na literatura, observa sobre a dificuldade em construir modelos ideólogicos para o autor de elaborada literatura:

A qualificação ideológica de um escritor de ficção bate de frente contra dois escolhos epistemológicos que conviria explorar de perto. O primeiro (que já nas linhas precedentes) reside no caráter concreto, portanto denso, da escrita literária: um poema lírico ou um romance em primeira pessoa traz em si um variado espectro de intuições, percepções e projeções de sentimentos contrastantes que podem ser interpretados e julgados como expressões desta ou daquela ideologia, desta ou daquela visão de mundo, sem que se consiga fixar, de uma vez por todas, qual é a instância dominante. (...) A adesão e a rejeição ao ethós do próprio tempo ou do pretérito se traduzem em imagens que não podem ser transpostas arbitrariamente em conceitos tais como os manipulam as ideologia ou suas contestações.

Quanto à segunda dificuldade, tem a ver com a inconveniência de se atribuir uma ideologia coesa (no sentido forte do

8 Como vimos, Graciano foi editor e redator da Folha do Norte do Espírito Santo e colaborador assíduo do periódico partidário O Estado do Espírito Santo. Foi famosa a contenda entre Graciano e Jerônimo Monteiro por ocosião da privatização da ferrovia Leopoldina. Ver XXX

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termo) a um escritor considerado na sua individualidade. (p.396) A um só tempo, Graciano Neves integra-se à consciência crítica e histórica que marcou a produção literária brasileira do final dos oitocentos em função do seu comprometimento literário, e também afasta-se de clichês cientificizantes do naturalismo ao optar por escrever sobre a temática da bajulação. Execrada ou defendida como estilo de vida, o fato é que a bajulação ocupa lugar temático de destaque na produção literária ocidental. Por conta disso, a trama textual de

Doutrina do Engrossamento, que aponta como força temática a bajulação para

jovens políticos, orientada para a ironia como figura principal de construção, sustenta a atualidade da obra:

A Autoridade está sempre cercada de uma roda espessa de engrossadores que nunca despregam a vista do objeto que adoram, senão para fiscalizar as genuflexões dos outros fiéis e redobrar de zelo devoto em caso de necessidade. (p.113)

Em tempos de autoajuda como o nosso, vale observar, por exemplo, a proliferação e o sucesso de publicações que propagam pedagogicamente formas de conquistar o poder e a consagração pública. É fácil discernir nessas obras aspectos como o cálculo meticuloso em busca da notoriedade como uma finalidade em si mesma, as dicas de como utilizar as relações pessoais, de afeto e de amizade, como alavanca social, subordinando-as a fins escusos e pouco dignos de nota. Nessa toada, não são recentes os textos que remontam pedagogicamente ao cinismo como prática de poder, nos quais fica sugerida a necessária e imprescindível dissimulação/representação de comportamento para aceitação e promoção social entre os pares. Já na Inglaterra do século XIX, dando partida ao fenômeno da autoajuda, Samuel Smiles (1812 – 1904) adaptava suas palestras para “a educação das classes trabalhadoras” em obra intitulada Self-Help (1859) e chegava à notória quantidade de 20 mil exemplares vendidos logo da sua publicação:

A experiência cotidiana nos mostra que é o individualismo enérgico que produz os efeitos mais poderosos sobre as vidas e as ações dos demais, e realmente constitui a melhor educação prática. (SMILES, 2008)

Com estilo simples, cercado de provérbios moralizantes e narrativas didáticas, o escritor escocês traça os objetivos e condutas individuais para o

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trabalhador de seu tempo. Sua escrita é marcada por uma força disciplinadora: Smiles argumenta longamente em Character (1871) em favor de um comportamento digno de nota para alcançar o sucesso pessoal e as posições de autoridade. Traçando um perfil maniqueísta do cotidiano, Smiles explica sobre o vazio de “homens maus” cujas práticas não revelam conteúdo genuíno, “não têm nem maldade, generosidade nem magnanimidade”. Narra ainda sobre os “snobs” – expressão que ganhou popularidade com Thackeray (1811-1863), no seu afamado

Book of Snobs – na condução do poder e seus métodos inescrupulosos para tirar

vantagem dos “mais fracos e indefesos”.

