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Uma revisão da ontologia musical.

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Academic year: 2021

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Instituto de Filosofia, Artes e Cultura

Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte

UMA REVISÃO DA ONTOLOGIA MUSICAL

Dissertação

Vanessa Martins Couto

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VANESSA MARTINS COUTO

UMA REVISÃO DA ONTOLOGIA MUSICAL

Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Rainer Câmara Patriota.

Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.

Ouro Preto

2019

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Catalogação: www.sisbin.ufop.br

117f.:

Orientador: Prof. Dr. Rainer Camara Patriota.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Filosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte.

Área de Concentração: Filosofia.

1. Música e filosofia. 2. Música - Filosofia e estética . I. Patriota, Rainer Camara. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.

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Dedico ao meu pai, in memoriam. Por todo amor e deveres de casa realizados ao seu lado.

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AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço à CAPES por conceder esse fomento de extrema importância à pesquisa.

Aos participantes da Library Genesis e Sci-Hub por tornar possível o aprofundamento bibliográfico deste e tantos outros trabalhos.

À Universidade Federal de Ouro Preto e ao Programa de Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte por acreditarem em minha pesquisa. Aos queridos mestres e funcionários do departamento, em especial ao Desidério Murcho por todo incentivo e professor Romero Freitas por todas as aulas e diálogos enriquecedores.

Ao meu querido orientador Rainer Patriota por toda compreensão, confiança, conversas e ensinamentos durante essa dura jornada, meus sinceros agradecimentos.

Aos membros da banca Clóvis Salgado e Edilson Lima por aceitarem o convite e enriquecerem este trabalho.

À Universidade Federal de Minas Gerais pela minha formação e ensinamentos durante a graduação em Filosofia. Às queridas mestras Lívia Guimarães, Virginia Figueiredo, Giorgia Cechinatto por todas as inspirações e ensinamentos. E aos queridos mestres, Antônio Lopes Alves, Eduardo Soares e Marcelo Marques (in memorian). À Fundação Universitária Mendes Pimentel por toda assistência estudantil incluindo a psicológica, financeira e social, sem a qual dificilmente eu teria concluído a graduação.

À Marcia Tiburi e Vítor Guerreiro por toda inspiração, diálogos e ensinamentos. Aos colegas de mestrado do IFAC Matheus Drummond, Pâmela Góis, Adriano Menezes, Pablo Sathler e Tereza Lobato por todo afeto e incontáveis trocas de experiências e conversas enriquecedoras.

Aos queridos amigos Juliana Alves e Bruno Augusto por todo carinho e incentivos ao longo desses anos de amizade. À Elba Oliveira (minha constante) por sempre estar ao meu lado me apoiando, se doando e me fazendo acreditar na força de um abraço.

À minha amada esposa Raquel Souza pelo infinito companheirismo, compreensão, paciência e crença na conclusão desse trabalho. Aos nossos filhos de quatro patas Dara e Luth por todo afeto e companhia diária durante essa difícil empreitada.

À minha mãe Dora por sempre me amar e incentivar. Filha de Lula e Dilma, afilhada de Haddad.

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AOS QUE HESITAM Você diz:

Nossa causa vai mal.

A escuridão aumenta. As forças diminuem. Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo

Estamos em situação pior que no início. Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca.

Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível.

Mas nós cometemos erros, não há como negar.

Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem

Estão em desordem. O inimigo Distorceu muitas de nossas palavras Até ficarem irreconhecíveis.

Daquilo que dissemos, o que é agora falso: Tudo ou alguma coisa?

Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora

Da corrente viva? Ficaremos para trás Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?

Precisamos ter sorte?

Isto você pergunta. Não espere Nenhuma resposta senão a sua.

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RESUMO

A presente dissertação visa apresentar e analisar os principais problemas acerca da ontologia das obras musicais. Apesar de apresentarmos neste trabalho questões pertencentes à filosofia da arte em geral, buscou-se priorizar a música, mas não apenas como temática, e sim por seus problemas suis generis. Temos, portanto, problemas da natureza da música (ontologia e definição) e também problemas da nossa relação com a música, estes são de (expressão), pois busca-se compreender se a música é capaz de exprimir, evocar ou representar emoções.

Esta pesquisa almeja discutir a questão da definição musical: “O que é uma música?”; e dois dos principais problemas da ontologia da música: (A) “A qual categoria ontológica pertence uma obra musical?”; e (B) “O que é uma obra musical?”. Adotaram-se algumas perspectivas históricas, contudo, majoritariamente usaram-Adotaram-se concepções contemporâneas e de viés da tradição analítica da filosofia.

Em suma, buscamos revisar e analisar as principais correntes que abordam o caráter ontológico da música. Desse modo, pretendeu-se responder em termos ontológicos se a obra musical é algo concreto, abstrato e se segue as relações metafísicas do tipo-token.

Ao fim de nossa análise concluimos ser o platonismo musical a corrente que melhor responde aos problemas aqui levantados.

Palavras-chave: Ontologia da música; Filosofia da Música; Platonismo Musical,

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ABSTRACT

The present dissertation aims to present and analyze the main issues about the ontology of musical works. Although we present in this work questions belonging to the philosophy of art, in general, we sought to prioritize music, not only as thematic, but for its suis generis problems. We, therefore, have problems of the nature of music (ontology and definition) and also problems of our relationship with music, these are of (expression), because it seeks to understand if music is able to express, evoke or represent emotions. This research aims to discuss the question of musical definition: “What is a song?”; and two of the main problems of music ontology: (A) “Which ontological category does a musical work belong to?”; and (B) “What is a musical work?”. To do so, some historical perspectives were adopted, however, most contemporary and biased conceptions of the analytical tradition of philosophy were used.

In short, we seek to review and analyze the main currents that approach the ontological character of music. In this way, it was intended to answer in ontological terms if the musical work is something concrete, abstract and/or if it follows the metaphysical relations of the token-type.

At the end of our analysis we conclude that musical Platonism is the current that best responds to the problems raised here.

Keywords: Ontology of Music, Philosophy of Music, Musical Platonism, Aestetics

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 A QUESTÃO DA DEFINIÇÃO MUSICAL ... 16

1.1 O que é música? ... 16

1.2 Música e emoções...16

1.2.1 Emoção musical e neurociência...21

1.3 O conceito de música de Jerrold Levinson... 24

1.4 O conceito de música de Andrew Kania...28

1.5 John Cage e sua 4’33’’...32

1.5.1 A perspectiva de Levinson sobre a 4’33”...34

1.5.2 A perspectiva de Kania sobre a 4’33”...36

1.5.3 A perspectiva de Stephen Davies sobre a 4’33”...38

1.5.4 A perspectiva de Julian Dodd sobre a 4’33”...42

2 MÚSICA E SUAS CARACTERÍSTICAS ONTOLÓGICAS ...43

2.1 Música e seu caráter sui generis...43

2.2 Realismo dos Universais...44

2.3 A teoria tipo/token...49

2.3.1 Propriedades transmitidas/compartilhadas entre tipos e tokens...50

2.3.2 São os tipos universais?...58

3 O QUE É UMA OBRA MUSICAL?...62

3.1 A Restrição Pragmática ...63

3.2 A abordagem Nominalista...71

3.3 Eliminativismo...80

3.4 A hipótese da ação-tipo e a teoria performativa...82

3.5 A abordagem Idealista...86 3.6 Platonismo Musical...88 3.6.1 Platonismo Radical...88 3.6.2 Platonismo Simples...92 CONCLUSÃO...96 BIBLIOGRAFIA...113

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho está estruturado em três capítulos, utilizo-me nos dois primeiros de concepções históricas e contemporâneas para apresentar e discutir problemas fundamentais do debate acerca da Filosofia da Música, tendo como intuito preparar terreno para no terceiro capítulo me aprofundar nos problemas de caráter ontológico da música. Para isso seleciono os seguintes tópicos: 1) definição do conceito de música; 2) metafísica e ontologia da música; 3) ontologia das obras musicais.

