PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
JOSÉ PAULO CAMARGO MAGANO
AS CATEGORIAS PROCESSUAIS NA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL LIMITADA
JOSÉ PAULO CAMARGO MAGANO
AS CATEGORIAS PROCESSUAIS NA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL LIMITADA
Tese apresentada à
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como requisito à obtenção do
título de Doutor em
Direito Constitucional.
Orientador: Professor Dr. André Ramos Tavares
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
José Paulo Camargo Magano
AS CATEGORIAS PROCESSUAIS NA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL LIMITADA
Tese aprovada em ____/____/____ para obtenção do
título de Doutor em Direito Constitucional.
Banca Examinadora:
_______________________________________ Professor Dr. André Ramos Tavares
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
DEDICATÓRIA
RESUMO
O presente trabalho visa ao estabelecimento de
lindes da tutela constitucional nas categorias
processuais a fim de conferir àquela certificação
de processo justo, discorrendo para tanto, sobre a
morfologia da justiça constitucional, na qual são
tratados os institutos fundamentais do processo
civil, jurisdição, ação, defesa e processo, sob
influência do devido processo legal, e sobre a
própria morfologia processual da justiça
constitucional, em que são apontados os dissensos
do direito constitucional e do processual,
buscando harmoniza-los, e, por fim, fazendo o
enquadramento necessário da referida tutela nos
institutos fundamentais do processo, resultando a
processualização constitucional.
ABSTRACT
The present work aims to establish the limits of the constitutional protection in the procedural classes in order to assure to that a certification of fair process, dealing, for such purpose, with the morphology of constitutional justice, in which are analysed fundamental institutes of civil procedure, jurisdiction, action, defense and proceedings, under the influence of due process of law, and with the very procedural morphology of the constitutional justice, in which constitutional and procedural disagreements are pointed out, seeking to harmonize them, and finally, making the necessary framework of that protection within the fundamental institutes of process, resulting in a constitutional processualization.
Sumário
SUMÁRIO ...1
1. INTRODUÇÃO...3
2. ENFOQUE E REPARTIÇÃO METODOLÓGICA...6
3. O ESTADO E SUA LIMITAÇÃO...11
3.1. O Estado moderno. ...13
3.2. Limitação de poderes. ...19
3.2.1.Tripartição de Poderes...22
3.3. Justiça Constitucional. ...25
4. MORFOLOGIA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL...28
4.1. Morfologia processual da Justiça Constitucional ...31
4.1.1.Relato da evolução histórica do direito processual civil...33
4.2. Institutos fundamentais do direito processual civil ...44
4.2.1.Notas introdutórias...44
4.2.2.Jurisdição...46
4.2.3.Ação...53
4.2.4.Defesa...60
4.2.5.Processo...64
4.2.6.O devido processo legal...70
5. MORFOLOGIA PROCESSUAL DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL.74 5.1. Considerações iniciais ...74
5.3. Encontros e desencontros do processo civil e
do direito constitucional ...81
5.4. Enquadramento nas categorias processuais e
processualização constitucional ...87
6. NOTAS CONCLUSIVAS...95
1.Introdução
O presente trabalho visa ao
estudo da Justiça Constitucional limitada nas
categorias da ciência processual civil, alvo de
dissenso, por conta de se entender que aquela não
encontra lindes nessa última.
Justiça Constitucional é tida
como a base de sustentação do Estado Moderno,
constitucional e democrático.
Para compreensão do tema,
natural que o trabalho se iniciasse por indicar seu
enfoque e repartição metodológica adotada,
destacando a tutela jurisdicional de controle
abstrato de amparo a Constituição Federal, e
revelando sua ocupação com o Estado Moderno, as
vertentes morfológicas da Justiça Constitucional, e
a preferência pela processual sobre a qual o estudo
se desenvolve.
Desse modo, passou-se à análise
do Estado, suscitando-se seus modelos, que encontra
no tido como moderno e democrático aquele em que
opera a justiça constitucional.
Para dar a densidade adequada a
Moderno, e a correlacionada limitação e tripartição
de poderes, que impõem a existência da justiça
constitucional, igualmente abordada.
Mercê desse exame, o estudo
passou a girar em torno da morfologia da justiça
constitucional, renovando-se a preferência pela
processual em detrimento da orgânica, entrosando a
preferida com a história do direito processual, do
qual ela dimana e encontra lindes de compreensão.
Delimitado o enfoque
processual, decorreu necessariamente a análise dos
institutos processuais fundamentais, jurisdição,
ação, defesa e processo, com a abordagem de temas
inerentes, crises jurídicas, tipos de tutela
jurisdicional, condições e elementos da ação,
justificação da defesa, pressupostos processuais,
procedimento e contraditório.
E análise desse enfoque se
perfez com a do devido processo legal, de matiz
constitucional - densificado pelo princípio da
proporcionalidade - em torno do qual ganham
coerência e coesão os institutos fundamentais
processuais, e lindes a justiça constitucional.
Assim se pode examinar
propriamente a morfologia processual da justiça
constitucionalidade e temas correlacionados e da
justiça constitucional limitada.
Enfrentou-se, então, os
encontros e desencontros do processo civil e do
direito constitucional no trato do objeto da tese,
demonstrando que a base do desencontro se sedia em
razões históricas, em importância sem relevo
adequado dada à figura do curador constitucional e
em equivocada visão de que o processo civil
presta-se exclusivamente à solução de crises de
inadimplemento e está preso à bitola da relação
jurídica como propulsora do processo e da
intersubjetividade de direitos.
Com reencontro da ciência
processual civil com a constitucional, chegou-se ao
tópico derradeiro do trabalho a estabelecer lindes
da justiça constitucional nas categorias processuais
e a processualização constitucional.
Por fim, foram oferecidas as
notas conclusivas.
2.Enfoque e repartição metodológica.
Para enquadrar lindes nas
categorias processuais a Justiça Constitucional,
entendida como tutela jurisdicional ministrada à
defesa da Constituição, necessário indigitar, de
antemão, o que ela compreende, para depois passar às
bases de introdução do estudo, possibilitando seu
desenvolvimento, compreensão e conclusões.
Ela diz respeito à tutela
jurisdicional de controle abstrato de amparo à
Constituição Federal, de competência do Supremo
Tribunal Federal, no sistema pátrio exercitável por
meio da ação direta de inconstitucionalidade, ação
direta de constitucionalidade, arguição de
descumprimento de preceito fundamental e arguição de
descumprimento fundamental incidental1.
As bases introdutórias, de
outra banda, respeitam à evolução e ao conceito de
Estado.
