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De Fomes e Máculas

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Academic year: 2021

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Resumo: discute-se, neste trabalho, como se dá ficcionalmente, a questão da mulher, seu processo de integração na cultura africana. Seu jugo imposto pelo europeu, espe-cialmente pelo português, seguido dos males daí decorrentes como a opressão social, as frustrações no relacionamento afetivo, pois elas quase sempre se prostituíam, bem como o drama vivido pelos filhos mulatos (que não são negros nem brancos). Soma-se a isso, o esfacelamento que os brancos promovem de seus laços raciais, familiares e de suas tradições míticas.

Palavras-chave: Literatura. Cultura africana. Identidade.

A

luta pela sobrevivência entre as comunidades negras na África passa, irreme-diavelmente, pelos brancos lençóis do colonizador. O acesso ao bens funda-mentais como alimentação, vestuário e educação circunscreve-se, para a gran-de maioria do ditos indígenas, ou locais, ao âmbito privado da intimidagran-de do patrão branco, não raro proprietário das terras e das pessoas.

Esse trânsito, pelas tortuosas vias de uma identidade estraçalhada, gerou um elemento que, experimentando o despertencimento atraiu para si o duplo crivo da discriminação: vergonha para a comunidade negra, que o não aceita por representar a maculação da pureza racial, rejeitada entre os brancos, porque fruto de uniões ile-gítimas e desiguais. Assim é vista a figura do mulato, fruto da união do colonizador branco com uma negra ou, mais raramente de uma branca com um negro.

A formação das sociedades coloniais, atenta a uma hierarquia social rígida, im-pôs barreiras raciais e disseminou preconceitos, impedindo o deslocamento da

rela-Francisca Zuleide Duarte de Souza**

* Recebido em: 11.10.2011. Aprovado em: 29.11.2011.

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ção sexual para o âmbito da relação social, sem, entretanto, lograr sufocar a cupidez de uns e a submissão de outros, gerando situações de ilegitimidade e bastardia.

Filhos da Malinche, evocando a figura tão conhecida na América Latina, o mu-lato, como o assimilado, tornou-se cidadão de segunda categoria, entre o indígena e o dito civilizado, sem um lugar de pertença próprio , em meio às intrincadas organiza-ções raciais, cuja mistura representa.

Violadas ou conduzidas pelos pais ao leito do branco, mulheres africanas vende-ram as primícias do seu corpo jovem a homens que, por representarem o poder e a pos-sibilidade de sobrevivência, usavam-nas como escravas de cama e mesa. A necessidade econômica crucial, a impotência face à violência colonial e por irônico que possa pare-cer, a crença ingênua de ombrear-se aos brancos pelos favores sexuais e pelas benesses materiais advindas dessa imolação da identidade, empurraram não só moças soltei-ras, com os pais para sustentar, como mulheres casadas que dividiam a cama com o marido e o patrão, gerando filhos ora negros, ora mulatos, criando a discriminação no seio da própria família. Filhos mulatos representavam, equivocadamente, uma porta para o mundo branqueado, de necessidades materiais cada vez maiores, aprendidas com o processo de ocidentalização implantado por colonizadores.

Nessa vitrine de novos bens de consumo, o apelo se fazia mais fortemente à mu-lher, estimulando o desejo por vestes bonitas e modernas, adornos e produtos de em-belezamento usados pela branca, para além dos refinamentos gastronômicos, que, no caso da África lusófona era representado pelo azeite, pelo bacalhau e pelo açúcar. Um mundo de facilidades e glamour afigurava-se interdito aos indígenas e, por proibido, mais valorizado. Assim, a mácula na identidade justificar-se-ia pelo acesso a um novo e prazenteiro mundo, paraíso dos brancos.

Na linha dessas reflexões, escolhemos a escritora moçambicana Paulina Chi-ziane que, privilegiando o universo feminino africano, discute o papel da mulher nas várias instâncias de uma sociedade que, se por um lado vive a poligamia (tema amplamente desenvolvido em Niketche: uma história de poligamia (1999), também vive/viveu a fome que não se sacia com os magros recursos da cultura tradicional e se aguça com os apelos de um “ocidente-maravilha”, encenado pelo português em terras d’África.