O primeiro capítulo busca encontrar uma resposta satisfatória para a pergunta “O que é uma música?”, ou seja, pretende-se estruturar uma resposta de caráter semântico para a definição do conceito música. Desse modo, se faz necessário determinar quais características um dado evento sonoro precisa possuir para que este seja classificado como música. Em um primeiro momento apresento a questão do caráter emocional na música, que para alguns é uma característica essencial da música, busco, portanto apresentar a relação existente entre música e a expressão de emoções. A temática música e emoção é sem dúvida a questão filosófica mais antiga examinada na Filosofia da Música. Tomarei como ponto de partida as perspectivas de Platão e Aristóteles. Em um segundo momento apresentarei a primeira explicação genuína da música absoluta, a de Eduard Hanslick (1825-1904). O senso comum nos diz que a música tem a capacidade de exprimir emoções. O que isso quer dizer? Será que há na música sentimentos como raiva, melancolia, euforia, etc.? Pelo que se sabe só é possível haver emoções quando há algum tipo de estado mental. Nesse caso, haverá estados mentais na música? 1

Platão exprimiu a possibilidade de que a música possua a capacidade de produzir estados emocionais no ouvinte. Já Aristóteles sugeriu que a música “imita” ou representa as emoções. Hanslick foi defensor da teoria de que a música absoluta deve ser considerada uma estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado emocional. Sabemos que diferentes ouvintes podem ter emoções diferentes acerca da mesma peça musical. E muitos deles mesmo que em estados emocionais diferentes, são capazes de concordar que certa peça musical é triste ou alegre. Podemos estar tristes e reconhecer que uma música é alegre, e vice-versa. Sendo assim, parece haver algo na música capaz de nos fazer dizer se ela é triste

1

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ou alegre. Mas o quê? E como? Utilizo-me da neurociência para apresentar os atuais

posicionamentos científicos como tentativa de resposta para a questão. O problema da definição do conceito música se inicia ao tentar se definir o que é de

fato a «música». A explicação do conceito de música geralmente começa com a ideia de que música é um som organizado. Porém, existem outras coisas que são sons organizados e que não são músicas, como por exemplo, a fala humana, os sons de animais não-humanos e os sons que as máquinas fazem. Filósofos como Roger Scruton (1997) defendem a existência de pelo menos uma condição necessária para que a música seja de fato um som organizado. A condição seria o apelo à “tonalidade” ou características musicais como afinação e ritmo. Porém, é difícil definir o que é um som afinado, um maestro conservador poderia ter uma opinião diferente da de um maestro não conservador. E isso faria com que o debate caísse num subjetivismo. Eis um exemplo da dificuldade de se definir o que é uma obra musical: A obra 4’33’’ de John Cage (1952) constituída apenas por silêncios (som ambiente) pode ser considerada realmente uma música? Se seguirmos o presuposto de que qualquer som em qualquer circunstância é música, então teremos um esvaziamento do conceito de música, o que aparenta ser algo implausível. Para tal questão apresentarei as perspectivas dos filósofos Jerrold Levinson, Julian Dodd, Stephen Davies e Andrew Kania.

O segundo capítulo visa responder a pergunta “A qual categoria ontológica pertence uma obra musical?”, busca-se entender qual seria a natureza relacional entre as obras musicais e suas instâncias. Quando se questiona o tipo de coisa que é uma OMs2, a pergunta é sobre a qual categoria ontológica ou metafísica a peça musical pertence, ou seja, busca-se saber se a OMs é algo universal, particular, físico ou mental. Para as classificações ontológicas serão extremamente úteis não apenas os escritos clássicos de Platão e Aristóteles sobre o realismo dos universais, mas também os escritos contemporâneos de Wolheim e Wolterstorff.

Desse modo, caberá também expor argumentos que demonstram o fato de a música colocar problemas sui generis, ou seja, que não se colocam a propósito das outras artes. Veremos numa pré-análise que a obra musical não aparenta ser um objeto concreto e sim abstrato.

Os objetos abstratos colocam problemas sui generis: se existem serão eternos. Desse modo, existem em todos os momentos do tempo, ou são intemporais? Sendo intemporais não existirão em momento nenhum do tempo? A música (instrumental), pode

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ser considerada um objeto abstrato, mas caso ela seja de fato um objeto abstrato, não possui existência temporal. Sendo assim, como consegue ter relações temporais com particulares concretos?

Tomemos a 5ª Sinfonia de Beethoven como exemplo, se essa obra for uma entidade concreta, onde ela está nesse exato momento? Estaria na gravação de um Cd, vinil ou pendrive que tenho em minha casa, ou nas outras milhares de gravações diferentes que se encontram nas casas das outras pessoas ao redor do mundo? E se está em tantas casas diferentes ao mesmo tempo, como é possível afirmar de maneira coerente que existe uma única 5ª Sinfonia de Beethoven?

Alguns filósofos da música defendem que talvez essa obra se encontre apenas na partitura original e que todas as outras interpretações a tomam como referência. Porém, a partitura nada mais é do que um papel pintado com notações musicais, e um papel pintado não é música, nem mesmo as notações musicais em si são músicas. As partituras não são audíveis, são apenas um conjunto de símbolos impressos ou desenhados. E estes símbolos servem para representar aquilo que ouvimos, mas não são de fato aquilo que ouvimos. Se alguém roubar a partitura original de uma obra musical estará roubando apenas a partitura, não estará roubando a obra:

Será que a obra é a partitura? Mas a obra é aquilo que ouvimos numa execução e as partituras não são audíveis [...] Se alguém roubar a partitura original de uma obra não roubou a obra, apenas a partitura da obra, mas uma pintura é roubada quando o objeto físico pintado pelo autor é roubado. Parece impossível roubar obras musicais, o que seria estranho se a obra fosse um objeto físico localizável. (O único sentido em que é possível roubar uma obra musical é alguém fazer-se passar pelo seu compositor). (GUERREIRO, 2014, p.24-25).

Veremos que os filósofos idealistas da música afirmam que a obra musical nada mais é do que aquilo que estava na mente do compositor no momento da atividade composicional. Se os últimos estiverem certos, a obra 5ª Sinfonia de Beethoven não existe mais, tendo em vista que seu compositor faleceu em 1827. Mas o que significa dizer exatamente que as obras musicais não passam de entidades mentais? Parece-me haver dois significados para tal afirmação: ou se defende que a obra é um estado mental, tal como intenções, crenças, emoções, ou se afirma que a obra é o conteúdo de alguns desses estados. Não creio que a primeira hipótese faça algum sentido, tendo em vista que as entidades mentais não são algo que possamos ouvir ou executar em um instrumento. A segunda

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hipótese nos diz que a obra, caso realmente exista, é algo extramental, que pode ser representada mentalmente.

O terceiro capítulo busca esclarecer a pergunta “O que é uma obra musical?”, ou seja, pretende-se evidenciar o caráter ontológico e metafísico da música, portanto, se procura entender de que tipo ou (tipos) de coisas é uma obra musical. Como forma de apresentar e analisar o problema do caráter ontológico da música, se faz necessário expor, entre outras correntes, as concepções platônicas que emergiram na década de 1960 como resposta para o que é uma obra musical.