1 A representação interventiva (art. 36, III, da CF) não se considera
Somente se pode falar em
regulamentação jurídica ou de seu controle a partir
da experiência e da existência de um ente que se
regule, e vice-versa.
Reclama isso, nos termos do
estudo, alcançar um ente indissociavelmente ligado à
existência de estatuto jurídico que o conforme e seu
amparo.
No caso do Estado, seu evolver
resulta na adjetivação moderno ou constitucional.
Estado moderno ou
constitucional, na essência, é aquele que se suporta
na ideia de limitação do poder político, em prol de
direitos fundamentais, cimentado e ordenado por
instrumento normativo central que lhe é inerente, a
Constituição.
É no contexto de evolução
estatal que cabe falar sobre a morfologia da tutela
constitucional, seja tocante ao órgão investido na
função de seu curador, seja tocante ao método
predisposto à sua concretização.
São, pois, duas as vertentes
morfológicas da justiça constitucional, a orgânica e
processual, recaindo nesta o cerne do trabalho.
O estudo da morfologia
processual se engata com o da evolução do processo
derivados da alçada normativa constitucional em que
tal vertente se forra e dos direitos da mesma matriz
que ampara.
O engate, num modelo
historicista, propicia situar e encontrar lindes à
justiça constitucional nos institutos e categorias
fundamentais atualizadas do processo civil, sob o
influxo do Direito Constitucional.
O influxo do direito
constitucional se dá de forma densa, através da
produção de modelos dogmáticos, basicamente de duas
ordens.
A primeira versando sobre os
princípios constitucionais que tutelam o próprio
processo – por exemplo, o devido processo legal -,
cujo escopo é a garantir o direito ao processo
justo.
A segunda, definindo critérios
e categorias de tutela judicial de controle de
constitucionalidade, número e qualificação dos
legitimados à sua provocação, momento da provocação
e tipo de fiscalização.
Razões mais históricas do que
científicas, no entanto, acabaram por gerar
diferença de visão dos amalgamados processo civil e
direito constitucional quanto à justiça
O necessário (por desejável e
com foro científico) alinhamento da visão processual
à constitucional sobre o tema, com prezo ao
historicismo, é feito, estabelecendo-se, por assim
dizer, diálogo das fontes de compreensão da justiça
constitucional.
A junção dos modelos dogmáticos
constitucionais e processuais, inclusive sob
rearticulamento histórico, permite sistematizar e
limitar a justiça constitucional nas categorias
processuais.
O direito posto e os
precedentes jurisprudenciais também pautam a
sistematização, conferindo-lhe certificação de
operabilidade.
Mas é pauta que não subverte a
ordem de importâncias, que adviria caso se relegasse
ou se submetesse a ciência do direito à falta de
técnica do legislador ou ao perigoso casuísmo
judicial2.
Pretende-se, na linha do que
ensina o luso J.J. Gomes Canotilho3, estudo modulado
não dissolvido nem nas pressões utilitarista que
2 Ao defenderem a necessidade de um código processual constitucional,
alertam Domingo García Belaunde e André Ramos Tavares, sobre o perigo de se deixar guiar a tutela constitucional pela convicção e concepção de
cada juiz, em outros termos, pelo casuísmo judicial. Por que um Código
Processual Constitucional ? R. bras. Est. Const. RBEC, ano 4, n. 16, pp. 17-33, out/dez 2010.
3 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra,
adviria do acento analítico no direito posto ou na
jurisprudência nem nas nebulosas abstrações teóricas
que esquecem o lugar das coisas e o mundo dos
homens.
O estudo visa revelar a Justiça
Constitucional limitada nas categorias processuais:
tutela ministrada jurisdicionalmente em processo,
que, como outras, tem peculiaridades, marcadas, no
seu caráter diferenciado, pelo acento político e
relevância do direito discutido, conformada de forma
3.O Estado e sua limitação
Remete o estudo da Justiça
Constitucional a razão e a conformação de sua
existência e operabilidade, isto é, o Estado.
Mister, portanto, delinear
juridicamente o Estado, sem o que descaberia falar
em morfologia orgânica da justiça constitucional,
concernente ao órgão estatal investido na função de
curar a Constituição, tampouco na morfologia
processual, enquanto método jurisdicional e estatal
predisposto à atuação ou concretização daquela
função.
Mais que sabido a natureza
sociável do ser humano, derivando dessa vocação
agrupamentos que vão desde a família até outros
cujos interesses de complexidade diversa assumem
personalidade jurídica distinta da de seus membros.
O Estado – cuja origem remonta
o tratado de Paz de Westefália (1648), entre francos
e alemães4 – configura-se, no âmbito da ciência do
direito, como pessoa jurídica que expressa
organicamente os interesses políticos de determinada
sociedade.
4 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Dalmo de Abreu Dallari assim o
conceitua: “ ... ordem jurídica soberana que tem por
fim o bem comum de um povo situado em determinado
território”.5
Extraem-se de tal conceito os
seguintes elementos que caracterizam o Estado:
soberania, povo, território e finalidade.
É caro ao Estado o conceito de
soberania.
Conforme o precitado jurista6
soberania consiste: no poder de se organizar
juridicamente e de decidir impositivamente e em
última instância sobre a atributividade das normas,
isto é, sobre a eficácia do direito, respeitados os
limites territoriais e fins éticos de convivência.
Acresce J.J. Gomes Canotilho7
distinção entre soberania no plano interno, como
monopólio de edição do direito positivo pelo Estado
e de coação física legítima para impor a efetividade
de seus regulamentos e dos seus comandos, da
soberania no plano internacional, que significa
igualdade entre os Estados, que não reconhecem
qualquer poder superior acima deles.
O poder incontrastável de
estabelecer a ordem jurídica e de impô-la ou de
5 Elementos de Teoria Geral do Estado, 20ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998,
p. 118.
6 Op. cit., pp. 79-80.
concretizá-la destaca a função estatal
jurisdicional.
A atuação de referida função se
dá, naturalmente, em situações de conflito social,
interindividuais ou trans-individuais, que reclamem
a intervenção impositiva estatal, a título de por
fim a crise jurídica surgida8, definindo a
atributividade normativa.
E o método de atuação, que
legitima social e politicamente tal função,
denomina-se processo9-10.
A intensidade da curatela e da
imposição do ordenamento jurídico estabelecido
relaciona-se com a existência e operabilidade do
Estado, qualificado, vale dizer, moderno.
3.1. O Estado moderno.
8 Segundo Cândido Rangel Dinamarco, crises jurídicas se caracterizam como
momentos de dificuldades ou de perigos nas relações entre pessoas ou grupos, suscetíveis de normalização mercê da imposição do direito material (Instituições de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 153).
