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DO CONCEITO DA BOA-FÉ NA JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA ALEMÃS

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DO CONCEITO DA BOA-FÉ NA JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA ALEMÃS

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Introdução

Recentemente, o eminente mestre Arnoldo Wald nos lembrou da influência do Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) no legislador do Código Civil de 1916.1 Ressaltou que ao introduzir o conceito da

função social do contrato no Novo Código Civil – NCC - o legislador inspirou-se na Constituição Federal de 1988, para a qual a propriedade tem função social, e na jurisprudência nacional que invoca o BGB ao condenar o abuso de direito e promover a importância da boa-fé.2

O presente artigo tem por objetivo expor o conceito da boa-fé conforme interpretado pelas jurisprudência e doutrina alemãs, mostrando, assim, que muitos dos aspectos já incorporados nesse conceito constituem a função social do contrato idealizada pelo legislador do novo Código Civil.

Com efeito, a aplicação rigorosa da boa-fé resulta justamente naquela redução da autonomia das partes contratantes mencionada no Enunciado 22 do CEJ, a saber:

"A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana."3

Por outro lado, não temos a pretensão de substituir o trabalho já feito pelos doutrinadores brasileiros4 sobre o assunto. Além de presunçoso, isto

1 Arnoldo Wald, in: VALOR, 27.11.03, p. B-2 – Empresas 2 ibidem.

3 apud Theotonio Negrão/ José Roberto Ferreira Gouvêa, Código Civil, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, 2ª edição, pág. 104

4 Uma bibliografia abrangente sobre o tema encontra-se na monografia de Ester Lopes Peixoto, O Princípio da Boa-Fé no Direito Civil Brasileiro, Revista de Direito do Consumidor 45/03, pág. 140 e segts.

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também estaria equivocado, pois o conceito brasileiro da boa-fé diverge, por vários motivos, do conceito alemão. Fala-se, inclusive, de uma boa-fé especificamente germânica.5

Embora a realidade da Alemanha, um país derrotado nas duas guerras mundiais e dividido durante 40 anos entre as potências da guerra fria, seja bem diferente da realidade brasileira, acreditamos que o entendimento da visão alemã da boa-fé e sua aplicação no cotidiano naquele país possa servir de lição e fonte de inspiração para os doutrinadores e magistrados brasileiros, na execução da tarefa de dar vida ao recém-criado conceito da função social do contrato, e, de ao mesmo tempo dar continuidade na aplicação da boa-fé.

1.1. Do significado da boa-fé

O BGB não traz nenhuma definição da boa-fé, deixando, assim, a tarefa da elaboração de seu significado e conteúdo para a jurisprudência e doutrina.

Entretanto, não se pode negar a importância desse conceito no sistema do direito das obrigações do BGB. Reza o parágrafo 242:

"Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu erbringen, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern."

Infelizmente, a tradução fiel dessa norma para o português é impossível, devido às diferenças sutis entre as gramáticas de ambos os idiomas. Em síntese, a norma obriga o devedor (Schuldner) a prestar aquilo que ele deve (Leistung) em conformidade com a boa-fé (Treu und Glauben)6,

levando em conta os costumes do mercado (Verkehrssitte).

Uma norma parecida, consagrada no parágrafo 157 do BGB, aplica-se aos contratos, a saber:

5 Neste sentido, António Menezes Cordeiro, Da boa-fé no direito civil, Coimbra, pág. 166 6 José Fernando Simão utiliza o termo "boa-fé lealdade",

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"Verträge sind so auszulegen, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern."

Ou seja, os contratos devem ser interpretados conforme os imposições da boa-fé, levando em conta os costumes do mercado. É pacífico que essa norma se aplica também aos atos e declarações unilaterais.7

É pacífico, há muito tempo, que essa norma possui um significado muito além de seu teor ao pé da letra. Estabeleceu-se a regra básica, através das jurisprudência e doutrina alemãs, da obrigatoriedade da observação da boa-fé no gozo de direitos e cumprimento de deveres por todas as pessoas.8

Entretanto, o parágrafo 242 do BGB não faculta ao magistrado substituir as conseqüências das normas legais ou contratuais por outras mais "justas".9

Também é pacífico que a aplicação do conceito da boa-fé deve ser em conformidade com as diretrizes e fundamentações desenvolvidas pela jurisprudência e doutrina. A boa-fé impõe limitações ao exercício de direitos pelo indivíduo quando tal exercício traz conseqüências evidentemente injustas.10

O equivalente da boa-fé no idioma alemão, Treu und Glauben é composto de dois elementos, a saber: a fidelidade (Treu) e a fé (Glauben)11.

Define-se a fidelidade como uma postura subjetiva de confiabilidade, integridade e consideração face ao outro. A fé representa a confiança do outro na presença dessa postura subjetiva.12 A junção desses

7 RGZ 169, 125; Coletânea Oficial de Jurisprudência Civil do Supremo Tribunal Federal (Entscheidungen des Bundesgerichtshofs in Zivilsachen – BGHZ), Vol. 47, pág., 78. Cita-se a jurisprudência das coletâneas pelo volume e da página.

8 Helmut Heinrichs, in: Palandt Bürgerliches Gesetzbuch, Editora C.H. Beck, Munique, 1996, 55ª edição, pág. 223

9 Coletânea Oficial de Jurisprudência Civil do Tribunal Superior do Império (Entscheidungen

des Reichsgerichts in Zivilsachen – RGZ), Vol. 131, pág. 177

10 BGHZ 48, 398; Tribunal Superior Federal – BGH, Neue Juristische Wochenschrift – NJW, Ano. 1987, pág. 1070; Tribunal Superior do Trabalho – BAG, Der Betrieb - DB, Ano. 1990, pág. 741. Cita-se a jurisprudência publicada em revistas pelo volume do ano e a página.

11 Traduzido por "boa-fé crença" por José Fernando Simão (ibidem) e vários outros doutrinadores brasileiros.

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dois conceitos visa o ingresso no direito dos valores éticos prevalecentes na sociedade. Ela constitui a obrigação de agir em consideração com os interesses da outra parte, e impõe um comportamento probo e leal.13

Destarte, o conceito da boa-fé exige a comparação rigorosa dos interesses de todas as partes de uma transação em todas as circunstâncias,14 que deve incluir também os aspectos subjetivos. No entanto, a falta de culpabilidade não inibe a imposição de sanções resultando na aplicação correta do conceito da boa-fé.15 Por outro lado, a culpa de uma das partes não

descarta, desde já, uma ponderação dos interesses favorável à mesma.16

É importante que o conceito da boa-fé do parágrafo 242 do BGB não seja confundido com a chamada Gutgläubigkeit, também traduzida por boa-fé pelos doutrinadores brasileiros. Segundo esse conceito, aquela pessoa que pode e deve confiar na titularidade legítima de um direito é revestida de boa-fé. Pelo contrário, quem sabe da sua ilegitimidade para dispor de um direito ou de um vício do mesmo, e esconde essa situação de seu parceiro contratual, age de má-fé. No entanto, o conceito da boa-fé do parágrafo 242 do BGB é muito mais abrangente do que a simples inversão da má-fé.

