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Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Respeito aos Princípios Constitucionais

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DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA

E O RESPEIT0 AOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS*

ROBERTA CRISTINA DE MORAIS SIQUEIRA**

DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

O

Código Civil brasileiro adotou o critério da personificação para a classificação das sociedades. Desta maneira, separou as sociedades em dois grandes grupos: o das sociedades sem personalidade jurídica e o das sociedades com personalidade jurídica. No primeiro grupo, estão as sociedades em comum e as sociedades em conta de participação, enquanto no segundo estão as sociedades simples e as sociedades empresárias, que, por sua vez, podem se revestir dos tipos nominados pela legislação, a saber: sociedades em nome coletivo, sociedades em comandita simples, sociedades em comandita por ações, sociedades limitadas e sociedades anônimas.

As Sociedades Limitadas, espécie de sociedades empresárias e com personalidade jurídica, são o tipo societário mais utilizado pelos que se arriscam na atividade empresarial Resumo: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica está expressamente

positivada em nosso ordenamento jurídico e tem sido aplicada em diversas hipóteses, quando se faz mau uso de uma sociedade empresária. A par disso, a pesquisa foi di-recionada no sentido da aplicação da Teoria em face dos Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla defesa.

Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica. Mau Uso da Sociedade.

Princípios do Contraditório e Ampla Defesa.

* Recebido em: 02.06.2013. Aprovado em: 17.06.2011.

** Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás e Master em Business Administration pela

Devry University. Professora no Departamento de Ciências Jurídicas da Pontifícia Universidade Católica

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e isto tem uma justificativa: a limitação da responsabilidade patrimonial. Elas já estavam disciplinadas em nosso direito, antes da revogação do Código Civil de 1916 pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, através do Decreto n. 3.708/19, que trazia em seus 19 artigos, várias lacunas e dificuldades de interpretação, as quais eram supridas pela atuação dos próprios sócios, conforme explica Tomazette (2012).

Com o advento da nova legislação, o Código Civil de 2002, as sociedades, doravante conhecidas apenas como limitadas, passaram a ser disciplinadas pelos artigos 1.052 a 1.087, sendo complementadas as ausências legislativas pelas normas aplicáveis às sociedades simples, podendo ainda, se previsto no contrato social, ser regidas supletivamente pela sociedade anônima, conforme previsão expressa do artigo 1.053 do Código Civil.

Sabe-se que o substrato de uma sociedade é a união de pessoas que lhe dão origem, que são denominadas de sócios. Estes devem subscrever uma parte do capital social da sociedade e, em contrapartida, adquirir direitos e deveres inerentes a esta qualidade. Em regra, qualquer pessoa, desde que goze de capacidade civil e não esteja legalmente impedida, poderá ser sócia de uma sociedade limitada.

As exceções ou observações pertinentes são quanto à possibilidade de serem sócias as pessoas consideradas incapazes. Com o advento da Lei n. 12.399/ 2011, foi inserido o § 3º no artigo 974 do Código Civil, que prevê a participação de incapaz nos quadros sociais, desde que seja representado ou assistido, não tenha os poderes de administração e que todo o capital social seja integralizado. Entretanto, o dispositivo deve ser interpretado com res-salvas, como explica Tomazette (2012, p. 365):

Tal dispositivo deve ser interpretado com cuidado, apesar da sua colocação nas disposições mais gerais do livro do Direito de Empresa. Ele deve ser compatibilizado com a proteção ao patrimônio dos incapazes, de modo que ele não seja estendido para sociedades de responsabilidade ilimitada.

Outra inovação trazida pelo Código Civil de 2002, no tocante ao impedimento quanto à caracterização dos sócios, refere-se à proibição contida no artigo 977 que impede a sociedade entre cônjuges, desde sejam casados pelo regime da comunhão universal ou da separação obrigatória de bens, visando à tutela, em caso, o regime matrimonial em preterição ao patrimônio da empresa.

