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Maíra sob a perspectiva estatal: a visão institucional e o tratamento legal dos índios

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Academic year: 2021

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Paulo Mendes de Carvalho Guedes

Marcos Veríssimo de Souza Junior

Maíra sob a perspectiva estatal:

a visão institucional e o tratamento

legal dos índios

Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Introdução

Isaias: “Este é o único mandado de Deus que me comove todo: o de que cada povo permaneça ele mesmo, com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso dever, nossa sina, não sei, é resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais. Todos inviáveis, mas presentes. Cada um de nós, povos inviáveis, é uma face de Deus. Com sua língua própria que muda no tempo, mas que só muda dentro de uma pauta. Com seus costumes e modos peculiares, que também mudam, mas mudam por igual, dentro do seu próprio espírito”. (RIBEIRO, 2007, p. 44).

O livro Maíra de Darcy Ribeiro escrito

em 1977 trata da questão indígena e da complexa relação com o dito homem branco ou do povo

brasileiro. Maíra termina a sua história sem uma

resposta contundente sobre a morte de uma de suas personagens principais, Alma, que, segundo o livro, foi encontrada morta na praia com dois fetos sobre o corpo. O livro de Darcy Ribeiro não trata profundamente de como o estado lida com estas questões jurídicas e institucionais do índio, mas nos dias de hoje a questão é latente e da mesma forma do livro um pouco longe de estar completamente fechada.

Durante a narrativa da história o texto levanta diversas questões que não são respondidas. Boa parte delas é direcionada a relação entre o Estado brasileiro e o povo indígena. Dentro destes questionamentos três tópicos reais se destacam ao decorrer do romance. Seriam eles: a instituição FUNAI, o órgão Ministério Público e o ordenamento jurídico brasileiro. Podemos extrair nos diálogos entre os personagens perguntas acerca da morte da personagem Alma e de como eles deveriam agir ou como o estado iria agir nesta situação, principalmente se o culpado fosse um índio, estes diálogos passam por comentários sobre estes três tópicos, que não são claros no texto ou que, devido às atualizações legislativas, mudaram no contexto atual. Considerando estas lacunas faz-se necessária uma investigação mais aprofundada do tema proposto neste trabalho.

Esta investigação procura, nos tópicos a seguir, conceituar a atuação da instituição federal Funai (Fundação Nacional do Índio), do órgão Ministério Público, que é o responsável por tratar das questões indígenas no âmbito jurídico, e pelo o ordenamento jurídico brasileiro relacionado ao índio e a sua atuação na sociedade, exemplificados na atuação das leis como Estatuto do Índio (lei federal nº 6001/1973), Constituição Federal de

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1988, Código Civil atual (2002) e antigo código civil (1916), código penal e as normas da OIT (organização internacional do trabalho) da qual o estado brasileiro é signatário, que versam sobre povos e tribos indígenas. Considerando também, o projeto de lei que versa sobre o novo estatuto do índio, que ainda não está em vigor, tramitando nas casas legislativas do congresso nacional desde 1991. A atuação do estado através destas três esferas é motivo de dúvidas, críticas e elogios no contexto social, politico, antropológico e jurídico, que em situações dos dias atuais tem se resumido em noticias breves e superficiais, principalmente no meio midiático. Este trabalho propõe, enfim, colaborar para o debate utilizando o controverso romance de Darcy Ribeiro, Maíra, e as suas interrogações.

