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Ariane da Mota Cavalcanti. Introdução

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Ariane da Mota Cavalcanti

Introdução

O pensamento crítico de Roland Walter em torno da produção de martiniquenhos

como Glissant e Chamoiseau tem se mostrado significativo e correntemente presente em

variadas publicações acadêmicas voltadas para a temática das literaturas

afrodescendentes diaspóricas. A minha proposta é partir de, bem como suplementar,

algumas das suas principais leituras em torno da obra de Chamoiseau, trazendo as visões

dos intelectuais latino-americanos Arturo Escobar e Castro-Gomez, com o intuito de

aflorar outras percepções sobre a visível potencialidade crítica ao sistema colonial em

Écrire en pays dominé. Os ensaios “O lugar da natureza e a natureza do lugar:

globalização ou pós-desenvolvimento”, de Escobar (2005), e “Ciências sociais, violência

epistêmica e o problema da invenção do outro”, de Castro-Gomez (2005) em muito

podem contribuir para se fundamentarem outras interpretações sobre os enfrentamentos

críticos da obra de Chamoiseau, no que concerne respectivamente à tendência de

apagamento do “lugar” na epistemologia eurocêntrica e ao projeto de modernidade

imposto à América pela colonização.

Doutoranda em Teoria da Literatura pela UFPE, Recife-PE e Mestre em Teoria da Literatura também pela

(2)

Nesse sentido, organizo minha reflexão da seguinte forma: 1) inicialmente, aponto

as contribuições das abordagens de Roland Walter; 2) Introduzo os argumentos de

Escobar e Castro-Gomez que entendo serem interessantes para uma suplementação da

leitura de Walter nas análises de Écrire en pays dominé; 3) apresento as considerações

finais da minha perspectiva analítica.

Roland Walter: “Ecoestética” e memória em Chamoiseau

Tal qual remarca Roland Walter (2009), ao detectar um dialogismo temático em

torno da biota na obra de escritores afro-americanos, como Glissant, Condé e

Chamoiseau, a natureza local da América faz-se presente nas narrativas de modo bastante

significativo, ideologicamente simbólico, e não meramente como um simples cenário

para as ações vividas pelos personagens das tramas ficcionais. A invocação da natureza

pelos autores diaspóricos interpelados pela colonização europeia, segundo Walter, teria

um caráter de reconstrução da memória histórica do povo afro-americano, “roubada” pela

hegemonia narrativa europeia, uma reconstrução operada a partir da geografia que se faz

brotar do texto, da relação com a terra, reconstruída pelas narrativas ficcionais. A biota

na literatura afro-americana, pois, seria a representação da própria memória do povo em

resistência, a sua História resgatada por meio do fazer literário. A narrativa, que se quer

invadida pela geografia local, reescreve, assim, a História. Cria-se uma relação

dialético-crítica entre ficção, História e o campo geográfico. O texto literário, então, se encontra

permeado pelo encontro com a biota, este elemento (no passado e no presente) tomado,

ocupado, explorado, colonizado, construído inicial e ideologicamente pelo olhar

dominador europeu e que, agora, em resistência por parte dos escritores caribenhos, pode

receber novas vibrações reconstrutivas ao sabor de elementos como a pedra, a chuva, o

mar, as florestas, os cipós, a ilha, todos reconfigurados pelo olhar afetivo e local da ficção

afro-americana, a qual passa a instalar, dessa maneira, um jogo de embates

desconstrutivos, rumo à erosão do poder unívoco do imaginário do colonizador.

Nesse domínio da reconstrução histórica da experiência afro-americana, via uma

estética narrativa geográfica, um aspecto que Walter destaca é o papel das narrativas orais

dos personagens como estratégia de enfrentamento e reelaboração do trauma em face das

violências coloniais. Em síntese, para o autor, esse processo mnemônico, que revela o que

ele chama de “saber terra”, precisa ser entendido como uma prática social pelas duas

razões seguintes: “a) ratifica as distorções e vazios da História oficial por meio de

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histórias subalternas, iluminando as atrocidades bárbaras cometidas em nome do processo

civilizador e b) esboça uma vivência alternativa” (2009, p.130). Assim, a prática literária

se estreita à prática social, de modo que a relação entre a geografia e a ficção

afro-americanas passa a ser interpretada por Walter (2017) a partir de nomenclaturas

conceituais como a de “ecoestética”, atrelada a um “inconsciente ecológico” (2015) que

permearia as obras. Estas, dessa forma, acabam apresentando o que chama de “geografia

crítica”

1

, num fazer literário, por sua vez, por ele também nomeado de “estética da terra”

(2017).

Nessa conjuntura analítica de tendência ecocrítica, a singularidade de Chamoiseau

concentrar nas suas metáforas bióticas os sentidos da noção de congregação do diverso é

um ponto assinalado por Walter:

A biota-mundo que surge na obra de Chamoiseau é mais que uma

Weltanschauung específica. Inspirado na filosofia glissantiana da créolisation e ancorado no manifesto da créolité, o ecomundo de

Chamoiseau articula uma maneira alternativa de viver e de se relacionar: sem fronteiras excludentes e com espaços fronteiriços que possibilitam contatos de diversos tipos sem anular as diferenças. Uma convivência inclusiva entre os diversos mundos, esferas e culturas existentes, cuja palavra chave talvez seja “deslocamento”, já que tudo muda, se move, se transforma constantemente ... (2009, p. 137).