Assim, definidos os sócios, as quotas e os tipos de direitos que estas conferem aos seus titulares, podemos discorrer sobre o traço mais marcante e característico das socie-dades limitadas: a responsabilidade dos sócios. Neste tipo societário, conforme expressão do artigo 1.052, “a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social” (VADE MECUM UNIVERSITÁRIO DE DIREITO RIDEEL, 2012, p. 193).

Em regra, cada sócio de uma sociedade limitada responderá apenas por sua parcela investida no capital social, ou seja, apenas de acordo com suas quotas de participação so-cietária. Entretanto, conforme interpretação da parte final do dispositivo citado, também poderá ser chamado a responder, com seu patrimônio pessoal, pela parte que falta ser paga ou integralizada pelos outros sócios no capital social, em virtude da regra de solidariedade estabelecida. Explicando melhor, caso o capital social esteja subscrito, porém não integrali-zado, os sócios, todos e cada um deles (solidariedade), responderão pelo quantum do capital social que resta a ser integralizado.

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Em caso de estar o capital social das limitadas totalmente integralizado, em regra, nada mais poderá ser exigido dos sócios, ou seja, seu patrimônio pessoal não responderá pelos débitos sociais, exceto em condições excepcionais previstas pela legislação, que, neste estudo, foram colacionadas por Tomazette (2012, p. 369):

Apenas excepcionalmente se afasta essa limitação de responsabilidade, como nos casos de desconsideração da personalidade, distribuição fictícia de lucros com prejuízo do capital social (CC – art. 1.059), deliberação infringente do contrato social ou da lei (CC – art. 1.080), superavaliação de bens para formação do capital social (CC – art. 1.055, §1º), limitada neste último caso a responsabilidade ao prazo de 5 anos.. Deste modo, resta-nos claro, que neste tipo de sociedade empresária, apenas em situ-ações excepcionais, especialmente trazidas pelo Código Civil, mas também por legislsitu-ações específicas, tais como a legislação tributária, trabalhista e consumerista, permite-se que a responsabilidade pelas obrigações sociais vá além dos bens da própria sociedade para atingir os bens particulares dos sócios.

A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Conforme nos ensina Pereira (2000, p. 141), a personalidade jurídica é a “aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”. As sociedades empresárias, como pessoas jurídicas que são (art. 44 do Código Civil), são dotadas de personalidade jurídica e, como tal, aptas não só a contrair direitos, mas também responsáveis pelo cumprimento das obrigações contraídas. Deste modo, são dotadas da característica da autonomia patrimonial, ou seja, tem capacidade patrimonial, pois “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais” (VADE MECUM UNIVERSITÁRIO DE DIREITO RIDEEL, 2012, p. 192).

Sabe-se também que o início ou nascimento de uma sociedade, mais especificamen-te, das sociedades limitadas, ocorrerá por meio de sua constituição, que exige a presença de alguns elementos, entre estes, podemos destacar a vontade humana criadora, conforme Pereira (2000), a finalidade específica, a união das pessoas, nas lições de Oliveira (apud TOMAZETTE, 2012)1 e, por fim, a presença do instrumento constitutivo, que deve ser

levado a registro na Junta Comercial, conforme Amaral (2000).

O direito reconhece atributos às pessoas jurídicas e são esses atributos ou caracterís-ticas é que são fundamentais para consecução da sua finalidade. Não existe um consenso doutrinário ou um rol taxativo desses atributos, entretanto, há concordância de que são consequência da personificação: o nome, a nacionalidade, o domicílio, a capacidade contra-tual, a capacidade processual, a existência distinta e a autonomia patrimonial, merecendo destaque este último, por sua importância e consequências.

Autonomia Patrimonial das Pessoas Jurídicas

As sociedades empresárias, como consequência da personificação, têm um patrimônio próprio, o qual responderá pelas suas obrigações, em caso de inadimplência. Deste modo, é através deste princípio que se instala a garantia dos credores, ou seja, sabem eles que o que

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responderá pelas dívidas sociais, ab initio, serão os bens sociais. Do mesmo modo, confor-me explicano-nos Furtado (2000), também os bens sociais, são, em princípio, imunes às dívidas particulares dos sócios.