Em O alegre canto da perdiz (2008) encontramos uma casta de mulheres cujo apetite pelas iguarias do colonizador, pelas roupas do branco e pelo homem da branca, é o único e eficaz caminho para o branqueamento dos filhos mestiços, passaporte para uma cidadania inferiorizada, que requer a negação dos valores identitários essenciais e o consequente abastardamento do papel da mulher/mãe/amante, rendida à neces-sidade de sobreviver. É sobre essa voracidade autodestrutiva da mulher que tratamos. Abordar o papel da mulher na cultura africana é tema que não comportam mui-tas estantes, tal é a diversidade e o particularismo da figura feminina em cada uma das muitas Áfricas da África. Entretanto, uma máscara de dupla face cabe em quaisquer dessas mulheres: santa x prostituta. Entre escravas, feiticeiras, rainhas, virgens

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mu-tiladas, mães extremosas e sábias velhas, transmissoras do conhecimento, circulam preconceitos, frustrações, sonhos esquecidos, identidades fragmentadas.

Discutir a sexualidade em sociedades tão plurais é mergulhar em oceano onde deságuam continuamente muitos rios de amargura, dor e alguma alegria. É de mu-lheres que recusam a forma de vida que se lhes destina, desejosas de outros mundos, sonhadoras de impossíveis que trata o romance O alegre canto da perdiz, da autora moçambicana Paulina Chiziane (2008).

Filiada à tradição griótica, a autora entremeia o texto de histórias que a tradição legou, quando o mundo era dominado pelas mulheres. O romance está recheado des-sas narrativas que sempre iniciam com Era uma vez ou, como em bom texto africano, Karingana ua Karingana, como lemos:

A história se repete... Lendas do tempo em que Deus era uma mulher e gover-nava o mundo. Era uma vez...

...

Todos ficaram a saber que afinal a deusa era uma mulher banal e o divino residia no seu manto de diamantes. Descobriram ainda que era feita de fra-gilidade e tinha a humildade de uma criança. Os homens sitiaram-na. Rou-baram-lhe o manto e derrubaram-na. Tomaram o seu lugar no comando do mundo, condenando todas as mulheres à miséria e à servidão.

Esta é a origem do conflito entre o homem e a mulher. É por isso que todas as mulheres do mundo saem à rua e produzem uma barulheira universal para recuperar o manto perdido (CHIZIANE, 2008, p. 220-1).

O texto acima é um dos muitos contos sobre um mundo sem o jugo masculino. A contundência com que os conflitos entre homens e mulheres são relatados apresen-ta um homem bruto, interesseiro e autoritário, mas sedutor e irresistível. Há apresen-também a história da luta pela libertação das mulheres quando todos os homens foram mortos, inclusive os recém-nascidos. Não como castigo divino que punia o primogênito varão, mas todos os meninos, a fim de proteger um mundo feminino de sua sedução e cativei-ro. Contudo uma criança roubou a coragem às mulheres e fê-las cúmplices, enganado a rainha. Morta a soberana, proclamou-se rei o homem, cujo primeiro ato foi a forma-ção de um harém.

O homem, bicho indestrutível, ambicioso (CHIZIANE, 2008, p. 260) escravizou a mulher e instituiu o patriarcado, mantendo, com violência e palavras, as mulheres fiéis num reino de lágrimas e de sofrimento (CHIZIANE, 2008, p. 271). A resposta ao amor oferecido pelas mulheres foi traição, perda da liberdade e sofrimento. O texto de Chiziane dialoga, neste ponto com, a poetisa brasileira Maria de Lourdes Hortas que no livro Recado de Eva (1994) escreveu o verso: mulher inventaste o amor e isto é imperdoável.

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O início da narrativa de ‘O alegre canto da perdiz’ é apoteótico: uma mulher nua assusta a cidade ao passear às margens do rio Licungo. O alvoroço no local e as represálias acordam os mitos que assustam a comunidade e dei-xam aflorar invectivas geradas pelo ancestral preconceito. Mulheres contra uma mulher nua, indefesa, louca: .’..algumas mulheres protegem os olhos da imoralidade. Da infâmia... as profanas rogam pragas em grossos pala-vrões. As puritanas benzem-se e colocam as palmas das mão sobre o rosto como um leque’ (CHIZIANE, 2008, p. 14).