1.2. A boa-fé e os direitos constitucionais

Diferentemente do que acontece no Brasil, a questão da influência dos direitos constitucionais sobre o direito civil é controversa na Alemanha.

Segundo a doutrina dos efeitos imediatos para terceiros (Lehre von der unmittelbaren Drittwirkung), as normas constitucionais são proibições ou instrumentos de proteção, dependendo do caso.17

A teoria dos efeitos indiretos para terceiros (Theorie mittelbarer Drittwirkung) afirma que o direito civil não pode incorporar as normas constitucionais como proibições ou instrumentos de proteção. A influência das

13 Karl Larenz, Schuldrecht, Vol. 1, Munique 1987, 14ª edição, § 10 I 14 BGHZ 49, 153

15 BGHZ 64, 9

16 Heinrichs, ibidem, pág. 224

17 Coletânea Oficial da Jurisprudência do Tribunal Superior de Trabalho

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normas constitucionais é indireta, pois tais preceitos servem como diretrizes na interpretação das normas do direito civil.

Apesar da discussão acadêmica sobre esse assunto, pode-se afirmar que o sistema constitucional de valores tem uma influência decisiva na definição do teor da boa-fé em cada caso.

É oportuno mencionar dois dos direitos fundamentais concedidos pela magna carta18 alemã que exercem a maior influência sobre o conceito da boa-fé.

1.2.1. A liberdade da consciência

A liberdade da consciência (art. 4 GG) pode constituir o direito a denunciar, recusar ou rescindir. No entanto, isso não se aplica quando a verdadeira intenção do devedor é de impor sua atitude ideológica ou política à outra parte. Por exemplo, os ativistas anti-nucleares são obrigados a pagar suas contas de energia elétrica, mesmo quando tal energia é fornecida por uma usina nuclear.19 Por outro lado, a justiça trabalhista de Colônia concedeu

sentença favorável a um funcionário de origem judaica que se recusou a colaborar em uma pesquisa encomendada pelo Iraque, na época sob a liderança de Saddam Hussein.20 O direito constitucional impõe a investigação rigorosa de todas as circunstâncias do caso, inclusive a comparação dos interesses do credor em receber, com os escrúpulos do devedor. A norma constitucional não implica nenhum privilégio geral da consciência do devedor face ao interesse do credor.

1.2.2. A isonomia

O princípio de isonomia (art. 3 GG) não é aplicável em geral no âmbito do direito civil, pois tal princípio constitui uma obrigação apenas para os órgãos estaduais. No entanto, existem normas do próprio direito civil que impõem a isonomia entre os contratantes, tais como, no direito societário, o parágrafo 35 BGB, ou, no direito trabalhista, o parágrafo 611 BGB.

18 A constituição alemã se chama Lei Fundamental (Grundgesetz) - GG

19 Tribunal Regional de Hamm, NJW 1981, 2472; Tribunal da Comarca de Dortmund, NJW 1981, 764

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No entanto, a boa-fé pode impor o tratamento igual dos credores caso os recursos do devedor sejam insuficientes para satisfazer todos os credores.

A isonomia se impõe à administração pública quando esta faz uso de meios do direito civil no desempenho de suas funções,21 mesmo quando tais atribuições são terceirizadas22.

1.3. Das funções específicas da boa-fé

Uma vez que o próprio BGB não define o conceito da boa-fé, faz-se necessário especificar as funções da mesma. Num primeiro passo, é oportuno elaborar os efeitos específicos da boa-fé.

Não há unanimidade na doutrina sobre o número de funções específicas da boa-fé. Todavia, pode-se afirmar a existência de três funções básicas, a saber:

1.3.1. Função regularizadora

(Konkretisierungsfunktion)

O parágrafo 242 do BGB determina a maneira que as obrigações serão cumpridas, complementando, assim, as demais normas do capítulo do BGB que trata das obrigações.

1.3.2. Função complementar

(Ergänzungsfunktion)

O parágrafo 242 do BGB fundamenta uma gama das mais variadas obrigações secundárias que visam proteger os interesses da outra parte de uma transação.

1.3.3. Função limitadora

(Schrankenfunktion)

A boa-fé impôs limites imanentes a todos os direitos e deveres. Como será exposto adiante, a boa-fé fundamenta o exercício ilícito de direitos em todas as suas variações.

20 NJW 1991, 1006

21 BGHZ 29, 76; 36, 91; 65, 287 22 BGHZ 52, 326; 65, 287

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1.3.4. Função corretiva

(Korrekturfunktion)

O princípio da eliminação do fundamento do negócio, desenvolvido a partir do parágrafo 242 do BGB, possibilita a adaptação de contratos quando da alteração significativa das circunstâncias da contratação, caso a vigência dos termos contratuais venha a se tornar insuportável para uma das partes. Cabe aqui também a rescisão de contratos de longo prazo por motivo justo.

1.4. Da dispositividade da boa-fé

Embora a boa-fé seja indispositiva, as partes podem conveniar regras contrárias à boa-fé, por exemplo, a distribuição unilateral do risco de um empreendimento.

No processo civil, o juiz deve sempre considerar os aspectos da boa-fé ex officio.23 Caso se infira a aplicação da réplica do réu, em vez da inicial do autor, cabe ao réu o ônus da prova.

1.5. Dos limites da boa-fé

O supra-citado parágrafo 157 do BGB visa orientar a interpretação dos entendimentos das partes contratuais e de estabelecer seus sentidos e abrangências. O parágrafo 242 do BGB, por sua vez, estipula medidas objetivas que influenciam a existência, o conteúdo, bem como as modalidades das obrigações, independentemente da vontade das próprias partes. Tais medidas são aplicáveis também nas relações não oriundas de atos de vontade. Resumindo, enquanto o parágrafo 157 regulamenta a natureza jurídica da vontade (das rechtliche Wollen), o parágrafo 242 trata da natureza jurídica do dever (das rechtliche Sollen).24

Embora os valores de ambas as normas sejam idênticos e interdependentes, a vontade das partes tem de ser estabelecida de antemão para possibilitar a aplicação do parágrafo 242 no relacionamento entre as mesmas.

23 BGHZ 3, 103; 31, 84; 37, 152 24 BGHZ 16, 8

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As normas tratando dos bons costumes25 constituem limites para o parágrafo 242 do BGB. No entanto, o padrão dos bons costumes é mais rígido do que o da boa-fé. Assim, qualquer infração dos bons costumes sempre contraria a boa-fé, mas nem tudo aquilo que contraria a boa-fé é necessariamente incompatível com os bons costumes.