A imagem da pedra, sobretudo, na metáfora da Pierre-Monde, desenvolvida em

Écrire en pays dominé, seria também uma maneira de Chamoiseau condensar

esteticamente as tensões da diversidade do processo colonial e seus múltiplos

desdobramentos. Assinala, assim, Walter:

Ligados na pedra enquanto identidade híbrida em processo de

creolisation, o escravo e os povos esquecidos, desaparecidos, e/ou

assassinados constituem o que Chamoiseau, em Écrire en pays dominé, chama de “Pierre-monde”: um universo de inúmeras diversidades que se inter-relacionam num processo de intercâmbios nutridos de conflitos e tensões (2017, p. 244).

Gostaria de destacar, contudo, que a leitura do autor, como se verifica na citação

seguinte, no que se refere à imagem da floresta e da pedra em L’esclave vieil homme et le

molosse, segue a seguinte linha interpretativa:

1 Termo que toma emprestado de Toni Morrison, quando a autora afirma que a resistência discursiva precisa

“desenhar um mapa de uma geografia crítica”. A referência de seu ensaio assim se apresenta: MORRISON, Toni. Playng in the dark: Whitness and Literary Imagination. Cambridge: Havard UP, 1992.

(4)

A floresta e a pedra como lugar mnemônico de transformação cultural e aproximação de etnias é palco onde a resistência (e a violência) cede ao que Lorna Milne (2006, p. 168) denomina de “um estado de espírito mais prospectivo, provisório, aberto e mesmo conciliante” (WALTER, 2017, p. 244).

Destaco a citação, sobretudo quanto ao uso dos vocábulos “cede” e “conciliante”,

porque pretendo demonstrar nas análises postas adiante da obra Écrire en pays dominé

que as tendências à resistência, à desconstrução da hegemonia ocidental e ao repensar

crítico da violência e dominação coloniais mostram-se, a partir das minhas percepções,

mais preponderantes na “ecoescrita/estética da terra” do autor martiniquenho do que

propriamente tal cessão conciliante verificada na referida leitura de Walter e Lorna Milne.

Passo, a partir de agora, a apresentar os argumentos de Arturo Escobar e

Castro-Gomez, tentando costurá-los aos de Walter e, nesse movimento intercambiante, extrair

outras possibilidades de leituras em torno da crítica que Chamoiseau opera em face à

colonialidade.

Arturo Escobar: “O lugar na natureza e a natureza do lugar: globalização ou

pós-desenvolvimento?”

Escobar faz, neste ensaio, a observação de que, nos últimos tempos, tem-se

preterido a discussão sobre o lugar na epistemologia – “o lugar tem sido ignorado pela

maioria dos pensadores” (2005, p. 63), e faz a seguinte reflexão:

A crítica recente ao lugar por parte da antropologia, da geografia, das comunicações e dos estudos culturais tem sido tanto essencial como importante, e continua-o sendo. As novas metáforas em termos de mobilidade – a desterritorialização, as mudanças, a diáspora, a migração, as viagens, o cruzamento de fronteiras, a nomadologia, etc – tornaram-nos mais conscientes do fato de que a dinâmica principal da cultura e da economia foram alteradas significativamente por processos globais inéditos. O lugar, em outras palavras, desapareceu no “frenesi da globalização dos últimos anos, e este enfraquecimento do lugar tem consequências profundas em nossa compreensão da cultura da natureza, e da economia (2005, p. 63).

O autor propõe, nessa conjuntura, um necessário retorno da epistemologia ao

cuidado com as questões ligadas ao lugar, como uma forma de resistência a uma episteme

que se deixou escravizar pelos processos de globalização, ou mesmo que dela esteve a

serviço. É importante frisar a relação que Escobar estabelece entre tal “apagamento” do

lugar nas teorias ocidentais e o colonialismo:

(5)

Um aspecto final da persistente marginalização do lugar na teoria ocidental é o das consequências que teve no pensar das realidades submetidas historicamente ao colonialismo ocidental. O domínio do espaço sobre o lugar tem operado como um dispositivo epistemológico profundo do eurocentrismo na construção da teoria social. Ao retirar a ênfase da construção do lugar a serviço do processo abstrato e aparentemente universal da formação do capital e do Estado, quase toda a teoria convencional tornou invisíveis formas subalternas de pensar e modalidades locais e regionais de configurar o mundo. Esta negação do lugar tem múltiplas consequências para a teoria – das teorias do imperialismo até as da resistência, do desenvolvimento, etc. – que pudessem ser melhor exploradas no âmbito ecológico. Neste âmbito, o desaparecimento do lugar está claramente vinculado à invisibilidade de modelos culturalmente específicos da natureza e da construção dos ecossistemas. Somente nos últimos anos é que percebemos este fato (2005, p. 64).

Assim, seguindo-se essa linha de raciocínio defendida por Escobar, voltando-se

para a “ecoestética”/ “estética da terra”, assinalada, como demonstrei, pela leitura do de

Roland Walter, em Chamoiseau, é possível avaliar o quão potente é a sua crítica aos

modelos eurocêntricos de apresentação do mundo natural imposto pelas estruturas da

globalização e pelas teorias sociais que disseminam uma “colonialidade do saber”. Ao

trazer a natureza (a pedra, a floresta, os cipós, etc) e sua relação afetiva como o lugar,

Chamoiseau, ofereceria, a meu ver, através de sua produção, uma convocação dos leitores

e leitoras para se retornar à reflexão sobre o lugar e seus modos alternativos, via estética

e imaginação. Seria, pois, um convite para repensá-lo criticamente para além de uma

figuração que o limita a ser mero espaço dominado pela técnica, a qual segue o projeto

de modernidade imposto aos países historicamente colonizados. A recriação, via escrita,

via imaginação, do lugar, nesse sentido, em Chamoiseau, propõe maneiras alternativas de

serem experienciados o lugar, a cultura e as identidades locais. Dessa forma, é por essa

razão, que eu prefiro interpretar a metáfora da floresta e da pedra, em Chamoiseau, de

modo diverso do defendido por Milne e Walter, os quais, como visto acima, entendem

que estes seriam “palco onde a resistência (e a violência) cede ... a um estado de espírito

mais prospectivo, provisório, aberto e mesmo conciliante” (2017, p. 244) Grifo nosso.