O platonismo musical é atualmente o ponto de vista mais influente na filosofia da música, já que é a teoria que mais “respeita” parte das nossas intuições pré-teóricas acerca das obras musicais. De acordo com tal teoria, a obra musical nada mais é do que uma estrutura sonora, um padrão rítmico, tonal, comum a todos os eventos sonoros que são execuções ou reproduções da mesma obra. Para tornar mais compreensivo, pode se pensar que as execuções exemplificam ou instanciam a estrutura sonora. O platonismo musical leva esse nome por uma semelhança com a teoria de Platão dos paradigmas imateriais e intemporais das coisas existentes no mundo físico. Exemplos de possíveis entes abstratos e não musicais são os números e a triangularidade. O platonismo musical possui duas correntes teóricas, a saber, o platonismo simples ou leve e o platonismo radical ou complexo.

O platonismo simples tem a visão de que as obras musicais são “tipos indicados” de estruturas abstratas criadas por seus compositores. Isto é ontologivamente intrigante, tendo em vista a difícil compreensão dos objetos abstratos. Esta visão é motivada por uma série de características da prática musical, incluindo a intuição de que as obras musicais são criáveis, e também da atribuição de várias propriedades estéticas e artísticas das obras. Já de acordo com o platonismo radical, obras musicais são existentes eternos e são descobertos por seus compositores.

Se tomarmos como base a tese do platonismo radical a 5ª Sinfonia de Beethoven será algo que sempre existiu, uma espécie de estrutura sonora, da qual o compositor alemão apenas se limitou a descobrir. Se esse for o caso, tal obra não seria fruto de uma criação humana e Beethoven não seria de fato um compositor, mas sim um descobridor.

Para além dos dois tipos de platonismo musicais temos outras correntes que buscam responder a pergunta “O que é uma obra musical?”. Neste caso, destaco as seguintes abordagens: nominalismo; eliminativismo; a hipótese da ação-tipo e a teoria performativa; e a abordagem idealista. A definicação de música que se busca nesse capítulo é mais do que

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meramente definir o termo «música», ou seja, é mais do que fazer uma definição nominal. Busca-se é uma definição essencialista, que dê conta das condições necessárias e suficientes para que algo pertença à extensão de um dado conceito.

Desse modo, me parece bastante pertinente o estudo do platonismo musical e de como suas concepções contemporâneas acerca da Filosofia da Música podem contribuir para responder ou clarificar as questões do caráter ontológico da música.

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1. A QUESTÃO DA DEFINIÇÃO MUSICAL

1.1 O que é música?

A natureza da música é um tema bastante discutido desde os primórdios da filosofia, podemos afirmar que essa temática é abordada de forma diacrônica tanto na história da filosofia Oriental quanto Ocidental. Apesar da constante análise do tema, não vemos dentro da história, de uma forma geral, uma procura realmente sistemática pela definição musical. Possivelmente o tópico da música sempre esteve inserido em teorias mais abrangentes, e os filósofos, por sua vez, não apresentavam tanto interesse por uma definição conceitual do objeto musical3. Cabe destacar que a limitada preocupação em se definir música não é algo exclusivo de grande parte da história da filosofia, este desinteresse talvez seja igualmente comum entre músicos, apreciadores da música e também dentro da musicologia. Analisar a música sem fazer uso da concepção de juízo de valor estético é ainda hoje algo incomum, entretanto, alguns filosófos e estetas tentaram caracterizar o objeto musical através de formas não conceituais. Seguindo essa perspectiva, temos um tópico importante, música e emoções que, sem dúvidas, é o tema mais discutido dentro da história da filosofia da música. Alguns levantam a hipótese de que a capacidade da música em suscitar emoções seja algo determinante para caracterizá-la e defini-la. Sendo assim, começaremos examinando tal tópico.

1.2 Música e emoções

Música e emoções talvez seja a questão filosófica mais antiga examinada na filosofia da música. Desde Platão e Aristóteles são levantadas hipóteses de que a música4 tenha a capacidade de produzir estados emocionais nos ouvintes e de “imitar” as emoções. Ainda nos tempos atuais, o senso comum nos diz que a música é capaz de exprimir emoções. O que isso quer dizer? Será que há na música sentimentos como raiva, melancolia, euforia

3 Entendo como busca conceitual sistemática algo que busque definir x de forma mais direta, sem que primeiramente seja necessário compreender um sistema teórico de determinado autor, para que posteriormente se torne possível extrair alguma definição dentro de sua teoria.

4 No presente capítulo o termo “música” restringe-se à instrumental ou absoluta, o uso se justifica pois, a chamada música “programática” ou “não absoluta” faz uso de uma semântica capaz de efetivamente evocar, referir ou representar emoções.

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etc.? Pelo que se sabe só é possível haver emoções quando há algum tipo de estado mental, nesse caso, haveria estados mentais na música?

Desde a Antiguidade, música e emoção desempenham uma estreita relação, sendo que, por vezes, suas existências até foram pensadas como dependentes. Temos na Grécia Antiga a doutrina pitagórica do ethos, que possui a visão da música como força capaz de afetar o universo e o caráter, podendo também reestabelecer a harmonia perturbada da alma humana5. Platão, em seu livro X da República, parece atribuir à música apenas o efeito de produzir estados emocionais no ouvinte, condenando-a juntamente com as demais artes, por estas produzirem somente afetos ao invés de educação-ética6. Já Aristóteles em seu livro VIII da Política sugere que a música “imita” ou representa as emoções, seu poder educativo estaria no uso prudente do conhecimento dos seus efeitos sobre a alma humana.7 No séc. XIX, temos como o maior esteta musical Eduard Hanslick, este defende a teoria de que a música absoluta é uma estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado emocional. Dada sua importância teórica como base argumentativa na história da estética musical e, posteriormente na filosofia da música, analisaremos com maior atenção sua teoria.

São inúmeras as situações em que a música possui um determinante papel no desencadeamento de estados emotivos, sejam eles conscientes ou não, por vezes, até incontroláveis. Sabemos que diferentes ouvintes podem ter emoções distintas acerca da mesma peça musical, podendo até concordar que seja triste ou alegre. É perfeitamente concebível imaginarmos que uma pessoa P esteja triste e consiga reconhecer que uma música é alegre ou estar alegre e reconhecer que uma música é triste. Mas mesmo que assim o seja, essa característica seria realmente determinante para caracterizar a música?

Comumente, a questão da música expressar emoções é dada como simples obviedade. Um dos argumentos para tal defesa é a existência de uma linguagem capaz de descrevê-la em termos emocionais. Frases como: “Esta música expressa angústia”; “o violão de cordas de aço nas canções de country geralmente são melancólicas”; e “x é uma música capaz de incitar orgulho”; exemplificam o uso dessa linguagem. No entanto, não se segue das afirmações acima que exista de fato alguma relação causal entre música e emoções. O simples fato de através da linguagem descrevermos uma dada relação, não garante a sua existência. Ademais, sentimentos de angústia, melancolia e orgulho não são caracterizados

5 GROUT, Donald, PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2005, p.20. 6

FUBINI, Enrico. Estética da Música p. 74-75. 7 FUBINI, Enrico. Estética da Música p. 80-81.

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como estados de espírito ou meras sensações, são na realidade sofisticadas emoções intensionais8.9

Seria possível a música provocar emoções definidas nos ouvintes? É intuitivo pensarmos parte dos aspectos centrais da emoção do seguinte modo:

emoção como conteúdo intensional (são acerca de algo) e ou

emoção como aspecto qualitativo ou fenomenológico (são sentidas).