O Ministério Público e os índios

No futuro, depois de demarcas e registradas as glebas da faixa do Iparanã, a partir do limite seco delas, o senador requererá outra faixa no interior e continuará assim, mata adentro, colonizando a mataria, até o fundo do Brasil. (RIBEIRO, 2007, p. 282)

É verdade que há poucos índios, mas que diferença! Estes marcham para a civilização, sem romantismos rondonianos: vestidos, calçados, limpos. As meninas têm até certa graça, apesar das carinhas obtusas, silvestres. E se são poucos aqui, ainda menos são no Posto. Numerosos eles só são mesmo na aldeia, que se mantém tão-só pela obstinação da Funai e pelo jogo de interesses recíprocos quem sabe inconscientes, entre protegidos e protetores. Jogo no qual estes últimos são os verdadeiros beneficiários. (RIBEIRO, 2007, p. 307)

O Ministério Público, diferentemente do que muitos têm por certo, não é um órgão do Poder Judiciário. Muito embora funcione junto a este, prestando-lhe colaborações, atuando

como representante da lei e dos interesses coletivos e difusos (de terceira geração), não está subordinado a nenhum dos órgãos desse Poder, nem do Legislativo ou Executivo. Além de órgão de defesa da sociedade, atua também na defesa de interesses estatais. É o legítimo órgão promotor da justiça e da defesa social, cuja função precípua é tornar efetivo o direito de punir os infratores da lei penal, apesar de subsidiariamente atuar em outras searas das mais diversas maneiras. Tais funções estão previstas nos artigos 127 e 130 da Constituição Federal de forma genérica, o legislador optou por versar mais detidamente em outros textos legislativos as especificidades dessas funções, textos aos quais faremos referência neste trabalho.

Dos inúmeros excertos extraídos do livro Maíra que abordam a questão da proteção dos povos indígenas, dos quais transcrevemos apenas alguns, podemos observar que a proteção dos índios não se trata de um problema de fácil solução. Tal afirmação é corroborada pelas recorrentes reportagens veiculadas pelas mídias que envolvem as questões indígenas, a exemplo do afamado caso da Reserva Raposa Serra do Sol, julgado pelo STF. É importante ressaltar que o Ministério Público não atua exclusivamente na proteção dos povos indígenas, tutela também interesses de outras populações consideradas hipossuficientes, tais como as comunidades extrativistas, ribeirinhas, ciganas e quilombolas.

No caso emblemático da Reserva Raposa Serra do Sol, podemos observar a atuação de diversos órgãos e entidades do governo. Primeiro, a reserva foi demarcada pelo Ministério da Justiça por meio da Portaria nº 820/98 (reformada pela Portaria 543/2005), homologada pela Presidência da República. Muito se discute, em Maíra, sobre o papel do Ministro da Justiça, ao qual o investigador desejava enviar o caso, a fim de

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livrar-se da intrincada e trabalhosa apuração dos fatos. As terras da reserva são ocupadas pelos índios Pemons e Capons, de origem brasileira, guianesa e venezuelana, e estende-se aos territórios dos três países, o que torna a celeuma concernente à demarcação extremamente dificultosa. Ainda, produtores de arroz da região disputam as terras com os índios e invasores de propriedade. A desocupação da reserva, que tem base legal no Decreto nº 1.775/96, foi determinada em 2007 pelo Supremo Tribunal Federal e, em 2008, a Polícia Federal perpetrou a Operação Upatakon II, efetiva retirada dos não indígenas da região, à qual se seguiram enfrentamentos que até hoje se estendem, sendo considerada a região ainda instável.

O papel do Ministério Público se destaca em casos como esses, já que o escopo do órgão é assegurar aos referidos povos demarcação, titulação das terras, bem como saúde e educação, registro civil, autossustentação, preservação cultural e a tão cara autodeterminação, positivada no artigo 4º, inciso III, da CF, cuja tutela é feita com observância das características antropológicas e consuetudinárias dos povos. Ademais, atua o MP na promoção do desenvolvimento sustentável. A atuação se dá primordialmente por meio de ações civis públicas, termos de ajustamento de conduta e recomendações a órgãos governamentais (FUNAI, FUNASA, INCRA).

No âmbito das políticas públicas, o MP tem também autuação bastante intensa. É o responsável pela proposição de políticas de educação e saúde (garantia do atendimento pelo SUS) para as comunidades, pela mediação de conflitos de posse de terras etc.