Sobre, particularmente, Écrire en pays dominé, que é a obra da qual me ocupo aqui,

escolho dar ênfase, partindo do diálogo com as ideias de Escobar, não exatamente aos

sentidos da conciliação, isto é, de uma resistência que “cederia espaço” para um espírito

mais “conciliante”, mas sim, escolho ver de modo mais potencializado um caráter de

resistência que contesta a dominação colonial e suas representações eurocêntricas,

capitalistas e mascaradoras de modos alternativos de vida no interior da biota.

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Écrire en pays dominé e o lugar: A chuva, a ilha, o mar, a Pierre-Monde.

Nos dias de chuva, eu abordo melhor a escrita ... A terra exala estranhos odores sob a perda dos ventos.2 Quebra do tempo, mundo

apagado, a chuva tem suavidade e vontades firmes. Quando ela se acalma, um silêncio embeleza odores desconhecidos – de grama revirada e humos machucado – depois uma vida se acalma com algum vigor (CHAMOISEAU, 1997, p. 235-236).3

Neste trecho, quando o escritor relata que a sua escrita vai melhor na chuva, é

possível fazer uma leitura de que, ao “escrever num país dominado”, Chamoiseau opta

por uma recusa à representação hegemônica ocidental que reduz o Caribe à uma imagem

de “paraíso solar” à disposição do turismo comercial, o qual insiste em representá-lo em

guias turísticos, muitas vezes distribuídos pelas companhias aéreas, sempre com a mesma

representação estereotipada: “praia e sol” a serem ocupados/consumidos pelos turistas,

que viajam, muitas vezes, à procura do exótico. Tal reconstrução do autor da

representação da biota funciona, pois, como resistência à violência homogeneizante,

turística e comercial visíveis nas relações econômicas que os modelos de globalização

travam com a terra.

Mais adiante, Chamoiseau explica a relação entre a chuva e a deparação da sua

escrita com o necessário enfrentamento da diversidade; um enfrentamento dado por

oposição aos olhares unívocos e exóticos da terra que povoam o imaginário do Ocidente:

A chuva suspende meus sonhos, e minha escrita vai bem: barco4 entre

as ondas, confiante demais nele mesmo se torna suspeito. As frases erram nos escombros das minhas reflexões. Eu, que gostaria de mergulhar ao fundo do país, eu me encontro exposto a um grande mundo aberto. O Diverso, explodido na nossa creolização, nos põe em apetite pelo conjunto da Terra. Quando não se elucida essa sede, se permanece no obscuro perseguido por ela, universalista aberto, cidadão vazio do mundo, se viaja na vontade de exotismos, encapuza-se o corpo e a alma em outro lugar, se imita, se faz mímica, fica-se à deriva sem liberdade alguma: nas esquinas da Terra, mesmo nas mais insólitas, eu

2 Na versão original, o que é traduzido como vento está grafado como alizes – que seria um vento típico

das Antilhas.

3 Les jours de pluie, j’aborde mieux l’Écrire ... La terre exhale d’étranges odeurs sur le déroute des alizes.

Cassé du temp, monde effacé, la pluie a des douceurs ou des volontés fermes. Quand ele s’apaise, um silence embelit des senteurs inconnues – d’herbes à l’envers et d’humus écorché – puis une vie se rassure avec quelquer vigueur.

4 No original, o que aqui se traduz como barco, está grafado gommier, que seria um barco de pesca típico

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encontrei os crioulos antilhanos possuídos pelos seus estados de proximidade (p. 236-237).5

Nos trechos de Écrire en pays dominé que se seguem, é perceptível a necessidade

que a escrita de Chamoiseau tem de revisitar criticamente a construção ocidental

dominante da Martinica como uma ilha. Assim, o retorno ao lugar faz-se, notavelmente,

uma reconstrução da memória da terra, agora em face do próprio “lugar de fala” do

escritor: o pays dominé, o qual precisa reelaborar a sua memória através de uma

“geografia crítica”, refazendo seu “inconsciente ecológico” em contraposição às

representações da dominação colonial, redutoras do pays a “poeiras”, “terra qualquer

antes da terra”, (estas manipuladas ao bel prazer e necessidade dos exploradores no

passado), limitadas ao imaginário paradisíaco, o qual escamoteia a memória da violência

e exploração colonial dos recursos naturais e do povo afro-americano. Cito:

Minha terra natal era uma “Ilha”: que forças e que armadilhas se louvavam nessa palavra? ... Face às ilhas, sobretudo as das Antilhas, o olhar dominante não distingue mais que a evidência paradisíaca à vocação – e mesmo à fatalidade – turística. ...