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Do cumprimento das obrigações

Como já expusemos, o parágrafo 242 do BGB regulamenta as modalidades do cumprimento das obrigações, ou seja, "a maneira que" uma obrigação deve ser cumprida. O devedor há de cumprir as obrigações não somente ipsis litteris, mas também em conformidade com o propósito do relacionamento.

Destarte, é proibido o cumprimento de uma obrigação em horário ou em lugar inadequado. Na impossibilidade de cumprimento de hora e/ou lugar, novos horários e lugares devem ser remarcados. O parcelamento de uma dívida pode contrariar a boa-fé, se o mesmo onera o credor desnecessariamente, criando, por exemplo, despesas administrativas adicionais. Por outro lado, o devedor pode exigir o parcelamento de suas dívidas com base na boa-fé se for necessário para preservar seus interesses protegidos pela lei.26 Da mesma forma, o devedor pode exigir pagamento sob forma de cheque (com fundo) em vez de espécie.27

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Dos direitos e deveres secundários

No sistema de direito civil alemão os deveres secundários complementam as obrigações principais.

3.1. Da fundamentação dos direitos e deveres secundários

Tais deveres secundários têm sua origem ou nas declarações de vontade das partes, ou em normas legais, tais como os parágrafos 368, 402,

25 parágrafos 134, 138 e 826 do BGB 26 BGH NJW 1977, 2358

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444, 618 e 666 do BGB. No entanto, a fonte principal dos deveres secundários é o conceito da boa-fé, conforme o parágrafo 242 do BGB.

Além de obrigar o devedor a cumprir em conformidade com o conceito da boa-fé, o art. 242 do BGB exige um comportamento que preserva a vida, a saúde, bem como o patrimônio da outra parte.

Daí extrai-se uma gama de deveres secundários, tais como deveres de informar, consultar, esclarecer, advertir, colaborar, abster, cuidar, assistir e/ou proteger, conforme o caso específico.

Tais encargos não são restritos às relações obrigacionais. Por exemplo, a boa-fé constitui, através do parágrafo 242 do BGB, deveres secundários daquele que deve uma pensão alimentar, ou por invalidez, a outrem.28

Embora seja necessário um relacionamento obrigacional para constituir deveres secundários, os mesmos podem surgir antes da obrigação principal. Assim, o início de negociações contratuais já cria deveres de proteger e avisar, independentemente da conclusão de uma relação contratual, cuja infração resulta em direitos da outra parte a perdas e danos sob o aspecto da culpa in contrahendum. O exemplo clássico disso é o do freguês que sofre um acidente em um supermercado ao escorregar em uma casca de banana.

3.2. Alguns deveres secundários específicos

Não existe nenhuma classificação ou terminologia para todos os tipos de deveres secundários reconhecida pela jurisprudência e os doutrinadores. No entanto, podemos apresentar alguns tipos de deveres secundários que exercem a maior influência na prática do direito civil no dia-a-dia, a saber:

3.2.1. A fidelidade

O objetivo deste dever secundário é de assegurar o cumprimento da obrigação principal. A fidelidade obriga o devedor a praticar todos os atos

28 BGH NJW 1986, 1753; 1988, 1966

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necessários para preparar, efetuar e assegurar o cumprimento da obrigação principal. As partes deverão abster-se de praticar qualquer ato que prejudica o objetivo do contrato.29

Pode-se exigir do fiador a mesma fidelidade devida pelo devedor principal.30

O que a fidelidade exige do devedor depende das circunstâncias de cada caso individual. Em geral, pode-se distinguir quatro áreas principais:

3.2.1.1.

O dever de preparar e efetuar o cumprimento da

obrigação

Desde a celebração do contrato até o seu cumprimento, o devedor é compelido a cuidar do objeto contratual. Por exemplo, ele deve manter as máquinas e alimentar os animais vendidos até a entrega dos mesmos ao comprador, mesmo no caso de atraso do recebimento por parte do comprador.31 A mercadoria vendida deve ser embalada de forma adequada e

enviada com todo o cuidado cabível. O prestador de serviços deve alertar o beneficiário de falhas em possíveis serviços anteriores ou preparatórios.

3.2.1.2.

O dever de assegurar o cumprimento da obrigação

É vedado às partes diminuir ou subtrair as vantagens contratuais da outra parte, ou pôr as mesmas em risco.32 Tal dever é mútuo e continua em vigor mesmo após o cumprimento de todas as obrigações contratuais. O cedente deve abster-se de qualquer atividade detrimental à realização, pelo cessionário, do direito cedido.33 É desleal a concorrência direta do vendedor de

uma empresa ou consultoria com sua própria carteira de clientes com o comprador da mesma.34 O fabricante de produtos industriais deve fornecer as

partes e peças necessárias pela manutenção de tais produtos durante o tempo normal de uso dos mesmos.35 O locador de áreas comerciais ou lojas, por

29 RG 72, 394; BGHZ 93, 39 30 BGH NJW 89, 1393 31 RGZ 108, 343 32 RGZ 161, 338; BGHZ 16, 10 33 RGZ 111, 303 34 RGZ 117, 178; BGHZ 16, 75 35 Finger, NJW 70, 2049

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exemplo, em shoppings, deve manter o locatário livre da concorrência direta.36 É vedado ao representante comercial vender os produtos dos concorrentes do representado.37

3.2.1.3.

Da manutenção do contrato

Constituem infrações do dever secundário da fidelidade a recusa em cumprir as obrigações contratuais e a colocação em risco do objetivo do contrato. O mesmo aplica-se à denuncia unilateral do contrato e à recusa, pelo credor, de aceitar ou receber a coisa devida, sem justa causa.

3.2.1.4.

Da assistência à outra parte

Da existência de um relacionamento de obrigações infira-se, até um determinado grau, o dever secundário da assistência recíproca entre as partes. Assim, pode-se obrigar o credor a disponibilizar toda a documentação necessária para o devedor conseguir um crédito,38 ou fornecer todas as certidões necessárias para a instrução das declarações tributárias do devedor.39

No entanto, o dever secundário de fidelidade não obriga ninguém a colocar seus próprios interesses em prejuízo aos da outra parte.

3.2.2. Do dever de colaborar

O credor e o devedor têm a obrigação de colaborar para alcançar o objetivo do contrato e remover os obstáculos para o cumprimento do mesmo. Embora vise facilitar o cumprimento do contrato e a prestação do serviço devido, esta obrigação é cobrável judicialmente como dever secundário isolado.

