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Das invasões francesas às lutas liberais: vitórias políticas e feitos patrióticos celebrados em palco

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Dans la même collection

Sous la direction d’Ana Clara Santos, Palco da ilusão. Ilusão teatral no teatro europeu, 2013.

Sous la direction d’Ana Clara Santos et Maria Luísa Malato, Diderot. Paradoxes sur le comédien, 2015.

© photo de Bruno Henriques, Parc archéologique à Pompéi, août 2016.

EAN 9782304046229 © novembre 2016 Éditions Le Manucrit

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Sous

la direction de

Jacopo Masi, José Pedro Serra

et Sofia Frade

Théâtre :

esthétique et pouvoir

D

e l’antiquité classique au

XIX

e

siècle

Tome I

Collection « Entr’acte »

Éditions Le Manuscrit

Paris

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vitórias políticas e feitos patrióticos

celebrados em palco

Licínia Rodrigues FERREIRA

Centro de Estudos de Teatro Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Introdução

Em nenhuma outra época foi o teatro português tão declaradamente político como nas primeiras décadas do século XIX. O fervilhar dos acontecimentos destes anos favoreceu uma forte ligação entre o teatro e o poder. Desde as invasões francesas de 1807-1811 até às lutas liberais de 1820-1834, o teatro quase não tem tempo de se preocupar com questões estéticas, mas apenas de servir o poder, seja ele o de um monarca, de um imperador ou de um povo.

A politização do teatro era, pois, consequência de uma continuada agitação das instâncias governativas. Tal como escreveu Maria Alexandre Lousada,

Nas épocas de mudança política, geralmente acompanhadas de politização intensa, [...] o poder está em jogo em todo o lado, os diversos espaços da vida social politizam-se; um baile da

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Assembleia, ou um espetáculo teatral, podem adquirir assim a dimensão de atos políticos. (1998: 149)

Antecedentes

Os festejos no teatro não podem ser dissociados de outros meios que, tradicionalmente, serviam para celebrar em público acontecimentos nacionais. Derivam de uma estrutura oficial que, durante séculos, se apropriou da festa como forma de mobilizar o povo. Em muitos casos, era o Senado da Câmara que decretava os festejos. Veremos alguns exemplos onde o teatro não é mencionado, mas cabe, em boa verdade, na expressão «todos os festejos costumados». Em outros casos, como os festejos organizados pelo Senado da Câmara do Porto pelo nascimento da Infanta D. Maria Teresa, as representações teatrais eram expressamente ordenadas (Alves, 1998: 23).

A utilização do teatro como um dos meios de comemorar datas relevantes da monarquia, com espetáculos postos em cena com toda a pompa e efeitos de luz, tinha-se tornado tradição. As instâncias do poder conheciam todo o potencial doutrinário da arte dramática. Por isso, o alvará da Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte, em 1771, registava inequivocamente a necessidade de controlar a atividade teatral como forma de manter a boa ordem do Estado: tornar os teatros «a escola pública onde os povos aprendem as máximas mais sãs da política, da moral, do amor da pátria, do valor, zelo e fidelidade com que devem servir aos seus soberanos».

Em tempo de paz, tais celebrações faziam-se, essencialmente, por ocasião dos aniversários e onomásticos do rei ou de membros da família real, casamentos, nascimentos, as melhoras no estado de saúde dos reis, etc. As manifestações de regozijo por tais acontecimentos revestiam variados aspetos, sendo o religioso o principal, que incluía missas, sermões, Te Deum, orações e procissões. Fora da igreja, era praticamente obrigatório, em Lisboa,

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levantar a bandeira no Castelo, de onde se ouviam salvas, que se juntavam às dos navios fundeados no Tejo e às paradas de tropa.

Observava-se, muitas vezes, a construção de arcos triunfais, expostos nas ruas, decorados com elementos alusivos ao que se pretendia evidenciar. Faziam ainda parte dos festejos o fogo de artifício, bem como as luminárias, visto que os habitantes eram convidados a iluminar as suas casas durante a noite. Danças, música e touradas eram também comuns nestas ocasiões.

Invasões francesas

Desde dezembro de 1807 até setembro de 1808, os meses em que governaram os franceses em Lisboa, o teatro não parou na capital. Em julho (1808), louvavam-se até os esforços do Teatro de S. Carlos «por merecer a alta proteção que o sustém e atrair a afluência de público», por meio de um repertório variado e de música dos melhores compositores (Gazeta de Lisboa, 27.7.1808). O Intendente Lagarde achou por bem conceder ao Teatro da Rua dos Condes o benefício de seis casas de sortes como precioso auxílio financeiro à empresa. Todavia, casos houve de atores que se recusaram a trabalhar durante o domínio francês (Josefa Teresa Soares, do Condes).