Os primeiros descobridores, ao início das Antilhas, não se encontraram – em seus sentimentos – diante de terras reais, carregadas de histórias, de povos, de possibilidades. Eles as tiveram como apagamentos de uma existência autônoma as nomeando de Antilhas – quer dizer, terras antes do continente, espécie de patamares, marca-pés, poeiras..., sobre a rota desses rios onde a vida se torna permitida aos homens, eles se revitalizavam na água, abocanhavam alguma carne de caça, retomavam contato com uma imitação de terra fechada antes de ir a sua procura de uma Índia continental. O imaginário ocidental contemporâneo conservou da ilha essa percepção-função (1997, p.258-259).6

5La pluie suspend mês rêves, et mon Écrire va bien: gommier entre les vagues, trop àl’aise em lui-même et

devenu suspect. Les phrases errent dans les décombres de mês rêveries. Moi qui voulais plonger au fondoc du pays, je me retrouve exposé à um monde grand ouvert. Le Divers, explosé dans notre créolisation, nous met em appétit pour l’ensemble de la terre. Quand on n’a pas élucidé cette soif, on demeure dans l’obscur persécuté par ele, universalista beat,citoyen vide du mond, on vogue au grédes exotismes, on capote corps et âme sur l’ailleurs, on imite et on mime, on derive et délire sans délivrance aucune:dans les coins de la terre, même les plus insolites, j’ái trouvé des créoles antillais em proie à des états semblabes.

6 Ma terre natale était une “île” : quelles forces est quels piéges se lovaient dans cet mot?... Face aux îles,

surtout celles des Antilles, le regard dominant ne distingue que l’évidence paradisiaque à vocation – et même fatalité – touristique. ...

Les premiers Découvreurs, à l’abord des Antilles, ne sont pas trouvés – à leurs sentimento – devant des terres réelles, charges d’histoires, de peuples, de possibilites. Ils les ont comme effacées d’une existence autonome em les appelant Antilles – cést dire terres-d’ávant-le-continent, sorte de paliers, marchepieds, cayes, poussières..., sur lar oute des ces rives oú l avie devient permiseaux hommes. Ils s’y ravitaillaient en eau, boucanaient quelque chair de gibier, reprenaient contact avec um ersatz de terre ferme avant d’aller leur quêted’une Inde continentale. L’imaginaire occidental contemporain a conserve de l’ile cette fonction-perception.

(8)

Ainda sobre tal imagética da ilha, é significativa a passagem seguinte, em que o

autor recusa o significado ocidental da palavra ilha para designar a Martinica, enfatizando

e “empoderando” o créole, a fim de ressignificar o que é, na sua visão local, o seu lugar,

o seu país:

A língua crioula não diz ilha. Sua palavra Lilèlt designa os minúsculos pedaços de rochas formados de materiais diversos quase inabitáveis que apenas servem de poleiro aos grandes pássaros do mar. Para ela, a ilha não existe, é umincansável país, uma terra inscrita no mundo pela pele do mar. Lá reina a abertura O reinado da abertura: a maravilha marinha, a corrida dos ventos arruaceiros, a flecha celeste das caças migratórias ...

Eu o poderia agora: Marcar “País”, não “ilha” a fim de melhor me subtrair às cargas da palavra. Pensar País e ver País: viver meu país em profundidade, nesses ecos que me levam ao Lugar. ... O escrever pode devolver os infinitos que a dominação tende a nos fazer chamar ilha ou pequeno país, país periférico) com as estreitezas que ela lhe associa. (CHAMOISEAU, 1997, p.270-271).7

Nesse trecho, assim, é visível a potência crítica do título Écrire en pays dominé

dado pelo autor à sua produção. Primeiramente, no título, o ato de escrever é topicalizado,

abrindo e guiando os sentidos da obra; em seguida, o lugar, o local de onde parte essa

escrita é convocado e sublinhado, mas definido como país, exemplo de recusa clara aos

sentidos diminuidores das aberturas possíveis à Martinica; por fim, o caráter “dominado”

desse lugar é acionado com consciência, sendo o que move o escrever do autor, uma

escrever que luta/combate “pela devolução de sua história e renomeação geográfica”. É

como “guerreiro do imaginário” que o escritor também se renomeia pelo enfrentamento

à dominação e pela abertura ao que é o diverso: “Para rir, eu me declaro eu mesmo

Guerreiro. Eu pretendi (por interessar) que minha preocupação fosse bem conduzir o

Escrever em país dominado” (1997, p.349).

8

A reconstrução da representação do mar, por sua vez, igualmente, refaz o lugar

marítimo pela consciência crítica da violência colonial. Há aí, novamente, a

7 La langue créole ne dit pas île: son mot Lilet designe de minuscules concrétions quase inhabitables qui ne

servente de perchoir qu’aux grands oieseaux de mer. Pour ele, l’île n’existe pas, c’est um inépuisable pays, une terre inscrite au monde par le derme de la mer. Là règne l’overture: la merveille marine, la ruée de vents voyous, la flèche céleste des gibiers migrateurs

Je le pouvais mainteneant: marquer “Pays”, ne pas marquer “île”afin de mieux me dérober aux chargements du mot. Penser Pays et voir Pays: vivre mon pays em profondeur, dans ces échos qui mènent au Lieu. ... L’Écrire peutdévoiler les infinis que la domination tend à nous faire appeler île (ou petit pays, pays périphérique) avec les étroitesses qu’elle y associe.

8 Pour rire je me suis declare moi-même Guerrier. Jái prétendu (pour l’entérresser) que mon souci était de

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desconstrução do imaginário paradisíaco e um enfrentamento da violência na memória.