Graciano Neves utiliza em seu texto a mesma estrutura do estilo que alterna lampejos instrucionais com conclusões que levam ao leitor uma necessária mudança de espírito e de comportamento para ser bem-sucedido entre seus pares. A diferença reside no conjunto de repertórios acionados e no tratamento crítico que lhe confere a ironia. Doutrina do Engrossamento é escrita numa sofisticada trama intertextual, que sobrepõe textos e contextos ao valer-se de cânones da sátira de costumes:

O Neveu de Rameau, este herói tão original e tão estimável, cujas confidências mais íntimas o ilustre Diderot teve a felicidade de receber e publicar, declarava peremptoriamente que as suas leituras favoritas eram Molière, La Bruyère e Theophrasto, não para corrigir-se dos vícios que esses autores censuram, mas para conhecer a aparência denunciadora de cada um deles e saber modificá-la numa atitude virtuosa. (p.95)

A enumeração de autores no fragmento é chave importante para a leitura do capítulo que Graciano constrói em sua Doutrina, dedicado à técnica engrossatória propriamente dita. O leitor encontra aqui mais uma estratégia ficcional, isto é, a pactuação de Graciano Neves como leitor de Diderot. Graciano assume o jogo ficcional de Diderot – “teve a felicidade de receber e publicar” – para realizar o percurso intelectual que ele próprio opera na construção da Doutrina. O Eu, Diderot, que didaticamente questiona o Ele, sobrinho do músico Rameau, sobre as questões éticas e estéticas da vida, é definitivamente apropriado pelo texto da Doutrina. O rigor ético com que os cânones citados trataram temas como amizade, franqueza9 e

9 Mais um exemplo da importância do tema, a parrésia, nos antigos, pode ser reforçada com as observações de Cícero em Da amizade: “É próprio do homem de bem, a quem podemos também chamar sábio, manter na amizade estas duas qualidades: evitar fingimentos e simulações, pois a franqueza é mais nobre que a ocultação dos pensamentos, mesmo no ódio, e, além de repelir as acusações alheias, abster-se de alimentar suspeitas, imaginando sempre ter sido prejudicado por alguma falta do amigo”.

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bajulação foi radicalmente distorcido, em tom de refinada ironia. Lança-se a intenção às avessas de “conhecer a aparência denunciadora de cada um deles [vícios] e saber modificá-la numa atitude virtuosa”. É a ironia denunciadora apontando para os ganhos reais do leitor desta obra, qual seja o percurso intertextual com uma sabedoria da tradição. Confronto bem-humorado em afirmar o que se quer negar:

De resto, a maioria dos grandes homens da ciência e das artes foram aduladores eméritos. Sêneca, Tácito, Juvenal, Ovídio, Lucano, Ariosto, Tasso, Camões, Cervantes, Molière, Newton, Cuvier, Bacon, Shakespeare etc., todos estes foram engrossadores de primeira plana.

O grande Corneille, o nobre criador de altivos caracteres, teve a divina imprudência de dizer que haviam sido as qualidades de Mazarino que lhe tinham inspirado os seus trágicos heróis.

Cervantes, um gênio da ironia, adulava abjetamente o Conde de Lemos. Molière, o grande irreverente, rojava aos pés de Luiz XIV. Sir Isaac Newton condescendia de vez em quando em descer das suas regiões lunáticas para bajular a rainha Anna e alguns grandes da Inglaterra, exercício em que o ilustre matemático perdia as suas distrações habituais. Shakespeare, tão profundo conhecedor do coração humano, chamou a Elizabeth de Inglaterra – Vestal do Ocidente. (p.82-83)

Todo texto da Doutrina é revestido por meio de uma refinada ironia para que se institua este riso de vieses satíricos e de força literária. Para Linda Hutcheon (2000, p. 28), o interpretador é “aquele que decide se a elocução é irônica (ou não) e, então, qual sentido irônico particular ela pode ter” (grifo no original). Esta constatação leva a autora a questionar quem, de fato, deve ser considerado o “ironista”, uma vez que a ironia só se realiza quando interpretada, e esse processo de interpretação e atribuição de ironia acontece à revelia das intenções de seu autor, o dito ironista. A ironia só se realiza no processo comunicativo; ela não é um instrumento retórico estático a ser utilizado, mas nasce nas relações entre significados e também entre pessoas e emissões e, às vezes, entre intenções e interpretações (Hutcheon, 2000, p. 30). Na leitura da Doutrina do Engrossamento em sua potencialidade histórica e literária, o leitor, que opera a condição de “ironista”, precisa reconhecer a força dos cânones para corroborar com a hipótese de que é a ironia dos clássicos que sustenta o texto, porque na antífrase surge a sátira de costumes, no confronto daquilo que se afirma com aquilo que se intenciona.