Os franceses recorreram eles próprios ao teatro para veicular valores que pretendiam impor. Um mês antes da retirada de Lisboa, em 15 de agosto, fizeram celebrar no S. Carlos a festa de S. Napoleão, com a ópera de Metastasio Il

Demofonte, música de Marcos Portugal. De todos os modos, o objetivo era cobrir de glória a figura de Napoleão (Gazeta de

Lisboa, 15.8.1808).

No Porto, na altura da Segunda Invasão, o Teatro de S. João exibia no pano de boca em letras garrafais a legenda «Viva o grande Napoleão, Imperador dos Franceses e Rei de Itália». No Diário do Porto (14.4.1809) lê-se que, nas noites de 7, 9 e 12 de abril (1809),

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toda a assembleia entoou alegres vivas ao herói do nosso século, e ao seu representante o Ex.mo Senhor Duque de Dalmácia, que na tribuna do mesmo teatro estava presente com todo o seu Estado Maior, e os demais generais nos diversos camarotes.

Mas logo a 15 de setembro de 1808 se manifestava a euforia da libertação por toda a cidade de Lisboa, descrita em vários folhetos (figura 1), exaltando quer o Príncipe Regente D. João quer os aliados britânicos e espanhóis, decisivos na vitória.

Neste caso, não restam grandes dúvidas sobre a espontaneidade das iniciativas teatrais, uma vez que a causa patriótica era comum e a retirada do invasor alegrava os corações lusos.

Os atores do Teatro da Rua dos Condes extravasaram essa alegria com uma iluminação de três noites na fachada do mesmo teatro. As luzes realçavam quadros alegóricos pintados por Cirilo Wolkmar Machado para a ocasião. Personificavam a Lusitânia, a Religião, a Justiça, vencedoras, junto da Inglaterra e da Espanha. No interior, proporcionaram espetáculo gratuito composto do elogio A Restauração de

Portugal, de Macedo, e do drama D. Afonso IV Rei de Portugal

ou A batalha do Salado. Os sonetos, recitados em palco ou de qualquer ponto do público, elogiavam a feliz atuação dos monarcas. Foram distribuídos pela plateia e «remetidos a todos os camarotes em uma salva de prata, e sobre eles um ramo composto de louro, oliveira, alecrim, perpétuas e lírios, em que vinham atadas pequenas tiras de papel com versos impressos» (Descripção, 1808: 10-12). Flores de toda a espécie emolduravam as armas portuguesas e as bandeiras inglesa e espanhola, colocadas à boca do teatro (Breve descripção, 1808). Para consolidar a vitória, os serviços do teatro mantinham-se necessários, nomeadamente na expectativa de proporcionar algum divertimento aos oficiais ingleses fixados em Lisboa, e, por outro lado, de manter viva a imagem da glória dos vencedores, através de dramas apropriados. De seu lado, as

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companhias, unidas na «defesa comum da pátria», ofereceram para a Caixa Militar os lucros de muitas récitas.

Com efeito, o génio dramático logo se manifestou em textos evocativos de episódios da guerra, ou de passados acontecimentos suscetíveis de reforçar o sentimento patriótico. O drama Palafox em Saragoça ou A batalha de 10 de

agosto de 1808 (1810), de António Xavier Ferreira de Azevedo, que se centrava, precisamente, sobre um episódio das guerras peninsulares, foi um dos de maior êxito. Miguel António de Barros, José Agostinho de Macedo, Pato Moniz, José Maria da Costa e Silva são outros nomes que figuram nas edições deste tipo de literatura.

Outro exemplo é a peça A defesa de Valencia de Espanha

contra a tirania dos franceses, representada no Teatro do Salitre em novembro de 1810, « adornada de vestuário e cenário próprio da ação, na qual se verão vários ataques de infantaria e artilharia, concluindo com uma aparatosa cena, onde aparecerá o retrato de Fernando VII, e se cantará um novo hino patriótico» (Gazeta de Lisboa, 13.11.1810). Entre os dramas alegóricos, registam-se títulos como O templo de Marte (que exalta o valor das três nações aliadas), Os heróis portugueses (que convoca figuras do passado), A glória das três nações aliadas («que finda com a aparição em efígie do grande Wellington, e o hino em seu louvor»).