9 Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., p. 8.
10 José Roberto dos Santos Bedaque,
É comum definir o Estado como
sociedade politicamente organizada, conformado por
um conjunto normativo máximo e central a que se dá o
nome de Constituição.
Tal definição, no entanto,
reclama aprofundamento, pois Sociedade e Estado
podem ser distinguidos, gerando questão sobre o que
se conforma, aquela ou este, e a inter-relação com a
Constituição.
J.J. Gomes Canotilho oferece
resposta historicista a respeito, ao explicar que de
início, dizia-se ser a constituição instrumento
normativo de regência do corpo social, isto é, da
sociedade, situação que se alterou por razão
semântica, ilustrando isso a referência a
Constituição dos Estados Unidos, com acento
político-sociológico, de matriz liberal, a revelar a
ideia cada vez mais aceita da separação entre
Estado-Sociedade, e, por fim, com estofo filosófico
hegeliana, constituição enquanto lei do Estado e de
seu poder, assentado aquele (Estado) em ordenador da
comunidade política11.
Do estofo filosófico se serviu
a ciência jurídica, identificando Hans Kelsen o
Estado com a Constituição12.
Sintetizando tal identificação
o magistério de Michel Temer ao asseverar ser o
Estado: “... determinada ordenação jurídica, ou
seja, determinado conjunto de preceitos sobre
determinadas pessoas que estão em certo território.
Tais preceitos imperativos encontram-se na
Constituição”13.
Com esses paradigmas,
constituição, de regente do corpo social a
conformadora estatal e identificação filosófica,
passa-se a análise o Estado Moderno e de seus
modelos predecessores, na linha historicista
proposta por J.J. Gomes Canotilho.
Antecessor daquele, o Estado de
Polícia ainda se estruturava na ideia de soberania
centrada no monarca, a que se submetiam os demais
estamentos sociais, inclusive sobre assuntos
religiosos, a ele (Estado) incumbindo-se questões
administrativas, servil ao dirigismo econômico
pautado numa política mercantilista14.
12 Teoria Pura de Direito, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 310.
13 Interessante notar que citado autor não elenca a finalidade como traço
caracterizador do Estado. Elementos de Direito Constitucional, 14ª ed.,
São Paulo, Malheiros, 1998, p. 15.
14 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
A centralização da soberania no
monarca é mitigada no The Rule of Law, de cepa
inglesa, com seu apogeu na Revolução Gloriosa de
168815, em que se preferem leis e costumes do país à
discricionariedade do poder real, preferência
sustentada no devido processo legal e no acesso
igualitário de todos aos tribunais para defesa de
direitos16.
O modelo alemão, o Rechtsstaat,
também é digno de menção, não só pela proeminência
das normas e limitação estatal e do soberano, mas,
especialmente, pelo controle jurisdicional da
atividade administrativa e pela introdução do
princípio da proibição do excesso a que se
relacionam o devido processo legal e a
proporcionalidade17.
É nos Estados Unidos, em 1775,
que se erige de forma vigorosa o Estado Moderno,
consagrando-se o povo o direito de fazer uma lei
suprema – corporificada, a título de maior segurança
jurídica, em documento escrito - isto é a
Constituição, gizando os esquemas e limites
governamentais, e os direitos e liberdades dos
15 Referida revolução se deu em torno de um rearranjo de poderes entre a
nobreza e a burguesia inglesa, permitindo à última usufruir dos direitos concedidos aos nobres, em favor do tráfego financeiro que reergueria a Inglaterra solidificando-a como nação imperialista.
16 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
pp. 87-88.
cidadãos, sob o amparo jurisdicional instituído,
judicial review of legislation18.
A tal vigor - representado pela
edição de uma constituição, conformando a atuação
governamental e amparando direitos e liberdades
individuais - assemelha-se o resultado da Revolução
Sangrenta, em 1789, na França19.
As distinções quanto ao modelo
estatal norte-americano verificam-se na França,
especialmente, em dois aspectos: a lei é vértice do
sistema jurídico, em vez Constituição, a
caracterizar o legicentrismo20, e o desprestígio da
jurisdição como órgão de curatela do precitado
sistema.
Em síntese, o Estado Moderno é
fruto da implosão do absolutismo, pauta-se no
constitucionalismo, e centraliza ideologicamente a
Constituição como instrumento normativo escrito
superior de contenção de poderes e de garantia de
liberdades individuais.
18 Op. cit, pp. 90-91.
19 Anota Jorge Miranda que a diferença entre a Revolução Inglesa e a
Francesa se centra no fato de que aquela se insere numa linha de continuidade, ao passo que a última gerou a necessidade de reconstrução da arquitetura estatal desde o começo (Manual de Direito Constitucional, 7ª ed., Coimbra, Editora Coimbra, t. I, 2003, p. 126).
20 Anotam André Ramos Tavares e Domingo Garcia Belaunde ter a concepção
legicêntrica se espraiado por toda Europa, sobrepondo-se Parlamento e
leis às disposições constitucionais. Por que um Código Processual
Nesse contexto, releva notar
que o constitucionalismo não tem foro exclusivamente
jurídico, baseado na pregação de um sistema
suportado num conjunto normativo superior
(Constituição), a que se submetem os próprios
governantes, mas igualmente se forra em base
ideológica, referindo-se ao movimento social que
legitima a limitação do poder e de seus governantes
na condução do Estado21.
21 Nesse sentido, André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, 3ª
3.2. Limitação de poderes.
A ideia de Estado Moderno, como
se viu, está amalgamada com a de Constituição,
instrumento normativo superior escrito, a que o
povo, ao se consagrar o direito de fazer, conferiu
àquele o adjetivo democrático.
O Estado Constitucional
Democrático, como salienta J.J. Gomes Canotilho22,
legítima o poder estatal, mas também serve para
travá-lo.
Referida trava se traduz por
cintas impostas pela Constituição, estabelecendo
regime autocontenção ao Estado e de garantia dos
direitos individuais, com a instituição de
mecanismos notadamente judiciais próprios para
tanto.
Constituições dotadas desses
mecanismos são denominadas de ideal, próprias do
Ocidente, por exemplo, a Francesa e a
Norte-americana, opondo-se o tipo de família em que as
mesmas se inserem à do Leste Europeu, por exemplo, a
Russa, em que o respeito às normas constitucionais e
aos direitos não estão salvaguardados por órgãos
jurisdicionais independentes23.
Sobre isso ensina Jorge Miranda
que, no Ocidente, fala-se em Estado de Direito, e
estão muito aperfeiçoados os mecanismos
jurisdicionais de garantia ou remédios contra os
abusos de poder; no Leste, em legalidade socialista,
com meios ainda embrionários de garantia24.