É o que fica aparente, quando, na passagem abaixo, Chamoiseau traz a voz crítica de

Glissant, pensador e escritor da Martinica com quem nutre profundo diálogo, e sua

reinterpretação do mar para o texto:

Na obra de Glissant uma cena perdura: aquela do Negro marrom que, ao final de sua fuga, se choca com o instransponível desconhecido do mar. Para os escravos caçados pelos cachorros e milícias armadas, o mar devia representar aquilo que significaria a floresta aos olhos dos prisioneiros da Guiana: uma massa de muro vivo que engolia suas presas. Um vertical sem perspectiva e sem promessa de liberdade. Mas há também na obra de Glissant a ideia de abismo. O Negro continental da África, jogado num cargueiro de navio negreiro, inaugura sua relação com o mar na angústia da terra africana que dele se afasta. Através do casco ele sente o barulho da onda, o rumor sepulcral dos abismos. Quando os negreiros (fiscalizados pelos navios ingleses após a interdição do tráfico) não podiam mais fugir, eles jogavam suas cargas ao mar. E essa imagem de um tapete submarino de cadáveres que religaria as ilhas antilhanas é uma obsessão de toda a sua obra. Ela aparece também na obra de Derek Walcott, em Saint-Lucien, e na obra de Edward Kamau Brathwaire, o poeta barbadiano (1997, p.264). 9

Assim, a natureza em Écrire en pays dominé , entendo, ao resgatar as vozes

poéticas afro-americanas que ressignificam o mar, revelando que, ao fundo das ondas

paradisíacas, existe um escuro “não dito”, mascarado: um tapete de cadáveres negros, que

é a prova viva da brutalidade ocidental, torna-se emblema da descolonização do

imaginário colonial. Assim, tal desconstrução do imaginário em torno do mar vivifica

uma “ecoestética” que não encerra apenas uma “conciliação” entre senhores e escravos,

mas apresenta, de modo mais forte, uma potencialidade crítica às violências do

colonizador, da escravidão. O trecho é um potente ataque ao unívoco mar paradisíaco e

se dá, justamente, operado pelo elogio ao pensamento de Glissant, uma voz local, e aos

demais poetas antilhanos que, ao invocarem o mar, reativam a dominação geográfica

9 Chez Glissant, une scène perdure: Celle du Nègre marron qui, au bout de as fuite, bute sur

l’infranchissable inconnu de la mer. Pour les esclaves traques par des dogues et des milices armées, la mer devait représenter ce que signifiait la forêt aux yeux des bagnards de Guyane: une masse d’enceintre vivante qui avalait ses poies. Une verticale sans perspective et sans promesse de libertés. Mais Il ya aussi chez Glissant l’idée du gouffre. Le Négre continetal d’Afrique, jeté dans une cale de bateau négrier, inaugure son rapport à la mer dans l’agonisse de la terre africaine qui s’eloigne de lui. À travers la coque, il éprouve le clapotis de l’onde, la rumeur sépulcrale des abysses. Quand les négriers (traques par les navires anglais aprés l’interdit de la Traite) ne pouvaient plus s’enfuir, ils balançaient leur cargaison par-dessus bord.Et cette image d’um tapis sous-marin de cadevers qui relierait les îles antillaises est une hantise de toute son oeuvre. Elle apparaît aussi chez Derek Walcott, Le Saint-Lucien, et chez Edward Kamau Brathwaite, le poéte barbadien.

(10)

europeia para além da América, acionando também em seus textos uma “geografia

crítica”.

Gostaria de finalizar esta seção com uma reflexão sobre a metáfora da

Pierre-Monde presente na obra. A pedra seria a imagem/lugar de um encontro do mundo em toda

a sua diversidade, um encontro, contudo, harmônico e desarmônico; a pedra acolhe e

explode os equilíbrios e tensões dos povos, dos lugares, das línguas e culturas. Na sua

definição:

Pedra, porque já aí e ainda a construir.

Pedra, porque fluida e incerta e de alta densidade.

Pedra, porque em nós e em todo o entorno de nós, em valor e matéria. Pedra, porque da sombra e da luz, do consciente e do inconsciente, do caos dos contrários na Unidade para nosso inconcebível.

Pedra, porque de consciência impulsionada até a inteligência de uma matéria primordial.

Meu espírito tentava uma percepção aberta desse estranho total. O sentimento ativo das diferenças e dos impenetráveis em mim a abertura do Diverso. Uma harmonia nascida das desarmonias, uma medida fora de medidas, um fluxo de explosões difusas. As línguas, as literaturas, as oralituras, os cantos poéticos, baladas, romances, provérbios, queixas, rimas, adivinhas, meus contos de fadas, meus mitos íntimos e minhas histórias obscuras (1997, p.313-314).10

Chamoiseau adverte ainda: “O Pedra-Mundo não será uma Pátria monumental.

Nem uma imensa nação dos homens. Isso seria opor as eventualidades cósmicas aos

sectarismos do Território” (1997, p.331)

11

. Ou seja, a Pedra-Mundo é um mundo que

abraça as tensões do diverso, figurando como uma utopia do escritor, porque é um lugar

centrado numa imagem da natureza, a pedra, imaginado por ele para justamente divergir

das tentativas ocidentais de definição do mundo. Estas são movidas justamente, como

explica Escobar (2005) e também Milton Santos (2013), pelo que é guiado por forças de

10La Pierre-Monde.

Pierre, cara u-delá du possible des représentations humaines. Pierre, car dèjá la e encore à construire.

Pierre, car fluide et incertaine et de haute densité.