Esta mulher sem identidade deflagra a narrativa de uma casta de mulheres cujo corpo serviu de moeda de troca na luta pela sobrevivência. Ela é Maria das Dores, nome atribuído por Delfina, mãe negra que não hesitou em trocá-la ainda adolescente por feitiçarias realizadas por Simba1, um de seus amantes. Mãe Delfina queria luxo.

Cremes, roupas de renda, azeitonas, bacalhau. Vida de branca, senhora, sinhá. Des-provida de escrúpulos, não hesitou em oferecer a virgindade da filha Das Dores em troca de um sonho antigo: um prostíbulo com raparigas virgens.

A ironia do nome é flagrante. Maria é exemplo de mulher virtuosa, sem pecado, respeitando a fé cristã que seu pai assimilado adotou. Toda uma simbologia do culto marial trazido para a África pelos portugueses encerra o nome Maria. A significação do antropônimo Maria das Dores na vida daquela menina, fez avô protestar, lembran-do a amargura sugerida: Dolorosa é nossa vida. Doloroso é o caminho lembran-dos negros. Do-loroso é o destino que desenhas para esta criança (OCAP, 156).

Surda, Delfina conservou o nome escolhido pois, para ela Maria das Dores recebeu o nome de atriz de fotonovela. Além disso, alegou, com a escravização e conversão dos negros todas as mulheres receberam o nome de Maria, mas os ne-gros continuaram escravos. Essa discussão trouxe à cena memória das levas de in-vasores que estiveram em África desde os árabes aos comunistas, suscitando gol-pes e revoluções mas os negros permaneceram escravos. A preferência pelo nome cristão anuncia-se ainda no processo de assimilação de José dos Montes(marido de Delfina), no qual o “indígena” foi obrigado a abdicar de sua identidade, como lemos nesta passagem:

Quem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se po-derá afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura, renuncia, mata tudo, para nasceres outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e os velhos espíritos pagãos. José faz o juramento perante um oficial de justiça, que mais se parece com um juramento de bandeira. Com pouca cerimônia, diante de um oficial meio embriagado (CHIZIA-NE, 2008, p. 117).

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Os mecanismos de invisibilização identitária, impostos por colonizadores e in-vasores promoveram o afrouxamento dos laços raciais, familiares e, principalmente, das tradições míticas. Maria das Dores não teve ritual africano de nomeação. A avó Serafina, assustada com o “peso” do nome, fez oferendas pela neta, à revelia da arro-gante e mercantilista Delfina.

A mulher, nessa sociedade, é, ao mesmo tempo, vítima e beneficiária da sedução exercida pelos modelos ocidentais ou “brancos” de consumo, como, aliás, aconteceu em muitos grupos sociais, bem pontuado por Peter N. Stearns (2007), no seu Histó-rias das relações de gênero.

As reações africanas aos modelos de gênero ocidentais, variaram. Alguns abraçaram novas oportunidades no cristianismo e em novas formas de edu-cação. Outros, é evidente, sentiram-se atraídos pelos padrões de consumo. A maior parte das mudanças, no entanto, pouco ou nada compensou as per-das evidentes.... Por outro lado algumas africanas começaram a exigir re-formas a partir dos novos papéis domésticos ao estilo ocidental (STEARNS, 2007, p. 157).

Mudanças mais significativas são reivindicadas na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos adotada em1981 por uma parcela da OUA (Organização da Uni-dade Africana) que, invocando uma das conferências internacionais de 1979 e a Car-ta das Nações exige o fim da discriminação contra as mulheres e a proteção dos seus direitos, revisando costumes tradicionais incompatíveis com os direitos humanos. Dentre esses costumes, citamos e reprovamos a clitorectomia, infibulação ou excisão ainda largamente praticado no nordeste africano (sul do Egito e atual Quênia, dentre outros lugares). Essa prática bárbara consiste em cortar e costurar os lábios e o clitó-ris para impedir o prazer sexual e talvez garantir a fidelidade feminina. Nessa mesma cultura, estranhamente, a poligamia é acolhida até como obra assistencialista, como diz abaixo o já citado Stearns (2007, p. 158, grifo nosso),