Não afirmo que todas as emoções em todos os casos sejam ao mesmo tempo intensionais e qualitativas, contudo, na filosofia da música grande parte das emoções em causa possuem conjuntamente um teor intensional e fenomenológico. Na visão de Zangwill (2004, p.2): “Estipulo que as emoções têm conteúdo intensional – estão direccionadas ou para um estado de coisas ou para um objecto. Isto exclui estados de espírito sem conteúdo”. Já Hanslick (1973) reconhece que a música pode evocar emoções, mas, de modo semelhante, as emoções podem ter outras causas fora da arte. Seu argumento tenta mostrar que certas emoções não são de todo essencial à música (ou qualquer outra arte). Segundo o autor, a sensação [Empfindung], seria o primeiro passo percorrido em busca de condições favoráveis que tornam possíveis o verdadeiro deleite estético. Já a fantasia [Phantasie], seria responsável por acolher o belo, sendo assim, o sentimento não exerce tal função. De modo geral, como poderíamos entender essa fantasia? Ela deveria ser entendida, como uma instância estética capaz de contemplar enquanto representa e julga, portanto, um contemplar com entendimento.

Nas palavras do autor:

A peça sonora provém da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte. Evidentemente a fantasia, diante do belo, não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, isto é, um representar e um julgar. [...] Além disso, a palavra “contemplação”, transferida há muito das representações visuais para todos os fenômenos sensíveis, corresponde de modo excelente ao ato do ouvir atento, que consiste numa consideração sucessiva das formas sonoras. (HANSLICK, 1973, p. 5)

8 A palavra “intensional” aqui usada é mesmo escrita com s, pois se refere ao conceito filósofico da intesão que diz respeito ao conteúdo de um conceito ou de um estado mental como uma emoção. Por exemplo: se tenho medo de cobras porque tive notícia de muitos ataques, pode-se dizer que a intensão (conteúdo) do meu medo é a crença de que cobras sejam animais perigosos que, por vezes, atacam de forma fatal. Além da intensão, o medo tem outra componente: a reação fisiológica que a pessoa que o sente tem.

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Considero importante ao pensarmos em “música e emoções”, direcionar nossa atenção à própria música e a experiência que temos dela em si. Desse modo, é possível distanciarmos da concepção defendida por alguns estetas de que, ao ouvirmos música, temos sentimentos sem objeto. Destaco a perspectiva de que as emoções são tanto conteúdo quanto objeto da música, o objetivo da música seria provocar e exprimir emoções definidas nos ouvintes, ou seja, se ouvirmos uma música e sentirmos alegria significa que o compositor cumpriu o seu propósito de nos causar alegria, esse foi o objetivo dos músicos desde sempre, com exceção de alguns compositores do romantismo e, sobretudo da modernidade. Cabe aqui tentar esclarecer os termos “provocar” e “exprirmir”, estes devem ser entendidos respectivamente (ZANGWILL, 2004):

i. Ao afirmarmos que música α provoca uma emoção definida β, nos faz concluir que todo ouvinte ao ouvir α em condições similares também sentirá β.

ii. Ao afirmarmos que a música α exprimi uma emoção definida β, significa que somos capazes de compreender a emoção que está sendo indicada, sem a implicação de a estarmos sentindo.

Contudo, o efeito da música e de qualquer outro objeto nas emoções da nossa espécie é bastante variável, pensando na nossa experiência como ouvintes: podemos nos alegrar ao ouvir uma música projetada para que seja triste ou nos entristecer ouvindo uma obra musical concebida como alegre. Temos também casos em que a técnica impera sobre as oscilações afetivas, exemplo disso é quando o próprio compositor que mesmo estando triste é capaz de compor uma música alegre e ao estar alegre é capaz de compor música triste. Parece claro que a música não é capaz de nos causar emoções padronizadas e mesmo que o fosse isso não seria essencial, ou seja, não seria aquilo em que consiste ser a música, pois não consegue comportar uma excelência da sua própria existência.

O fato de Hanslick defender que a música não é capaz de exprirmir ou provocar emoções definidas demonstra que sua ideia parte da convicção de que as emoções possuem um elemento intensional, algo que envolva estados mentais, como crenças e desejos, etc. Como bem observa D’Aversa:

É demasiado difícil imaginar como uma crença ou desejo poderiam ser representados por meio de sons sem significado. [...] Se a música não pode representar estados mentais, então não pode representar emoções definidas, uma vez que estas envolvem estados mentais; a música não pode representar estados

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mentais; logo, a música não pode representar emoções definidas. (D’AVERSA, 2010, p.2-3).

Sendo assim, a música por não oferecer uma linguagem adequada, seria incapaz de representar estados mentais. Tal posição corrobora com o argumento de Hanslick visando a música como algo assemântico, rechaçando então, qualquer analogia entre música e linguagem. Um grande equívoco é cometido pelos leitores da obra “Do Belo Musical”: muitos acreditam que os argumentos de Hanslick negam a possibilidade de nos emocionarmos com a música. No entanto, o que Hanslick nega é a capacidade da música exprimir ou evocar emoções definidas. Em nenhum momento o autor afirma que a obra é incapaz de suscitar sentimentos nos ouvintes. Em sua perspectiva, os sentimentos apenas não podem ser considerados como o conteúdo da música, pois de acordo com Hanslick, a música possui em si mesma um significado, o que seria demonstrado através dos próprios sons e de suas relações internas.

O autor se opõe ao uso dos sentimentos como princípio estético, uma vez que, em sua visão, o belo musical reside nas próprias características sonoras, que, portanto, não requerem nenhuma referência a algum conteúdo exterior. A beleza em uma obra musical existiria em decorrência das suas determinações sonoras: harmonia, ritmos etc. Evidenciando a sua visão:

É um belo especificamente musical. Com isto, entendemos um belo que, sem depender e sem necessitar de um conteúdo exterior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação artística. As engenhosas combinações de sons encantadores, seu concordar e opor-se, seu afastar-se e reunir-se, seu elevar-se e morrer - é isto que, em formas livres, se apresenta à contemplação de nosso espírito e dá prazer enquanto belo (HANSLICK, 1992, p. 61).

Em seu terceiro capítulo, Hanslick estabelece uma autonomia da música em relação à matemática e à linguagem. Primeiramente ele concebe a matemática como algo mêcanico, nega que a composição passe por qualquer espécie de “cálculo”. O papel exercido pela matemática em relação à música estaria restrito à parte que é também física, ou seja, seriam das vibrações, ondas sonoras, dissonância, consonância etc. Sobre a linguagem, o autor defende o quão são fracas as anologias que tentam ser estabelecidas entre música e linguagem. Em sua perspectiva, a música não tem nenhuma obrigação de expressar conteúdo externo, qualquer tipo de significação da música encontra-se nela mesma10, ou seja, ao contrário da linguagem em que o som é apenas meio, tendo como finalidade expressar algo

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fora dele, na música o som é um fim em si mesmo. Nesse sentido, dois pontos se tornam nítidos: a defesa feita por Hanslick da autonomia da música; e a cobrança direcionada aos estetas, de tomarem como importante tarefa a diferenciação entre a essência da música e essência da linguagem. – um dos principais problemas da Estética musical, segundo o autor (a relação entre música e linguagem).