Reveladas as características, áreas e meios de atuação do MP, depreendemos uma visão ampla, porém acrítica e descontextualizada desse

órgão. Com efeito, o discurso oficial superestima a qualidade de sua atuação, o modo como vem exercendo suas atribuições, afinal, a despeito de não ser órgão vinculado a um dos três poderes, é componente do quadro oficial do Estado brasileiro. É de grande interesse exibir sua atuação de forma romanceada, sob um prisma político e propagandístico. É também conveniente aos partidos políticos governistas omitir seus gargalos, as falhas na atuação, o que prejudica grandemente o desenvolvimento desse órgão. A propósito, medidas atentatórias aos seus poderes vêm sendo editadas, como observamos pela PEC 37, recém-vetada, que visava a desautorizar o órgão a investigar na condição de polícia judiciária, tolhendo suas atribuições.

Como enunciado pelo sociólogo Peter Berger, a visão estatal da realidade (oficial) é apenas uma dentre as inúmeras oriundas de diversos segmentos da sociedade, cada qual dotado de um sistema interpretativo próprio. Sendo assim, não é sensato restringirmo-nos à visão oficial, devemos buscar em outros segmentos sociais, mesmo nos “submundos”, como preconizavam os sociólogos da Escola de Chicago, as muitas leituras sociais para desenvolver uma noção mais próxima da realidade. Esse processo de aquisição de consciência sociológica deve então passar pelo crivo de três dimensões: a desmitificação, a não-respeitabilidade e a relativização de valores. Com efeito, é isso que devemos fazer apontar que a relação entre índios e MP nunca foi pacífica. A morosidade dos órgãos públicos, problema inerente aos serviços públicos brasileiros, agrava conflitos entre índios, posseiros e empreiteiras, por exemplo. Apenas quando se torna assunto de interesse eleitoreiro, ou seja, quando noticiadas pela grande mídia, são prestadas assistências antropológica, militar, judicial, social e sanitária aos povos em conflito, fato ilustrado pela questão

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da construção da Usina Belo Monte. Acresça-se a isso o meandroso jogo político brasileiro, assolado pela interferência de interesses privados emanados de toda sorte de políticos e agentes investidos em cargos públicos, os quais atentam contra a celeridade e a idoneidade das decisões estatais, como observamos no trecho referente aos interesses de um senador na demarcação de terras indígenas.

Enfim, feitas as devidas considerações quanto às condições de atuação do MP, bem como a oposição à limitação ao discurso oficial, revelemos a mais importante concernente ao livro Maíra; trata-se da função de tornar efetivo o direito de punir do Estado, porquanto o MP é órgão de acusação dos violadores da lei penal. De acordo com os artigos 56 e 57 da Lei nº 6.001, de 1973, que regula as normas penais atinentes aos povos indígenas, na hipótese de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e o Juiz aferirá o grau de integração do silvícola antes de cominá-la, assunto que será aprofundado em outro tópico deste trabalho.

A atuação da Funai

Pelo que vejo a coisa está muito bem urdida e justificada para que os índios fiquem na aldeia como índios e os agentes nos Postos como seus remotos tutores. O resultado é que eles jamais se integrarão nos usos e costumes da civilização. Mas é também que os funcionários da Funai não perderão seus empregos de burocratas-afazendados à custa da Fazenda nacional. (RIBEIRO, 2007, p. 27)

Agora as únicas presenças civilizadoras em toda esta imensa zona são, em primeiríssimo lugar, o senhor Oliveira e os trabalhadores por ele contratados que tiram daqui anualmente e exportam uma produção avaliada em vários milhões. Num segundo lugar muito medíocre,

seu Elias, que aqui representa o governo federal através da Funai e cuja ação já apreciamos no seu justo valor. Em terceiro lugar, mas numa posição de honra, vem a missão Católica de Nossa Senhora do Ó, que labuta há quarenta anos para catequisar os mairuns e outros selvagens, e tem colhido bons frutos. (RIBEIRO, 2007, p. 176)