Por esta época, estava já disseminada a ideia de que o teatro devia assumir a função de escola de costumes, ensinando ao povo a virtude. Escrevia o autor do drama

Restauração dos Algarves ou Os heróis de Faro e Olhão, publicado em 1809: «Sendo todos os concidadãos interessados na conservação da independência nacional, e devendo todos ser esclarecidos nos meios de contribuir para este fim, então devem também os teatros converter-se em escolas do verdadeiro patriotismo».

Sendo assim, nenhum feito histórico reclamava maior apreço do que aquele mesmo que tinham acabado de viver, o da restauração do reino de Portugal. É um contraste

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interessante com a tendência que se levantará após a pacificação de 1834, em que o drama histórico se dedica a recuperar factos antigos da nação.

As aclamações que invariavelmente integravam os festejos no teatro repetem-se dentro das peças criadas segundo aquele princípio de reproduzir o presente: vivas ao Príncipe Regente (D. João VI), à Família Real, faziam parte do discurso das personagens, e suscitavam resposta nos espectadores.

A dança acusou igualmente a influência do fervor patriótico, expresso em várias criações da época. Veja-se o caso da dança A restauração do Porto ou Um dos triunfos do herói

Wellesley, apresentada no S. Carlos em setembro de 1810, «enriquecida com grande porção de tropa inglesa» (Gazeta de

Lisboa, 5.9.1810). Ou ainda as danças intituladas A batalha do

Buçaco (Salitre, 1811), A defesa da ponte de Amarante pelo ilustre

patriota o valoroso General Silveira (S. Carlos, 1811), A proteção à

francesa ou A entrada e saída dos franceses da cidade do Porto (Salitre, 1811), A batalha do Vimeiro (Salitre, 1815).

Os teatros foram, por conseguinte, palco de consagração dos heróis da pátria, incluindo os aliados ingleses. O ascendente inglês resultante da decisiva intervenção na retirada dos franceses tornava-se bem expressivo em espetáculos dedicados a Sua Majestade Britânica, Jorge III, ou aos militares elevados a heróis (como em O génio de

Wellington ou A batalha do Buçaco, de Pato Moniz, 1810). No Teatro da Rua dos Condes, deu-se um elogio dedicado ao General Wellesley, que esteve presente e «foi recebido [...] por todo o povo com as mais vivas aclamações», assim como o Marechal Beresford (Gazeta de Lisboa, 28.4.1809). Chegou a ouvir-se o hino «God save the King» (Condes 4.6. e 25.10.1809).

Em contrapartida, começavam a manifestar-se as esperanças no regresso do Príncipe Regente a Lisboa – por exemplo, nas celebrações do aniversário de D. João VI, a 13 de maio –, regresso esse que, todavia, se faria esperar ainda

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por alguns anos. É neste contexto que a utilização do retrato de Sua Alteza Real adquire especial significado, mantendo viva a admiração pelo monarca, ao ser mostrado na parte final dos elogios ou colocado na tribuna real.

O Rio de Janeiro, onde se encontrava a corte de D. João VI, celebrou também no Real Teatro as datas festivas da realeza (é o caso de Ulisseia libertada, 24 jun. 1808, onomástico de D. João VI). De várias cidades de Portugal, chegavam relatos do regozijo público pelo fim da guerra, alguns deles mencionando, para além das costumadas manifestações (missas, bandas de música, Te Deum, jantar, brindes, vivas, iluminações…), espetáculos teatrais. Estes aconteceram, pelo menos, em Chaves, Penafiel, Lagos (onde não só se representou nas praças e ruas principais um drama alusivo à paz e outro à esperança no regresso do rei, mas também se fez construir um teatro – Gazeta de Lisboa, 15.11.1814).

A componente religiosa era a predominante nestes festejos (os franceses eram encarados como ameaça aos sentimentos cristãos do povo), de tal forma que, em alguns casos, as próprias sociedades de atores, ao programarem a festa, incluem nela a devoção católica. A Sociedade do Teatro da Rua dos Condes, em maio de 1811, encomendou uma missa pontifical e Te Deum na igreja do Sacramento, com a particularidade de entrar como orador um dos mais produtivos dramaturgos da época, o Padre José Manuel de Abreu e Lima. Também a companhia do Teatro de S. João, do Porto, em celebração da vitória sobre os franceses, mandou iluminar e enfeitar a igreja de Nossa Senhora do Terço e Caridade e nela realizar missa, Te Deum e oração.