Pierre, car d’ombre et de Lumière, de consciente et d’inconscient, du chãos des contraíres dans l’Unité pour nous inconcevable.

Pierre, car de conscience poussée jusqu’à L’intelligence d’une matière primordiale.

Mon espirit tentait une perception ouverte de cet étrange total. Le sentimento actif des différences et impénetrables maintenait em moi l’ouverture du Divers. Une harmonie née des disharmonies, une mesure hors mesures, un flux d’éclats diffus. Les langues,les littératures, les oralitures, les chants poétiques, ballades, romances, proverbes, complaintes, comptines et devinettes, mês contes de fées, mês mythes intimes et mês histories obscures .

11 La Pierre-Monde ne sera pas une Patrie monumentale. Ni une imense Nation des hommes. Ce serait

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poder tendentes ao unívoco e ao excludente: pela globalização, pelo modelo econômico

capitalista, orientado pelo projeto de modernidade ocidental técno-científico, e, assim,

unificado pelo consumo das mesmas tecnologias, produtos e bens culturais. Como coloca

Escobar (2005), o Ocidente interpôs um mundo globalizado, que assiste ao primado do

território sobre o lugar. Nesse sentido, ao criar a “Pedra-mundo” e sua diversidade,

Chamoiseu é uma potencialidade de resistência ao sistema de colonialidade ocidental.

Castro-Gomez: “Ciências Sociais, Violência Epistêmica e o problema da

invenção do outro”

Neste ensaio de Castro-Gomez, gostaria de pinçar a sua observação de que a

hegemonia ocidental se construiu, no processo de imperialismo e colonização, com a

imposição de uma noção específica de modernidade, entendida como oposição ao que é

local, bárbaro, não civilizado, selvagem na natureza. A natureza, nesse sentido, em seu

estágio misterioso, não dominado pela técnica era o que deveria ser domado pela

modernidade, caracterizada, assim, pela primazia do técnico sobre o natural, pelo jogo

entre: 1) o poder de “organização racional” do Estado e 2) uma “plataforma de observação

científica sobre o mundo social que se queria governar” (2005, p. 81): as Ciências sociais.

Cito o autor, particularmente, quanto à questão da domesticação da natureza pela técnica:

O que queremos dizer quando falamos no “projeto de modernidade”? Em primeiro lugar, e de maneira geral, referimo-nos à tentativa fáustica de submeter a vida inteira ao controle absoluto do homem sob direção segura do conhecimento. ... Esta reabilitação do homem caminha de mãos dadas com a ideia de domínio sobre a natureza através da ciência e da técnica, cujo verdadeiro profeta foi Bancon. De fato, a natureza é apresentada por Bacon como o grande “adversário” do homem, como o inimigo que tem de ser vencido para domesticar as contingências da vida e estabelecer o Regnum hominis na terra (Bacon, 1984, p. 29).12 O

papel da razão científico-técnica é precisamente acessar os segredos mais ocultos e remotos da natureza com o intuito de obrigá-la a obedecer nossos imperativos de controle. A insegurança ontológica só poderá ser eliminada na medida em que se aumentem os mecanismos de controle sobre as forças mágicas ou misteriosas da natureza e sobretudo aquilo que não podemos reduzir à calculabilidade (2005, p.80).

Quando se relaciona a perspectiva do pensador colombiano com Écrire en pays

dominé, é possível destacar dois aspectos que remarcam a potencialidade crítica de

(12)

Chamoiseau a este projeto de modernidade: 1) a retomada descritiva do lugar, pondo-se

em primazia a natureza antilhana como guia da escrita e do humano e 2) a crítica à

aparelhagem técnica que fundamenta a dinâmica da modernidade ocidental.

No que se refere ao primeiro caso, o resgate pelo texto dos elementos da paisagem

local se faz despido desse controle técnico-pragmático imposto à natureza, caro ao projeto

de modernidade ocidental, tal como é descrito por Castro-Gomez. O natural, assim, segue

a subjetividade do olhar do escritor e sua resistência à dominação, aparecendo no texto

revestido pela imaginação, pela metáfora, fazendo-se mesmo, nesse processo estético, se

atravessar por uma reconstrução crítica de seus sentidos unívocos e passivos à exploração

e controle da administração do Estado francês. A terra ganha vida na obra como

propulsora da prática escrita do autor, que a desconstrói como objeto domesticado pela

técnica e mostra sua multiplicidade de sentidos, poderes e possibilidades de libertação de

antigas construções semânticas e culturais criadas pelo colonizador.

Se é retomada a análise dos trechos de Écrire en pays dominé já acima citados,

por exemplo, encontra-se a natureza da Martinica evidenciada, protagonizando muitas

passagens: a chuva, que revolve a grama e aduba a escrita crítica e poética do autor,

segundo ele próprio, é destacada como um elemento chave do “escrever no país

dominado”; ela se mostra significativa e intensa no âmbito natural referenciado e no

textual enunciador. Diz Chamoiseau: “a chuva tem suavidades e vontades firmes”/ “ a

terra exala estranhos odores” (1997, 235-236). Note-se que os sujeitos das ações nas

orações são a chuva e a terra. Elas não são objetos passivos nas frases, mas sujeitos em

destaque, operantes na esfera das construções frasais, o que pode ser lido como ser a

chuva um elemento muito mais guiador, do que guiado pelo homem e sua técnica.