Outra entidade de proeminente vulto na intermediação entre sociedades civil e indígenas é a Fundação Nacional do índio (Funai), constituída pela Lei nº 5.371, de 1967. A Funai é um ente da administração indireta, uma fundação, cujo regime jurídico é feito pelo Decreto-lei 200/67. Neste texto legislativo, em seu art. 5º, IV, encontramos a qualificação da FUNAI: trata-se de uma fundação pública dotada de personalidade jurídica de direito privado, por meio de uma autorização legislativa (Lei nº 5.371), com o escopo de desenvolver atividades que não exijam execução por órgãos de direito público. Goza de autonomia administrativa e patrimonial, tem seu funcionamento custeado por recursos da União – porquanto é entidade vinculada à tutela administrativa do poder federal – e é hierarquicamente organizada, contando com um quadro pessoal próprio.

Essa entidade tem competência para promover a educação básica dos índios, demarcar, assegurar e proteger suas terras, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamentos dos povos. Além disso, é responsável por defender as comunidades indígenas, como observamos no recente episódio da retirada dos índios que ocuparam fazendas em Sidrolândia, a 70 km de Campo Grande; a Justiça anulou a liminar que determinou a retirada da comunidade porque nem o Ministério Público nem a Funai foram consultados.

Apesar do nobre propósito a que se destina, qual seja, a proteção das terras, da

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população e da cultura indígena, a Funai, bem como o MP, não está isenta de críticas. O

comentário da página 27 do livro (“Mas é também

que os funcionários da Funai não perderão seus empregos de burocratas-afazendados à custa da Fazenda nacional”)

é endossado por recorrentes e inúmeros ataques à instituição. Os mais pertinentes são os que versam sobre a falta de credibilidade da entidade e de seus funcionários, tidos muitas vezes como parasitas do Estado brasileiro. Há diversas denúncias atinentes a improbidade administrativa, desvio de recursos e cooptação de lideranças indígenas, o que vem degradando paulatinamente a imagem dessa instituição.

Sem embargo, a Funai é ainda fundamental para a proteção das comunidades indígenas, seja atuando ao lado do MP no resguardo dos interesses dos índios, seja participando dos

julgamentos das cortes na qualidade de amicus

curiae. Darcy Ribeiro aponta para a sobressalente

importância do papel da Funai em diversos momentos de Maíra, como no excerto transcrito, do qual inferimos ser tal entidade muitas vezes a única representação do governo brasileiro no

território dos índios, “Num segundo lugar muito

medíocre, seu Elias, que aqui representa o governo federal através da Funai e cuja ação já apreciamos no seu justo valor.”

Ordenamento jurídico brasileiro e a questão indígena

Se alguém matou essa mulher – e se não foi o tal Isaías –, seria um deles. E se for um deles, é como se ela não tivesse morrido, porque, conforme fui advertido, os selvagens são irresponsáveis perante a lei civil. Mas estará na mesma condição o tal Isaías, que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? O senhor Elias acha que a incapacidade jurídica dos índios não é total, mas relativa. Tanto que

podem ser julgados e castigados por seus crimes. Mas adverte que os juízes são sempre inspetores da Funai e que a punição se cumpre obrigatoriamente num Posto Indígena, mantido para isso. Será verdade? Não me parece razoável, nem crível. Sobretudo aplicado esse código esdrúxulo ao tal Isaías. Ele se converteria, nesse caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o braço e o rigor da lei se lhe aplicassem como é devido. (RIBEIRO, 2007, p. 98)

O tratamento legal dado às comunidades indígenas no Brasil é algo nebuloso e bastante segmentado. O romance, Maíra, relata esta falta de clareza em diversos trechos. Um deles, reproduzido acima, traz consigo algumas dúvidas sobre o aspecto legal do indígena, e suscita outras questões, além das escritas, sobre o tema. A primeira questão a ser respondida é sobre a capacidade civil do indígena. Será realmente que os índios são irresponsáveis perante o código civil brasileiro?