Voltando aos fenômenos dos tempos de autoajuda, com o intuito de dar mostras ainda mais concretas ao leitor contemporâneo da Doutrina do

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Engrossamento, o exemplo dos textos de Dale Carnegie (1888 - 1955) talvez seja o

mais promissor do gênero. Foi na década de 1930 que surgia o best-seller How to

Win Friends and Influence People, de Dale Carnegie, anunciando o fenômeno

editorial que estava por vir. Nesses novos manuais do século XX, sem a linguagem velada dos industriais ingleses, sinaliza-se abertamente a bajulação como prática social legítima e “muito bem” cercada de fundamentos:

Alimentamos os corpos de nossos filhos, amigos e empregados, mas apenas esporadicamente alimentamos sua vaidade. Nós lhe damos um bife com batatas para adquirirem energia, mas não nos preocupamos em dar-lhes palavras de estímulo que ecoarão nas suas memórias como a música das estrelas matutinas (CARNEGIE, 2003, p. 72).

Sem que nos aprofundemos, a fim de manter o assunto apenas como pano de fundo para nossa argumentação, e, finalmente, afastando-se da possibilidade de marcar uma perspectiva moralizante sobre a edição de manuais de autoajuda, é válido trazer a contribuição da professora Carla Giani Martelli que, debruçando-se sobre a relação do tema da autoajuda no mundo organizacional, defende a existência de “sistemas de autoajuda”, uma produção que - para além dos livros, manuais e cartilhas – dão conta de textos, práticas e discursos em torno das organizações do trabalho contemporâneo:

Os sistemas de autoajuda não apenas resumem um conjunto de “verdades” acerca da vida, como ensinam os caminhos e as técnicas necessárias para se entrar em comunhão consigo mesmo, elevar a auto-estima, pensar positivamente, realizar o desejado e alcançar sucesso na vida. (MARTELLI, 2006, p.68)

Martelli defende o ponto de vista de que “os sistemas de auto-ajuda se transformaram em fenômenos que têm a dizer sobre um tipo de homem, um modo de ver a natureza, a sociedade, um modo de pensar as relações entre os homens”. Essas possibilidades de reunir temas diversos em um “sistema”, sustenta a autora, “faz confundir as fronteiras e as abordagens temáticas” (APUD). Outros modos de ver e de pensar adensam o repertório daqueles que leem a bajulação pelas páginas de Graciano Neves. Modos que visitam o passado, confrontam-se com a tradição e zombam do presente, antecipando o ethos presente em fenômenos de autoajuda. Por outro lado, indo além dos manuais, um bom exemplo das produções editoriais contemporâneas sobre a bajulação é a pesquisa do jornalista americano Richard

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Stengel em You're Too Kind: A Brief History of Flattery (2000), traduzido para o Brasil como A história do puxa-saquismo. O livro se configura como uma estratégia ensaística que defende, por meio de exemplos literários e de fatos da história política do Ocidente – em especial nos EUA, a bajulação pública “como verdadeira epidemia em nossa sociedade”:

A bajulação, como sabemos, é uma via de mão dupla. Por diversos motivos, a direção mais interessante não é a da bajulação dirigida ao presidente, mas a bajulação que o presidente dirige a nós, o sábio e justo – e crédulo – povo americano. Se o patriotismo, segundo Samuel Johnson, é o refúgio da canalha, então a bajulação do povo é provavelmente a primeira tática dessa canalha. (STENGEL, p.238)

A despeito do rigor acadêmico de Stengel, o jornalista conquista o leitor pela riqueza de exemplos e ilustrações que apresenta sobre o bajulador e suas práticas, desde o cânone até a mídia contemporânea, trazendo do nosso imaginário as maiores variações possíveis da figura do adulador. É, por exemplo, a partir de registros etimológicos do vocábulo “flatter”, que o vício da docilidade do cão que abana o rabo para o poderoso, citando Topsell e o dicionário Oxford, aproxima-se emblematicamente do comportamento público do bajulador. A crítica não é diferente da imagem já propagada e, ao contrário, defendida por Dale Carnegie em sua “doutrina”:

O processo usado para os cães não daria resultado na sua aplicação humana? Por que não usar o alimento ao invés do chicote? Por que não usar o elogio, o estímulo, em lugar da censura, da condenação? Elogiemos mesmo os menores progressos. Isto fará com que a pessoa continue melhorando cada vez mais. (CARNEGIE, 2003, p. 251).