No caso dos contratos sujeitos à autorização, homologação, registro ou licença pública, tal dever obriga as partes a fazer todo o possível para obter tais autorizações necessárias para poder executar o contrato. Caso

36 BGHZ 70, 80

37 BGHZ 42, 61 38 BGH NJW 73, 1793

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tal autorização seja vinculada a alguma exigência, as partes do contrato são obrigadas a modificar o contrato de modo a cumprir tal exigência. Caso a autorização não seja concedida, as partes, dependendo das circunstâncias do caso específico, podem ser obrigadas a celebrar o contrato novamente e sob condições que garantam a concessão da autorização.40

O mesmo se aplica aos contratos com pessoas menores ou interditadas que dependem da autorização do tutor. No entanto, o tutor não é obrigado a concordar com um contrato, mesmo já autorizado pela justiça.41

Nos casos de contratos que necessitam de autenticação ou registro notarial, as partes são obrigadas a procurar outro cartório, caso se verifique que o tabelião é incompetente ou não confiável.

Quem concordar com algo é obrigado a outorgar a correspondente autorização de forma a observar todas as formalidades previstas em lei para torná-la eficaz, por exemplo, por meio de documento público.42

No caso de uma cessão abranger – por meio de interpretação da mesma – outros direitos além daquele especificado, o cedente é obrigado a prestar esclarecimentos nesse sentido.43 Segundo a doutrina, o mesmo se aplica nos casos da falsa demonstratio.44

3.2.3. Do dever de proteger

O conceito da boa-fé obriga as partes de um contrato a se comportar de modo a não lesar a pessoa, o patrimônio, ou os demais direitos da outra parte.45

Embora tenha a origem no conceito da boa-fé, esse dever de proteger a outra parte está concretizado em outras normas do BGB, tais como os parágrafos 536 (direito do inquilinato), 618 (contratos de prestação de

40 BGHZ 38, 149; 67, 35

41 BGHZ 54, 73 42 KG NJW 62, 1062

43 Tribunal Superior de Hamburgo, Monatsschrift für Deutsches Recht - MDR 1959, 123 44 Köhler, Juristische Rundschau - JR 1984, 15

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serviços, direito de trabalho) e 701 (deveres do hospedeiro como depositário fiel). No entanto, independentemente disso, vale a regra geral de que todas as partes contratuais têm a obrigação de tomar os cuidados necessários para a proteção da saúde e do patrimônio da outra parte.46

Consoante as convenções atuais, tal dever fundamenta a obrigação do fumante de se abster do seu vício na proximidade de um não-fumante, principalmente, se tal não-fumante for alérgico ao fumo.47

O não cumprimento desse dever faculta à outra parte reclamar perdas e danos com base nos princípios da culpa in contrahendo e da lesão positiva da demanda.4849

O dever de proteger envolve a obrigação de contratar o seguro necessário. Por exemplo, o empregador é obrigado a contratar seguro do extenso necessário para evitar que demandas de perdas e danos contra seus empregados, exercendo a função de motoristas, ameacem o sustento dos mesmos.50 Do mesmo modo, o vendedor de carros é obrigado a fornecer uma

cobertura de seguro para os motoristas que fazem test drives.51 O joalheiro

deve contratar seguro contra roubo e furto necessário para proteger o cliente que deixa objetos de valor depositados com ele.52 Os clubes esportivos devem contratar seguro de modo suficiente para seus membros, como foi decidido no caso de um clube de hipismo.53 No entanto, um tribunal de primeira instância decidiu que uma academia de judô não tem o dever de contratar seguros para seus lutadores.54

45 BGH NJW 1983, 2814

46 RGZ 78, 240

47 Tribunal Superior de Frankfurt a.M., (Neue Juristische Wochenschrift –

Rechtsprechungs-Report - NJW-RR) 1994, 633

48 A lesão positiva da demanda (positive Forderungsverletzung - pFV) é um instrumento legal, desenvolvido em 1904 pelo advogado prussiano Hermann Staub para regulamentar situações não previstas pelo BGB. Apesar de não ter sido incorporada na legislação até hoje, a pFV é reconhecida pela jurisprudência e doutrina e faz parte do sistema do direito civil alemão. 49 Heinrichs, ibidem, pág. 227

50 BAGE, 14, 228; BGH Versicherungsrecht - VersR 1964, 239 51 BGH NJW 1986, 1099

52 Tribunal Superior de Frankfurt a.M., NJW-RR 1986, 107 53 BGH NJW RR 1986, 573

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3.2.4. Do dever de prestar informações relevantes

O dever de prestar informações é o dever de avisar à outra parte, de forma espontânea, sobre fatos decisivos.

Tal dever se confunde com o dever de proteger a outra parte, especialmente quando se trata da necessidade de avisar sobre perigos iminentes, tais como os efeitos nocivos de preparações perigosas,55 ou os riscos inerentes ao balonismo.56

O dever de prestar informações somente existe na medida em que se deve contar com a expectativa dessa prestação pela outra parte em base dos costumes do mercado.57

A jurisprudência alemã estabeleceu a existência do dever de prestar informações nos seguintes casos:

quando as informações forem solicitadas pela outra parte;58

quando tais informações forem de importância decisiva para a outra parte.59 Assim, o vendedor é obrigado a

revelar voluntariamente quaisquer defeitos fundamentais da mercadoria a ser vendida.60 Mesmo a mera

desconfiança da existência de defeitos graves da mercadoria deve ser comunicada ao comprador.61 Quem irá assumir pagamentos recorrentes deve revelar as dificuldades financeiras existentes e/ou a iminência de sua falência;62 55 BGHZ 64, 49 56 BGH NJW RR 1991, 421 57 BGH NJW 1970, 655; BGH NJW 1989, 764 58 BGHZ 74, 392; BGH NJW 1967, 1222 59 BGH NJW 1971, 1799 60 BGH NJW 1990, 975

61 BGH, Nachschlagewerk des Bundesgerichtshofs in Zivilsachen, herausgegeben von

Lindenmaier und Möhring - LM § 463 Nº 8 (Cita-se a jurisprudência publicada nessa coletânea

pelo parágrafo do BGB comentado.)