A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, entretanto, não deve ser tida como absoluta. Não significa que o patrimônio dos sócios está completamente desvinculado do patrimônio social, pois as quotas sociais, bem como seus frutos pertencem aos sócios, levando-nos à lógica consequência de que o “patrimônio da pessoa jurídica é expressão tam-bém do patrimônio dos sócios” (TOMAZETTE, 2012, p. 226). Deste modo, o princípio da autonomia patrimonial poderá será relativizado, e neste sentido, afirma Luciano Amaro (1993, p. 169):

[...] a pessoa jurídica representa instrumento legítimo de destaque patrimonial, para a exploração de certos fins econômicos, de modo que o patrimônio titulado pela pessoa jurídica responda pelas obrigações desta, só se chamando os sócios à responsabilidade em hipóteses restritas.

Assim, podemos concluir que a legislação assegura aos sócios uma distinção entre o patrimônio pessoal e o patrimônio social. Porém, em determinados casos, a lei retira essa proteção e os sócios poderão responder pelas obrigações sociais. É como se houvesse a retirada do privilégio que antes foi concedido, o da personificação, pois esta é entendida como uma benesse concedida pela lei, e como todo e qualquer privilégio, se utilizado indevidamente, pode ser retirada. Surge então, a teoria da desconsideração da persona-lidade jurídica.

Mau Uso da Personalidade Jurídica

Desde tempos remotos, tem-se utilizado da personalidade jurídica, seja ela de asso-ciações, de sociedades, ou mesmo de fundações, para a prática de atos que têm o intuito de fraudar a lei, na tentativa de proteger os direitos dos sócios em detrimento de terceiros. Como o Direito visa ao bem social, desenvolveu-se uma doutrina, primeiro no direito estrangeiro, para depois fixar-se no Brasil, que visa à proteção dos direitos destes terceiros que negociam com a sociedade. É a chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou Doctrine of disregard of legal entity. A respeito do assunto, discorre Mamede (2010, p. 234):

A utilização ilícita ou fraudatória da personalidade jurídica não poderia jamais merecer acolhida do Direito, razão pela qual se desenvolveu na doutrina estrangeira a chamada Doctrine of disregard of legal entity – doutrina da desconsideração do ente legal ou teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A proposição, acolhida primeiro pelos tribunais, depois, pelo legislador, permite, [...], que os efeitos de obrigações da pessoa jurídica sejam estendidos àqueles que, de fato ou de direito, sejam seus sócios, administradores ou sociedades coligadas.

A desconsideração é, dessa forma, conforme lição de Verrucoli (1964), o modo de se adequar a pessoa jurídica aos fins de sua criação, ou seja, a forma de limitar e coibir o uso

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indevido deste privilégio que é a pessoa jurídica, ou de reconhecer a relatividade da per-sonalidade jurídica das sociedades. No mesmo sentido, o ensinamento deixado por Serick (apud TOMAZETTE, 2012, p. 229)2.

Desvirtuada a utilização da pessoa jurídica, nada mais eficaz do que retirar os privilégios que a lei assegura, isto é, descartar a autonomia patrimonail no caso concreto, esquecer a separação entre sociedade e sócio, o que leva a estender os efeitos das obrigações da sociedade a estes. Assim, os sócios ficam inibidos de praticar atos que desvirtuem a função da pessoa jurídica, pois caso o façam não estarão sobre o amparo da autonomia patrimonial.

Outro ponto que merece destaque é que a aplicação da teoria não destrói a pessoa jurídica, ao contrário do que se possa pensar; esta continua a existir, apenas sendo descon-siderada no caso concreto e sob o exame do Judiciário. Conforme entendimento de Silva (1999, p. 35):

A teoria da desconsideração não visa destruir ou questionar o princípio de sepa-ração da personalidade jurídica da sociedade da dos sócios, mas, simplesmente, funciona como mais um reforço ao instituto da pessoa jurídica, adequando-o a novas realidades econômicas e sociais, evitando-se que seja utilizado pelos sócios como forma de encobrir distorções em seu uso.