O empenho dos diretores em fomentar o sentimento nacional não é totalmente desinteressado, visto que, em resultado, obtêm o favorecimento das autoridades, traduzido num precioso apoio financeiro. Eram, essencialmente, os Teatros de S. Carlos e da Rua dos Condes que o obtinham. Na portaria de 3 de fevereiro de 1812, que estabelece uma sociedade de atores e de acionistas sob a direção de Manuel

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Batista de Paula, reunindo ambos os teatros numa mesma empresa, auxiliada com 8 casas de sortes, a justificação da mercê é bem clara: a sociedade de Paula tinha dado provas de patriotismo, quer na «escolha de peças próprias para o promover» quer na oferta do produto das récitas do primeiro domingo de cada mês; tinha celebrado dignamente os aniversários dos soberanos, mostrando « amor, respeito e lealdade» a Sua Alteza Real e até aos nossos aliados britânicos. A referência deste regulamento continuava a ser o alvará de 17 de julho de 1771, referido atrás.

Lutas liberais

O primeiro semestre de 1820 registou as habituais festas de aniversários reais, porém, em breve se tornariam mais agitados os festejos levados aos teatros. Aos vivas a El Rei, à Casa de Bragança e à Santa Religião vieram juntar-se os vivas às Cortes Constituintes e, depois, à Constituição. Os motivos de comemoração sucediam-se agora em intervalos mais curtos. Os teatros eram cada vez mais reconhecidos como lugar de reunião social, de intervenção, enfim, lugar de poder. Os novos governantes entenderam de imediato a importância dos espaços teatrais para a sua consagração. Aquando da entrada em Lisboa dos membros do Governo Supremo do Reino, no início de outubro, ao cortejo pelas ruas seguiu-se a presença nos teatros da Rua dos Condes e de S. Carlos. Segundo o relato do Génio constitucional (5.10.1820), saudações, vivas e grande entusiasmo do público acolheram os membros do Governo, e desde logo se cantou o hino constitucional. No S. Carlos,

foi preciso que parasse a representação da ópera italiana para ressoarem os excessivos elogios poéticos, obras improvisas do estro e do génio, que expressavam os gratos sentimentos de toda a nação portuguesa elevada no espetáculo da sua glória.

Desde logo, os liberais manifestaram vontade de proteger o teatro (que se concretizaria plenamente após a vitória

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definitiva de 1834). Pela portaria de 20 de março de 1821, que dá origem a uma Comissão sobre Obras Públicas, a Regência recomenda a elaboração de um plano para se construir um Teatro Nacional, «estabelecimento o mais útil e necessário, e de que tanto depende a boa moral e reforma de costumes» (Diário da Regência, 22.3.1821).

Ainda em 1820 (22 de dezembro), a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino confere 2 contos de réis de subsídio à Sociedade do Teatro da Rua dos Condes. Mais uma vez, as demonstrações de patriotismo do diretor pesam na balança, e agora acrescenta-se uma camuflada imposição: «espera o Governo que a Sociedade Diretora haja de preparar para a próxima época do ajuntamento das Cortes um espetáculo apropriado às circunstâncias» (Gazeta de

Lisboa, 30.12.1820).

Por sua vez, o empresário do Teatro do Salitre, menos afortunado, apela aos deputados e aos membros do Governo para que assistam ao «pomposo espetáculo» que preparou para o dia da abertura das Cortes (janeiro de 1821), de forma a abrilhantar o espetáculo, a animar a companhia e, por certo, a tentar atrair algum auxílio financeiro.

O melodrama adaptado de Victor Ducange sob o título O

verdadeiro heroísmo ou O anel de ferro serviu para celebrar no Teatro da Rua dos Condes, na presença do Soberano Congresso, a instalação das Cortes Gerais e Extraordinárias, em janeiro de 1821. O autor, Fernando José de Queirós, revela-nos um pouco das movimentações de bastidores: quando era administrador daquele teatro, em setembro de 1820, foi contactado por chefes militares para que se aclamasse a Constituição, pedindo o aparecimento em cena da efígie de Sua Majestade. O Intendente Geral da Polícia consentiu que subissem à cena peças liberais sem prévia licença.