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quando há uma situação de confiança especial entre as partes, oriunda de laços de parentesco ou de amizade,63 ou de relações comerciais de longo prazo.64 Tal confiança também pode ser inspirada pela posição especial da parte no mercado, como no caso do banqueiro65 ou do corretor de bolsa de valores,66 do vendedor de carros usados,67 ou

do consultor.68 Nesse caso, o dever de prestar informações sempre existe, quando a falta de experiência ou imperícia da outra parte em assuntos comerciais fica evidente.69

Por outro lado, a jurisprudência também tem imposto limites ao dever de prestar informações relevantes. Por exemplo, não existe a obrigação do desempregado em prestar informações, espontaneamente, ao possível empregador sobre circunstâncias negativas, tais como condenações prévias, gravidez, filiação ao Partido Comunista,70 ou dificuldades em empregos anteriores. Contudo, há a obrigação de revelar doenças que limitam a aptidão para o trabalho de maneira expressiva.71 A execução iminente de uma sentença penal deve ser informada, se a reclusão resultante impede a prestação do serviço a ser contratado.72

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Do exercício ilícito de direitos

Segundo a jurisprudência alemã, o conceito da boa-fé impôs limites inerentes a quaisquer direitos, condições legais e normas (Innentheorie = Teoria da inerência).73 O exercício de um direito e/ou o aproveitamento de uma condição legal de forma contrária ao parágrafo 242 do BGB são tidos como abusivos e são, portanto, nulos.74 No entanto, faz-se necessário

63 BGH NJW 1992, 302

64 BGH LM § 123 Nº 52 65 RGZ 111, 233 66 BGHZ 80, 84

67 Tribunal Superior de Hamburgo, NJW RR 1992, 1399 68 Tribunal de Berlim, NJW RR 1989, 505

69 BGHZ 47, 211

70 Tribunal Regional de Trabalho de Mogúncia, NJW 1985, 510 71 BAG DB 1986, 2238

72 Tribunal Regional de Trabalho de Frankfurt a.M., BB 1987, 968 73 BGHZ 30, 145; BAG BB 1995, 204

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estabelecer os limites impostos pelo conceito da boa-fé com base nas circunstâncias de cada caso individualmente.

4.1. Do significado do exercício ilícito de direitos

Assim, o parágrafo 242 do BGB acarreta uma situação de relatividade do conteúdo dos direitos. O exercício de um direito contrário a esta norma pode se tornar lícito se as circunstâncias relevantes do caso se mudarem.75 No entanto, tal mudança das circunstâncias relevantes do caso pode tornar o exercício de um direito ilícito. Há de se apreciar a situação do caso e suas circunstâncias no momento do exercício do direito.76

Todavia, não se aplica esta regra no caso em que exista uma norma específica regulamentando a matéria, tais como o parágrafo 1587c, inciso 377, do BGB, no âmbito da separação conjugal, ou as normas específicas para o processo administrativo da concessão de asilo político.78

Basicamente, fala-se do exercício ilícito de um direito quando se tem tal exercício de um direito individual como nulo por contrariar o conceito da boa-fé. Entretanto, o conceito da boa-fé não limita apenas direitos individuais. Em sua função como mandamento do comportamento probo e leal, a boa-fé também limita instituições e normas de direito, proibindo, assim, também o abuso institucional do direito.

4.2. Alguns casos específicos

Existe um número expressivo de situações capazes de configurarem o exercício ilícito de direitos. Entretanto, não existe nenhuma classificação ou terminologia que goza de reconhecimento unânime entre os doutrinadores. Portanto, limitamo-nos a apresentar apenas algumas das configurações predominantes dessa instituição.

75 BGHZ 12, 307; 52, 368 76 BGHZ 13, 350

77 Segundo esta norma, aquele cônjuge que deixa de cumprir, de maneira grosseira, seu dever de contribuir à manutenção da família por um tempo prolongado, não fará jus à partilha dos créditos para a aposentadoria, quando da separação do outro cônjuge.

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4.2.1. Da aquisição dolosa da própria posição

Considera-se ilícito o exercício daquele direito adquirido pelo titular através de um comportamento contrário à lei, aos bons costumes e/ou contratos existentes.79 Essa norma foi desenvolvida a partir da regra do direito romano da exceptio doli specialis – praeteriti. No sistema jurídico do common law ela é conhecida como a doutrina das mãos sujas (doctrine of unclean hands).

Não é necessário estabelecer culpa ou má-fé para aplicar essa regra, basta um comportamento objetivamente ímprobo.80 No entanto, tal comportamento deve ter gerado vantagens para o credor (o titular do direito) ou desvantagens para o devedor (aquele onerado pelo direito) não presentes após um comportamento probo do credor. 81

Assim, a execução de um contrato celebrado por um representante excedendo visivelmente seus poderes de procurador é nulo.82

Da mesma forma o credor não pode exigir o cumprimento de um contrato pelo fiador se ele mesmo causou a inadimplência do devedor.83 Uma multa

contratual não pode ser cobrada, se o credor causou o comportamento gerador da multa.84 Também são incobráveis as despesas de uma notificação extra-judicial que resultou de métodos ímprobos de investigação.85 Também não se pode exigir a troca de notas de dinheiro danificadas por sistemas de segurança durante um assalto, se tais notas foram adquiridas do próprio ladrão.86

4.2.2. Da infração

Em determinados casos o exercício de um direito pode ser considerado ilícito se tal uso implicar no descumprimento das obrigações do titular do direito. Entretanto, isso não significa que somente aquele que sempre

79 BGHZ 57, 111 80 BGH LM (Cd) § 242 Nº 5 81 BGH LM (Cd) § 242 Nº 226 82 BGHZ 94, 138 83 BGH, Wertpapier-Mitteilungen - WM 1984, 586 84 BGH NJW 1971, 1126

85 Tribunal Regional de Munique, NJW-RR 1992, 739

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se comportou em conformidade com as suas obrigações possa exercer seus direitos.87

Assim, o beneficiário continua tendo o direito ao pagamento de pensão mesmo se descumpriu suas obrigações face ao órgão da previdência. Perde-se o direito à pensão excepcionalmente, por exemplo, no caso de o beneficiário estar colocando a capacidade financeira do devedor do benefício em perigo,88 cometendo o crime de extorsão,89 ou quando recebe pagamento de propina.90 O advogado somente perde o direito de receber sua remuneração

somente quando pratica atos contrários aos interesses do seu cliente.91 O

mesmo se aplica ao testamenteiro92 e ao tutor.93

4.2.3. Da falta do interesse legítimo

A partir da regra do direito romano do exceptio doli generalis – praesentis considera-se o exercício de um direito sem interesse legítimo como contrário à boa-fé.

Falamos da falta de interesse legítimo quando o exercício de um direito visa apenas alcançar vantagens ilícitas ou vantagens alheias à relação contratual. Além disso, cabem aqui os casos regulamentados pelo parágrafo 226 do BGB que proíbe o exercício de direitos com a finalidade de lesar terceiros.94

Assim, é vedado o exercício da preferência na compra de um imóvel pelo poder público sem que haja interesse da comunidade na aquisição do imóvel.95 Também não se pode invocar um direito contratual de consentimento somente para fins de receber pelo ato de consentir.96 O direito contratual de receber informações sobre um empreendimento não pode ser

87 BGH NJW 1971, 1747; BAG DB 1974, 2357 88 BGHZ 55, 277 89 BAG NJW 1984, 141 90 BGH NJW 1984, 1530 91 RGZ 113, 269; BGH NJW 1981, 1212

92 BGH Deutsche Notarzeitung - DNotZ, 1976, 559 93 RGZ 154, 110

94 § 226 BGB: Die Ausübung eines Rechtes ist unzulässig, wenn sie nur den Zweck haben

kann, einem anderen Schaden zuzufügen.