Outro suporte à Constituição
ideal se encontra na divisão de poderes, remetendo a
conceituação inicial de soberania.
André Ramos Tavares, nesse
sentido, sustenta que o conceito de constituição
ideal está associado à filosofia política-liberal,
em que presentes: a garantia das liberdades, com
participação política, e a divisão de poderes25.
23 Tal perfil constitucional é visto em Cuba, conforme escrevemos Justiça
Constitucional e Democracia em Cuba, pp. 233/244, em André Ramos Tavares
(coordenador), Justiça Constitucional e Democracia na América Latina,
Belo Horizonte, Brasil, Editora Fórum, 2008: “O constitucionalismo de Cuba é marcado por uma revolução de caráter socialista, cuja matriz é a ideologia marxista-lenista, dizendo todo poder advir do povo cubano, relacionando a Constituição, em seu longo preâmbulo, todos os componentes, inclusive aborígenas, escravos e campesinos.Vale dizer, é um Constitucionalismo do leste europeu, que se opõe à família constitucional ocidental ou ideal, tendo como propósito proteger e incrementar as conquistas do regime político e econômico do socialismo. E há a previsão de um órgão jurisdicional supremo, Tribunal Supremo Popular, nos termos de seu art. 120, mas cujo submetimento a Asamblea Nacional del Poder y al Consejo de Estado, nos termos do art. 121, faz com que careça de independência e de possibilidade de contenção de poderes e, assim, de salvaguardar a incolumidade da Constituição ou os direitos nela previstos.”
24 Manual de Direito Constitucional, t. I, p. 115.
A soberania estatal opera
dentro do perfil da constituição ideal, vale dizer,
num sistema de contenção e de divisão de poderes.
Poderes, de sua parte, dizem
respeito às funções que perfazem o arcabouço da
soberania, com referência, portanto, à organização
jurídica e à dicção impositiva tocante à
atributividade normativa.
As funções precipuamente são a
legislativa, executiva e judicial, exercitadas cada
qual por órgãos intra-estatais distintos, que se
caracterizam no sistema de constituição ideal por
receberem diretamente do instrumento normativo que a
corporifica sua definição, isto é, conformação,
competência e status26.
Releva dizer que a unicidade e
a indivisibilidade da soberania impedem que se fale
em poderes, mas, sim, em órgãos intra-estatais
distintos.
3.2.1. Tripartição de Poderes.
A ideia de divisão ou
repartição de poderes derivou da experiência
vivenciada no absolutismo, em que os poderes se
enfeixavam nas mãos de um único órgão ou pessoa,
que, sem contenção, exercitava-o de forma abusiva e
despótica.
Sua concepção visou, a um só
tempo, atribuir a órgãos distintos as funções
precípuas estatais, e laborar sistema em que cada um
desses órgãos contivesse o outro.
Assinala Michel Temer que o
mérito da teoria da divisão de poderes não foi o
sugerir certas atividades ao Estado - posto que as
mesmas já eram identificadas - mas, sim, o de propor
um sistema em que cada órgão exercesse função
distinta, no mesmo passo em que a atividade de cada
um deles servisse à contenção da atividade do outro,
num sistema de independência entre os órgãos do
poder e de inter-relacionamento de suas atividades,
resultando a fórmula de freios e contrapesos a que a
doutrina norte-americana alude27.
Releva notar que, para o
sistema de freios e contrapesos operar, inexiste a
necessidade de que haja três órgãos, Judiciário,
Legislativo ou Executivo, modelo adotado tanto no
Brasil como nos Estados Unidos.
Na França, o sistema
jurisdicional é dual28, atribuindo-se o controle dos
atos administrativos a órgãos integrantes da própria
administração, que gozam de independência e
autonomia.
A dualidade jurisdicional
francesa se prende a peculiaridades culturais e
históricas, carregando temores de intervenção do
Poder Judiciário na administração.
E o temor era fundamentado,
pois os quadros da magistratura eram compostos de
apaniguados do antigo regime, o que privava os
julgamentos de imparcialidade, além de não garantir
o devido preparo técnico dos que estavam investidos
de jurisdição.
No entanto, a experiência
histórica veio a demonstrar que - embora não altere
o regime de contenção de poderes o exercício das
funções primordiais estatais por três ou dois órgãos
- a atribuição da jurisdicional a órgão diverso e
28 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 14ª
destacado do legislativo e do executivo revela-se a
mais adequada.
Isso, não só por conferir maior
imparcialidade nas decisões, mas também em razão de
a escolha dos componentes do órgão judiciário,
recaindo sobre quadros técnicos, possibilitar
julgamentos mais equilibrados, notadamente quanto à
3.3. Justiça Constitucional.
O ideal do constitucionalismo
se estrutura na limitação de poderes e nos direitos
individuais, sediados num conjunto normativo
corporificado por escrito, central do sistema
jurídico de determinado Estado, ao qual se dá o nome
de Constituição.
Da ocupação central deriva o
conceito de escalonamento normativo, encontrando-se
a Constituição no cume do ordenamento jurídico, a
servir-lhe de instrumento sistemático de coesão e
coerência.
De nada valeria, no entanto,
falar em centralidade no sistema normativo ou que a
Constituição cumpre a função de coerência e coesão
do ordenamento estatal29, se a mesma não usufruísse
de rigidez.
Com efeito, Constituição
suscetível de modificação por outros centros
normativos, que não o poder constituinte, ou por
procedimentos legislativos simplificados, ou
passível de revogação por normas situadas em patamar
inferior na planta escalonada normativa, carece
daquela certificação de centralidade normativa,
29 André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, São Paulo,
tampouco exerce de forma eficaz a função de conferir
coesão e coerência ao sistema jurídico.
Para mencionadas certificação e
eficácia há necessidade de: a) existência de rigidez
constitucional, não podendo as disposições
constitucionais ser alteradas por normas inferiores
ou advindas de centros normativos que lhes estão
aquém nem por procedimentos comuns; b) que a
Constituição ocupe o topo do sistema normativo.
Para aferição do respeito a
esses requisitos afirma-se como natural a existência
de órgão de certificação ou controle de
constitucionalidade.
Tendo se revelado perigosa a
atribuição do exercício de tal controle ao Führer e
inadequado seu acometimento ao executivo ou ao
legislativo, entendeu-se ser o Poder Judiciário o
mais habilitado para o labor de curar a
Constituição, e isso por motivos bem razoáveis, é
seus quadros são mais técnicos, portanto, mais
habilitados à aferição jurídica de
constitucionalidade, e menos suscetíveis do
movimento volátil da opinião pública e de pressões
políticas.