Assim, na esteira de Coelho, podemos definir a desconsideração como a possibilidade do juiz de poder “decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou de abuso de direito” (2010, p. 39).

Origem Histórica da Teoria da Desconsideração

A desconsideração foi desenvolvida primeiramente nos países da Common Law, pois, nestes, os fatos sociais têm força em criar novos princípios em detrimento da legislação, o que não ocorre no direito continental. Franco (2001) relata que o primeiro caso de aplicação da desconsideração da pessoa jurídica foi o caso Salomon x Salomon Co., em 1897, na Ingla-terra. Entretanto, Koury (1997) noticia um caso anterior, de 1809, nos Estados Unidos, o caso Bank of United States x Deveaux. Independente da origem, sabe-se que foi a partir da jurisprudência anglo-saxônica que se desenvolveu a teoria.

No campo doutrinário, pode se dizer que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é de elaboração doutrinária recente, conforme Coelho (2010). Os méritos de sua sistematização cabem a Rolf Serick, na tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tubigen, em 1953.

Na doutrina brasileira, a teoria ingressou no final dos anos de 1960, através de Rubens Requião que, em 1977, apresenta-a como superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades.

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APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Como já relatado em outra oportunidade, pela possibilidade de se desvirtuar a função da personalidade jurídica é que surgiu a doutrina da desconsideração. Há que ficar claro, que apesar de haver previsão legal a respeito da teoria, não há que se falar em fundamentos legais para sua aplicação, conforme nos explica Coelho (2010). É que “a desconsideração prescinde de fundamentos legais para sua aplicação, existindo inclusive algumas mani-festações jurisprudenciais como o julgamento da 11ª Vara Cível do Distrito Federal em 25/2/1960, proferido pelo Juiz Antônio Pereira Pinto, anteriores a qualquer positivação” (TOMAZETTE, 2012, p. 235).

O Código Civil de 2002, apesar de não utilizar a expressão desconsideração da per-sonalidade jurídica, traz dispositivo a respeito do assunto, senão vejamos:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios das pessoas jurídicas. (VADE MECUM UNIVERSITÁRIO DE DIREITO RIDEEL, 2012, p. 152).

Parece-nos que nossa legislação adotou dois critérios para aplicação da teoria, um subjetivo e outro objetivo. O critério subjetivo se refere ao uso fraudulento ou abusivo do instituto, de uma maneira geral. Considera-se esta uma formulação subjetiva, devido, prin-cipalmente, à definição no campo das provas, pois a questão posta à prova está na intenção subjetiva do demandado, o que torna a questão probatória muito complexa. Por outro lado, o critério objetivo estaria no pressuposto da confusão patrimonial, que pode ser demonstrado através da escrituração contábil, da movimentação de contas bancárias, entre outras tantas situações que poderiam ser elencadas.

Nesse sentido, convém trazer a conclusão exarada por Coelho:

Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como o critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro lado, a fraude. (2010, p. 46).

Como se esposou no início, crê-se que para aplicação da teoria não há necessidade de previsão legal específica, apenas que se utilize de forma indevida da personalidade jurídica da sociedade, ou seja, que haja prova concreta de que a finalidade da pessoa jurídica foi desviada.

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No entanto, conforme nos lembra Mamede, é preciso muito cuidado com a aplicação do instituto, uma vez que se tem encontrado várias decisões judiciais que “têm afirmado a desconsideração da personalidade jurídica como efeito diretamente decorrente da inadim-plência pela sociedade de suas obrigações, no que se distanciam, e muito, da teoria que sustenta o instituto jurídico [...]” (2010, p. 234).

A desconsideração só poderá ser aplicada pelo Judiciário em casos de má utilização da personalidade jurídica da sociedade por seus sócios ou administradores, devendo os ju-ízes, inclusive, fundamentar suas decisões, com os atos e provas que demonstrem presentes as condições para desconsiderar a personalidade, conforme mandamento constitucional, presente no artigo 93, IX, da Constituição da República.