1.2.1 Emoção musical e neurociência

Já no século XX através de alguns filósofos contemporâneos que seguem uma tradição analítica, a busca por uma definição conceitual do objeto musical passou a ser um pouco mais usual11. Contudo, qual seria a causa do escasso interesse por uma definição do que é a música? Prontamente não podemos negar a hipótese da obviedade, existe a possibilidade de não sentirmos necessidade de defini-la em razão de acharmos evidente o que é ou não música. Ademais, raramente não obtemos êxito ao identificar algo sonoro como sendo música, ruído ou uma simples fala. Mesmo quando temos contato com algum objeto musical desconhecido, por exemplo, uma música oriental, praticamente não temos dúvida de que se trata de uma música o que estamos a ouvir, mesmo que não saibamos sua origem, qual é o seu final, se ela apresenta erros em sua execução ou quem a compôs.

A música carrega em si quase um status de universalidade, sabemos que ela é pancultural, muitíssimo antiga, surge em formato de canção nas crianças quase que de forma natural, e ela de algum modo parece nos acompanhar não somente na vida adulta, mas também em nossa idade mais avançada. Ao que tudo indica a música é capaz de desenvolver raízes profundas no cérebro humano. Prova disso é que na terceira idade, fase em que estamos mais suscetíveis a desenvolver alguma doença neurodegenarativa, ela ainda permanece em nós, mesmo que de forma escondida, numa espécie de resguardo aos danos causados à nossa memória12.

O campo da neurociência vêm apresentando inúmeras pesquisas que visam elucidar o funcionamento cerebral diante das emoções suscitadas através da música/canção, também nomeada, como emoção musical. Nas últimas décadas, tem sido comum, por meio de técnicas avançadas de imagem por ressonância magnética/ funcional (IRM-IRMF) e eletroencefalografia (EEG), a realização de mapeamentos das atividades neurológicas de

11 A filosofia analítica em sua origem buscava definir nossos termos de forma precisa, fazendo uso deles de forma prudente com o intuito de assim progredir filosoficamente.

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voluntários, enquanto estes, participam de simples audições musicais. Estes mapeamentos demonstraram não apenas a ativação de diversas áreas do cérebro, como também a capacidade de a música atingir de forma ampla e simultânea: memória, linguagem, motricidade e emoções. Através destes estudos, estabeleceu-se na neurociência um certo consenso de que tanto a emoção musical, quanto a emoção em geral, são causadas por uma excitação nervosa. Isto porque o fenômeno físico/acústico do som, afeta nosso sistema nervoso autônomo que é a base da nossa reação emocional, este suscita reações fisiológicas ligadas às vibrações sonoras, que por sua vez, estão ligadas às reações psicológicas13.

Tradicionalmente os neurocientistas afirmam que o cerebelo14 estaria ligado apenas à noção de tempo e ao movimento. Não obstante, o neurocientista e também músico Daniel Levitin (2010) afirma ter constatado em suas pesquisas que enquanto seus voluntários ouviam música, o cerebelo recebia várias ativações, porém, quando ouviam apenas ruídos o cerebelo não era ativado. Segundo o pesquisador, no momento em que a música causa emoção, a estrutura do cerebelo é ativada, modulando a produção e liberação pelo tronco cerebral de neurotransmissores dopamina e noradrenalina, além da amídala, área mais importante do processamento emocional no córtex15. Levitin também destaca que a terapia com uso da música, chamada de musicoterapia16, contribui positivamente para as emoções, além de auxiliar na compreensão das informações cognitivas e ainda, induziria a produção de substâncias químicas cerebrais que são fundamentais para a sensação de bem-estar e prazer, a saber: dopamina e serotonina. Estes e outros estudos recentes demonstram como o uso da música visando evocar emoções, auxilia no tratamento de distúrbios e doenças como: depressão, Parkinson e Alzheimer. O cerebelo por exercer um papel de suma importância em processos cognitivos complexos “tais como funções executivas, aprendizagem, memória,

13 SEKEFF, 2007, p.61.

14

“O cerebelo humano é uma das estruturas cerebrais com maior parte do nosso sistema nervoso. Tradicionalmente, tem sido atribuído um papel proeminente na implementação e coordenação de atos motores e manutenção do tom muscular para controlar o equilíbrio, devido a sua posição próxima as principais vias sensoriais e motoras. No entanto, nas últimas décadas, a neurociência clínica expandiu significativamente a visão tradicional do cerebelo como um mero coordenador das funções motoras, focando o interesse de pesquisa atual sobre o papel do cerebelo em processos cognitivos complexos, tais como funções executivas, aprendizagem, memória, funções visuo-espaciais ou mesmo contribuindo para a esfera emocional e área linguística”. MORAES, Alberto Parahyba Quartim de - O Livro do cérebro. Vol I. São Paulo. S P, Editora Duetto - 2009, p. 63.

15

LEVITIN, 2010, p.206.

16 “Musicoterapia é a aplicação controlada de atividades Musicais especialmente organizadas, com a intenção de favorecer o desenvolvimento e a cura durante o tratamento, a educação, e a reabilitação de crianças e adultos com defasagens motoras, sensoriais ou emocionais. O objetivo do musicoterapeuta é centrado no cliente e não na música”. BRUSCIA, K. Definindo a Musicoterapia. Rio de Janeiro:Enelivros, 2000, p. 274.

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funções visuo-espaciais ou mesmo contribuindo para a esfera emocional e área linguística17” parece nos auxiliar nessa identificação da música em meio a outros objetos sonoros, uma vez que não é ativado ao ouvirmos ruído, mas é ativado ao ouvirmos música. Destarte, parece mesmo haver evidências científicas que corroboram com a ideia de que temos uma facilidade em reconhecer algum objeto sonoro como sendo música, podendo distingui-lo de ruídos e outros objetos sonoros que não são de fato música.

Ainda que a neurociência tenha muito a elucidar sobre a função da música em nosso cérebro e comportamento, ela pouco ou nada tem a nos oferecer em relação a definição real da música, ou seja, o que procuramos aqui é uma definição essencialista, algo que contemple definições em termos de condições necessárias e suficientes. Desse modo, para que algo pertença à extensão de um dado conceito é preciso satisfazer condições (individualmente) necessárias e (conjuntamente) suficientes. A palavra música em si não é a questão problemática, o que se busca é estabelecer critérios com o intuito de que algo os satisfaça para ser de fato um exemplo de música. Portanto, não se busca os critérios pelos quais normalmente já reconhecemos algo como música18. Apesar de termos uma noção quase intuitiva do que é a música, defini-la não é uma tarefa tão óbvia assim. Existem casos marginais e possibilidades de erro nessa identificação, pelo fato de algumas coisas que soam musicais não serem música. Como bem coloca Stephen Davies:

A fala infantil, línguas de tom e acentos linguísticos de “canto-canção”, como em galês. Além disso, alguns sons padronizados podem ser confundidos com música: incluindo arte sonora, sons que não são feitos humanamente, como o coro noturno de rãs em um campo de arroz, e sons que não são primariamente destinados a ter o caráter sonoro que eles têm, tais como efeitos auditivos incidentais na fábrica de taças de cristal. (DAVIES, 2012, p.535).

Definir o termo música parece mesmo ser uma tarefa assumida por filósofos contemporâneos, sobretudo os que pesquisam a temática da filosofia da música. Apresentarei na próxima seção as propostas de definições mais avançadas, estabelecidas por Jerrold Levinson e Andrew Kania.

17 MORAES, Alberto Parahyba Quartim, op. cit., p.63

18 “( o critério pelo qual normalmente reconhecemos um líquido como água, por exemplo, não é o critério que esse líquido tem de satisfazer para ser água, ou seja, ter uma certa estrutura química). Além disso, o interesse propriamente filosófico na definição não está meramente em analisar o conceito de música que temos mas o conceito que é exigido por uma teoria que nos esclareça acerca da natureza das atividades e objetos relevantes que referimos usando o termo «música»”. (GUERREIRO, 2014, p.18).