Claro que a opção pelo Poder
Judiciário não se vê livre de questionamentos, que
falta de representação política de seus componentes
e noutra sobre quem seria o curador do curador
constitucional.
De qualquer modo, a designação
do Poder Judiciário como órgão de controle de
constitucionalidade - dada inclusive a sua inata
vocação de dizer o direito, sendo esse o sentido
etimológico da palavra jurisdição - é a que se
mostra mais exitosa.
E nota-se mais expressivo êxito
quando o controle é exercido de forma concentrada à
moda da Suprema Corte norte-americana, propiciando
segurança jurídica e uniformização da hermenêutica
4.Morfologia da Justiça Constitucional
É possível analisar a Justiça
Constitucional tanto sob a ótica organizacional como
pela processual.
Ensina André Ramos Tavares que
a primeira vertente de análise se ocupa dos aspectos
estruturais da Justiça Constitucional, por exemplo,
recrutamento dos integrantes da corte e órgão
judicial e forma de composição, morfologia orgânica
essa que se aparta da de caráter processual,
respeitantes aos aspectos do método adequado à
tutela e curatela constitucional30.
É sobre a vertente morfológica
processual, objeto do presente estudo, que se passa
a tratar com o intuito de indicar seus lindes nas
categorias processuais civis.
Releva anotar o motivo e os
cuidados do assinalado intuito.
O motivo é a busca, que este
trabalho visa, de produção de modelos dogmáticos,
gizados por esquemas teóricos, notadamente para
produzir e dar significado àqueles modelos e
correlacioná-los a título de compor suas figuras,
seus institutos e sistemas, no caso, a justiça
constitucional limitada pelas categorias
processuais31.
Os cuidados são de duas ordens.
Quanto ao significado da
locução processo civil, para expressar o método
jurisdicional empregado para equacionar crises
jurídicas não penais, isto é, as que tenham como
matéria de fundo, consequências jurídicas de direito
privado ou de direito público (constitucional,
administrativo ou tributário)32.
A advertência de que não se
trata de enquadramento ou diminuição dos direitos
sediados na Constituição, mas, sim, no
estabelecimento do método de atuação jurisdicional,
nos limites impostos pelas categorias processuais,
para o amparo adequado daqueles direitos.
Para a empreitada acadêmica que
se propõe, faz-se relato histórico do processo
civil, sob o influxo do legicentrismo, capitulado
pelo direito privado, e do direito constitucional.
Trata-se, em seguida, dos
institutos fundamentais do processo civil
(jurisdição, ação, defesa e processo), nos quais a
justiça constitucional encontra lindes.
31 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, 11ª ed., São Paulo,
Saraiva, 1984, p.176.
32 Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, 13ª ed., São Paulo,
Referidos fundamentos são
conformados e harmonizados pelo princípio
constitucional do devido processo legal.
E isso – a análise dos
institutos fundamentais cimentada pelo devido
processo legal - é permeada pela referência às
crises jurídicas e consequentemente às tutelas
jurisdicionais, sem as quais aqueles e seu agente
constitucional conformador e harmonizador não teriam
4.1. Morfologia processual da Justiça
Constitucional
O Estado tem como incumbência
definir e decidir impositivamente acerca da
atributividade das normas, bem por isso, garantir a
pacificação social diante de variadas situações de
crises jurídicas, interindividuais ou
transindividuais.
Crises jurídicas, segundo
Cândido Rangel Dinamarco, são: “momentos de perigo
nas relações entre pessoas ou grupos, suscetíveis de
serem normalizadas pela imposição do direito
material33”.
Para resolver as crises
jurídicas, atua órgão intra-estatal – que se
denomina Poder Judiciário - ao qual, nos termos da
precitada incumbência, compete dita resolução, e que
se vale de indispensável método de trabalho,
denominado processo34.
Máxima crise jurídica de
certeza deriva de dúvidas sobre atentar, ou não, ato
ou norma contra a ordem constitucional,
acometendo-se a tarefa última e primaz de resolução de tal
33 Instituições de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Malheiros,
2009, p. 153.
crise a órgão jurisdicional de sobreposição, mercê
de processo.
Releva notar que processo civil
tem expressão de continente.
Abrange o próprio método de
trabalho, assim como os sujeitos que nele
relacionam-se, Poder Judiciário, aquele que provoca
a sua atuação, e contra quem se dá a provocação, por
vezes Ministério Público, e, em hipóteses restritas,
o amicus curiae – e é gizado pelo vértice
constitucional do devido processo legal.
Natural, portanto, que,
estudem-se seus institutos fundamentais,
ocupando-se, previamente, com o relato histórico de sua
evolução, até chegar aos contornos atuais, o que
possibilita o estabelecimento dos lindes a que visa
4.1.1. Relato da evolução histórica do direito processual civil
Direito Processual Civil35, há
tempos, estabeleceu-se como ciência autônoma.
Estrutura-se em princípios e
metodologia que lhe conferem identidade diversa da
dos demais ramos jurídicos36.
Alçou o patamar de ciência
autônoma após longa jornada e labor doutrinário.
Processo Civil, de começo, não
se destacava do direito privado ou material.
Quanto à ação, vigorava a
teoria concreta, baseada: a) na actio romana; b) na
teoria civilista da ação.
A primeira expressava direito
passível de ser perseguido em juízo, somente tendo o
mesmo quem dispunha da ação.
35 Processo civil por ser a denominação usual ao método de atuação do
Judiciário com o escopo debelar crise jurídica no âmbito civil e de direito público, excluídas as lides que trazem consequências jurídicas penais, às quais se incumbe ao processo penal debelar (Arruda Alvim, op. cit., p. 37).
36 Nada obstante, direito processual assim como as demais disciplinas que
Havia, pois, evidente inversão
entre o direito material e o que se tem, na
atualidade, como ação.
A segunda, teoria civilista, de
sua parte, via a ação como elemento constitutivo do
direito material, expressando isso o art. 75 do
revogado Código Civil de 1637, in verbis, “A todo
direito corresponde uma ação38”.
É a ação vista como direito
armado para guerra39-40.
Os processos eram analisados
conforme a praxe e o procedimentalismo forense e
seus atos estudados de modo casuístico e sem pautas
metodológicas41.
Oskar Von Büllow e Adolf Wach
são os juristas aos quais se atribui a certificação
da existência da ciência do direito processual
civil.
Em sua obra Teoria das Exceções
e dos Pressupostos Processuais, de 1868, Büllow
37 O Novo Código Civil, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, não
contém semelhante dispositivo.
38 O art. 76 de tal código revogado traduzia igual resquício da teoria
civilista da ação.