...Assim, a poligamia foi apoiada como expressão da cultura tradicional afri-cana e proteção para as mulheres em situações em que não houvesse homens suficientes por ali. O grande líder nacionalista africano (‘pasmem’) omo Kenyatta, também defendia a circuncisão feminina (‘uma simples mutilação corporal’), não porque restringisse a sexualidade feminina, mas porque era parte integrante da solidariedade familiar e tribal essencial para as institui-ções com ‘enormes implicainstitui-ções educacionais, sociais, morais e religiosas. O alongado da citação acima justifica-se pelo que de espantoso e chocante con-tém. Um homem tido como nacionalista, defensor das minorias, herói do povo opri-mido estende sua tarefa redentora à barbárie dos costumes e, cego, primitivo e incivil

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aconselha a manutenção de atrocidades praticadas contra a mulher. Se argumentar-mos aqui que seu pensamento é masculino e as práticas não se aplicam ao gênero a que pertence, incorreremos em grande injustiça porque há imensos registros de mães que voltaram para sua tribo de origem a fim de que suas filhas virgens fossem submetidas às circuncisões que o mundo reprova.

Os protestos mundiais contra essa prática ainda não foram suficientes para bani--la das sociedades africanas que, com mais crueldade, é praticada no Quênia, na Somá-lia e na Etiópia, como afirmamos acima. Ali, a virgindade é muito valorizada tornan-do-se a circuncisão obrigação moral e social, considerantornan-do-se a sua recusa motivo de marginalização para as famílias e a pecha de “impuras” para as moças.

Esta valorização às avessas da sexualidade leva as personagens Serafina e Delfi-na, sua filha, ao uso do corpo como fonte de renda: não deixa de ser mutilação, o sexo profissional. São personagens que sofrem a necessidade de uma vida menos dura. Do-minada pela ânsia de garantir a sobrevivência Delfina foi, antes, vítima de sua mãe Serafina, comerciante da sua virgindade, que mercadejava os benefícios sexuais da jo-vem, recebendo em troca azeite, açúcar, bacalhau, vinho, alfaias e algumas moedas. Feita desse material, misto de necessidade, inconformismo e ganância, fermentou em Delfina o desejo por ombrear-se às brancas, humilhar os negros, seus irmãos de cor, escravizá-los literalmente e ter sempre mais. Queria posição de branca. Luxo ociden-tal, escravização do homem branco também . Mais queria: amor. Por ele submeteu-se, por algum tempo, a um só homem. Amou e destruiu José dos Montes que se tornou assimilado, sipaio, traidor do seu povo, assassino do seu benfeitor Moyo. À custa da degradação do marido, aquela negra, dona do mais belo e desejado corpo, pacifica e anula os efeitos desse mesmo amor através do casamento. Quer ser aceita na socieda-de, quer casamento de donzela, mas, deseja casar porque assim o amor acaba. Quando o amor terminar cada um seguirá a sua estrada. Citamos:

O casamento é o único recurso disponível para acabar com o tormento. O amor é um prato de sopa que se come quente. Arrefecido não presta. Por isso deve ser consumido logo, antes que arrefeça... Quando o amor é demasiado ardente é preciso casar. Destruir as lanças do Cupido. O amor é uma rosa que dura apenas um ciclo.... (CHIZIANE, 2008, p. 88).

As palavras de Delfina contrariam o conceito de casamento que é, nas palavras de Terrin (2004, p. 181),

... visto como um contrato legal que sanciona o amor entre duas pessoas. Fora de toda idealização, o matrimônio é visto antes como um fato pragmá-tico e uma aliança ritualmente sancionada entre dois grupos de linhagem, os quais procuram sobretudo manter ou incrementar interesses de ordem biológica, social e econômica.

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Esta concepção do matrimônio torna-se incompreensível para autoridades cristãs para quem o casamento é um sacramento e deste modo, indissolúvel, em princípio, e monogâmico. Ora, em algumas regiões da África se o homem não pode manter a mulher ela pode buscar outro marido que o faça. Em compensação, em ou-tras culturas, entretanto, o homem pode ter tantas mulheres quantas possa susten-tar. E mais: se um casamento não frutificar é esperado que o homem tome outra mu-lher para com ela gerar filhos. Isto remete ao episódio bíblico de Abraão que tomou Agar, escrava de sua mulher velha e estéril Sara, e com ela teve Ismael, para garantir a sua descendência. A sequência da história é por demais conhecida e não cabem mais registros neste texto. Por estas e outras singularidades o Sínodo dos bispos afri-canos realizado em 1980 concluiu pela dificuldade de “cristianizar certas facetas do casamento africano.”