Assim, a regra geral do direito brasileiro é o da aplicação do princípio da autonomia patrimonial às sociedades empresárias, podendo a personalidade jurídica ser retirada apenas em hipóteses específicas, tais como nos casos de dolo e fraude, desvio de finalidade, confusão patrimonial, relações de consumo e relações de trabalho.

A aplicação da teoria, pelo direito consumerista ou pelo instituto civil, apresenta suas diferenças. Convém-nos rememorar ainda que a desconsideração poderá, no caso do direito do consumidor, ser aplicada de ofício, ao contrário das hipóteses do Código Civil em que deve ser requerida pela parte interessada, pois no primeiro caso, estamos diante de normas de ordem pública e interesse social.

Comporta-nos ainda ressaltar que a teoria surgiu para honrar as obrigações inadimplidas pela pessoa jurídica através do patrimônio pessoal dos sócios. Entretanto, doutrina e jurisprudên-cia começaram a sustentar o caminho inverso, ou seja, “a possibilidade da quebra da autonomia patrimonial a fim de executar bens da sociedade por dívidas pessoais dos sócios” (GARCIA, 2009, p. 206). No caso, estamos tratando da desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Sobre o assunto, esclarecedoras são as lições de Tomazette:

Com efeito, é possível que o sócio use uma pessoa jurídica, para esconder seu patrimônio pessoal dos credores, transferindo-o por inteiro à pessoa jurídica e evitando com isso o acesso dos credores a seus bens. Em muitos desses casos, será possível visualizar a fraude (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva) e, em razão disso, vem sendo admitida a desconsideração inversa para responsabilizar a sociedade por obrigações pessoais do sócio. O mesmo raciocínio da desconsideração tradicional é usado aqui para evitar o mau uso da pessoa jurídica (2012, p. 272).

Embora a aplicação da desconsideração inversa seja útil, deve ser vista com reservas, uma vez que a aplicação da teoria não visa ao fim da pessoa jurídica, apenas tenta evitar o mau uso desta pessoa; portanto, a restrição aplica-se aos casos onde a teoria inversa pudesse ser aplicada com ônus excessivo a pessoa jurídica, em caso de caminhos alternativos de satisfação dos credores. APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

O gravoso ato de desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade empresária só poderá ocorrer se obedecer aos Princípios Constitucionais, mormente aos do contraditório e da ampla defesa, contidos no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

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Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo--se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [..]

LV- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (VADE MECUM UNIVERSITÁRIO DE DIREITO RIDEEL, 2012, p. 10).

Por ampla defesa entende-se o direito da parte de trazer à lide os elementos de prova que evitem sua autoincriminação, enquanto que por contraditório entende-se o direito de tomar conhecimento e responder a tudo que for trazido pela parte adversa ao processo. Sobre o assunto, discorrem Paulo e Alexandrino:

É o princípio constitucional do contraditório que impõe a condução dialética do processo (par conditio), significando que, a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se, de apresentar suas contrarrazões, de levar ao juiz do feito uma versão ou uma interpretação diversa daquela apontada inicialmente pelo autor. O contraditório assegura, também, a igualdade das partes no processo, pois equipara, no feito, o direito da acusação com o direito da defesa (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p.188).

Sabe-se que, hoje, os Princípios Constitucionais são o sustentáculo de qualquer ramo do direito, “como consequência lógica e natural da constitucionalização do Direito Civil – e, de resto do Direito Privado como um todo” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 72).

Deste modo, não há como aplicar determinado preceito ao caso concreto, sem antes verificar a existência de princípios fundamentais que tratem do assunto, como discorrem Cristiano Farias e Nelson Rosenvald:

É que os direitos fundamentais constituem garantias constitucionais universais (e cláusula pétrea), motivo pelo qual não se pode pretender represá-los somente nas relações de direito público. Até mesmo porque tal equívoco interpretativo implicaria em caracterizar o Direito Civil como um ramo da ciência jurídica, estranhamente, liberto da incidência da norma constitucional.

[...]