39 Cândido Rangel Dinamarco,
Os Institutos Fundamentais do Direito Processual, in Fundamentos do Processo Civil Moderno, vol. I, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2001, pp. 81-86.
40 Maria Helena Diniz, renomada civilista, ainda hoje, refere-se, como
elemento da relação jurídica de direito material, a tutela normativa de aforar demanda para satisfação da obrigação descumprida. Curso de Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 107.
41 José Frederico Marques, Instituições de Direito Processual Civil, vol.
demonstrou ter o processo base científica própria,
vale dizer: a relação jurídica processual42.
Büllow teceu críticas à
exagerada preocupação com o procedimento e seu
aspecto exterior, e, especialmente, demonstrou a
existência de estrutura processual própria.
Identificou: a) a relação
processual diversa da substancial, figurando, entre
os seus sujeitos, o juiz, desligado da relação de
direito material e que naquela (relação processual)
age investido de função estatal; b) o objeto
processual, que não é o bem da vida visado pelo
demandante, mas, sim, a prestação jurisdicional; c)
a existência de pressupostos processuais para
admissibilidade de sentença de mérito43.
A grande virtude de sua teoria,
segundo Cândido Rangel Dinamarco, foi: “a de dar
real importância à trilogia dos sujeitos do processo
e vê-los enleados num especial vínculo jurídico,
apresentando sistematicamente a teoria da relação
processual44”.
Adolf Wach deu outro impulso à
independência da ciência processual, ao diferençar o
direito de ação da teoria civilista, conceituando
42 José Frederico Marques, op. cit., p. 104.
43 Cândido Rangel Dinamarco, Os Institutos Fundamentais do Direito
Processual Civil, in Fundamentos do Processo Civil Moderno, vol. I, São Paulo, Malheiros, 2001, pp. 87-88.
aquele como direito público exercido em face do
Estado, e relativamente autônomo no que se refere ao
direito material.
Destaca Arruda Alvim45 os
principais pontos da teoria de Wach sobre a ação:
1º) a sua relativa independência do direito material
(substancial), que se utiliza da ação para se fazer
valer; 2º) caracteriza-se por ser um direito
secundário, dado que supõe – na maioria das vezes –
um outro direito, o qual se constitui no direito
primário; 3º) com esse direito primário não se
confunde, embora deva retratá-lo, retrato esse com
foro axiomático, ao se mirar a hipótese da ação
declaratória negativa, que supõe a própria
inexistência da relação jurídica de direito
material; 4º) os requisitos do direito de ação são
determinados pelo direito processual civil; 5º) a
ação é bifronte, exercitável em duas direções: a) em
face do Estado, a quem se roga a prestação
jurisdicional; b) contra o réu, obrigado a suportar
a referida prestação.
Esses os lineamentos do Direito
Processual Civil científico, que serviram de marco
divisório entre o sincretismo e a linha autonomista,
no quadro das linhas evolutivas processuais46.
Não obstante o aparte do
direito material, a teoria autonomista não conseguiu
alcançar aquela que seria e é, junto com a de bem
atuar o direito material, a natural vocação do
processo civil: eliminação das crises jurídicas e
pacificação social.
Com efeito, a teoria
autonomista foi lavrada, num tempo de culto à teoria
legicêntrica, sobrepairando as codificações paridas
numa sociedade individualista e patrimonialista,
guiado por um modelo mercantilista liberal.
Era o Estado submetido à
filosofia do laissez faire, laissez passer47, em que
o acesso à justiça era formal.
No campo da hermenêutica
jurídica legicêntrica, o magistrado se restringia,
no processo judicial, a ser a boca da lei, sem
qualquer liberdade de interpretação, não podendo
julgar a justiça ou moralidade da solução legal48,
apenas declarando a vontade da norma.
46 Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel
Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 27ª ed., São Paulo, Malheiros, 2011, pp. 48-52.
47 Mauro Cappelletti-Bryant Garth, Acesso à Justiça, Porto Alegre, Sérgio
Antônio Fabris, 1988, p. 10.
48 Fábio Konder Comparato,
A revolução industrial e seus
desdobramentos, no entanto, trouxeram da
marginalidade social enorme contingente de pessoas
que passou a reivindicar acesso aos novos
equipamentos civilizatórios, abalando, tal quadra
histórica, o legicentrismo imposto pelo modelo
liberal que fez prevalecer o direito privado
codificado.
A massificação da economia e,
consequentemente, das contratações embutiam práticas
abusivas, por vezes, a prejudicar interesses de
terceiros estranhos aos contratantes, por exemplo,
nos casos de concorrência desleal e de interesses
trans-individuais.
A produção em série e a
circulação massiva dos bens potencializaram sua
capacidade lesiva, prejudicando as vítimas quanto a
indenizações, pois nelas recaía o ônus probatório de
demonstrar lesão que porventura tivessem sofrido,
consoante a teoria, no campo de direito material, da
responsabilidade subjetiva, combinada com a
processual, de demonstração dos fatos constitutivos
de seu direito.
A linha processual autonomista
refletia essa conjuntura social, econômica e
jurídica, marcada pelo legicentrismo e pela visão
Referida teoria era desatenta:
a) à desigualdade econômica, jurídica e processual
dos litigantes; b) aos interesses supra-individuais
provocados - acentuados e, especificamente, feitos
se notar, por exemplo, meio ambiente - pelo
industrialismo e pelo capitalismo que geraram a
sociedade moderna e consumerista; c) à maneira
complicada, morosa e custosa do processo,
imprimindo-lhe dogmas e formalismos que emperravam
sobremodo o acesso à justiça.
As constituições europeias do
primeiro quarto do século XX – com um olhar menos
legicêntrico, e suscetíveis às influências sociais e
políticas do momento – ultrapassaram os lindes de
ocupação exclusiva com as liberdades individuais e
direitos políticos, para estabelecer direitos
econômicos e sociais.
O legicentrismo liberal foi
abalado pela atuação do estado promocional.
Surgem, no âmbito do direito
privado, os chamados micro-sistemas, diplomas que
passaram a cuidar de interesses cuja importância ou
repercussão econômica e social constante não mais se
enquadravam nos limites das grandes codificações49.
49 No Brasil, exemplificativamente, a CLT, retirando da alçada do CC de 16
Domingo Garcia Belaunde e André
Ramos Tavares bem identificam esse quadro de
transformação, lecionando: “... a sociedade
ocidental tem experimentado uma certa desvalorização
dos códigos, surgindo muitas leis esparsas
procurando responder ao dinamismo da vida, das
relações sociais, comerciais, econômicas e
políticas. Também tem sido editadas as chamadas
‘leis gerais’ sobre determinados temas e ‘leis de
marco’, sucedâneos da concepção de códigos50.