Das visões africana e cristã do casamento, Delfina faz a síntese a seu favor. Para ser aceita socialmente casou com negro. Recebeu o sacramento como se donzela fosse, mesmo sendo a temida ameaça aos casamentos, principalmente dos brancos a quem destinava especialmente seus favores, já que a via conhecida para promoção econômi-ca e social era o leito do branco e a concepção de filhos mestiços.

A libidinagem atribuída às negras era temida pelas mulheres brancas e isto expli-ca a presença de empregados domésticos nas expli-casas de colonizadores. Entre o risco da sedução pelos homens e a perda de filhos e marido nos braços das negras, as brancas escolhiam os primeiros, respeitosos e tímidos na maioria das vezes.

Sentido o desgaste do casamento com um indígena sem meios para suprir as ne-cessidades da família, Delfina lança-se à reconquista do branco Soares, antigo amante que disputou a sua posse na luta com o rival, então pretendente. Revoltada, a mulher acusa o marido de falhar no seu papel de provedor. A narrativa é crua:

O casamento dá os primeiros sinais de uso. Em cada manhã que nasce a do-çura se apaga. Por causa do dinheiro que falta. Do açúcar que não basta. Do conforto que não há. A Madalena não se conforma com o cinto de castidade, reage. Ameaça rompê-lo para regressar à liberdade do cais. A paixão de on-tem começa a transformar-se em saudade. A voz de Delfina começa a expres-sar saudades do tempo antigo quando José apresenta, no final de cada mês, cinco quilos de farinha azeda, dez cocos e uma moeda de dez escudos, seu salário de contratado (CHIZIANE, 2008, p. 112).

A linguagem usada diz bem das reais necessidades da mulher e da família, viven-do carências de ordem material, incompatíveis com os gostos cultivaviven-dos na frequen-tação da cama do homem branco. A calejada Delfina não se iludiu, a priori, com a du-ração do casamento com um indígena. Ela intuía que aquela relação teria vida curta, pois já não podia dispensar o conforto e as facilidades que a viciosa prática de vender o corpo lhe proporcionava.

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Perdiz alegre, mas perdida e infeliz, Delfina sufocava em leitos vários o desgosto que lhe causava a condição de indígena, a pele negra, sensual, desejável, desfrutável. Corpo que lhe permitia alimentar-se a si e aos seus. Iguarias materiais que lhe confor-tavam o estômago e a vaidade, mas não calavam o desconforto de ser ameaça para os lares, fonte de luxúria, do prazer efêmero que ensandecia momentaneamente, invisi-bilizando sua consciência de mulher negra e pulverizando sua identidade. Ela repre-sentava um sexo em disponibilidade: para quem pagasse, para quem lhe desse vida melhor. A dureza das palavras da personagem sintetiza uma vida de negação e mácula:

Por culpa de minha mãe que me fez preta e me educou a aceitar a tirania como destino de pobres e a olhar com desprezo a minha própria raça. Por culpa do Simba, meu amante e teu marido, que me alimentou de feitiços e fantasias destrutivas. Por culpa da natureza que me deu beleza sobre todas as mulheres. Por culpa do José, pobre e preto, que me alimentava de farinha e peixe seco, enquanto eu, Delfina, queria bacalhau e azeitonas. A culpa é do Soares que me elevou aos céus e me largou no ar. A culpa foi minha. Por ter desejado ser o que jamais poderei ser. A culpa é do mundo que me ensinou a odiar (CHIZIANE, 2008, p. 44).

O retorno do português Soares ao leito de Delfina foi realizado à custa da feiti-çaria comandada por Simba, um de seus amantes. O escândalo com o nascimento da mulata Jacinta abre os olhos do marido de Delfina que, vaidosa pelo acesso ao mundo branqueado aberto por Justina, passa a discriminar os outros filhos, negros, de pai “inferior”. A filha mestiça é toda cuidados e privilégios. A negação da identidade por Delfina leva Soares a concluir que ela não o amava enquanto pessoa, mas por tudo o que representava, como vemos no diálogo abaixo:

- Delfina, meu anjo, o que te leva a recusar a tua própria existência? Amei-te por seres negra e não por seres a imitação de uma branca. Esposa branca tive eu. [...] Amo em ti a cor da terra, a cor da fertilidade.