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1.3 O conceito de música de Jerrold Levinson

O filósofo Jerrold Levinson em sua obra Music, Art and Metaphysics19 se propõe a dar uma resposta funcional a questão o que é música? Seu objetivo é captar um uso bastante amplo do que a «música» é nos tempos atuais, mas sem que este deixe de ser aplicado da mesma maneira à fenômenos musicais de culturas diferentes, ou seja, tal definição necessariamente deve ser capaz de abarcar não apenas as sinfonias de Beethoven, mas também as canções de Bob Dylan. Antes de iniciar sua proposta de definição, Levinson deixa claro a distinção entre a pergunta «o que é a música?» e a «de que tipo de coisa é uma peça musical?». É importante fazer essa diferenciação, pois de fato costumam ser confundidas. Quando se questiona o tipo de coisa que é uma OMs, a pergunta é sobre a qual categoria ontológica ou metafísica a peça musical pertence, ou seja, se busca saber se a OMs é algo universal, particular, físico ou mental.

Na filosofia da música de uma forma geral, a sugestão inicial para definição da música é de som organizado, Levinson observa que essa caracterização é muito ampla, pois existem diversos exemplos de sons organizados que não são música: fala humana, sons de animais não-humanos e sons de máquinas. Pode parecer estranho para alguns que os sons produzidos por animais não-humanos não sejam enquadrados como música, o canto de um pássaro como o Uirapuru-verdadeiro20, por exemplo, não poderia ser considerado como música. Ocorre que, neste caso, Levinson defende uma definição inicialna qual o som organizado é humanamente produzido, ou ao menos produzido por criaturas inteligentes às quais podemos atribuir o status de pessoa. Isso indica que ele tem em mente que a música deve ser produto de uma ação intencional do ser que produz o som organizado. Outro ponto que pode parecer estranho é preliminarmente não se levar em conta para definição características comumente usadas em manuais básicos de música, como por exemplo: harmonia, ritmo, melodia etc21. Ocorre que tais características não são capazes de

19 Music, Art and Metaphysics – Essays in Philosophical Aesthetics, Oxford University Press, 1990. 20 Nomente científico: Cyphorhinus arada.

21

“Harmonia- A harmonia é o que resulta da combinação de sons simultâneos, de altura tonal fixa. Apesar de usarmos o termo «harmonioso» para as combinações consonantes, tanto a consonância como a dissonância são fenônemos abrangidos pela harmonia. A harmonia de uma peça pode conter muitos acordes dissonantes(...)

Ritmo- Percepcionar ritmo é ter um sentimento de movimento regular numa sequência sonora. Depende da

duração e acentuação dos sons que formam a sequência mas não se confunde com estas. Ter experiência do ritmo envolve formar expectativas de audição com base na divisão espontânea da sequência em unidades de tempos fortes e fracos, formando um padrão que se repete. Depende tanto da variação como da uniformidade (...)

Melodia – Apesar de identificarmos intuitivamente uma melodia como tal quando a ouvimos, aquilo que faz

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contemplar parte da música antiga, contemporânea e também a música de culturas não ocidentais. Vejamos alguns exemplos:

- Música sem harmonia: O canto gregoriano é um exemplo de monofonia, nela não há acompanhamento nem harmonia. Outro exemplo são os solos de shakuhachi, uma flauta vertical de madeira muito comum na música tradicional japonesa.

- Música sem melodia: A obra pontilhista22 Cinco Peças, op. 5 de Anton Von Webern (1885-1935) separa cada uma das notas do sistema dodecafônico23, desse modo, qualquer uma das notas não estabelecem entre si uma relação melódica. Destaco também como exemplo a obra A Música Áquatica criada em 1960 por Tôru Takemitsu (1930-1996) a qual não apresenta melodia. Nessa obra o compositor utiliza-se quase que exclusivamente de sons gravados de gotas de água. Nela podemos identificar uma estrutura na qual quase não há uma ideia de densidade sonora, Takemitsu consegue transmitir através de ocorrências e durações irregulares do silêncio uma impressão de forma não métrica, algo quase pontilhista.

- Música sem ritmo/pulso: Segundo Levinson, alguns gêneros de jazz atmosférico moderno e composições para sintetizador praticamente são exemplos de músicas que não possuem pulsação.

Diante de tais exemplos é possível ver que características como harmonia, melodia e ritmo/pulso apesar de importantes para diversas músicas, não são de fato características necessárias da música em geral. Além disso, vemos aqui um indício de não haver propriedades intrínsecas de uma organização sonora para que algo possa ser música (LEVINSON, 1990). Mas então se não há propriedades sonoras intrínsecas para que algo seja música, o que faz com que o canto gregoriano, A Música Aquática de Takemitsu e a Cinco Peças, op. 5 de Webern sejam consideradas/ouvidas como música? Vimos nas seções

chamamos «melodia» a uma sequência de notas que sugere «direção», movimento de «agradável ao ouvido»”

(talvez porque nos seja mais fácil identificar sequências agradáveis como melodias), mas uma melodia não tem de ser «melodiosa» neste sentido. A melodia é inseparável do RITMO no sentido em que não pode haver melodia sem ritmo, embora possa haver ritmo sem melodia”. (GUERREIRO, 2014, pp. 262-267).

22 O pontilhismo de Webern é algo marcante na história da música do século XX, ele é um sistema notacional no qual os sons são pontilhados no silêncio, não havendo assim melodia.

23

O dodecafonismo busca variações em relação ao sistema tonal, foi iniciado na década de 1920 pelo austríaco Arnold Schönberg (1874-1951), sua inspiração inicial foi o atonalismo, mas posteriormente o considerou bastante caótico. Construiu, então, um método para organizar os doze sons da escala cromática igualmente. Essa técnica foi apresentada como “sistema dos 12 sons”, que logo ficou conhecida como dodecafonismo serial.

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anteriores que alguns teóricos levantam a hipótese de que a capacidade da música de suscitar emoções é algo determinante para caracterizá-la, vamos agora examinar tal hipótese através da concepção analítica de Levinson.

Segundo Levinson, não podemos definir a música por alguma relação especial com a vida emocional, por mais que todas as músicas pareçam consistir em organizações de som que agitam a alma, ou afetam as emoções, estes aspectos não são característas capazes de defini-la. Em suas palavras:

Pode-se pensar que aquilo que faz a percussão africana, o jazz moderno e os concertos para piano de Mozart serem música é o facto de tudo isto consistir em organizações do som que agitam a alma ou, mais sobriamente, afetam as emoções. Ou que talvez exprimem as emoções dos seus criadores. Mas embora a evocação e expressão emocionais sejam aspectos centrais da maior parte da música, não são definitivos [...]. O discurso do orador e a lírica do poeta (talvez também o rugido do leão) podem exprimir as emoções dos seus criadores tanto quanto a Sonata

Pathétique. (LEVINSON, 2014, p.53).

Levinson destaca ainda que muitas músicas nem aparentam ser uma corporização do estado de espírito do compositor no momento de sua atividade composicional e tampouco parecem ser um estímulo que busca originar uma resposta emocional do ouvinte. Por estas razões, a música em sua visão, estaria mais para uma configuração abstrata de sons em movimento, reflexos de aspectos não individuais e até mesmo não-humanos das coisas24. Desse modo, ele descarta que a música possa ser compreendida como «som humanamente organizado que transmite ou comunica ideias (ou algo semelhante)», por mais que tal definição consiga incluir diversas OMs, ela é tão ampla que também acaba incluindo sirenes, campainha, toques de telefone, gritos e mensagens em código Morse.