Esse passo de novas ocupações
normativas repercute naturalmente no processo civil.
Esclarecem Mauro Cappelletti e
Bryant Garth51: nada medida em que o welfare state
vai estabelecendo as reformas no direito
substantivo, o efetivo acesso à justiça passa a ser
reconhecido como o mais elementar dos direitos
fundamentais por ser o mecanismo de amparo dos novos
direitos individuais e sociais, inerente, portanto,
ao direito de personalidade, constituindo-se na
pedra de toque da moderna processualística.
Advém, a partir de 1965, a
chamada fase instrumentalista processual e suas
ondas renovatórias.
50 Por que um Código Processual Constitucional ? R. bras. Est. Const.
RBEC, ano 4, n. 16, pp. 17-33, out/dez 2010, pp. 23-24.
Passam os processualistas a se
ocuparem com estudos e inovações que curassem o
acesso à justiça, o direito ao processo justo e a
efetividade do processo.
É o que destaca José Roberto
dos Santos Bedaque52: “a ciência processual deixou de
ser um conjunto de princípios e regras técnicas
apenas, para assumir caráter nitidamente
instrumental, com a preocupação voltada para os fins
a serem alcançados pelo processo. O estudo dos meios
só se justifica na medida em que contribua para
atingir resultados mais efetivos, eliminando a crise
do processo, crise, essa, representada pela
ineficiência do instrumento em relação a seus
escopos”.
São três as ondas
renovatórias53.
A primeira delas é relativa à
assistência jurídica e judiciária aos necessitados,
e que reconhece a distinção entre litigantes,
buscando proteger os desvalidos54, no Brasil, a Lei
1.060/50.
Já a segunda – a mais
importante para o que propõe o presente trabalho –
52
Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência (tentativa de sistematização), 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2001, p. 28.
53 Mauro Cappelletti-Bryant Garth, Acesso à Justiça, p. 31.
54 É empenho da Constituição Federal (art. 5º, LXXIV), a prestação de
ocupa-se com a tutela dos interesses
supra-individuais, em que bem pode ser inserida a tutela
constitucional, na medida em que diz respeito ao
interesse de toda a sociedade ser válido ou não ato
ou norma infraconstitucional.
Releva anotar a emblemática
legislação que emergiu dessa onda renovatória, ações
coletivas, reguladas pelas leis 7.347/85 8.078/90,
ampliando a legitimação ativa ad causam, conferindo
tal condição a uma série de entes representativos, e
estendendo, em algumas hipóteses, os efeitos da
coisa julgada a toda sociedade ou a terceiros que
não participaram da relação processual.
Por fim, a terceira, ainda em
curso onda renovatória – de certa forma englobando
as duas primeiras – que visa à simplificação do
processo e à maior acessibilidade à justiça,
consagrando o ativismo judicial, nos moldes das Leis
8.078/90 e 9.099/9555.
Essa mudança evolutiva ocorreu
sob a percepção de que a interpretação do sistema
jurídico deveria ser feita a partir do vértice
unificador, isto é, da Constituição, e não sob o a
concepção legicêntrica, no Brasil, expressada pela
55 Lecionam Mauro Cappelletti-Bryant Garth: “Um sistema destinado a servir
às pessoas comuns, tanto como autores, como réus, deve ser caracterizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez, por julgadores ativos e
pela utilização de conhecimentos técnicos bem como jurídicos.” Acesso à
Lei de Introdução ao Código Civil e pelo próprio
4.2. Institutos fundamentais do direito
processual civil
4.2.1. Notas introdutórias
Feito o relato histórico acerca
do processo civil nele repercutindo o legicentrismo
expressado pelas codificações de direito privado o e
direito constitucional, alcançam-se com firmeza os
institutos fundamentais processuais, processo,
jurisdição, ação e defesa, em sua forma atual,
gizados pela pedra de toque que lhes harmoniza, vale
dizer, o princípio constitucional do devido processo
legal.
Ensina, assim, Cândido Rangel
Dinamarco56: “As grandes categorias de direito
processual civil, que compõem e exaurem o objeto das
normas processuais, são a jurisdição, a ação, a
defesa e o processo. A jurisdição é o poder que o
juiz exerce para a pacificação das pessoas e grupos
e eliminação de conflitos; a ação é o poder de dar
início ao processo e participar dele com vista à
obtenção do que pretende aquele que lhe deu início;
56 Instituições de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Malheiros,
a defesa é o poder de resistir, caracterizando como
exato contraposto da ação; o processo é ao mesmo
tempo o conjunto de atos desses três sujeitos, o
vínculo jurídico que os interliga e o método pelo
qual exercem suas atividades”.
Reitere-se que a fluência do
princípio constitucional do due processo of law é
que dá densidade jurídica adequada a ditos
4.2.2. Jurisdição
O Estado é a expressão da
sociedade politicamente organizada, tendo como
característica a soberania, e a ambição de assegurar
a convivência social ordenada.
Desempenha, para tanto, as
funções legislativa, administrativa e jurisdicional,
atuadas por órgãos intraestatais distintos,
denominados equivocadamente de poderes57.
Com a proibição da justiça por
mão própria, o Estado atribui-se com exclusividade a
função de resolver os conflitos sociais, fazendo
isso através do Poder Judiciário.
Releva ser inerente ao
desempenho dessa função a definição da
atributividade das normas, resultando disso o
reconhecimento de o processo ser portador de densa
ocupação publicista, comprometida com a boa
aplicação do direito material, e não só com a
resolução das crises jurídicas.
Hélio Tornaghi chega a afirmar
que a verdadeira função da jurisdição é a proteção
do ordenamento jurídico, sendo o resultado dela, e
57 A soberania estatal se caracteriza por ser uma e indivisível,
não seu fim, a tutela dos interesses individuais
aportados no processo58.
Importante destacar, os
diversos e interligados significados da jurisdição,
ao mesmo tempo expressando poder, função e
atividade59.
Jurisdição, enquanto poder
liga-se àquela ideia de soberania, capacidade
estatal de decidir imperativamente e impor decisões.
A ideia de função deriva da
proibição de justiça de mão própria, expressando a
inafastável incumbência que a Jurisdição tem de
promover e pacificação dos conflitos
interindividuais e transindividuais, mediante
processo.
Por fim, jurisdição, enquanto
atividade traduz a série de atos praticados pelo
juiz, sob o influxo dos deveres-poderes a ele
acometidos.
A jurisdição tem notas que a
caracterizam: substitutividade, definitividade,
inércia e existência de lide.