As adaptações procuravam transpor para o enredo, de uma ou de outra forma, alguma alusão à situação política, como é o caso deste melodrama, que evoca, por artes de Queirós, o processo do General Gomes Freire de Andrade.

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Em peças deste género, o caráter doutrinário é evidente, veiculando valores patrióticos ou ideais políticos. O melodrama, em particular, prestava-se facilmente às ambições de influenciar o espírito do público, movendo as emoções, catalogando nitidamente bons e maus, ora liberais ora absolutistas.

No Brasil, o anúncio público do auto do juramento da Constituição por D. João VI efetuou-se na Sala Grande do Real Teatro de S. João (Rio de Janeiro), casa onde, à noite (26 fevereiro 1821), El Rei e Real Família apareceram para assistir ao espetáculo (Diário da Regência, 27 e 28.4.1821). A chegada desta notícia a Portugal foi um dos principais motivos de festa em 1821. No Teatro de S. Carlos, mais uma vez, foi preciso interromper a representação para a leitura do decreto pelo Ministro da Marinha (Diário da Regência, 28.4.1821, sup.). Os dramas alegóricos rejuvenesceram com novos temas, como o paradigmático A liberdade, representado no Teatro da Rua dos Condes para celebrar o aniversário de D. João VI (13 de maio de 1821). Dois meses mais tarde, dava-se o tão desejado regresso de D. João VI a Portugal, ocasião para uma das maiores celebrações. De acordo com o jornal O amigo do

povo (2.6.1821), o espetáculo do S. Carlos realizou-se «por ordem do Governo».

Atraiu uma verdadeira multidão esse espetáculo da noite de 8 de julho de 1821, no S. Carlos, aonde regressava a Família Real após 14 anos de ausência. Apesar do aperto, «tudo era suportável ao geral desejo de ver ali o Monarca e Sua Augusta Família» (Gazeta universal, 1821). A presença no teatro era, pois, uma forma de se re-apresentar e saudar o povo, e, por esta via, reafirmar o poder. Acrescenta o mesmo periódico:

A presença da Real Família, dos ilustres deputados de Cortes nos camarotes imediatos à Real Tribuna [repare-se que a própria distribuição pelos lugares do teatro adquire significado: os deputados localizam-se no mesmo patamar do rei], e de toda a

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Corte, tudo no maior asseio e riqueza, faziam encantadora a vista deste Teatro nesta festiva noite.

Os teatros (a par com a imprensa) refletiam a agitação que percorria os espíritos naqueles anos quentes, e os próprios atores transbordavam as obrigações da profissão. O Salitre chegou a intitular-se Teatro Constitucional, e, no Condes, ao levantar do pano «o ator João Alberto entoa[va] os vivas à Constituição, às Cortes, a El Rei constitucional e Real Família, e à nação portuguesa» (Diário da Regência, 8.8.1821).

O teatro era, então, considerado uma das formas de dar provas de obediência ao rei. Para os empresários, como já aludimos, tornava-se indispensável o alinhamento com os órgãos do poder. Ao dedicar ao rei constitucional o elogio dramático Elisa e Luso ou O templo de Vénus, Manuel Batista de Paula, diretor do Condes, após as declarações de entusiasmo pela liberdade, apela à benevolência de Sua Majestade para com o «desvalido teatro português» (1821). O Governo teria todo o interesse em financiar os teatros, pois, como escreve o articulista do periódico O amigo do povo, «muitas vezes eles lhe valem mais do que exércitos numerosos» (n.º 4, 1821).

Os primeiros vivas à Constituição foram depois transferidos para a Carta Constitucional e seu outorgante, D. Pedro IV, em quadros semelhantes, onde não faltavam o hino, os vivas e os poemas. O entusiasmo era tal que a Intendência Geral da Polícia achou por bem ordenar, em agosto de 1827, que ninguém recitasse qualquer texto sem antes obter licença do Ministro Inspetor, e mais, proibiu que se levantassem vivas nos teatros, qualquer que fosse o seu objeto, exceto quando lançados pelas autoridades. A justificação lê-se no prólogo do edital:

Devendo ser os teatros a escola de costumes, e a inocente diversão dos cidadãos pacíficos; e havendo-se abusivamente introduzido neles a mania de levantar arbitrária e indiscretamente vivas e de recitar versos que, se algumas vezes indiferentes, outras subversivas, têm concorrido muito para escandecer os espíritos e perturbar o público sossego. (vd. A borboleta constitucional, 70.º sup., 5.8.1827)

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É que tais manifestações poderiam resvalar para uma perigosa contestação, como sucedera dias antes, no S. Carlos, onde os espectadores demonstraram desacordo com a demissão do General João Carlos de Saldanha.