95 BGHZ 29, 117 96 BGHZ 107, 310

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exercido, se tais informações forem utilizadas na espionagem industrial.97 Do mesmo modo, um sócio não pode exigir a venda dos bens da sociedade a ser encerrada em leilão quando uma partilha amigável entre os sócios for possível e viável.98

Merece menção especial o caso da solicitação de entrega de algo que deve ser devolvido em seguida. Segundo a jurisprudência alemã, nesse caso não há interesse legítimo para tal solicitação segundo a regra romana do dolo agit.99 100 Dessa maneira, o proprietário não pode exigir a devolução de uma coisa de quem acabou comprando-a.101 O proprietário de um imóvel não

pode pedir a reintegração de sua posse, se o possuidor tiver um direito contratual de celebrar um contrato de aluguel com o proprietário.102 Também

não se pode executar uma hipoteca após a quitação da dívida principal.103

A justiça alemã também considera o exercício de um direito contrário à boa-fé, se há uma relação desequilibrada entre as vantagens pelo titular e as desvantagens que tal exercício traria para o devedor.

Assim, a reivindicação de pagamento de uma multa contratual prevista para o atraso de um pagamento contraria a boa-fé, se tal atraso for insignificante.104 O segurador não pode negar a cobertura contratual do segurado que deixou de pagar apenas umas parcelas insignificantes da taxa de seguros.105 Também contraria a boa-fé a reivindicação de uma multa contratual, se a inadimplência com a correspondente obrigação contratual não resulta em danos sérios para o credor.106

De qualquer forma, a boa-fé obriga o credor a fazer uso da sanção mais branda a sua disposição. Assim, cabe a rescisão contratual por

97 BGHZ 93, 211

98 BGHZ 58, 146

99 Dolo agit, qui petit, quod statim est redditurus. 100 vide BGHZ 10, 75; 79, 204; 94, 246; 110, 33

101 BGHZ 10, 75 Nota-se que o parágrafo 985 do BGB define a propriedade como o direito de exigir a entrega do bem do possuidor do mesmo.

102 Tribunal Regional de Colônia, NJW-RR 1992, 1162 103 BGHZ 19, 206

104 RGZ 86, 335; 169, 143 105 BGHZ 21, 136

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justa causa somente após uma infrutífera notificação.107 A exclusão de um sócio contraria a boa-fé se houver a possibilidade de aplicar sanções mais brandas contra ele.108 O mesmo se aplica na destituição de um procurador.109

4.2.4. Da atuação contraditória

(venire contra factum proprium)

O ordenamento jurídico alemão não proíbe a atuação contraditória. É facultado ao autor, em qualquer momento do processo civil, modificar os fundamentos de sua demanda. Da mesma forma, é lícito o réu modificar a sua defesa. Qualquer uma das partes pode alegar a nulidade das suas declarações prévias, sem temer sanções. Todavia, todo comportamento contraditório é considerado abusivo, ou seja, contraria a boa-fé, desde que a outra parte possa e deva confiar naquilo que foi contradito,110 ou quando a

contradição deve ser considerada abusiva à luz das circunstâncias do caso específico.111

É vasto o número de casos em que a jurisprudência alemã aplica a proibição do venire contra factum proprium, o que nos obriga a mostrar apenas alguns casos meramente em caráter exemplar.

No âmbito do direito de trabalho, é abusiva a rescisão de contrato de trabalho em um horário inadequado, por exemplo, durante a madrugada.112 Da mesma forma é considerada abusiva a rescisão motivada exclusivamente pela orientação sexual do trabalhador.113 Por outro lado, a reivindicação de férias pelo empregado impedido de trabalhar por motivo de doença não infringe a proibição do venire contra factum proprium.114 É lícito também a reivindicação de auxílio-doença pelo empregado acidentado ao trabalhar num sítio de sua propriedade. 107 BGH NJW 1981, 1265; BAG NJW 1989, 2493 108 BGHZ 16, 322 109 BGHZ 51, 203 110 BGHZ 32, 279; 94, 354

111 cf. Reinhard Singer, Das Verbot widersprüchlichen Verhaltens, Munique 1993; BGH NJW 1992, 834

112 BAG, Neue Zeitschrift für Arbeitsrecht - NZA, 1989, 16 113 BAG BB 1995, 204

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No âmbito do direito de família, os tribunais têm considerado abusiva a ação do cônjuge visando a anulação de matrimônio celebrado (sem observação das formalidades legais), perante um religioso, fora do território nacional durante a guerra, após uma convivência conjugal excedendo vinte anos.115 Da mesma forma, é abusiva a ação anulatória do cônjuge bígamo visando exclusivamente a possibilidade de contrair o terceiro matrimônio.116 O

mesmo se aplica no caso em que o autor deixa de pedir a homologação da sentença de um tribunal estrangeiro decretando o divórcio do segundo casamento.117 Também é considerado abusivo o questionamento da

paternidade de quem consentiu a inseminação heteróloga da mãe de uma criança.118 No entanto, cabe à criança o ônus da prova pelo consentimento.119

No direito das sucessões, o herdeiro secundário não pode assumir a herança depois de assassinar o herdeiro primário.120 O herdeiro de

uma pessoa incapaz não pode alegar a nulidade da venda de um imóvel pelo falecido se ele colaborou na mesma.121

O corretor não pode reclamar a exclusividade contratual, se ele deixou de trabalhar para o seu cliente por um período expressivo de tempo.122 No entanto, não é considerado abusivo se valer de uma informação obtida do corretor para fechar a compra de um imóvel sem a participação dele, e, conseqüentemente, sem o pagamento de sua comissão.123

É ilícito se basear numa cláusula contratual de arbitragem para alegar a incompetência absoluta de um tribunal em apreciar uma questão após argüir a nulidade desta mesma cláusula em um processo prévio de

115 Tribunal Regional de Hamburgo, Zeitschrift für das gesamte Familienrecht – FamRZ, 1981, 356; Tribunal Regional de Stuttgart, FamRZ 1963, 42

116 BGHZ 30, 146

117 BGH, Juristenzeitung – JZ, 1962, 446

118 Tribunal Regional de Düsseldorf, FamRZ 1988, 762; Tribunal Regional de Hamm, NJW 1944, 2425

119 BGH NJW-RR 1993, 643 120 BGH NJW 1968, 2051 121 BGHZ 44, 367

122 BGH NJW 1966, 1405

123 BGH NJW 1986, 178. No entanto, o corretor faz jus à comissão se o imóvel for comprado pela mulher de seu contratante.