Para responder esta questão, vale salientar que a época em que a obra foi escrita o código civil vigente era de 1916, que sofreu alterações e atualizações em 2002 (atual em vigência no país). A diferença é que a redação do código civil de 1916 tratava o chamado “silvícola” (povo que vive na floresta, selvagem ou índio) como relativamente incapaz, ou seja, para determinados atos o índio precisaria ser tutelado, esta tutela seria especificada em outras leis assim como os atos a serem tutelados. O atual código não avançou muito sobre o assunto, porém retirou esta parte, da incapacidade do índio, e acrescentou que uma lei específica tratará sobre o assunto (Parágrafo único do artigo 4ª do código civil atual). A resposta à questão trazida pelo texto, sobre a responsabilidade civil do indígena, é: depende. Depende de outras leis especificas, como estatuto

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do índio, por exemplo.

O estatuto do índio é uma lei federal, com 68 artigos, de 1973, que funciona para tratar das mais diversas questões correlacionadas com o povo indígena. Esta lei especifica, traz conceitos como as definições de índio para o estado brasileiro, questão territorial, trabalhista, penal e outras conexas a esta realidade. É importante salientar que para o legislador do estatuto, o índio era uma espécie de homem em evolução ou em progressão que precisava ser integrado a civilização, como mostra o artigo primeiro do estatuto: “Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.

Partindo deste pressuposto fica mais fácil entender as demais questões do estatuto, como a divisão em fases da integração do índio. No estatuto o índio é dividido em três momentos de integração, o primeiro é o isolado, ou seja, aquele que não tem nenhum ou apenas pouco contato com a dita “comunhão nacional”, o segundo é o chamado “em vias de integração”, que, como o nome já diz, estão se integrando a cultura da civilização e dependendo dela aos poucos e o terceiro é o integrado, que, ainda conservando parte da cultura indígena, está totalmente integrado a cultura do país podendo reconhecer todos os atos da vida civil.

Considerando estas informações, conseguimos responder com maior tranquilidade a duas questões trazidas no trecho, transcrito acima, do livro Maíra. Podemos responder que o índio não é irresponsável perante a lei civil, porém esta responsabilidade será medida levando em consideração a fase de integração em que o índio se encontra, adaptando ou excluindo

uma possível consequência legal de um ato civil relacionado com indígenas. Conseguimos dar uma resposta à indagação do major Nonato no

trecho: - Mas estará na mesma condição o tal Isaías,

que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? Segundo o entendimento

do estatuto, a resposta é não, pois Isaias, como mostra o enredo, está totalmente integrado à civilização, portanto capaz de exercitar e entender todos os atos da vida civil. Logicamente, esta questão na realidade deverá ser avaliada por um Juiz competente caso a caso.

Outro ponto importante é com relação à questão penal do índio, ou seja, como ele será tratado caso cometa algum ato que seja considerado ilícito. Em outra passagem do livro vemos um questionamento sobre isto:

Ramiro: Era só o que faltava... Que é que eles têm a ver com isto? Ou você pensa que os índios mataram a gringa e depois caíram naquele berreiro pagão só para impressionar o suíço? Nada disso! Vou mandar é pro ministro da Justiça, general Cipriano Catapreta. Faço um serviço limpo e ponho a morta na mão de quem é competente para apurar. Apurar, inclusive, se os índios foram os culpados. Só o general-ministro pode sair desta. O Código Civil declara que os índios são pródigos – como os menores, os alienados e as mulheres casadas –, quer dizer, irresponsáveis perante a lei; quer dizer: inocentes. (RIBEIRO, 2007, p. 36)