Chamoiseau também fala sobre uma “Quebra do tempo, mundo apagado” (1997, p. 235)

quando chove, ou seja, a escrita se encontra com a dimensão temporal íntima da natureza,

rompendo com a temporalidade da dominação humana sobre as horas, com o tempo

técnico, o tempo cronológico capitalista, apagando as “luzes”, o seu cientificismo, que

são a marca desse mundo tecnicista. O autor, nessa linha desconstrutiva, ainda reconhece

os mistérios da sua terra, admite que ela foge aos domínios de uma racionalidade

científica: “Eu, que gostaria de mergulhar ao fundo do país, me encontro exposto a um

grande mundo aberto” (1997, p. 236); desse modo, ele procura o país, mas confessa dar

de cara com o “diverso” e o “apetite pelo mundo”. A escrita é invadida pelas gotas de

chuva que, ao rolar pelas folhas, geram pérolas – Às vezes, a chuva se esconde ao sol.

(13)

... A luz fica verde-garrafa. As gotas brilham entre cargas de eclipses. As folhas

apresentam pérolas exageradas (1997, p. 236)

13

– imagem que elogia o improvável,

apenas possível dentro de uma linguagem que se volta para dizer o natural e suas formas

ambivalentes e múltiplas. As luzes da terra são, como se nota, evocadas, mas não à

maneira como a racionalidade da modernidade iluminista francesa gostaria: de modo

claro e transparente: há o “verde-garrafa” da cor local e o jogo entre luzes e as sombras

dos eclipses (estes fenômenos naturais de um paradoxal claro-escuro e que são

incontroláveis), destoando dessa empreitada de controle às luzes da natureza e suas outras

formas selvagens. Na sequência do mesmo trecho, pássaros e beija-flores vivem no seu

tempo, “alongam suas pausas para inflarem a pluma ao frescor” (1997, p.236)

14

, não

obedecem, pois, aos ponteiros de relógio que os aviões, por exemplo, sempre atentos às

escalas comerciais, precisam obedecer. E, dessa forma, a recorrente descrição da

natureza, com o olhar subjetivo de um ser humano/escritor que usa seu tempo para

contemplá-la e escrever sobre seus mistérios e frescor, é selecionada como recurso

estético para remarcar a localidade e a particularidade do país Martinica. O tempo e a

forma imagética da natureza na obra são, assim, avessos ao projeto de modernidade

técnico-racionalista ocidental, que, violentamente, tende a sufocá-la com o tempo da

indústria, a dureza do asfalto, poluição do ar e as correntes dos relógios; toda essa

mordaça em nome de uma noção de civilidade, criada e desejada por oposição à ideia de

selvageria, em nome de uma razão e de uma técnica vendidas como única moldagem

possível de evolução no planeta, quando, na verdade, é apenas um modo particular e

dominante de configurar o mundo aos interesses de um projeto de exploração da terra e

controle dos povos, para a reafirmação do modelo capitalista, territorializado e

globalizado de vida. O olhar de Chamoiseau sobre a natureza aponta, pois, formas

alternativas de se olhar a terra.

Quanto ao segundo aspecto, percebo uma crítica às tecnologias da internet

impostas pelo Centro, à Globalização, em trechos de Inventaire d’une melancolie, o que

eu chamaria de uma espécie de “entre-peça-texto” no todo mosaico textual e de múltiplas

vozes, gêneros e línguas que é Écrire en pays dominé. Inventaire d’une melancolie seria

13 Parfois, la pluie s’amidonne au soleil (c’est l’événement du diable se mariant à égliese). La mumiére fait

verre-bouteille. Les gouttes étiencellent entre des charges d’éclipses. Les feuilles arborent des perles exagerées.

(14)

uma peça teatral, um diálogo entre um “velho guerreiro” e um outro personagem, e é

apresentada materialmente em conjunto com Sentimenthéque (como sugere a palavra,

uma biblioteca sentimental do autor, na qual ele arrola diversas citações de múltiplas

vozes nascidas em múltiplas geografias, simbolizando a diversidade pela qual ele tanto

busca). Ambos os textos estão em fonte reduzida (como no formato de citação), dentro

do corpo textual geral de envergadura predominantemente ensaística da obra, o qual fica

em evidência, em fonte maior. Cito, então, Chamoiseau no seu “Inventário de uma

melancolia” em duas passagens dispostas a seguir:

O velho guerreiro me deixa escutar: ... Os satélites tendem a se organizar em rede. O cyber espaço se torna hiperespaço. Os povos subequipados encontraram assim (como se sepulta nas proximidades de uma teia de aranha) acesso direto ao rizoma colocado pelos países ricos. Essas redes visam à tecno-consciência ... Nós seremos então presos nesse córtex eletrônico que funcionam com as concepções, os valores e os pressupostos de sua programação... (1997, p. 244)

...

O velho guerreiro me deixa escutar: ... Aquilo que eles chamam “comunicação” é um fluxo de sentido único à propaganda sutil, uma greve quase mitológica do teu imaginário, que instala a dominação do emissor. Isso não tem nada a ver com troca, com a relação enriquecedora .... Eu visitava o Elétro-mundo o mais geralmente povoado de uma extensão de solidões inchadas, submetidas ao padrão de valores dominantes (1997, p. 250).15

Nas passagens, fica clara a rejeição do personagem diante das tecnologias de

comunicação fabricadas e vendidas “goela abaixo” pelos países ricos, as quais legitimam

a dinâmica dos processos de globalização. A tecnologia e, destacadamente, o

cyberespaço, na voz do “velho guerreiro”, são igualados à ilusão, à hipnose, a um

mecanismo de escravidão mental à hegemonia ocidental. O personagem, que é o emblema

da voz local, atenta à colonialidade fazendo, então, sua desconstrução das ideias de

civilidade e racionalidade, subjacentes à noção de modernidade francesa, imposta ao país

Martinica como única forma possível de interagir no mundo. Ao travar essa crítica, a obra

15Le vieux guerrier me laisse entendre: ... les satélites tendente à s’organiser em réseaux. Le cyberspace

devient hyperspace. Les peuples sous-equiés trouveront ainsi (comme on tombe dans um toile d’araignée) accés direct ao rizomme mis em place par les pays nantis. Ces réseaux tendente à Techno-conscience ... Nous serront don englués dans ce córtex életronique qui fonctionne avec les conceptions, les valeurs, et les présupposés de as programmation ...