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arbitragem,124 ou quando a arbitragem se tornou inviável devido à inadimplência de uma das partes.125

4.2.5. Do conceito da perda de direitos

(Verwirkung)

Predominante entre os casos da atuação contraditória é a perda de direitos. É parte da visão germânica da boa-fé a perda de direitos não exercidos durante um significante período de tempo, e aquelas pessoas oneradas por tais direitos podem e devem confiar que tais direitos não serão exercidos no futuro.126 Considera-se desleal a demora excessiva no exercício de um direito.

Para poder constatar tal prescrição do direito é necessário a decorrência de um período expressivo de tempo durante o qual o titular do direito ficou inativo. Determina-se o tempo necessário à luz das circunstâncias de cada caso, observando-se, principalmente, a natureza do direito e sua acuidade,127 e a intensidade da confiança do onerado128 face às conseqüências

do exercício tardio. Assim, o tempo considerado necessário fica diminuído por um comportamento do titular que deixa a impressão de que esteja abrindo mão do direito. Destarte, pode-se perder um direito contratual de rescisão já após a decorrência de apenas umas semanas,129 enquanto em casos envolvendo outros tipos de direitos o período de 28 anos tem sido considerado insuficiente.130 Em caso de dúvidas sobre a existência do direito, a espera do titular para o esclarecimento da situação jurídica não é considerada como demorosa.131

Durante este período o titular não deve ter feito nada que possa ser considerado como exercício do direito. Desse modo, não haverá perda de direitos se o titular deixou claro que vai se valer de seu direito, por exemplo através de uma notificação ou uma oposição.132

124 BGHZ 50, 191

125 BGHZ 102, 202

126 BGHZ 43, 292; 84, 281; 105, 298 127 BAGE 6, 168

128 Tribunal Regional de Frankfurt a.M., NJW-RR 1991, 678 129 BGH, Der Betriebs-Berater - BB, 1969, 383

130 BGH WM 1971, 1084 131 BGHZ 1, 8

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Avalia-se também, por outro lado, a posição do onerado a partir dos graus de sua confiança e do grau de seu conhecimento do caso. É fundamental determinar se o onerado sabia necessariamente do existência do direito em tela e se ele mesmo tinha boa-fé.133 No entanto, não é necessário que o titular esteja ciente da existência de seu direito,134 basta apenas a possibilidade objetiva dele ter tido tal ciência.135 Não haverá perda, se o

onerado esconde, ardilosamente, a existência do direito ao titular.136

Finalmente, é necessário o onerado ter confiado na desistência do exercício do direito e ter feito disposições correspondentes, fazendo com que o exercício demorado do direito fosse um ônus excessivo incompatível com a boa-fé.137 Especialmente em casos de reivindicações atrasadas de

pagamentos de aluguel ou pensão alimentar, a justiça alemã entende que há perda de direito se tais pagamentos ameaçam a subsistência do devedor, e tal ameaça seria inexistente se os pagamentos tivessem sido reclamados anteriormente deixando o devedor de considerá-los no seu planejamento financeiro.138 Os tribunais também têm julgado direitos reivindicados tardiamente nos casos em que o atraso impossibilitou ao devedor o fornecimentos de provas da inexistência da sua obrigação ou da quitação da mesma.139

No entanto, existem direitos que jamais caducam, tais como o direito de entrar na justiça,140 ou os direitos de exigir a cessão de atos de concorrência desleal141 ou do uso não autorizado da insígnia da Cruz Vermelha.142

A perda de direitos constitui, igual às outras formas do exercício ilícito de direitos, uma limitação material do direito que o juiz deve apreciar ex

133 BGHZ 21, 83

134 RGZ 134, 41; BGHZ 25, 53

135 Tribunal Regional de Frankfurt a.M., NJW-RR, 1986, 593 136 BGHZ 25, 53

137 BGHZ 25, 52; 67, 68 138 BGHZ 103, 71

139 Tribunal de Trier, NJW-RR 1993, 55 (perda dos comprovantes de pagamento pelo devedor) 140 BGH NJW-RR 1990, 887

141 BGHZ 16, 93; BGH, Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht – GRUR, 1985, 931 142 BGHZ 126, 287

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officio.143 Para evitá-la cabe ao titular do direito indicar quando exerceu ou reivindicou o direito. Por outro lado, cabe ao devedor o ônus da prova que tal exercício não aconteceu, bem como para a presença dos demais elementos necessários para a perda.

5

5

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Do conceito do fundamento do negócio

A relevância da motivação (explícita e/ou tácita) do contratante no momento da celebração do contrato tem sido objeto do debate jurídico há séculos. O princípio pacta sunt servanda inibe qualquer consideração do erro de motivo para poder levar em conta os interesses justos do contratado.144

O antigo direito comum germânico considerou que a clausula rebus sic stantibus145 é inerente a qualquer contrato, independente da presença

de um entendimento das partes nesse sentido ou não. Daí conclui-se que as partes deixam de serem vinculadas a um contrato se as condições especiais ou gerais presentes quando da celebração do mesmo, venham a sofrer alterações expressivas no momento da execução desse contrato.

Os pandectistas do século XVIII rejeitaram a doutrina da clausula rebus sic stantibus por carecer de fundamento no direito romano e por esvaziar o princípio pacta sunt servanda.

O doutrinador Windscheid colocou o problema na pauta do debate jurídico do século XIX com a sua doutrina da condição – Lehre von der Voraussetzung. No entanto, esta teoria não se consolidou por não poder diferenciar o erro de motivo e a condição, e também por não levar em conta os interesses do contratado.

O legislador do primeiro código civil para o Reino da Prússia, o Allgemeines Landrecht – ALR, de 1792, tentou codificar a clausula rebus sic stantubus nos seus parágrafos 377 e seguintes. No entanto, a mesma não

143 BGH NJW 1966, 345

144 Helmut Rüssmann, Zweckfortfall und Wegfall der Geschäftsgrundlage, http://ruessmann.jura.uni-sb.de/bvr99/Vorlesung/geschaeftsgrund.htm

145 Para a definição e abordagem da clausula rebus sic stantibus vide o ensaio de Paulo Roberto da Silva Passos, Revista dos Tribunais Nº 647, págs. 48 e segts.

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conseguiu se estabelecer. Já o BGB de 01.01.1900 não a incorporou, com exceção de algumas normas especializadas.