Como dito anteriormente, este texto tem que ser analisado com base na mudança do código civil, porém, como o assunto do trecho diz respeito a um crime, a aplicação ideal está disposta no código penal brasileiro. Pelo menos deveria, pois o código penal não trata da questão indígena especificamente. Uma passagem importante da lei penal esta no artigo 26 que diz que: caso o autor da ação seja “inteiramente incapaz de entender o

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caráter ilícito do fato” ele será isento de punição, esta

passagem do código penal, por vezes, é utilizada para tratar da questão do índio, mas não encerra o problema, fazendo com que a leitura de outras leis seja necessária, como, novamente, o estatuto do índio e outras normas.

Os artigos 56 e 57 do estatuto do índio tratam da questão criminal do indígena. O texto da lei mostra que, caso se comprove que um indígena foi o autor de um ato ilegal (que tenha consequências penais), um Juiz competente irá decidir a aplicação da punição, levando em consideração o grau de integração (isolado, em vias de integração ou integrado) do indígena. Portanto, voltando ao texto de Maíra descrito acima, os índios não são inocentes perante a lei, porém o Juiz, competente, é quem vai determinar a capacidade de entendimento do caráter ilegal do ato que um índio, possivelmente, possa cometer, assim determinando a punição ou o isentando dela.

Caso o indígena seja condenado o estatuto também prevê que, na medida da possibilidade, a pena será cumprida em regime de semiliberdade em local de funcionamento de um órgão federal de auxílio ao índio, ou seja, a FUNAI (já conceituada em tópicos anteriores). O que responde a indagação do trecho trazido no

inicio deste tópico: “Mas adverte que os juízes são

sempre inspetores da Funai e que a punição se cumpre obrigatoriamente num Posto Indígena, mantido para isso. Será verdade?”. Sim é verdade, esclarecendo

somente que o termo usado na lei não é “obrigatoriamente” e sim “se possível” e que o Juiz não será um inspetor da FUNAI, como diz o trecho, e sim membro do poder judiciário constituído e competente na ação. No artigo 57, porém, o legislador traz a possibilidade do Juiz considerar a punição dada pela tribo, ao ato ilícito, como suficiente, proibindo nestes casos penas

cruéis ou de morte.

Com relação ao aspecto criminal outras polêmicas surgem, como a noticia que em algumas tribos do Brasil existe ainda a cultura de matar ou negar cuidados a crianças gêmeas ou com alguma espécie de deficiência, chegando até a enterrar recém-nascidos vivos devido à crença, destas tribos, que acreditam ser vitimas de maldição, portanto não devem conviver com a comunidade da tribo. A polêmica se dá justamente pelas questões acima apresentadas, ou seja, até que ponto um índio ou uma tribo pode agir conforme o seu entendimento de ilicitude baseado em sua cultura local ou, ainda, temos direito de intervir em outra cultura e impor nossas leis? Na última parte do trecho transcrito, no inicio deste tópico,

uma questão fica aberta: Ele se converteria, nesse

caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o braço e o rigor da lei se lhe aplicassem como é devido?

Para dar uma resposta, precisamos recorrer às normas da OIT (organização internacional do trabalho), que é uma convenção internacional que versa sobre direitos humanos cujo Brasil é signatário. A convenção da OIT de numero 169 trata sobre povos indígenas e foi aprovada no ordenamento jurídico brasileiro após um decreto lei de 2004. Esta convenção traz no seu artigo oitavo que os povos indígenas terão direito de exercer a sua cultura, costumes e instituições próprias desde que nenhum destes atos afete os direitos fundamentais do país ou os direitos humanos internacionais. Com esta redação respondemos o embate, juridicamente, esclarecendo que não há um privilégio com relação à cultura indígena, existe uma limitação imposta pelos direitos fundamentais do país e dos direitos humanos internacionais que precisam ser respeitados, pois são considerados maiores do que qualquer manifestação cultural de determinado

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povo. Assim, dando o direito ao estado de intervir caso abusos contra estes princípios forem cometidos, logicamente, levando em consideração todos os demais direitos dos indígenas e a busca da solução legal da situação apurada.