Outra forma de tentar definir o conceito «música» seria através do elemento da intencionalidade, afinal nos parece que o som humanamente organizado é produzido com algum tipo de objetivo ou propósito. Mas que tipo de intenção seria essa? O autor trabalha aqui com a possibilidade da intenção ser a apreciação estética, tendo em vista que a música é uma atividade artística e, como arte portanto, teria esse viés apreciativo. A definição preliminar passa a ser «som humamente organizado para fins de apreciação estética». Mesmo que tal definição pareça ser um progresso em vista do mero «som organizado» como definição inicial. Há entretanto, imperfeições relevantes na última proposta, uma vez que, existem músicas que parecem não ter como objetivo o que consideramos ser «apreciação estética». Justamente pela emoção, que é mais antiga e essencial na música do que a beleza

24

Levinson (2014) usa como possíveis exemplos a música de gamelão javanesa, a Arte da Fuga de bach,

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estética. Temos como exemplo: música para acompanhar rituais, música para a intensificação do espírito guerreiro e música para dançar25. Em todos estes exemplos parece não haver uma atenção específica à beleza ou outras qualidades estéticas da música, ou seja, não haveria a necessidade de distanciamento para uma apreensão contemplativa puramente dos padrões sonoros. Essa definição também apresenta outra imperfeição que é a incapacidade de excluir artes verbais como teatro e poesia. O próprio Levinson destaca que a poesia também consiste em sons humanamente organizados para apreciação estética, ocorre que poesia não é música, e os seus sons são dispostos de modo a terem algum significado. O autor ainda destaca:

Podemos lidar com o problema da poesia exigindo que os sons organizados na música sejam produzidos com a intenção de serem ouvidos primariamente como

sons e não primariamente como símbolos de pensamento discursivo. Isto não

equivale a afirmar que a música não pode conter palavras – evidentemente as canções, a ópera, a musique concrète e as colagens musicais contêm palavras-; sucede apenas que para constituir música a componente verbal tem ou de ser combinada com material mais puramente sonoro ou, se não tiver esse acompanhamento, ser tal que há que lhe atender primariamente pelas suas qualidades sonoras e tudo o que delas sobrevenha. (LEVINSON, 2014, p.55).

Tendo visto que a «apreciação estética» não consegue contemplar todos os exemplos de objetos musicais, além de incluir outros objetos, Levinson propõe substituí-la por uma noção de intensificação, pois segundo ele, ao ouvirmos música seja numa sala de concerto ou durante um ritual, temos nossa vida e ou consciência intensificadas. Desse modo, todos os fenômenos sonoros categorizados como música aparentam ser direcionados para uma forma de enriquecimento ou intensificação da experiência, mesmo que aqui não conste qualquer característica sonora (além da audibilidade) para a definição, este seria o propósito principal de se fazer música em qualquer época ou lugar. A partir de agora o autor torna explicito um componente até então implícito: a questão temporal. A noção de tempo é algo importante para a organização, ou seja, àquilo que torna possível que o som seja produzido humanamente de forma organizada é a temporalidade. Essa noção acaba por excluir objetos sonoros que tenham como objetivo produzir acordes de duração bastante fugazes, e que contenham uma independência em sua apreciação em vista do acorde

25

Talvez um exemplo de música para acompanhar rituais seja os pontos de Umbanda e Candomblé, religiões afro-brasileiras, estes pontos são cânticos entoados durante a prática do ritual, parte de seu objetivo é homenagear ou invocar uma determinada entidade espiritual como Iansã, Oxum, Ogum entre outros. Temos como exemplo de música para a intensificação do espírito guerreiro as canções de combates entre tribos,

(28)

seguinte. Para Levinson, este tipo de arte não se deve contar como música, pelo fato de não ter em si o desenvolvimento temporal como algo relevante, portanto, mesmo que para sua execução bem-sucedida fosse necessário conhecimento e técnica musicais, este tipo de arte não seria música. Torna-se agora possível apresentar a definição completa de música elaborada por Levinson:

Música = sons temporalmente organizados por uma pessoa, com o propósito de enriquecer ou intensificar a experiência, por meio da entrega ativa (p. Ex., ouvindo, dançando, executando) aos sons, considerados primariamente ou em grande medida26 como sons. (LEVINSON, 2014, p.56).

A formulação final apresentada por Levinson descarta o Muzak27 e têm como objetivo contemplar todos os fenômenos sonoros caracterizados como música: música clássica, música tradicional, música festiva, música avant-garde, ópera e demais fenômenos estudados pelos etnomusicólogos. Cabe analisar outra proposta conceitual sob a perspectiva de mais um filósofo. Veremos na próxima seção a proposta apresentada por Andrew Kania.

1.4 O conceito de música de Andrew Kania

Como vimos nas seções anteriores, o conceito de música não é algo universal, alguns filósofos tentaram descobrir uma definição capaz de abranger o que grande parte do senso comum considera como música. Sabemos que a dificuldade começa pela vagueza do termo «música», pois é um conceito no qual não está exatamente evidente tudo aquilo que admite ou não admite. O filósofo Andrew Kania (2011) busca para o conceito uma definição capaz de lidar com essas dificuldades, mas por outro lado, também se permite classificar os possíveis casos controversos como «casos de fronteira».

guerra e outras manobras militares. Já os exemplos de música para dançar são inúmeros, destaco aqui o

Carimbó, Funk carioca e Soul music. 26

“O propóstio desta última qualificação é permitir casos como o apresentado pela música rap, em que o conteúdo conceptual verbalmente comunicado pode ser pelo menos tão importante quanto o que se oferece como organização sonora per se. Talvez não se pretenda que a música rap seja primariamente para ouvir pelas suas características sonoras distintivas (p. ex., rítmicas, dinâmicas, tímbricas), mas estas constituem ainda um foco de atenção significativo, se não o mais significativo”. (LEVINSON, 2014, p.62).

27 Muzak também conhecido como música de elevador, levou este nome pois a empresa Muzak fundada no anos 20 do século passado, foi a primeira a se dedicar à produção de música de fundo ou música ambiente. Este estilo de música suave e instrumental se tornou algo muito comum em diversos ambientes como por exemplo: aeroportos, shoppings, elevadores, salas de espera, sistema telefônicos (quando a ligação está em espera) entre outros.

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Mesmo que os sons aparentem ser uma característica básica para a música, Kania esclarece que são apenas condições necessárias, mas estão longe de ser condições suficientes. Isto porque os sons podem ocorrer sem que estes sejam música (por exemplo: o som do liquidificador, o som emitido pela máquina de levar roupas etc). Outros tipos de sons podem soar mais musicais, como o canto de uma ave, por exemplo - e mesmo assim não serem música. Destarte, como é possível caracterizar os sons musicais de modo que possam ser distinguidos de sons não musicais? Kania sugere que adotar uma definição intencional é a abordagem mais promissora, tendo em vista que ela evita as consequências contraintuitivas de uma definição subjetiva. A concepção subjetivista afirma que é necessário ter sempre alguém por perto para que o objeto percepcionado seja de fato música, entretanto, tal visão acaba tendo a seguinte consequência contraintuitiva: se uma pessoa está ouvindo rádio sozinha em casa e ao sair o esquece ligado, os sons emitidos pelo rádio deixam de ser música, visto não haver mais ninguém por perto para percepcionar os sons da maneira mais adequada.