Pode-se afirmar, portanto, que a doutrina da clausula rebus sic stantibus não constitui princípio do direito alemão atual.146

Portanto, com o advento da hiperinflação na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, a jurisprudência se viu enfrentada com o problema de conciliar os princípios da boa-fé, ou seja, a confiança do contratado na validade dos termos acordados entre as partes, com os interesses do contratante, para quem a adesão aos termos originais significariam uma ameaça para a sua subsistência econômica. Então, a justiça começou a conceder ao devedor o direito de renegociar ou até rescindir contratos existentes com base em fundamentos variados, tais como a doutrina da clausula rebus sic stantibus,147 ou a impossibilidade econômica.148

No entanto, a partir do ano 1923, à luz da obra do doutrinador Oertmann,149 a jurisprudência consagrou o fundamento do negócio como

critério único da avaliação da alteração das circunstâncias contratuais.150 Essa posição não se modificou mais, nem após a estabilização econômica dos anos posteriores. A sua fundamentação legal é o princípio da boa-fé, ou seja, os parágrafos 157 e 242 do BGB.

5.1. Definição do fundamento do negócio

O fundamento do negócio é uma circunstância que, apesar de não constar nos termos do próprio contrato:

era tido como pré-requisito pelo contratante para a celebração do contrato de maneira evidente para o contratado;

146 RGZ 50, 257

147 RGZ 100, 130

148 RGZ 94, 47; 102, 273; 107, 157

149 Paul Oertmann, Die Geschäftsgrundlage. Ein neuer Rechtsbegriff, 1921 150 RGZ 103, 332

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era de tamanha relevância para o contratante a fim de que este não celebrasse o contrato nos mesmos termos se tivesse acreditado na possibilidade de sua ausência; e

o contratado de boa-fé não pudesse ter deixado de considerar se assim solicitado pelo contratante.

Tal definição foi desenvolvida na tentativa de conter as conseqüências de distorções graves nos fundamentos de contratos prevendo prestações recíprocas e mantendo-os em tamanho aceitável.151

5.2. Casos específicos

Pode-se aplicar as regras do fundamento somente na ausência de normas específicas que regulamentam a situação contratual, e na impossibilidade de alcançar uma solução através da interpretação da vontade das partes em conformidade com a boa-fé, como reza o parágrafo 157 do BGB. Em seguida, tratamos de algumas das situações mais comuns para a aplicação das regras do fundamento do negócio.

5.2.1. Da distorção da equivalência

(Äquivalenzstörung)

O princípio da equivalência entre a prestação e sua retribuição é inerente ao contrato sinalagmático, mesmo se não abordado pelas partes quando da negociação do mesmo.152 Caso a relação entre a prestação e a

retribuição vier a sofrer alterações graves, deve-se adaptar os termos do contrato às novas circunstâncias.153

No entanto, a perda de valor da moeda local não fundamenta a aplicabilidade das regras do fundamento do negócio.154 Da mesma forma, o

parágrafo 242 do BGB não serve para fundamentar o direito do credor de poder exigir uma "correção monetária" das prestações devidas a ele em um contrato de longo prazo.155 Cabe ao credor assumir o risco inflacionário. Assim, a

151 BGH NJW 1993, 850 152 BGH NJW 1958, 906; 1959, 2203; 1962, 251 153 RGZ 147, 289; BGHZ 77, 198 154 BGHZ 86, 168; BGH NJW-RR 1993, 272 155 BGH NJW 1974, 1186

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validade de qualquer disposição contratual imputando tal risco ao devedor deve ser analisada à luz dos preceitos da boa-fé, e certamente é nula de pleno direito se incluída no contrato como conseqüência da supremacia econômica do credor.

5.2.2. Da perda do motivo para o negócio

No direito alemão, aplicam-se as regras do BGB para a impossibilidade do negócio nas situações em que o objeto do contrato é alcançado sem a participação do devedor (por exemplo, quando um aparelho volta a funcionar antes da chegada do mecânico), ou se o objeto do contrato torna-se inalcançável (a casa a ser reformada é destruída por um incêndio).

As regras do fundamento do negócio são aplicáveis em situações excepcionais em que o objeto contratual, ainda alcançável, perdeu seu valor para o contratante (como no caso da aliança após o rompimento do noivado).

No entanto, cabe ao contratante o risco da utilidade da prestação se o contratado cumpriu suas obrigações contratuais sem falha.

Assim, o comprador não pode rescindir o contrato de compra e venda de material alegando o fechamento de sua empresa.156 O inquilino não

pode terminar um contrato de aluguel de um imóvel sob a alegação de não ter obtido um financiamento para uma obra de melhoramento do mesmo.157 O mutuário não pode desistir do empréstimo afirmando ter encontrado meios alternativos de financiamento.158

5.2.3. Do erro mútuo

O conceito do fundamento do negócio se aplica nos casos do erro mútuo entre as partes contratantes. O erro pode ser acerca de fatos ou de direitos.159 Todavia, o conceito da boa-fé do parágrafo 242 do BGB não é aplicável, se as conseqüências do erro mútuo influenciam o risco de apenas uma das partes.

156 Tribunal Regional de Stuttgart, NJW 1954, 233 157 BGH DB 1974, 918

158 BGH NJW 1990, 981 159 BGHZ 25, 393

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Assim, o pagamento contratual deve ser adaptado se ambas as partes erraram no seu cálculo,160 ou se as partes aplicaram uma taxa de câmbio errada.161 A justiça alemã também tem aplicado o conceito do fundamento do negócio nos casos do erro mútuo das partes sobre a validade do passe de um jogador de futebol a ser transferido,162 sobre o valor do objeto de um contrato de comodato,163 e sobre a possibilidade de obter um

financiamento público para uma obra.164

6

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Conclusão

Com o presente artigo acreditamos ter mostrado como a jurisprudência e doutrina tratam o conceito da boa-fé na Alemanha, bem como os efeitos e as conseqüências desse tratamento.

Certamente, algumas das regras estabelecidas ao longo do tempo na Alemanha não se aplicam ao Brasil. Não é objeto do presente ensaio pesquisar os motivos que levaram o conceito da boa-fé a tomar outro rumo no Brasil.

No entanto, acreditamos que era a intenção do legislador brasileiro se aproximar do conceito germânico da boa-fé ao introduzir o conceito da função social do contrato no Novo Código Civil.

Tal aproximação torna-se necessária, tendo em vista a consagração, no cotidiano brasileiro, de práticas flagrantemente contrárias à boa-fé, tais como a imposição do reajuste monetário das obrigações de longo prazo, ou a aplicabilidade de multas contratuais exorbitantes imediatamente após o vencimento de pagamentos, práticas essas sempre resultado do abuso de poder econômico.

Afinal, faz-se mister destacar a natureza objetiva e universal do conceito da boa-fé. Não há motivo para algo considerado abusivo na Alemanha ser lícito no Brasil e vice-versa.

160 BGH NJW 1995, 1428 161 RGZ 105, 406

162 BGH NJW 1966, 566

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164 BGH NJW-RR 1990, 602

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