Com a intenção de atualizar o estatuto do índio escrito em 1973 e dar conta destas questões apresentadas, vários outros projetos de lei para o novo estatuto foram apresentados, principalmente após a promulgação da constituição federal de 1988. Em 1991 o então deputado Aloizio Mercadante, junto com outros dois parlamentares, entregou o projeto do novo estatuto do índio, este projeto foi compilado em 1994 juntando outras propostas do novo estatuto, porém desde então o congresso não discutiu mais sobre o assunto. No decorrer destes 22 anos apenas algumas emendas ao projeto e ao estatuto foram apresentadas, mas nada de caráter definitivo.

Dentro destas novas propostas temos sugestões que podem melhorar a situação jurídica do índio. Como, por exemplo, a obrigação de relatório antropológico em processos que envolvam índios, tanto no âmbito civil quanto penal e outras relacionados com povos indígenas. E situações controversas como a sugestão de impedimento de atuação do estado em tribos totalmente isoladas ou que não tiveram contato com a sociedade civilizada. Todas estas questões ainda estão em debate, portanto não servem de base para uma possível atuação na realidade, mas que desde já interessa para um olhar mais aprofundado na questão e das suas melhorias. Esperamos, apenas, que estas melhorias e questões não levem mais 22 anos para serem discutidas por nossos parlamentares e nem pela sociedade de modo geral.

Conclusão

Concluímos que a atuação do estado perante o índio tem sido até aqui uma relação distante e superficial. Não existe por parte do governo um projeto contundente e determinado com relação aos povos indígenas, existe apenas o relacionamento através de braços dispersos. É necessária uma organização mais estruturada e competente para tratar do assunto indígena mais de perto. Esta organização precisa conter leis ou lei especifica conclusiva, condições e autonomia para agir em conflitos e situações cotidianas nas tribos e apoio governamental para funcionar. Assim, como abertura e transparência nas ações realizadas.

É nesse contexto que urge a tomada de medidas políticas que criem novas entidades para intermediar as relações entre Estado e índio, ou que fortaleçam os órgãos já instituídos para tal finalidade. De fato, é imperioso o incentivo legal ao Ministério Público, legítimo órgão promotor da justiça e da defesa social, a fim de implementar com maior eficiência a demarcação e titulação das terras indígenas e a defesa desse segmento social em todos os âmbitos, por meio, por exemplo, de políticas públicas de saúde, educação e preservação cultural.

Da mesma forma, há de ser valorizada a atuação da Funai, entidade que, como já mencionado, atua nos mesmos segmentos do Ministério Público, mas de forma mais próxima às comunidades indígenas, possibilitando um conhecimento de causa muito mais complexo. Contudo, antes da ampliação do papel dessa entidade, é necessária sua reformulação, porquanto estão patentes a ineficiência e as brechas a corrupções internas nos moldes como desenvolve suas funções hodiernamente. Assim, a falta de credibilidade e de confiança da sociedade

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civil em relação a essa entidade tem de ser extirpadas a fim de que o Estado brasileiro tenha respaldo social para destinar-lhe maiores recursos.

Vimos no livro de Darcy Ribeiro uma forma romanceada de suscitar debates com relação aos povos indígenas e o seu espaço na sociedade. Personagens com problemas reais, diferentes dos criados por outros autores indianistas e situações que versam com a temática do dia a dia nas comunidades indígenas. Desta forma, este livro mostra, mesmo que de forma romanceada e, por vezes, idealizada com relação à pureza dos atos culturais, que a sociedade precisa conhecer e respeitar os povos que aqui já existiam antes da colonização, entender as suas peculiaridades sem um olhar de superioridade e por fim contribuir para uma relação harmônica e colaborativa com as populações da floresta.

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Referências

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