Segundo Kania, ao seguirmos uma concepção intencional nos livramos da abordagem subjetiva e de suas consequências contraintuitivas. A resposta intencionalista ao exemplo do rádio seria de que quando a pessoa que está ouvindo rádio e, ao deixar a casa o esquece ligado, o sons emitidos permanecem sendo música, uma vez que: “os sons que emite têm origem nas intenções de fazer música por parte das pessoas efetivamente responsáveis pela produção desses sons”. (KANIA, 2014, p.70). O que dizer sobre os improvisos que intuitivamente queremos classificar como música, mas que parecem não ser intencionalmente produzidos28? O autor indica ser plausível que o improvisador tenha a intenção de produzir música, mesmo que este execute notas fugazes, neste caso, a intenção pode ser formada pouco antes da produção das próprias notas. A capacidade intencional necessária à produção de música é totalmente excluída por Kania no caso de animais não-humanos e máquinas. Para o autor, os animais não possuem a capacidade de improvisar e inventar novas melodias. Neste caso, por mais que intitulemos «canto» os sons emitidos por aves e baleias, eles não devem ser entendidos como música, seria apenas algo que tem a capacidade de soar para nós como música, ou seja, os sons de fato podem parecer música mesmo que não sejam. No caso de sons e partituras produzidas através de um computador programado, Kania afirma serem de fato música, pois segundo ele, atrás do programa está

28 Para o autor Paisley Livingston a ação intencional é “a execução e realização de um plano, em que o agente efetivamente segue o plano e é orientado por este na realização das ações que, manifestando um nível

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seu criador intencionado para que a máquina se utilize de determinados sons com altura tonal, ritmos e tempo para que este crie músicas, mesmo que seus resultados possam ser imprevisíveis.

A distinção entre sons musicais de outros sons não musicais até então sugerida por Kania é a seguinte: para que um som seja música é preciso que haja intenção de que sejam musicais. Uma possível refutação à proposta é de que se trata de um argumento circular, pois esse parece se apoiar no termo que tenta definir29. Uma maneira de se evitar a circularidade é definir «musical» sem se referir à música. O filosófo Roger Scruton (1997) faz algo parecido ao afirmar que o som se transforma em música ao ser percepcionado “dentro de um campo de forças musical, tal como a disposição de sons de altura definida numa escala ou de batidas num compasso”. (SCRUTON, 1997, p.17). Kania crê que a sugestão de Scruton (mesmo sendo esta subjetivista30) pode ajudar a evitar o problema da circularidade, para tanto, bastaria caracterizar os tais campos sem fazer qualquer menção ao termo música. Para evitar o subjetivismo, Kania busca colocar alguma condição intencional e manter a explicação com base nos «campos de força» musicais. Um possível problema em definir música através de características particulares como altura tonal e ritmo é que elas podem ser exclusivas de certas músicas ou tradições. Mas Kania (2014) parece não concordar que este seja o caso, pois de acordo com sua perspectiva, os sons em escalas31 ou em compassos32 parecem ser características culturamente universais da música, e isso se deve muito provavelmente ao fato de todos os seres humanos, por terem uma história

suficiente de aptidão e controle, produzem o resultado intencionado, ou seja, planejado”. Art and Intention: A

Philosophical Study, Oxford University Press, 2005, p. 14.

29 Um argumento circular ou petição de princípio é irrelevante e pouco informativo, suas premissas não são mais plausíveis que a conclusão e por essa razão não constinuem uma razão coerente para aceitá-la. Um exemplo de argumento circular é definir «cachorro» como animal canino. Apesar de ser algo verdadeiro, é algo pouco informativo.

30 Podemos caracterizar a concepção de Scruton como subjetivista pelo fato de ser necessário a percepção do ouvinte, descartando assim, a intencionalidade do músico.

31 “Escala – Sequências de NOTAS, em ordem ascendente ou descendente, que tipicamente repete a mesma estrutura (distribuição de tons e semitons) em cada OITAVA. Uma escala diatônica de Dó maior, por exemplo, é uma escala que começa e termina na nota Dó (a tônica dessa escala) e exemplifica a seguinte estrutura: entre quaisquer duas notas da escala há um INTERVALO de um TOM, exceto entre a terceira e a quarta e entre a sétima e a repetição da tônica à oitava, onde o intervalo é de um semitom. A esta estrutura chama-se «modo maior». As escalas mais comuns em todo o mundo são as escalas pentatônicas (cinco notas) e a heptatônicas (sete notas), embora haja uma enorme diversidade de escalas”. (GUERREIRO, 2014, p.260).

32 “Compasso - o termo pode designar ou cada uma das divisões métricas de uma peça musical, assinaladas por linhas verticais e que estruturam a peça numa sucessão regular de tempos fortes e fracos, ou o tipo de compassos de que maioritariamente a peça se compõe. Assim, de uma obra maioritariamente formada por compassos de três tempos ou batidas diz-se que está «em compasso ternário». Os compassos podem ser «simples» ou «compostos», consoante cada tempo ou batida se divida em duas ou três partes iguais”. (GUERREIRO, 2014, p.258).

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evolutiva comum, poderem compartilham uma similar capacidade em produzir e também em compreender música. Já sobre a altura tonal e frequência ele faz a seguinte distinção:

Há uma diferença entre o conceito de altura tonal a que aqui se apela e o conceito de frequência, brevemente considerado atrás. A frequência é uma característica objetiva, intrínseca de todos os sons. A altura tonal, por outro lado, é já em si um conceito parcialmente intencional. Embora possamos grosso modo afirmar que o som tonal de Lá acima do Dó central tem uma frequência de 440Hz, ninguém negaria que a nota produzida pela tecla apropriada num órgão barroco é também um Lá, embora possa produzir uma frequência de 470Hz, nem negaria que se produz continuamente um Lá no violino, ainda que usando sempre vibrato (produzindo assim um som com uma frequência inconstante). (KANIA, 2014, p.73).

Desse modo, Kania consegue ainda manter sua estratégia eliminando o subjetivismo e mantendo a intencionalidade na altura tonal. Considerando todos estes elementos numa definição provisória (que intitularei como sendo 1ª Definição Provisória), sintetiza a seguinte formulação:

1ª Definição Provisória = A música consiste em (1) sons, (2) intencionalmente produzidos ou organizados, (3) para terem pelo menos uma característica musical básica, tal como a altura tonal ou o ritmo. (KANIA, 2014, p.74).

Essa primeira definição provisória parece ser um tanto ampla, ainda mais se considerarmos como base a proposta anterior dada por Levinson de que música deve possuir o elemento temporalmente organizado, vemos que a definição de Kania parece não reconhecer a organização temporal como sendo uma condição necessária para que algo sonoro seja música. Ao ser confrontado com o argumento de Levinson sobre a arte sonora instantânea de duração muitíssimo fugaz, Kania (2014, p.74) diz que desse argumento não se segue que devíamos excluir do domínio da música peças instantâneas individuais ou execuções dessas peças. Ainda acrescenta que tal argumento só serviria se Levinson estivesse buscando uma definição de tradição musical, o que não é o caso. Por fim, Kania ainda nos apresenta um possível exemplo capaz de violar a condição levinsoniana da organização temporal, a OMs A Composition 19690#7 de La Monte Young. Segundo Kania a obra consiste numa única quinta justa (Si e Fá sustenido), tal obra leva ainda a indicação de suster durante muito tempo. Mesmo que tal peça não seja instantânea, Kania (2014) afirma também ser “difícil ver que gênero de estrutura temporal ela possui que não seria

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