A substitutividade expressa a
sub-rogação da vontade das partes ou sujeitos
parciais no processo, pela vontade emanada da norma
58 Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1976, p. 228.
59 Nesse sentido, Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e
ou do sistema normativo, expressada pelo provimento
jurisdicional, de valor, em regra, somente aos que
foram parte no processo.
A definitividade60 se dá quando
o provimento jurisdicional diz respeito ao mérito da
demanda, produzindo os efeitos da coisa julgada.
A Jurisdição se caracteriza
pela inércia, agindo por provocação das partes tanto
em relação a direito disponível como quanto a
direito indisponível.
A função jurisdicional supõe,
por fim, a existência de lide, conceituada como
conflito de interesses deduzido no processo,
qualificado pela pretensão de um dos sujeitos
parciais a que o alter resiste61-62.
Deriva dessa última nota
caracterizadora outra classificação de jurisdição,
que a divide em contenciosa, em que são vistas todas
as precitadas notas caracterizadoras, e em
voluntária, em que não existiria lide, mas, sim,
situações em que a lei acometeria ao Poder
Judiciário, o poder-dever de integrar a sua vontade
60 Registre-se outro tipo de provimento jurisdicional que põe fim ao
processo, sem, no entanto, decidir o mérito da lide, denominado terminativo, em que não se vence os requisitos de admissibilidade para julgamento de mérito, não preenchendo as condições da ação e pressupostos processuais.
61 Alfredo Buzaid, Exposição de Motivos do Código de Processo Civil,
número 6.
62 Na seara processual, distingue-se o conflito de interesses ocorrente na
à dos demais sujeitos processuais a fim de conferir
validez a ato jurídico que o legislador entendeu por
bem reclamar a intervenção jurisdicional estatal.
Essa última classificação é de
importância ao tema objeto do trabalho, por haver
entendimento de que na tutela constitucional não há
lide, mas, sim, a jurisdição voluntária por
indispensável a intervenção da jurisdição63.
A função jurisdicional, como
dito, prende-se à incumbência estatal de por fim a
conflitos interindividuais ou transindividuais.
Crises jurídicas, locução que
melhor traduz no âmbito da ciência do direito
mencionados conflitos, podem ser classificadas em
três tipos: a) de certeza, tocante a dúvida no seio
social sobre direitos e obrigações e existência,
inexistência ou forma de ser de relações jurídicas;
b) de adimplemento, dimanada de potencial
descumprimento de obrigação pelo devedor a que o
credor busca a satisfação; c) de situação jurídica,
a reclamar a necessidade de criação, modificação ou
extinção de determinada relação jurídica64.
A Jurisdição debela a crise
jurídica conforme a sua natureza, ministrando, numa
63 É o que o leciona Daniel Amorim Assumpção Neves, Ações Constitucionais,
São Paulo, Editora Método, 2011, pp. 1-2.
64 Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito
classificação denominada ternária, três tipos de
tutela: declaratória, constitutiva e condenatória65.
Se a crise é de certeza, a
tutela a ser ministrada é a declaratória, que
certifica a existência ou inexistência da relação
jurídica, e, excepcionalmente, a autenticidade ou
falsidade documento, consoante positivado no art. 4º
do CPC.
É tipo de tutela ou de sentença
ministrado que se basta em si mesmo, não havendo um
módulo processual à sua concretização.
Se a crise é de situação
jurídica, a tutela a ser ministrada é a
constitutiva, cujo escopo é o de criar, modificar ou
extinguir um estado ou relação jurídica, por
exemplo, a sentença que decreta o divórcio,
prescindindo, tal como na tutela declaratória, de
módulo processual para a sua execução.
Por fim, tratando-se de crise
de inadimplemento, a tutela a ser ministrada é a
condenatória, em que se acresce à declaração de
direito, comando a que a parte que sucumbiu preste
obrigação de fazer ou não fazer ou de dar, por
exemplo, na hipótese de pretensão indenizatória.
Além da classificação ternária,
há outra, defendida por João Batista Lopes66, que
65 José Roberto dos Santos Bedaque,
acrescenta outros dois tipos de tutela - mirando,
basicamente, as peculiaridades da técnica utilizada
à sua efetivação na prática – chamada de quinaria.
Segundo ela, tem-se também a
tutela mandamental e a executiva lato sensu.
A mandamental visa ordenar
órgão ou pessoa obrigação de fazer ou não fazer, em
vez de, como ocorre na tutela condenatória,
sub-rogar-se à vontade do devedor, expropriando bens.
Sua peculiaridade reside na
ordem judicial, instrumentalizada em mandado, a que
o órgão ou a autoridade a cumpra, sob pena de adoção
de medida de apoio a exercer pressão psicológica
naquele a quem se emite a ordem, por exemplo, a
emanada em writ, contemplando advertência a que seu
descumprimento implicará em crime de desobediência.
Referida tutela, a exemplo da
declaratória e constitutiva, prescinde de módulo
executivo.
Por fim, a tutela executiva
lato sensu, que contém em si mesma técnica de
sub-rogação, a, igualmente, dispensar módulo de
execução, por exemplo, na derivada da ação de
despejo, em que sua efetivação se dá pela prática de
ato sub-rogatório, desocupação coercitiva do imóvel.
66 João Batista Lopes, Curso de Direito Processual Civil, Parte Geral, São
Hoje, com as recentes reformas
processuais - especialmente aquela que prescindiu a
instauração de um processo de execução tocante à
efetivação da tutela condenatória, estabelecendo
módulo processual próprio para tanto (fase de
cumprimento de sentença), em sincretismo, e com a
fungibilidade das técnicas de efetivação prática das
tutelas - tornou-se discutível a utilidade da
classificação quinaria67.
67 José Roberto dos Santos Bedaque,
4.2.3. Ação
Como visto, a identificação da
ação foi, juntamente com a relação processual,
instituto que deu ao processo civil a devida
certificação científica.
Denominada de concreta a teoria
de Adolfo Wach foi superada, por sua base vincular a
existência do direito de ação a presença do direito
material, em razão de, tanto no caso da ação que
resulta em sentença de improcedência, que declara,
portanto, não ter o autor o direito material, como
no caso de acolhimento de pedido de declaração de
inexistência de direito material, constata-se o
exercício do direito de ação.
Sucederam outras teorias.
A teoria abstrata do direito de
ação se afirma na ideia de independer de
certificação de seu exercício a existência de
direito material, constituindo-se, pois, num direito
amplo, abstrato e incondicionado.
A crítica pertinente que se faz
é a de que o direito de ação assim delineado,
exercitável de forma incondicionada, equivaleria ao