É o que se vem denominando de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung, como preferem os germânicos) (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 72-3).

Corroborando, portanto, esse entendimento, só poderá haver aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, se houver um processo legal onde as partes te-nham a oportunidade de discutir os elementos trazidos pelo artigo 50 do Código Civil. Não existe possibilidade de se pretender aplicar a teoria mediante simples petição atravessada nos autos, contra aquele que não for parte do processo. É preciso que haja defesa, garantindo aos sócios a ampla defesa e o contraditório.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob a forma de Sociedades Limitadas estão organizadas a grande parte das sociedades empresárias em nosso país, cerca de 90% (noventa por cento). Esta forma de estruturação da atividade econômica tem uma justificativa: a limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Em razão de inúmeras decisões judiciais retirando esta característica destes tipos de sociedades empresárias, surgiu o interesse no estudo que ora se apresenta.

A questão que instigou a atenção para o tema residiu no fato de que se a escolha pelo tipo de sociedade empresária se dá, principalmente, em razão da limitação de responsabilidade, em quais situações esta característica poderia ser retirada pelo Poder Judiciário sem infração aos Princípios Constitucionais. Com este intuito, nos deparamos com a preocupação do cum-primento dos Princípios do Contraditório e da Ampla defesa, contidos no artigo 5º, LV da Constituição Federal, que garantem às partes sua defesa durante qualquer tipo de processo.

O que nos restou provado é que ainda há muita confusão quanto ao conhecimento e aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelos aplicadores do direito. Acreditamos que os magistrados têm aplicado a parte final do artigo 50 do Código Civil, de modo a ampliar a interpretação do dispositivo, quando sustentam que na expressão bens particulares está contida a expressão além de suas quotas sociais. Quando a norma menciona “bens particulares dos administradores ou sócios”, não faz alusão a respeito da participação no capital social, de forma que se entende que deve ser aplicada uma interpretação restritiva, pois ao contrário, estaríamos colocando em questão o propósito da norma quando de sua gênese, ou seja, a proteção do patrimônio pessoal dos sócios através da autonomia das pessoas jurídicas e da forma de responsabilidade escolhida para a atividade econômica empresária.

O que se tenta demonstrar, não é o questionamento do certo ou errado na interpretação extensiva que tem se dado ao dispositivo pelas Cortes Superiores. O que se pretende é repensar o papel do direito na sociedade, como instrumento de garantia das relações jurídicas. Será que pre-vendo um tipo societário com limitação de responsabilidade e retirando a personalidade jurídica da sociedade em casos, como das relações de consumo, não estaríamos entrando em contradição?

Como elucida Santos (2002), o processo de reflexão, que é liderado pelos movimentos contra-hegemônicos, é aquele que busca alternativas, frente ao modelo aceito globalmente. Será que a alternativa proposta pela própria legislação está resolvendo o problema do mau uso das pessoas jurídicas? Talvez sim, talvez não, mas a tarefa dos operadores de direito é tentar desconstruir os modelos propostos e apresentar novas soluções, repensando o direito e esta tarefa leva à conclusão de que se está diante de normas que demonstram certo antagonismo.

Gostaria muito de encerrar propondo uma solução, uma alternativa para a solução do mau uso das pessoas jurídicas. Entretanto, percorrendo a travessia de repensar o papel do direito na sociedade, percebo que a solução não virá da legislação, mas das próprias pessoas jurídicas, que, através de seus representantes, devem fazer melhor uso desse privilégio, que é o da instituição da pessoa jurídica.

DISREGARD OF LEGAL PERSONALITY AND RESPECT TO THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLES

Abstract: the theory of piercing the corporate veil is expressly positively in our legal system and has been applied in several cases, when it is misuse of a business company. In addition,

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the research has been directed towards the application of theory in the face of the Consti-tutional Principles of Contradiction and Wide defense.

Keywords: Disregard of Legal Personality. Misuse of Society. Principles of Contradiction and Wide Defense.

Notas

1 Cf. Oliveira (2000, p. 280). 2 Cf. Serick (1958, p. 241).

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Referências

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