- Deixa-me usar as minhas armaduras, meu amor. Não me perturbes. Pre-ciso de atrair todos os brilhos do firmamento sobre o meu corpo. Das raças desenharam-se já os caminhos do futuro. Os que vestem a cor da lua suplan-tam à nascença os espinhos da vida (CHIZIANE, 2008, p. 229).

Enredado nos encantos de Delfina, o português deixou partir a esposa bran-ca, passiva e apática face às investidas da amante negra. Essas imagens levam-no a enxergar a inutilidade e o vazio do seu papel na vida daquela mulher ambiciosa, que desprezava seus iguais e via nele, branco, uma pos-sibilidade de ascensão social. Os grandes debates entre eles, à mesa das re-feições, despertaram em Soares o sentimento de incompetência para gerir

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aquela mulher que para ele representava a Zambézia inteira (CHIZIANE, 2008, p.234).

Maria das Dores é o objeto hipotecado por Delfina no macabro contrato que fez com Simba. Pela virgindade da criança o feiticeiro se dispôs, uma vez mais, a ajudar Delfina. A imolação da filha é descrita com uma crueza de arrepiar:

Morre tudo naquele instante. A infância. A inocência. Apagam-se todas as estrelas em sinal de luto. O acto é violento, frio, com todos os requintes de um martírio. Maria das Dores estava a ser violada. Extraviada. Roubada. Uma menina submetida à sádica obsessão daqueles que a deviam amar. (CHIZIANE, 2008, p. 256).

É assim que, arrancada ao carinho da irmã Jacinta, flor branqueada que nunca a renegou, Maria das Dores passou a viver um regime de escravatura com as outras mulheres de Simba, que a hostilizavam, pois percebiam naquela menina a celebração do amor grotesco e incondicional do devorador e brutal feiticeiro. Desonrada, presa, infeliz, cheia de dores, Maria aportou desnudada às margens do Licungo, deflagran-do a narrativa de mais deflagran-dores que amores, onde mães e filhos se amam e se odeiam em simultâneo, pelo arbítrio que a necessidade provoca, de dispor dos corpos como pro-priedades privadas.

De surpresa em surpresa, os acontecimentos se precipitam para um final har-monioso e inesperado onde, num autêntico deus-x-machina, os personagens se re-encontram e realizam uma catarse coletiva. Delfina resgata, enfim, a perdida Maria das Dores; José dos Montes, seu único amor, Delfina. Entre os que amou e magoou, a mulher se redime, assumindo definitivamente o papel de mãe que embala sonhos e esperanças:

... Um dia virá em que o mundo inteiro se prostrará para pedir perdão aos negros pela escravatura. Nem imagina ainda o dia em que os homens do mundo inteiro se ajoelharão pedindo perdão a todas as mulheres pela opres-são, pela exclusão e pela violência que sobre elas exercem desde o princípio do mundo (CHIZIANE, 2008, p. 265).

No texto literário, a redenção da pecadora, encontro e resgate de afetos perdidos. O canto, encanto da perdida ave, de volta ao ninho, alerta para a situação de mulheres livres do colonizador, submissas ainda pela pobreza, pela desigualdade, pela coloniza-ção da mente, pela fome que desafina a voz.

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FROM ITS ABSENCE AND MACULES

Abstract: in this work we discuss the way the subject of the woman and her process of integration in the African culture happens fictionally. Her yoke imposed by the Euro-peans, especially the Portuguese men, followed by the damages caused to her such as social oppression, frustrations in the emotional relationships, considering that those women almost always became prostitutes, and also the dramatic circumstances faced by their children “mulatos” (who were not either black or white). In addition to all this there is the fragmentation of their ethnic and familiar bonds and also of their mythical traditions caused by the white men.

Keywords: Literature. African culture. Identity. Nota

1 Leão, em swahili. Referências

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Caminho, 2008.

STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. Tradução de Mirna Pinsky. São Paulo: Contexto, 2007.

TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. Tradução de Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2004.

Referências

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