Estas aproximações apresentadas entre os fenômenos editoriais do presente e as possibilidades críticas advindas do contexto histórico de Graciano Neves, ao tratar de literatura e bajulação no início da República no Brasil, potencializam a leitura e circulação da Doutrina do Engrossamento como verdadeiro instrumento de efetiva ação política no Brasil. Como vimos, é na antífrase que Graciano organiza a sátira de costumes, hoje tão propagada como prática social legítima. É na ironia que transcende o ethos positivista do século XIX que o leitor “ironista” depara-se com a radicalização do tratamento do servilismo próprio das relações hierárquicas e alimenta-se, não de vaidade, mas de sabedoria: “Quanto mais geral for a docilidade dos governados, tanto mais generosa e menos despótica será a atitude dos governantes”. (p.74)

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Finalmente, neste confronto entre afirmação e intenção, acessamos a uma literatura que tratou com rigor seu presente e, de certa forma, antecipou uma paródia dos manuais de autoajuda, tão divulgados nas últimas décadas. Portanto, no nível pragmático, para que a descodificação da Doutrina do Engrossamento seja potencializada como esta paródia, vale-nos retomar as observações de Linda Hutcheon, agora sobre paródia e ironia: “A identidade estrutural do texto como paródia depende, portanto, da coincidência, ao nível da estratégia, da descodificação (reconhecimento e interpretação) e da codificação.” (HUTCHEON, 2000, p. 50-51). Coincidências à parte, Graciano Neves contribuiu com uma obra que pode ter sua leitura atualizada ou contextualizada, seja no passado a partir da sobreposição de contextos e acionamento da tradição, seja no presente, como gesto de leitura crítica para ontem e hoje. Ganha o leitor, ganha a literatura brasileira com a contribuição generosa de Graciano.

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Figura 2 Resenha de Gustavo Barroso, publicada na Revista Fon-Fon, por ocasião do lançamento da segunda edição de Doutrina do Engrossamento (1935)

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3.4 LINGUAGEM E ESTILO DE GRACIANO NEVES

Todos os longos esforços humanos, as lúcidas investigações da ciência, as divinas elaborações da arte, os pacientes processos da indústria, os sublimes martírios da religião e as fervorosas lutas da política, durante a vasta e dolorida experiência de séculos inumeráveis concluíram por colocar definitivamente nas mãos da Burguesia financeira de hoje o cetro da autoridade social. (p.62)

O capítulo de abertura de Doutrina do Engrossamento, “Introdução Fundamental”, inicia-se com uma marca estilística muito peculiar. Graciano Neves escreve a leitores sensíveis ao empirismo das ciências naturais de seu tempo. Para isso, é criterioso no seu método. O sonho positivista de um estado governado por homens da ciência parece levar à prosa um tom muito próximo do leitor ilustrado do seu tempo. A “Introdução Fundamental”, que chega a assumir a dimensão de uma narrativa cosmogônica ao traçar as raízes históricas que relacionam o Estado ao capital e a ordem ao progresso civilizatório, na qual a preocupação é sempre a origem com vieses científico-positivistas, não significa necessariamente total coesão a um dado momento e sua ideologia, mas principalmente significa “as condições de possibilidades” (CHARTIER) da Doutrina de atacar as práticas clientelistas que encerram um século e oferecem-se a outro.

Com relação à influência da doutrina de Augusto Comte, Madeira de Freitas, ao prefaciar a edição de 1935, aponta para as contribuições teóricas desenvolvidas no ensaio da Doutrina: “Filho do pai de Augusto Comte com a mãe de Carlos Marx, ele não chegou a definir a própria genealogia filosófica, apendorando-se todavia mais para o lado paterno” (NEVES, 1935, p.8). Lembrando-se do jogo ficcional em que todo o texto é sustentado pela ironia, o empírico raciocínio do enunciador caminha para a universalidade de constatações acerca das relações entre os governos e o capital, obedecendo a um elaborado exercício argumentativo – com idas e vindas no decorrer da história – que o leva à seguinte conclusão:

De fato, já que a eleição e a revolução têm demonstrado tão limitada eficácia, o indivíduo ambicioso e hábil, em vez de procurar depor ou derrotar o governo, deve preferir o programa mais simples, mais rápido e mais proveitoso de pôr-se no governo. (p.66)

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