Os absolutistas, ao retomarem o poder, em 1824-1826 e 1828-1834, não ignoraram a destacada influência dos teatros sobre os negócios públicos, mas, ao mesmo tempo, procuraram controlar o entusiasmo excessivo e descuraram o apoio pecuniário. Apesar de tudo, não era, de todo, negligenciado o teatro como meio privilegiado de disseminar a mensagem realista. Isso nota-se, em especial, ao analisar as peças levadas à cena no reinado de D. Miguel. Um exemplo é o drama A

aparição de D. Afonso Henriques no Campo de Ourique (Teatro da Rua dos Condes, 1828), que reproduzia a suposta aparição de Cristo ao primeiro rei de Portugal, um dos principais argumentos avançados pelos miguelistas a favor da origem divina do poder régio.

Para este teatro, há notícia de uma série de dramas realistas encomendados ao dramaturgo Luís José Baiardo pelo empresário Manuel Batista de Paula (que dava, assim, provas da capacidade de se moldar à instabilidade governativa). Os títulos, por si só, são elucidativos: Miguel Valadomir elevado ao trono dos seus

maiores, Carlos VII, Rei de França ou A aparição de S. Miguel a bem

da realeza, Maria Stuart, Rainha da Escócia ou A realeza triunfante (1828). Neles se exorta à fidelidade e obediência ao monarca absoluto, justo e magnânimo, triunfante sobre o mal.

No tempo de D. Miguel, sobressaíam os dramas compostos para festejar o aniversário e a data da sua aclamação, o que, na prática, implicava noites de gala nos teatros a 26 de outubro e a 30 de junho (figura 2). Celebrava-se, além disso, a data da sua chegada a Lisboa, 22 de fevereiro de 1828. Mesmo o Porto, cidade de maior pendor revolucionário, teve período miguelista no Teatro de S. João, onde se representaram dramas como O

denodo das tropas realistas.

Em Lisboa, são exemplos de títulos miguelistas os elogios dramáticos O vaticínio de Jove, A paz, A volta de Astrea e O mérito

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e a virtude congraçados com a fortuna, representados entre 1829 e 1832 no Teatro da Rua dos Condes.

Depois de 1828, o Porto reiniciaria as celebrações liberais no Teatro de S. João, onde por vezes acudia D. Pedro IV, cuja presença conferia um alento extra aos militares. Aí se comemoravam, em particular, as vitórias sobre o exército legitimista, transpostas para o palco em peças como o drama patriótico A Constituição proclamada ou A queda dos déspotas e

tiranos (Porto, 23.7.1833).

Após a Convenção de Évora Monte, de 1834, proliferam novamente os dramas compostos sobre recentes episódios da guerra civil, oferecendo imagens vivas dos maiores combates, como A entrada do exército libertador em Santarém, A

legítima herdeira do trono (Salitre, 1834), ou A ilha restaurada pelos

liberais ou a queda do governo usurpador, que apresentou a vitória da Vila da Praia aos espectadores da Rua dos Condes em 1834, destinados a celebrar a vitória liberal e contribuindo, assim, para a consolidação da monarquia constitucional.

Conclusão

Concluindo, o teatro fazia parte de um conjunto de meios usados durante séculos para, através da festa, consolidar o poder, especialmente figurado na pessoa real, e por norma associado à pátria e à religião, como vetores de sustentação do povo português.

Se é verdade que, como afirmou Marco de Marinis, os momentos de crise social ou de viragem política produzem um aumento da teatralidade, não há dúvida de que estes dois acontecimentos próximos e marcantes na história contemporânea originaram uma viva atividade nos teatros, não só nas principais cidades mas também um pouco por todo o país. Neste período, a arte contava, em primeiro lugar, pela função social, pela intervenção sobre as mentalidades. O teatro, em particular, tal como se mostrava em palco, constituiu mais um meio de fortalecimento do poder instituído do que um foco de resistência.

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Nesse sentido, os teatros festejaram sempre, em primeiro lugar, a pátria lusa, bem como as vitórias políticas de cada uma das fações em jogo. Em todo o caso, foi, certamente, uma época de intensa e ostensiva ligação entre teatro e poder.

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Referências bibliográficas

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