Le vieux guerrier me laisse entendre: ... Ce qu’ills appelent “communications” est um flux à sens unique de propagande subtile, une frappé quase mythologique de ton imaginaire, qui instale la domination de l’émetteur. Cela n’a rien à voir avec l’échange, le apport enrichissant .... Je visitais un électro-monde le plus souvent peuplé d’une extension de solitudes bouffies, soumises au standard de valeurs dominantes.

(15)

abre espaço para que se pensem modos outros de se experienciar a comunicação e o

mundo, modos que talvez sugiram um retorno à natureza livre das técnicas opressoras

construídas pelo Ocidente imperialista e modernizante do que chamam periferia.

A partir do texto de Castro-Gomez, assim, é possível ler em Chamoiseau uma

severa denúncia e combate das violências presentes no projeto de modernidade ocidental

e suas forças impulsionadas pelo sistema capitalista e pelos mecanismos de Globalização.

Considerações Finais

Procurei nas minhas reflexões sobre Écrire en pays dominé ressaltar a potência

crítica de Chamoiseau às violências da colonialidade francesa vivenciadas pela Martinica.

Para tanto, parti das leituras de Roland Walter, entendendo com ele como a “ecoestética”

do escritor opera esse resistir, reconstruindo, através da presença de uma “geografia

crítica” no texto, as memórias da História afro-americana, apagadas pelo poder

político-econômico e discursivo do colonizador, o qual contou/monopolizou a História do Caribe

a seus modos e nomes. No entanto, divergindo da ideia de Walter, que encampa a de

Lorna Milne (2009), de que certos elementos da natureza, como a floresta e a pedra, por

exemplo, representariam em Chamoiseau imagens da conciliação entre sujeitos

hegemônicos e dominados nas relações de colonialidade – isto é, na visão de Walter, a

resistência cederia mais espaço a um espírito mais diverso e conciliante – fiz a tentativa

de suplementar tal pensamento. Apoiada nos discutidos textos de Escobar e

Castro-Gomez, executei a leitura de trechos da obra estudada, percebendo, diferentemente, que

mais do que ceder ao que é conciliação, ela pulsaria de modo mais evidente a existência

de uma tensão conflitante entre personagens da periferia e Centro, tornando-se visível que

há de modo mais forte na ideia de diversidade de Chamoiseu, mais um convite à

resistência ao Ocidente, a divergir de seus métodos de invenção do outro e do mundo, de

seu projeto de dominação.

Gostaria de finalizar este ensaio com a voz do geógrafo brasileiro Milton Santos

nas suas considerações sobre “A aceleração contemporânea: Tempo-Mundo e

Espaço-Mundo” no que se refere aos processos de globalização:

Essa matematização do espaço o torna propício a uma matematização da vida social, conforme aos interesses hegemônicos. Assim se instalam, ao mesmo tempo, não só as condições de maior lucro possível para os mais fortes, mas também as condições para a maior alienação

(16)

possível para todos. Através do espaço, a mundialização, em sua forma perversa, empobrece e aleija (2003, p. 31).

Aproveito sua fala para remarcar que a Pierre-Monde, metáfora que se apoia na

natureza, pensada ao modo de Chamoiseau como uma totalidade que é em si explosão de

todas as suas próprias partículas, numa diversidade de tensões que se chocam em

convivência, faz de Écrire en pays dominé uma obra guerreira e resistente às

perversidades das unificações alienantes; uma obra que enriquece e remodela as formas

de se sonhar com um outro tempo-espaço-Mundo. A Pierre-Monde faz-se, pois, a marca

da utopia na poética de Chamoiseau.

Referências

CASTRO-GOMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência espistêmica e o problema da invenção do outro. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo y ciências sociais. Colección Sur Sur, Clacso. Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. 50-62 (pdf). CHAMOISEAU, Patrick. Anabiose sur la Pierre-Monde. In: Écrire em pays dominé. Paris: Gallimard, 1997.

ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo y ciências sociais. Colección Sur Sur, Clacso. Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. 63-79.(pdf).

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-científico-informacional. 5 ed. São Paulo: Edusp, 2013.

WALTER, Roland. Afro-América: Diálogos literários na diáspora negra das Américas. Recife: Bagaço, 2009.

WALTER, Roland. Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica. In: SEDYCIAS, João. Repensando a teoria literária contemporânea. Recife: Editora UFPE, 2015. WALTER, Roland. Caos-Mundo, Pedra-Mundo: Affinity Studies e estética da Terra em Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau. In: FERREIRA, Elio; BEZERRA FILHO, Feliciano José; COSTA, Margareth Torres de Alencar (Orgs). Literaturas e canções afrodescendentes: África, Brasil e Caribe. Vol 3.Teresina: 2017.

Referências

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